O Pensamento Dialético de Hegel como Estrutura Fundamental do Planejamento Composicional de uma Sonatina para piano.

July 25, 2017 | Autor: Liduino Pitombeira | Categoria: Musical Composition, Music and philosophy
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XXII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – João Pessoa – 2012

O Pensamento Dialético de Hegel como Estrutura Fundamental do Planejamento Composicional de uma Sonatina para piano. Halley Chaves da Silva Universidade Federal de Campina Grande – [email protected] Augusto Matheus V. Araújo Universidade Federal de Campina Grande – [email protected] Liduino José Pitombeira de Oliveira Universidade Federal de Campina Grande – [email protected] Resumo: Nesse artigo propomos a utilização do pensamento dialético Hegeliano como estrutura fundamental do planejamento composicional de uma sonatina para piano. Inicialmente mostramos que a dialética de Hegel vem sendo, desde o século XIX, tradicionalmente associada aos conflitos que operam no âmbito da forma-sonata e sugerimos um modelo composicional com uma melhor relação isomórfica com a estrutura triádica Hegeliana. A partir desse modelo realizamos o planejamento composicional de uma sonatina para piano. Palavras-chave: Forma-sonata, Dialética Hegeliana, Planejamento Composicional. Hegel’s Dialectic Thinking as the Fundamental Structure of the Compositional Planning of a Piano Sonatina Abstract: In this paper we propose the use of the Hegelian dialectical thinking as a fundamental structure of the compositional design of a sonatina for piano. Initially we show that Hegel's dialectic has been, since the nineteenth century, traditionally associated with the conflicts that operate within the sonata-form and suggest a compositional model with better isomorphic relation with the Hegelian triadic structure. From this model we prepared the compositional planning of a piano sonatina. Keywords: Sonata form, Hegelian Dialectics, Compositional Planning.

1. Introdução É possível traçar uma conexão musicológico-filosófica entre o pensamento dialético de Hegel (1770-1831) e a forma-sonata, ou mais especificamente a forma-sonata em Beethoven. Schmalfeldt (1995) fala extensivamente de uma tradição beethoven-hegeliana apoiada tanto em trabalhos produzidos ainda no século XIX, tais como a célebre resenha de E.T.A Hoffmann (1776-1822) da 5ª Sinfonia de Beethoven, de 1810, passando pelo fundador da Teoria da Forma, Adolph Bernard Marx (1795-1866), até trabalhos mais recentes que enfocam explicitamente uma perspectiva hegeliana da forma sonata como uma estrutura dialética: Barford (1969) e Ballantine (1972). Neste artigo, procuramos examinar se a formasonata pode realmente ser associada, do ponto de vista estrutural, ao raciocínio dialético hegeliano (tese-antítese-síntese). Assim, inicialmente faremos uma breve sinopse do estado da arte com relação à forma-sonata e ao pensamento hegeliano para, em seguida, propor uma

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nova estrutura mais intimamente ligada a esse modelo. Essa estrutura será a base para o planejamento composicional de uma sonatina para piano.

2. Forma sonata A forma-sonata é uma estrutura fundamental da prática composicional instrumental do período clássico, sendo predominantemente o modelo para os primeiros movimentos de sonatas para piano, quartetos de cordas e sinfonias (embora possa ser encontrada em outros movimentos, como por exemplo, no segundo movimento, Adagio, da Sonata Op.2, Nº 1, de Beethoven). Hepokoski e Darcy (2006, p. 14) afirmam que o termo parece ter emergido somente a partir da década 1820, sendo, portanto, desconhecido de Haydn (1732-1809) e Mozart (1756-1791). De fato, o primeiro tratado publicado que explicitou claramente a forma-sonata foi o Die Lehre von der musikalischen Komposition (1845), de A. B. Marx, embora, como afirma Maciel (2010, p.32), Czerny tenha tentado ser o primeiro a fazê-lo, tendo sido impossibilitado por um atraso editorial. Segundo Cherlin (2000, p.162), A. B. Marx “adapta o pensamento dialético na descrição de frase musical – antecedente como tese e consequente como antítese – e aplica esse princípio à forma-sonata”. O diagrama da Figura 1, inspirado em Randel (1986, p.765), resume a formasonata como uma estrutura simultaneamente binária (com duas grandes partes, sendo a primeira geralmente repetida) e ternária (com três seções: exposição, desenvolvimento e recapitulação). O conceito-chave dessa estrutura é o conflito entre as tonalidades dos grupos temáticos A (tônica) e B (onde se tonicaliza o quinto grau, para tonalidades maiores, ou o terceiro grau, para tonalidades menores), apresentados na Exposição, e a consequente resolução desse conflito (com a supremacia final da tonalidade do tema A), na Recapitulação, embora, como afirme Somfai (1995, p.266-267), “no último terço do século XVIII, um segundo tema contrastante não era nem um requisito obrigatório nem o ideal”.

Figura 1: Diagramático esquemático da forma-sonata, segundo Randel (1986)

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Magnani (1970, p.131-132) afirma que a introdução do contraste marcante entre os dois temas na forma-sonata se relaciona com a aplicação de dois princípios contrastantes, analogamente ao realizado por Kant, na filosofia: o princípio da rejeição (widerstrebende Prinzip), que Magnani associa à concisão melódica e à definição tonal (aspecto positivo), e o princípio de súplica (bittende Prinzip), que Magnani associa à indefinição tonal e modulação (aspecto negativo). A reconciliação desses opostos se dá pela prevalência do aspecto positivo (subordinando o aspecto negativo, sem aniquilá-lo) conduzindo a uma síntese dialética, que Magnani associa a Kant e Hegel. Essa síntese, portanto, tem como ponto de partida a polarização entre as tonalidades dos grupos temáticos (A e B, no diagrama da Figura 1) e tal polarização, que é assegurada pela tonicalização da dominante, é, segundo Maciel (2010, p.71), o grande diferencial da forma-sonata no final do século XVIII. Schmalfeldt (1995, p.53) observa que, desde os tempos de A.B. Marx (primeira metade do século XIX), a estrutura triádica do pensamento hegeliano (tese-antítese-síntese) tem sido associada à estrutura ternária da forma sonata (exposição-desenvolvimentorecapitulação), sendo o desenvolvimento o componente primordial que possibilitaria a realização plena dessa dialética. No entanto, ainda segundo Schmalfeldt (Ibid., p. 38), percebe-se que, para Dahlhaus, que (juntamente com Adorno) considera “a música de Beethoven como um convite à nossa percepção da forma como um processo dialético no preciso senso hegeliano”, a associação entre a estrutura triádica hegeliana e a forma-sonata não é assim tão visível em nível superficial. Isto nos leva crer que pode parecer simplista realizar uma correspondência completamente isomórfica entre a estrutura triádica de Hegel e a estrutura da forma-sonata.

Figura 2: Compassos iniciais da Sonata Op. 31, Nº 2, de Beethoven

Para revelar a profundidade da presença da dialética de Hegel na música de Beethoven, Dahlhaus (1989) observa as controvérsias em torno do primeiro gesto da Sonata Op. 31, Nº 2, de Beethoven, mais conhecida como “A Tempestade”. A questão que Dahlhaus explicita é se este gesto (dois compassos iniciais da Figura 2) funciona simplesmente como material introdutório ou já é parte do primeiro grupo temático, dada sua manifestação mais substancial no final da Exposição (Figura 3). Ele conclui que esse material, envolto em

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ambiguidade (algo que ele reconhece como uma qualidade estética), é como uma protoforma, um vir-a-ser, e que esse processo de tornar-se algo é, de fato, a realização da dialética e a essência do romantismo.

Figura 3: Compassos finais da Exposição da Sonata Op. 31, Nº 2, de Beethoven

3. O pensamento dialético de Hegel Diversos conceitos operam conjuntamente para formar o que denominamos de pensamento dialético hegeliano. O primeiro é o conceito de totalidade. Para Hegel somente o todo é verdadeiro, sendo cada fase de um processo de desenvolvimento parcialmente verdadeira (SPENCER e KRAUZE, 1996, p.79). O segundo conceito denomina-se Aufhebung (cujo significado é ambíguo na língua alemã: cancelamento ou preservação), que se relaciona com uma lógica dinâmica e orgânica, em contraste com a lógica aristotélica, que separa mecanicamente os elementos de um processo dedutivo. Schmalfeldt (Ibid., 39-40) salienta que o verbo Aufheben, empregado para descrever um processo de vir-a-ser, une, na verdade um conceito e seu oposto gerando um novo momento: a síntese. O terceiro conceito denomina-se o poder da negação, que confere movimento aos elementos estáticos, através da revelação de contradições. Hegel indica, em sua lógica, três tipos de contradição. A primeira, denominada de SER, identifica oposições entre elementos não relacionados: Ser versus Nada, Quantidade versus Qualidade etc. A segunda, denominada de ESSÊNCIA, ocorre quando os pares opostos se relacionam mutuamente de tal forma que a definição de um elemento implica na definição de seu antagônico (por exemplo: interior versus exterior). A terceira, denominada de CONCEITO, se forma a partir de elementos antagônicos estruturalmente ligados um ao outro

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e que só podem ser separados por abstração. Assim, por exemplo, o conceito de Individualidade, pode ser construído a partir de princípios opostos: universalidade e particularidade (SPENCER e KRAUZE, p.84). Desses conceitos, emerge a estrutura triádica de Hegel: Tese, Antítese e Síntese. Esta terminologia é atribuída a Johann Gottlieb Fichte, um aluno de Kant (CHERLIN, 2000, p.161-162), que o aplicou ao estudo da história e foi posteriormente desenvolvido por Hegel e Karl Marx. Na Tese, uma ideia é afirmada e, após reflexão, é considerada incompleta. Essa incompletude propicia o surgimento de uma Antítese, que também se mostra ser inadequada. O conflito entre essas duas ideias leva ao surgimento de uma Síntese, que, por sua vez adquire o status de Tese, é negada e leva a uma nova Síntese. Esse processo continua indefinidamente, como uma estrutura fractal. A tradução dessa estrutura para a música se deu, com relação à forma-sonata, de acordo com o descrito na seção 2, deste artigo. Porém, é curioso observar que outros aspectos da teoria musical foram também influenciados por esse pensamento, como, por exemplo, a própria noção de tríade perfeita maior, que, para Hauptmann (JORGENSON, 1963, p.37-38) parte da dialética hegeliana da seguinte forma: a nota tônica é a expressão da unidade, a quinta representa sua oposição e a terça, a união, ou síntese. 4. Proposta de uma estrutura baseada no pensamento dialético de Hegel É nossa hipótese que a estrutura triádica hegeliana pode ter uma representação musical diferenciada da prática tradicional se sua etapa final, a síntese, for repensada em termos de uma atuação mais profunda enquanto elemento unificador das polarizações iniciais. Em outras palavras, ao invés da subordinação do tema B em relação ao tema A, como analogia de realização da síntese dialética, é possível idealizar um procedimento composicional que realize o processo dialético em nível microestrutural, produzindo, em larga escala, uma macroestrutura coerente, onde suas células se relacionem intimamente por um mesmo processo. Esse procedimento composicional consiste em elaborar um tema inicial (A), a tese, que será seguido por seu antagônico (B), a antítese. O antagonismo entre A e B pode acontecer em diferentes níveis paramétricos (altura, duração, densidade textural, dinâmica,...) e pode ser expresso por relações de complementaridade, em uma analogia com a contradição que Hegel denomina Essência (detalhada na seção anterior). Por exemplo, se o tema A for construído exclusivamente a partir das alturas de uma escala de tons inteiros (Dó-Ré-Mi-Fá-

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Sol-Lá) pode-se imaginar que seu antagônico (B), seja construído a partir de uma relação complementar cromática, ou seja, as alturas constituintes de B pertencerão à escala de tons inteiros complementar (Dó-Ré-Fá-Sol-Lá-Si). A síntese (SAB) consistiria, nesse caso, na construção de um tema cujas alturas pertencessem à escala cromática. Posteriormente o material gerado no processo de síntese se transformaria em uma nova tese, ou seja SAB = C, o qual seria confrontado com seu antagônico (D), gerando nova síntese (SCD) e assim por diante. Obviamente, se estabelecermos que as relações antagônicas serão produzidas a partir relações de complementaridade, o processo se esgota tão logo se atinja o conjunto universo. Assim, no exemplo acima, o complemento de uma escala cromática, no universo de doze notas, desconsiderando-se o vazio, não existe. Nesse caso, muda-se o foco paramétrico, ou seja, esgotadas as possibilidades do parâmetro altura, focaliza-se no parâmetro rítmico, por exemplo. Na seção seguinte, realizaremos o planejamento composicional de uma sonatina para piano, a partir desse processo dialético hegeliano.

5. Planejamento composicional de uma sonatina para piano O primeiro passo no planejamento dessa sonatina para piano, foi delimitar o conjunto universo e definir os subconjuntos complementares que serão postos em oposição dialética. Tomamos como universo as doze alturas que integram a escala cromática. Em seguida, dividimos essa escala em dois hexacordes, que correspondem ao sexto modo de Messiaen: [Dó-Dó-Ré-Fá-Sol-Sol] e [Lá-Lá-Si-Ré-Mi-Fá]. Esses hexacordes foram então desmembrados em quatro tricordes de forma diferenciada, ou seja, o primeiro hexacorde foi desmembrado nos tricordes [Dó-Dó-Fá] e [Ré-Sol-Sol] e o segundo hexacorde foi desmembrando nos tricordes [Ré-Fá-Lá] e [Mi-Lá-Si]. Posteriormente, esses tricordes foram desmembrados em díade e altura isolada, e foi a partir desse ponto que os gestos da peça começaram a ser inicialmente delineados. A aplicação do processo dialético consiste no retorno desses materiais à fonte original, ou seja, à escala cromática. O gráfico da Figura 4 ilustra a aplicação desse processo na estrutura de alturas. Assim, por exemplo, a díade Dó-Dó (tese) é confrontada com seu complementar tricordal Fá (antítese) gerando o tricorde DóDó-Fá, e assim por diante. Observam-se nessa figura, duas árvores de processos que funcionam paralelamente e que serão postas em oposição dialética no último estágio (hexacordal). Essas árvores terão na obra, aplicação assíncrona, ou seja, a Árvore 2 iniciará seu processo dialético em algum ponto de desenvolvimento da Árvore 1, a critério do

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compositor. No nosso caso, essa segunda árvore iniciará sua operação quando a antítese B for anunciada, analogamente à entrada de uma fuga.

Figura 4: Estruturação dialética do planejamento das alturas na Sonatina

Simultaneamente a esse processo dialético aplicado às alturas, as estruturas rítmicas também operam segundo o mesmo princípio. Assim a peça se inicia em 2/4 (tese P) e com a entrada da tese D proposta pelas alturas (árvore 1), o compasso é alterado para 3/8 (antítese Q); em SCD o compasso é alterado para 2/4+3/8, ou seja, 7/8, representando a síntese SPQ que equivale à próxima tese R. Esta tese é confrontada com seu complementar 5/8 (antítese S), resultando na síntese T (compasso 12/8). A Figura 5 mostra a página inicial da Sonatina. As estruturas dialéticas são indicadas na peça dentro de círculos (árvore 1) e dentro de quadrados (árvore 2).

Figura 5: Gestos iniciais da Sonatina

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Referências: CHERLIN, M. Dialectical Opposition in Schoenberg’s Music and Thought. Music Theory Spectrum, V. 22, N.2, p. 157-176, Autumn, 2000. DAHLHAUS, C. Nineteenth-Century Music. Los Angeles: University of California Press, 1989. HEPOKOSKI, J. e DARCY, W. Elements of Sonata Theory: Norms, Types, and Deformations in the Late Eighteenth-Century Sonata. Oxdord: Oxford University Press, 2006. JORGENSON, D. Résumé of Harmonic Dualism. Music & Letters, V. 44, N.1, p. 31-42, Janeiro, 1963. MACIEL, R.H.M. A Forma Sonata em Descontinuidades e Bifurcações. São Paulo, 2010. 422f. Tese (Doutorado em Música). Universidade de São Paulo. MAGNANI, L. Beethoven and the Aesthetic Thought of His Time. International Review of Music Aesthetics and Sociology, V.1, N.2, p. 125-136, Dezembro, 1970. RANDEL, Don Michael. The Harvard Biographical Dictionary of Music. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 1996 SCHMALFELDT, J. Form as the Process of Becoming: The Beethoven-Hegelian Tradition and the Tempest Sonata. REYNOLDS, C., Ed. Beethoven Forum. London: University of Nebraska Press, p. 37-71, 1995 SOMFAI, Laszlo. The Keyboard Sonatas of Joseph Haydn: Instruments and Performance Practice, Genres and Styles. Chicago: University of Chicago Press, 1995. SPENCER, L. e KRAUZE, A. Introducing Hegel. New York: Totem Books, 1997.

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