O Património Cultural Subaquático e a 1ª Guerra Mundial – REFLEXÕES

July 26, 2017 | Autor: A. Salgado | Categoria: First World War, Underwater Archaeology
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ANAIS DO CLUBE MILITAR NAVAL

07 a 12 Jul-Dez 2014 ANO 144

FUNDADO EM 1870

Índice nota de abertura................................................................................ artiGos A Marinha e a “Paz Armada”- Planos Navais 1897-1916 ....................... contra-almirante F. david e silva A Marinha na I Guerra Mundial............................................................... capitão-de-fragata eh bessa Pacheco Moçambique (1914-1918): o improviso, a doença e os alemães .................. capitão-tenente (ref.) adelino rodrigues da costa A Grande Guerra nos Açores: aspetos da evolução político militar ................ mestre em história sérgio a. Fontes rezendes O Património Cultural Subaquático e a 1ª Guerra Mundial – Reflexões.................................................................................................... capitão-de-mar-e-guerra augusto alves salgado e investigador cinav Jorge russo A Grande Guerra nos Anais do Clube Militar Naval – 1914 .................. capitão-de-fragata antónio costa canas os annaes há 100 anos ....................................................................... F. c. crónicas Crónica Internacional................................................................................. Crónica da Direção ..................................................................................... Crónica de Administração Naval............................................................... Crónica de Arquitetura Naval ................................................................... Crónica de Ciências do Mar....................................................................... Crónica Cultural ......................................................................................... Crónica de Navegação ................................................................................ Crónica de Operações Navais .................................................................... Crónica de Saúde Naval ............................................................................. Crónica de Tecnologias da Informação e Comunicação.......................... necroloGia João Manuel Almeida Godinho ................................................................. Capitão-tenente Carlos Amante Crujeira ................................................. Capitão-de-mar-e-guerra Eduardo Manuel Mourão Verdial Lima Santos .................................................................................................................... Capitão-de-fragata Paulo Jorge Serrão Rodrigues .......................................... Capitão-tenente Manuel Inácio Godinho Novais Leite ................................... Capitão-de-mar-e-guerra Guilherme Almor de Alpoim Calvão ..................... Capitão-de-mar-e-guerra Manuel José dos Anjos Branco ............................... Capitão-de-mar-e-guerra Francisco José Ferreira Neto ................................... Capitão-tenente Carlos Alberto Monsanto Coelho de Campos .................

391-393 395-447 449-489 491-519 521-545 547-567 569-603 605-615

617-646 647-654 655-661 663-677 679-687 689-707 709-716 717-726 727-732 733-744 745-746 747-748 749-750 751-752 753-754 755-757 758-759 760-762 763-764

Índices do volume cXliii .................................................................

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lista dos JÚris Para atribuiÇÃodos PrÉmios dos anais do clube militar naval 2014 ....................................

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biblioGraFia...........................................................................................

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moÇambiQue (1914-1918): o imProviso, a doenÇa e os alemÃes cdu 94(100)”1914/1918“:902.03(469) 547

Anais do Clube Militar Naval, vol. cXliv, julho-dezembro 2014, p. 547-567

O PATRIMÓNIO CULTURAL SUBAQUÁTICO E A 1ª GUERRA MUNDIAL – REFLEXÕES1 auGusto alves salGado capitão-de-mar-e-guerra [email protected] JorGe russo investigador cinav [email protected]

RESUMO

ABSTRACT

no ano de 2014 no âmbito comemora-se não só o primeiro centenário do que ficou para a história como a 1ª Guerra mundial mas, também, a classificação dos vários milhares de navios afundados durante esse conflito, como Património cultural subaquático, ao abrigo da convenção de 2001 da unesco. em Portugal, como no resto do mundo, este património é alvo de vários tipos

2014 commemorates not only the centennial of the World War One, but also the classification of several thousand vessels sunk during this conflict, as Underwater Cultural Heritage, under the 2001 UNESCO Convention. In Portugal, as in the rest of the world, this heritage is under threat, heather by natural events, or especially by human actions. Experts’ hope these commemo-

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Estas reflexões são fruto não apenas das investigações/preocupações dos autores mas, também, resultado do que foi exposto na Scientific Conference on the Underwater Cultural Heritage from World War I, que decorreu entre 26 e 28 junho de 2014, em Bruges (Bélgica), cuja declaração final se junta em anexo.

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de ameaças, não apenas naturais mas, especialmente, humanas. os especialistas esperam que estas comemorações permitam aumentar a consciencialização de todos sobre a importância destes naufrágios, quer através dos eventos ocorridos, quer pelas fortes ligações humanas que ainda existem e que ultrapassam os próprios naufrágios, nomeadamente, no que se refere a todos aqueles que no mar perderam a vida.

PALAVRAS-CHAVE 1ª Guerra mundial, Património cultural subaquático, salvaguarda, Portugal

rations will increase awareness about the importance of all these shipwrecks. Not only because of the prominence of the events related, but also because of the strong human connections that still exist, which are beyond the shipwrecks themselves, particularly regarding the respect for all those who lost their lives at sea.

KEYWORDS World War One, Underwater Cultural Heritage, Protection, Portugal

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ENQUADRAMENTO Para muitas pessoas, a 1ª Guerra mundial, apesar do nome, travou-se apenas nas trincheiras que se estendiam entre a fronteira suíça e o mar do norte, algures na Flandres. nada, porém podia estar mais longe da realidade, já que foi um evento disputado à escala global, tanto em terra, como no mar. o mar, à semelhança do que ocorreria mais tarde na 2ª Guerra mundial e durante a Guerra Fria, era fundamental para as nações envolvidas, pois todos os oceanos eram o meio preferencial para o trânsito de pessoas e bens, não apenas entre os países aliados, mas também entre as outras nações e as suas colónias. sem o domínio do mar, os aliados teriam seguramente perdido a guerra, pelo que não é de estranhar que os estudos mais recentes tendem a estender a denominada Frente ocidental para além da Flandres, até às costas da escócia. essa frente, naturalmente que não tinha trincheiras, nem arame farpado, mas imensos campos de minas, constantemente patrulhada por navios e embarcações, de modo a garantir a chegada dos meios humanos e materiais, fundamentais para manter os exércitos e as populações devidamente abastecidos. milhares de navios e embarcações circularam durante os cinco anos que durou esta guerra por detrás dessa linha defensiva. este tráfego culminou com o transporte dos soldados americanos que contribuíram decisivamente para a derrota da alemanha. naturalmente que este país estava ciente da importância dessas rotas de abastecimento, razão pela qual levou a cabo acções de diversos tipos e com variados meios, com o objectivo de as interromper. inclusivamente, alegou repetidamente que a sua guerra generalizada à navegação comercial Britânica ou por esta fretada, se justificava pela sua violação da lei internacional, ao impedir a importação por parte da alemanha de bens não destinados a fins militares. Tratavam-se de bens que constavam de uma lista designada de “contrabando” e que, ao serem detectados a bordo de navios neutrais, eram apreendidos pelos aliados e impedidos de alcançar os portos alemães. apesar de uma inicial hesitação no uso da guerra submarina contra a marinha mercante, em que as autoridades militares se digladiavam com as autoridades económicas e diplomáticas, os alemães acabaram por declarar e praticar a guerra generalizada ao comércio marítimo.

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Fig. 1 – O afundamento de um navio mercante aliado a tiro de artilharia. Um procedimento que nem sempre ocorreu durante o conflito © IWM (Q 24072)

Ainda antes do conflito, e mesmo nos primeiros momentos do mesmo, britânicos e alemães não acreditavam na eficácia da utilização de submarinos na guerra. Foi porém, um choque quando um torpedo disparado por um submarino, o U-21, afundou um navio de guerra, o hms Pathfinder, no dia 5 de setembro de 1914. Fruto da acção dos submarinos alemães nos mares de todo o mundo e, em particular, nas águas circundantes a inglaterra, estima-se que este primeiro grande conflito do século XX tenha provocado mais de 10.000 naufrágios. Por si só, este número não permite que todos eles possam ser alvo das intervenções previstas na convenção da unesco de 20012, sobre a salvaguarda do Património cultural subaquático (Pcs)3. Por esta razão, torna-se necessário em primeiro lugar efectu2

a convenção para a Protecção do Património cultural subaquática foi adoptada na 31ª. conferência Geral da unesco, em Paris, a 2 de novembro de 2001, tendo por base os seguintes grandes princípios: obrigação da preservação do Património cultural subaquático; o princípio da conservação in situ, como opção prioritária; intervenção mínima; Proibição da exploração comercial do Património cultural subaquático; Promoção do acesso público ao património cultural subaquático in situ; cooperação internacional na protecção, formação em arqueologia subaquática, e divulgação.

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O Património Cultural Subaquático significa o conjunto de todos os vestígios da existência do homem de carácter cultural, histórico ou arqueológico que se encontrem

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ar uma selecção de quais os destroços a proteger. contudo, antes de se proceder à sua escolha, importa determinar com precisão o número exacto de naufrágios, as suas localizações e qual o estado em que se encontram. essa busca terá que ser efectuada em termos colaborativos entre diversos sectores e áreas, no âmbito de uma política global e integrada de protecção e preservação deste “novo” património. contudo, não sendo possível proteger todos os naufrágios da 1ª Guerra mundial, torna-se imprescindível que estes vestígios sejam todos identificados, inventariados, e devidamente priorizados, de modo a que seja possível proteger aqueles que forem escolhidos. a prioridade tem de ser definida com base em diversos factores, nomeadamente em termos técnicos – profundidade a que se encontram, local, estado de conservação, entre outros –, em termos políticos – nomeadamente qual a importância do navio, do contexto em que se afundou, entre outros – e nos seus aspectos legais, ou seja, saber – se a legislação permite que seja protegido. encontrando-se estes destroços, na maior parte dos casos, em estado de abandono e negligenciados ou mesmo esquecidos, os que forem selecionados terão que ser necessariamente “recuperados” e preservados, salvo raras excepções. estas acções devem ser conduzidas em duas vertentes: - a primeira, social, pois é fundamental que as populações estejam cientes da importância desses locais em termos históricos, é algo que concorre para a sua própria identidade. essa consciência social é ainda mais importante quando existe uma ligação directa entre a comunidade e os destroços/evento. deste modo, é possível identificar todas as partes interessadas ou intervenientes, nunca esquecendo que, apesar da função de protecção ser uma responsabilidade do estado, esta também deve ser dos privados. a envolvência das duas partes permitirá dar a essa acção de salvaguarda uma abrangência muito maior.

parcial ou totalmente, periódica ou continuamente, submersos há, pelo menos, 100 anos, nomeadamente sítios, estruturas, edifícios, artefactos e restos humanos, bem como o respectivo contexto arqueológico natural; navios, aeronaves e outros veículos, ou parte deles, a respectiva carga ou outro conteúdo, bem como o respectivo contexto arqueológico e natural e artefactos de carácter pré-histórico. cf. artigo 1º da convenção da unesco sobre a Protecção do Património cultural subaquático.

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- em segundo lugar, importa que os destroços recebam algum tipo de “protecção legal”, classificando-os, por exemplo, como navios de guerra ou do estado, designações que lhes conferirão uma outra moldura legal, mais robusta e assegurarão um tipo de cooperação muito superior entre diferentes estados, quando comparado com outras situações. Porém, caso os destroços dos navios afundados neste violento confronto bélico estivessem apenas nas condições acima indicadas, ou seja, abandonados e esquecidos, pelo menos estariam preservados e a salvo de destruição humana. o problema complica-se porque, em muitos casos, estes naufrágios que, à luz da convenção de 2001, vão agora tornar-se património mundial, encontram-se sob constante ameaça e a necessitar de protecção urgente. essa salvaguarda terá que ser conseguida, prioritariamente, em termos legais, através da criação ou do aperfeiçoamento da legislação específica que transforme esses naufrágios em memoriais para a reconciliação entre os homens, nomeadamente através dos designados “war graves”, ou “túmulos de guerra”4. aqui, como em outras situações, a convenção de 2001 pode desempenhar um importante papel, em particular ao nível da conjugação de esforços, regionais ou bilaterais. uma outra solução passa pelo estabelecimento, entre diversos parceiros e Estados, de acordos científicos ou Memorandos de Entendimento (mou), vulgarmente designados como “soft law”.

AMEAÇAS contrariamente ao que se pode julgar, os navios construídos com materiais ferrosos degradam-se muito mais rapidamente que os construídos com madeira. disso são prova evidente o Mary Rose (século Xvi), em Portsmouth, e o Vasa (século Xvii), em estocolmo. Garantidamente que, daqui a 100 anos, nenhum navio em ferro ou aço, se encontrará em tão bom estado de conservação como qualquer um destes dois anteriores. embora os valores possam variar de oceano para oceano, de local para local, por norma, a corrosão da chapa metálica dá-se ao ritmo de 4

sobre este assunto ver infra neste estudo, sob o subtítulo “memória aos mortos”.

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0,1 mm por ano, podendo atingir 10 cm em 100 anos. com excepção dos navios de guerra, nomeadamente aqueles com maiores blindagens, nenhum navio contemporâneo tem uma chapa de costado ou convés tão espessa. ou seja, 100 anos depois de um navio de construção metálica se ter afundado, este transforma-se num monte de metal concrecionado quase disforme ou, no mínimo, as suas estruturas já abateram e o navio apresenta-se sem qualquer conexão ou coerência estrutural.

Fig. 2 – Partes da estrutura de um navio afundado durante a 1ª GM ao largo de Sagres © ASalgado

todavia, as ameaças a este importante e numeroso Pcs, não se limitam à acção da degradação natural. a realidade mostra que o património relacionado com a 1ª Guerra mundial, em particular o Pcs, está constantemente ameaçado por actividades humanas ocasionais – por exemplo, obras costeiras ou portuárias –, ou por acções sistemáticas e dirigidas – actuações dos caçadores de tesouros “profissionais” ou de firmas de exploração de salvados comerciais, não se encontrando sequer isento da colheita de “souvenirs” por parte de alguma da comunidade de mergulhadores recreativos. não sendo sempre possível evitar a realização dessas acções, é porém fundamental que todas as efectuadas sejam devidamente acompanhadas e monitorizadas de acordo com a mencionada convenção de 2001, e que a comunidade de mergulhadores amadores seja sensibilizada para a necessidade de nada remover dos destroços, como garan-

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tia por um lado da sua preservação e, por outro, da sua futura fruição cultural. o mesmo ocorre com as acções que sejam realizadas em destroços que representam ameaças ambientais, em particular devido a cargas perigosas. exemplo disso são os destroços de navios em cuja carga já foi identificada a existência de, por exemplo, gás mostarda, que foi amplamente utilizado por ambos os beligerantes da 1ª Guerra mundial. sabe-se hoje que esta substância, quando entra na cadeia alimentar, pode inclusivamente alterar o dna dos seres vivos. um outro perigo deriva das inúmeras quantidades de munições que foram para o fundo com os navios, muitas delas ainda ativas. naturalmente, e por motivos óbvios, os destroços que têm que ser alvo de operações de recuperação têm obrigatoriamente de seguir as regras já amplamente estabelecidas e consagradas no seio da arqueologia subaquática. Pela sua diversidade e amplitude, a realização das acções atrás indicadas aconselham à existência, para além da cooperação entre nações resultante do carácter mundial do conflito, de uma colaboração e uma coordenação entre as diversas entidades que podem influenciar ou ser influenciadas pela presença de um determinado sítio arqueológico. neste âmbito, é fundamental a cooperação entre a arqueologia subaquática e, por exemplo, aqueles que se ocupam das questões ambientais. importa também incluir no processo os usufruidores locais, como os pescadores e os centros de mergulho, por exemplo. essa cooperação deve ser uma realidade no terreno e, também, em termos de legislação, constituindo um importante factor económico que, de resto, já se encontra patente no Plano estratégico nacional do turismo (Pent). Garantidamente que a intervenção num vestígio de Património cultural subaquático, efectuada de uma forma multidisciplinar, irá alcançar um número muito superior de interessados, em comparação com uma aproximação isolada, dando-lhe uma muito maior visibilidade e, consequentemente, uma maior protecção. actualmente ninguém duvida que, só com usufruidores locais bem enquadrados e consciencializados que actuem, não como ameaça, mas antes como ligação entre os vestígios arqueológicos e o resto do público interessado, é que será possível preservar este Pcs, que é de todos.

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MEMÓRIA AOS MORTOS Estranhamente, a figura de war graves – que se poderá traduzir por túmulo de guerra – não existe no contexto marítimo na legislação internacional. apenas alguns países, como é o caso do reino-unido e dos estados unidos da américa, têm legislação que tenta conferir alguma protecção legal, para além da moral, aos locais onde muitos perderam a vida no mar durante a 1ª Guerra mundial. esta situação contrasta fortemente com o que ocorre em terra, onde os diversos cemitérios espalhados pelos vários campos de batalha são os mais significativos representantes dessa memória. Por norma, encontram-se estes memoriais a todos quantos perderam a vida nesse terrível e mortífero conflito do início do século XX, junto dos locais onde decorreram as batalhas, e cabe aos respectivos estados a sua preservação em condições dignas, respeitando assim a memória daqueles que tombaram ao serviço das suas pátrias.

Fig. 3 – A tripulação do navio mercante a salvo num salva-vidas a ser interrogada pela guarnição de um U-Boat. Nem sempre as coisas corriam tão bem para esses heróis desconhecidos © IWM (Q 20378)

e no mar? Que protecção têm os cerca de 10 000 navios das mais diversas nações que se perderam durante os cinco anos do conflito, muitos dos quais arrastando consigo para as profundezas dos oceanos, tantos marinheiros? a memória daqueles que perderam a vida no mar não merece o mesmo respeito do que a memória dos que morreram nas trincheiras?

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seguramente que sim, e por essa razão não é de estranhar que o ano de 2014 seja considerado importantíssimo para a preservação de todo este amplo património, em particular quando nos referimos ao Património cultural subaquático. tal ocorre porque, em termos formais e globais, só passados 100 anos após o afundamento de um navio é que este passa a estar protegido pela convenção da unesco de 2001 sobre o Pcs. espera-se que, encontrando-se agora estes naufrágios sobre a protecção da mencionada convenção, seja possível evitar posteriores destruições deste “novo” Pcs. essa destruição, principalmente realizada por acção humana, deve-se principalmente a trabalhos que se iniciaram pouco depois do final do conflito e que ainda se verificam nos dias de hoje, de forma perfeitamente legal e sem qualquer princípio ético ou moral que respeite aqueles que perderam a vida nesses naufrágios. trata-se habitualmente de trabalhos ligados à recuperação das cargas e metais nobres neles existentes. a situação agravou-se desde o início do século XX, com o emprego de novas tecnologias, que permitem a “rapina” a profundidades cada vez maiores.

ACÇÕES A REALIZAR em todo o mundo, e à semelhança do que ocorre em terra, vão ser desenvolvidas, entre 2014 e 2018, diversas actividades para comemorar este importante confronto bélico, tentado ligar todos os protagonistas mas, principalmente, os interessados. estas acções vão ser realizadas por diversas entidades, particulares e estatais, mas também por organizações transnacionais, como é o caso da própria unesco. a grande maioria destes eventos pretendem dar a conhecer o espólio material desse PCS, e também alertar para o lado humano do conflito. encontrando-se muito desse espólio em locais inacessíveis à maioria das pessoas, torna-se necessário recorrer à sua divulgação através de eventos científicos, congressos e exposições e, também, à moderna tecnologia, que permita “visitas” virtuais. esse acesso virtual terá que utilizar não apenas uma linguagem universal como ainda ser efectuado em horários alargados, de modo a permitir o acesso a partir de qualquer ponto do planeta. nestas visitas, os destroços dos navios são, em si mesmos, fundamentais mas, os objectos pessoais permitem ao público ir para além do navio e aperceber-se da dimensão humana do naufrágio.

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EM PORTUGAL em Portugal e à semelhança do que vai ocorrer no resto do mundo, a maioria dos eventos evocativos, acções de divulgação e de memória da passagem do Centenário deste conflito mundial, irão prender-se com acontecimentos ocorridos em terra. todavia, espera-se que decorram alguns especificamente relacionados com os eventos marítimos e combates navais travados entre 1914 e 1918. O simples facto de Portugal ter ratificado, em 2006, a já mencionada convenção da unesco5, e que tornará os destroços dos navios afundados durante a 1ª Guerra mundial em Pcs, poderá ser uma peça fundamental nessa mudança de atitude e dar um impulso importante nos estudos navais deste período, que em Portugal se encontram muito negligenciados, quando comparados com os estudos “terrestres”.

Fig. 4 – O U-35 (fotografia pertencente a um familiar de um membro da guarnição - Richard Berger – cortesia do seu sobrinho-neto Allan Hunt, um cidadão americano)

em termos do Pcs, o centro de investigação naval (cinav) e a escola naval, têm previsto um projecto que decorrerá entre 2014 e 2018, relacionado com um interessante e esquecido episódio naval, envolvendo uma série de afundamentos de navios de várias nacionalida5

Portugal foi um dos primeiros Estados a ratificar a Convenção da UNESCO sobre a Protecção do Património Cultural Subaquático (ratificação publicada por Decreto do Presidente da república nº 65/2006, a 18 de Julho de 2006 (d.r., 1a série, no 137: 4951/4969), com base na resolução da assembleia da república no 51/2006, de 20 de abril de 2006).

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des, nas águas do algarve. trata-se de um evento ocorrido em abril de 1917, quando o submarino imperial alemão U-35 (cuja base, ao tempo, era em cattaro, actual montenegro) afundou quatro navios, três deles a muito curta distância de terra, entre sagres e lagos. três destes eram navios de carga a vapor e que foram presumivelmente identificados como três destroços, por se encontram muito perto das posições indicadas no diário de Guerra do U-35. um quarto destroço de um navio à vela está ainda por localizar. o U-35 era, então, comandado por lothar von arnauld de la Perière, famoso oficial submarinista da Marinha Imperial Alemã que, sob o seu comando, realizou 14 missões, afundando 187 navios mercantes e 2 navios de guerra, num total de 446.778 toneladas brutas6. Este oficial teve ainda a particularidade de ter pautado a sua actuação no cumprimento do “Prize Regulation” assinado em haia em 1899 e 19077, mesmo quando os submarinos alemães tinham ordem para conduzirem uma “guerra total” no mar. apesar de se tratar de um “pequeno” acontecimento no contexto global da guerra submarina da 1ª Guerra mundial, este episódio revela-se de imenso interesse histórico, quer para a compreensão das operações levadas a cabo pelos submarinos imperiais durante o conflito, nomeadamente no palco do mediterrâneo, quer para a forma como Portugal enfrentava, ou podia enfrentar, a presença e operação efectiva destes submarinos nas suas águas territoriais como quotidiano. Para além dos estudos históricos que vão ser realizados, no que respeita aos trabalhos no âmbito do Pcs, são diversas as áreas de interesse em torno deste episódio e nesta cronologia, que abrem uma janela de diversas possibilidades para potenciar o desenvolvimento deste projecto. no que se refere à arqueologia dos navios em ferro/aço a vapor, o escasso panorama bibliográfico, nacional e internacional, muito diz sobre a fragilidade do estado da arte nesta matéria. de imediato, logo 6

em conjunto com o comando do U-139, arnauld de la Perière afundou mais de 500 mil toneladas, uma tonelagem ainda hoje não excedida, incluindo o caça-minas Augusto Castilho, em 1918.

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a “Prize Regulation” estabelecia, entre outras questões, que um navio mercante apenas podia ser afundado na impossibilidade total de o transportar para porto como “prémio”, devendo ser garantido à sua tripulação a devida segurança. curiosamente, não se considerava a utilização de salva-vidas como garante desta segurança, a não ser em casos de franca proximidade com terra.

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surge a necessidade de multiplicar os estudos, criar “escola”, desenvolver metodologias e refletir sobre estas problemáticas, de uma forma muito urgente.

Fig. 5 – Mergulhadores a medir a caldeira de um navio afundado em 1917, uma característica que poderá ajudar determinar a identidade do navio © ASalgado

até hoje, a esmagadora maioria das actividades de arqueologia subaquática tem-se centrado em torno dos navios da época moderna (séculos Xv a Xviii), questionando-se até se a “arqueologia do vapor” poderá ser considerada arqueologia. esta situação produziu um vazio, que vai desde a formação à ausência de experiência, e que se reflecte numa evidente falta de especialistas, que se torna urgente contrariar, atendendo às muitas dezenas de destroços desta cronologia que, ao abrigo da convenção da unesco, passarão a estar protegidos no centenário da Grande Guerra. a relação entre os destroços existentes em sagres e os navios afundados pelo U-35 em 24 de abril de 1917 foi, pela primeira vez, sugerida num artigo publicado no ano de 2005, no suplemento da extinta revista de mergulho “Planeta d’água” (costa, 2005). desde então, não foi efectuado qualquer desenvolvimento na investigação historiográfica e, ao nível material, nada foi feito até ao presente. Justifica-se, por isso, que se pretenda desenvolver, em sagres, um projeto histórico/arqueológico, em torno dos navios afundados em 24 de abril de 1917 pelo U-35, que visa:

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• Proceder ao registo adequado dos três destroços, que apenas foram empiricamente associados com os vapores de carga afundados; • correlacionar, ou não, a relação entre os destroços e os navios afundados; • estudar as suas tecnologias de propulsão, no âmbito da arqueologia industrial; • efectuar a recolha de dados para o projeto internacional “The Stroke Project” (russo, 2012); • localizar o navio à vela ainda por descobrir8 com este projecto, esperamos testar e desenvolver metodologias arqueográficas e de correlação destroço-navio, em navios de ferro/aço do final do século XIX - início do século XX, contribuindo para o avanço da arqueologia subaquática desta tipologia de navios deste período.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O conflito que se iniciou em 1914 e cujo centenário comemoramos, habitualmente designado por Grande Guerra, é o momento ideal para explicar e trazer à “superfície” todas aquelas histórias que ainda não estão reveladas ou têm sido, simplesmente, negligenciadas. estes “pequenos” estudos não vão certamente alterar a macro-história do conflito, mas vão, seguramente, alterar o modo como as vemos e enriquecer a micro-história, muita da qual até hoje descurada. disso é exemplo a falta de estudos sobre a participação das “pequenas” nações, das então denominadas colónias das nações europeias ou, sobre o impacto que os afundamentos de navios pelos submarinos alemães, tiveram em Portugal, nas suas variadas vertentes. importa também potenciar o facto de, comparativamente com outros conflitos da História Mundial recentemente alvo de comemorações, como por exemplo as Guerras napoleónicas, muitos de nós ainda ter uma ligação muito forte à 1ª Guerra mundial. essa ligação advém, muitas vezes, de conhecermos ou termos conhecido pessoalmente algum interveniente, quase sempre com um grau de parentesco, mais 8

Já alvo de um artigo publicado na edição de agosto da National Geographic Portugal.

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ou menos próximo. esta proximidade, só por si, deveria permitir, por exemplo, que os “túmulos de guerra” fossem tratados com muito mais respeito o que, infelizmente, ainda não ocorre. em termos de preservação do património, este afastamento também se verifica relativamente aos vestígios da 1ª Guerra Mundial. Importa, assim, aproveitar este momento em que se comemora a Grande Guerra, e o sentimento emergido junto das populações e das entidades ligadas às comemorações, para realçar e trazer “à tona” todo este novo PCS, dando-lhe o tratamento finalmente devido e merecido, alcançando também o lado mais humano da arqueologia. esse é um dos grandes objectivos do projecto sobre as acções do u-35 no algarve, que está a ser desenvolvido pelo cinav.

Os autores não adoptam o novo acordo ortográfico.

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ANEXO SAFEGUARDING THE WORLD’S UNDERWATER CULTURAL HERITAGE Scientific Conference on the Occasion of the Centenary of World War I 26-27 June 2014, bruges, belgium

Recommendations The First World War left behind thousands of submerged heritage sites that today, a hundred years later, are precious heritage falling under the scope of the unesco 2001 convention on the Protection of the underwater cultural heritage. Facing pressures ranging from salvage, trawling and apathy, this submerged heritage of the war is a powerful but threatened reminder not only of that conflict, but also of its consequences. It needs care, preservation and awareness to fully assume its function as witness of history and means of education. From 26 to 27 June, on the occasion of the Centenary of World War I, scientists, diplomats and legal experts from 36 countries came together to discuss the preservation, research and protection of World War I underwater cultural heritage. In a common resolve and in their function as experts: Commemorating the Centenary of World War I and its devastating impact; Acknowledging the historical impact of the Naval War of World War I and the trans- national importance of its rich submerged heritage for science, education, and reconciliation, but also recreation, cultural tourism, and as a refuge for marine and avian life; Underlining the significance of underwater cultural heritage sites as a tangible link to historic events, and a chance for the current and future generations to ponder war’s consequences and to learn from this heritage legacy in order to make positive changes in how we conduct ourselves today or in future;

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Recognizing the scope of, but also the threats to underwater cultural heritage resulting from World War I, such as salvage, trawling, metal recovery and indifference as well as the difficulties of the conservation and preservation of large scale metal wrecks; Underlining the challenges of the legal protection of the underwater cultural heritage from World War I and especially the interest of the ratification of the UNESCO 2001 Convention on the Protection of the underwater cultural heritage for the safeguarding of this heritage; Underlining the need to raise public awareness of underwater cultural heritage; Giving thought also to the need to pay attention to the underwater cultural heritage from World War II; Underlining the need to recognize many of the wrecks of WWI as maritime war graves; the participants of the conference: 1. Encourage all States to ratify and fully implement the UNESco 2001 convention on the Protection of the underwater cultural heritage; 2. Encourage all States not yet party to the Convention to recognize and apply the principles of the Convention and the Rules of its annex; 3. Encourage states to adopt an appropriate national legal framework to protect underwater cultural heritage; 4. Encourage the further development of the operational Guidelines of the convention to support its implementation and to consider the manner in which the suite of the unesco cultural Heritage Conventions may also be used to protect the underwater cultural heritage of World War I; 5. Recall to states Parties to the 2001 convention their obligation to create competent national authorities according to art. 22, but also encouraging non-state-Parties to create such authorities; 6. Encourage national authorities to cooperate on a national level to protect underwater WWI heritage, in particular calling on the customs services, police and navies to control the introduction of artifacts from the sea into the countries;

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7. Encourage states to foster the monitoring and mapping of WWI underwater cultural heritage in order to allow for its research, protection and monitoring, but also to be able to evaluate environmental threats potentially emanating from some of the World War I wreck sites; 8. Encourage cooperation among scientists to allow the full inventorisation and mapping of all underwater cultural heritage from World War I and to encourage the creation of an international database with WWI underwater cultural heritage and to include in the database and through diver networks data, criteria and methodologies to evaluate the conservation state of metallic shipwrecks and to evaluate priority and the technical feasibility of their protection. 9. Invite States and all other relevant stakeholders to take urgent action to foster the preservation and conservation of World War I wrecks; 10. Encourages cooperation among divers and scientists to assess and monitor all human and natural impacts on underwater cultural heritage, including corrosion and climate change, in order to evaluate and anticipate the degradation of this heritage; 11. Strongly encourage to share information and allow responsible access to submerged heritage from World War I, be it in situ, in museums, on the web or virtually, for the public and with the use of innovative technologies; 12. Encourage the creation of marine Protected areas and maritime Landscapes, linking cultural heritage with natural heritage, and to create where appropriate dive trails or other access possibilities; 13. Encourage the creation of cultural routes connecting inland, coastal and underwater cultural heritage at regional or international level. 14. Encourage projects to involve and educate the public and raise the perceived significance of underwater cultural heritage. 15. Encourage utilizing projects, such as the unesco education Initiative on WWI Underwater Cultural Heritage, the “Lost beneath the Waves” Project of the Nautical Archaeology Society, UK, and the A2S Project of the Maritime Archaeology Trust, UK, amongst others, to create a best practice framework for dissemination and public engagement;

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16. Encourage investment in museums and virtualizing projects focusing on WWI UCH and to associate it with the human stories; 17. Encourage collective and individual events and the delivery of a high profile WWI wreck project to recognize the loss of life across the globe and sensitize the public and to create a network for that purpose; 18. Encourage a common resolve and ethos in the projects on WWI UCH, especially reflecting on the peace and reconciliation value of the heritage concerned and to use this in linking projects together across the globe; 19. Encourage States and especially States Parties to Convention to donate money to the Fund of the 2001 Convention so that funds are available for emergency situations concerning underwater heritage and encourage WWI underwater heritage experts to use the existing funds foreseen for heritage, for instance at european level, that offer possibilities for work on a global scale; 20. Encourage multidisciplinary research in WWI UCH to raise new possibilities of funding; 21. Ask UNESCO to organize activities that develop connectivity within the WWI UCH community and funding donors and to prepare a set of best practice examples of WWI UCH projects, which have involved collaboration with the public and donors. the participants also declare the following: We are assembled in this Meeting in Bruges to remember the importance of immersed heritage of the First World War and salute the progressive awareness of its protection by the States Parties to the 2001 unesco convention on the Protection of the underwater cultural heritage. The participants of the “scientific conference on the protection of the underwater cultural heritage of world war i” wish at the same time to express their deep concern with regard to the integrity of the underwater cultural heritage of World War II. Not less fragile than the submerged heritage of the first major conflict of the 20th century, the remains of the Second World War are now tragically

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threatened by industrial activity, trade and fisheries and the clandestine activities of treasure hunters and unscrupulous divers. The experts resembled in the Bruges conference solemnly call at States to take also concrete measures at the national level to ensure the inventory, study, backup and enhancement of the underwater heritage of World War II. No one should remain indifferent to the disappearance of this sensitive memory that is so an important part of the heritage of humanity.

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