O pensamento econômico latino-americano e a CEPAL

May 22, 2017 | Autor: L. Simões de Souza | Categoria: América Latina, CEPAL, História do pensamento econômico
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O pensamento econômico latino-americano e a CEPAL Luiz Eduardo Simões de Souza•

A Grande Depressão (1929 – 1932) abalou a estrutura do comércio internacional como um cataclisma. Não houve exceção na América Latina. O impacto sobre os países da América Latina, exportadores de produtos primários, teve um duplo caráter: (1) a demanda por esses produtos sofreu forte depressão, pressionando estoques e reduzindo os preços das mercadorias; e (2) uma forte restrição creditícia generalizada, inviabilizando o financiamento externo de investimentos em eventuais aumentos da produtividade de suas economias. Como efeito direto dessa conjuntura, o pensamento econômico então aceito nas elites domésticas do subcontinente – baseado na defesa da exportação de produtos primários com baixo nível de produtividade interna e subemprego dos fatores de produção disponíveis - seria pela primeira vez retirado de uma posição hegemônica e posto em xeque. O choque cultural advindo da desintegração do papel das elites latino-americanas no fornecimento de produtos primários aos países cuja indústria representava o setor dinâmico de suas economias as obrigaria a uma “pausa para reflexão” diante das novas circunstâncias. Nela, alguns elementos de permanência das relações de produção vigentes – exportação de produtos primários, produção extensiva em capital, baixa produtividade do fator trabalho – seriam colocados em xeque, em boa parte devido ao brusco empobrecimento, o medo do futuro e o temor de novas crises. Chamados à ação, os governos latino-americanos recorreram, como em raras vezes em sua história, à formação interna de recursos humanos para atravessar a conjuntura adversa. Missões estrangeiras seriam chamadas; comissões mistas dariam a esses recursos o contato com a ponta tecnológica das políticas econômicas; quase tudo seria feito no sentido de dar a esses gestores uma visão mais ampla do que a de seus antecessores a respeito dos problemas de seus países. Curiosamente, essa abertura de horizontes dar-se-ia para dentro, para as questões internas das nações latino-americanas. Professor do Mestrado em Gestão Integrada do Território da UNIVALE (Governador Valadares - MG), Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Membro do NEPHE – USP. Artigo apresentado no I Seminário de Historiografia da Universidade Federal de Ouro Preto, em 2009. 

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Em 1948, um grupo de economistas latino-americanos, criaria a Comissão Econômica Para a América Latina, a CEPAL. Os antecedentes da CEPAL recendiam à Assembléia para a Sociedade das Nações, realizada em 1930, a qual deliberara, através de seu Serviço de Estudos Econômicos, o estudo das crises e ciclos econômicos, fomentando a produção, circulação e debate de idéias heterodoxas aos padrões da teoria econômica aceita nos meios governamentais e acadêmicos até então. Tal orientação já manifestava a decadência da teoria econômica neoclássica – a teoria do equilíbrio geral, formulada pela escola marginalista de Alfred Marshall, Stanley Jevons e Léon Walras. A complexidade dos fenômenos verificados após o colapso de 1929 requeria uma revisão da teoria econômica vigente. Fazia-se necessária outra compreensão do processo econômico, posto que a visão neoclássica já não fornecia explicação satisfatória dos fatos. Essa iniciativa rendeu frutos, dos quais podemos citar três, de grande importância para o entendimento da política econômica das décadas posteriores: (1) a Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro, publicada por John Maynard Keynes, em 1936, obra que traçou as linhas gerais das políticas econômicas dos países que se interessassem pelo crescimento econômico; (2) a elaboração do Sistema de Contas Nacionais (S.C.N.), que permitiria uma futura padronização da contabilidade das diferentes nações; e (3) o surgimento da idéia de planejamento econômico como um conjunto de políticas a serem empreendidas pelo único agente econômico da sociedade que, por definição, não pautaria suas ações pelo autointeresse, e sim pelo interesse comum: o Governo. A Segunda Guerra Mundial interromperia os trabalhos da Sociedade das Nações, dados a partir do centro dinâmico. Mas a experiência ali adquirida pelos quadros dos países periféricos não se perderia. No caso da América Latina, seriam mantidos os debate, a troca de idéias e a colaboração mútua entre os egressos da Sociedade das Nações e novos economistas do continente. O resultado, quatro anos após a fundação da Organização das Nações Unidas (ONU), seria a CEPAL. A Comissão Econômica para a América Latina ligada à recém-fundada Organização das Nações Unidas (ONU), foi criada em 1948, com o objetivo de elaborar estudos e alternativas para o desenvolvimento da região, a Comissão Econômica para a América Latina, órgão ligado ao Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. A Comissão deteve um 2

papel importantíssimo na elaboração de uma teoria do desenvolvimento econômico adequada à realidade latino-americana. Em formas gerais, o conteúdo da análise cepalina consistia em afirmar a necessidade de se estudar e conseguir caminhos próprios para o desenvolvimento da Região, ao apontar para a industrialização da região como o principal meio de se desgarrar da dependência dos países centrais, já que partia do pressuposto de que existia uma relação de trocas desigual com esses países. Isto tenderia a se agravar desde que continuassem a persistir as mesmas condições verificadas no modelo primário-exportador (RODRIGUEZ: 1981, pag. 41).. Estas se estabelecem, originalmente, na propagação desproporcional do desenvolvimento econômico entre Países Centrais e a Periferia do sistema capitalista internacional. Com relação a este tema, sintetiza Octávio Rodriguez (RODRIGUEZ: 1981, pag. 37): "... entende-se que centro e periferia se constituem historicamente como resultado da forma pela qual o progresso técnico se difunde na economia mundial. Nos centros, os métodos indiretos de produção gerados pelo progresso técnico se difundem em um período de tempo relativamente breve, pela totalidade do aparelho produtivo. Na periferia, parte-se de um atraso inicial e, no transcorrer da fase dita do "desenvolvimento para fora", as técnicas novas só são implantadas nos setores exportadores de produtos primários e em algumas atividades econômicas diretamente relacionadas com a exportação, as quais passam a coexistir com setores atrasados, no que diz respeito à penetração das novas técnicas e ao nível da produtividade do trabalho.". A este dualismo econômico externo, em que existe a tendência a se distanciarem centro e periferia, deve-se acrescentar um dualismo interno em economias periféricas, em que um setor de mercado externo tende a desenvolver-se em detrimento de um setor atrasado - o de subsistência. Ali, onde as técnicas e a organização econômica se encontram ao largo do, ou ultrapassadas no, sistema capitalista. Uma importante questão levantada pelos estudos da CEPAL é a da planificação econômica praticada pelo Estado nacional, enquanto requisito para implementação de políticas desenvolvimentistas. Isto, contudo, sem abandonar os princípios de uma economia de tipo capitalista. O capital privado seria incentivado a investir em programas organizados, com o intuito de acelerar o desenvolvimento. Estas questões serão abordadas mais adiante. Retornando às questões mais prementes do programa da CEPAL, pode-se resumi-lo a partir das seguintes premissas:

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(a)

os países latino americanos sustentaram seu crescimento econômico na

exportação primária, sendo esta o elemento dinâmico de sua produção. Dessa forma, o crescimento do produto dava-se apenas do lado da oferta, ou seja, sem estímulo à demanda efetiva doméstica, a qual seria satisfeita pelas importações; (b)

as condições pós-1929 negavam qualquer possibilidade de crescimento

por essa via. Fazia-se necessário empreendê-lo pelo estímulo de outro setor. A demanda externa, deprimida, e a desintegração do sistema financeiro internacional tornavam o contato com o exterior mais difícil. Era necessário que a economia se voltasse para dentro (hacia dentro); (c)

um novo modelo de crescimento deveria, portanto, privilegiar

a

demanda doméstica, através da transferência do caráter dinâmico do setor primárioexportador para o setor industrial. Note-se que, nessa estratégia, dois fatores têm importância crucial: a agenda do governo e o aumento da composição do fator trabalho no valor agregado. Assim, tratava-se de uma mudança na estrutura da economia latino-americana. Portanto, envolvia diretamente interesses de classe, ao propor, por exemplo, controles cambiais que desestimulassem a importação de bens de consumo para que estes fossem produzidos internamente, ou mesmo políticas de regulação fiscal e salarial, garantindo a receita para os gastos do governo e para a ampliação do consumo doméstico. Tal arranjo seria possível, à época, devido a dois fatores. Em primeiro lugar, o impacto da crise de 1929 – 1933. Em segundo lugar, a conjuntura internacional pós-Segunda Guerra Mundial apresentava às elites domésticas da América Latina uma escolha entre uma mudança circunstancial na distribuição do produto e uma mudança nas relações sociais de produção. Buscando manter as relações capitalistas de produção, o “progressismo” Cepalino foi tolerado pelas elites domésticas e pelo centro da divisão internacional do trabalho por algumas décadas. O fato de o ciclo de golpes militares que assolou o continente durante as décadas de 1960 e 1970 ter revelado uma especial intolerância para com a CEPAL e seus pesquisadoresmembros apenas revela que a opção de 1948 foi um regresso tático a ser retomado posteriormente em momento oportuno. 4

Por outro lado, a partir desse período, a estrutura organizacional Cepalina foi-se integrando à da ONU, incorporando uma área um pouco maior de atuação (o Caribe), dividindo sua relevância na formulação de políticas econômicas com outros órgãos (como a UNCTAD, por exemplo) e, em parte como decorrência disso, sofreu forte influência da ortodoxia econômica neoliberal, a qual passou a predominar no pensamento Cepalino. Contudo, permanece o conjunto da obra de economistas como Raúl Prebisch, Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares, Aníbal Pinto e Osvaldo Sunkel, por exemplo. Isto posto, algumas contribuições teóricas da CEPAL merecem comentário mais detalhado. 1. Centro e periferia A interpretação Cepalina da dinâmica centro-periferia é a única e seminal na composição das teses centrais de seu pensamento. o primeiro documento de divulgação da CEPAL, um estudo econômico da América latina para o ano de 1948, apresentava cinco capítulos introdutórios escritos pelo economista argentino Raúl Prebisch (1901-1986), intitulados O desenvolvimento econômico da América latina e alguns de seus problemas principais. No texto, há a exposição do conceito-chave da dinâmica centro-periferia aplicado à conjuntura da crise de 1929, sob uma perspectiva latino-americana. O antigo esquema da divisão internacional do trabalho, herdado do século XIX, parecia anacrônico à análise do economista argentino. Nele, cabia à América Latina, como parte da periferia do sistema econômico mundial, "o papel específico de produzir alimentos e matérias-primas para os grandes centros industriais". Tal papel não incorporava a necessidade de desenvolvimento industrial, premente aos países da região, por causa das "duas guerras mundiais, no intervalo de uma geração, com uma profunda crise econômica entre elas". Por outro lado, o progresso e o desenvolvimento técnico-científico pareciam distribuirse de maneira mais favorável aos países centrais, condenando os países periféricos a uma condição atrasada de sua economia e a um padrão de vida inferior disponível à maior parte de sua população. Cabem algumas explicações sobre a tese de Raúl Prebisch. Em primeiro lugar, o conceito da dinâmica centro-periferia apresenta-se historicizado, ou seja, ele tem tempo e 5

lugar na história do desenvolvimento da humanidade. Em segundo lugar, devem se definir os conceitos de "centro" e "periferia". Em terceiro lugar, devem-se estabelecer os parâmetros nos quais se dá a relação entre os países centrais e os países periféricos, a qual é dada em condições de desigualdade. A historicidade do conceito da dinâmica centro-periferia encontra-se contextualizada no período que vai da primeira guerra mundial até o final da segunda guerra mundial. a hegemonia britânica observada a partir do século XIX entrara em crise e declínio, dando lugar a uma nova força hegemônica capitalista, representada pelos Estados Unidos da América e suas zonas de influência na Europa Ocidental e no Japão. Essa hegemonia era questionada pelo advento do chamado mundo do "Socialismo Real", representado pelos resultados da Revolução Russa de 1917. Nesse ambiente, travava-se uma disputa pelo controle geopolítico das demais áreas do globo. Assim, a força central à qual Prebisch se refere é a representada pelos Estados Unidos. Diferentemente das linhas-mestras de interpretação econômica então vigentes no mundo capitalista, o pensamento da CEPAL fez amplo uso da análise histórico-econômica. Através dela, é possível identificar em Prebisch uma distinção entre os países distribuídos na divisão internacional do trabalho. Seriam eles: a) países exportadores de bens primários, ou periféricos, e b) países exportadores de bens industrializados, ou centrais. Essa distinção no grau de elaboração dos produtos exportados determinaria mais do que uma simples diferenciação entre os países. seria o marco de uma relação de subordinação e dependência dos primeiros para com os segundos. Aos países centrais caberia a tarefa de organizar a divisão internacional do trabalho, atribuindo às nações periféricas a cesta de produtos ofertados, o que, por decorrência, estabelecia os fundamentos das relações de produção nos países primário-exportadores. O prejuízo a estes é evidente. É notório também, por outro lado, que os parâmetros nos quais se estabelecia a relação centro-periferia não se limitavam a relações econômicas supostamente preexistentes, como a teoria do comércio internacional dos países centrais, fortemente influenciada pela teoria das vantagens comparativas, queria fazer crer. Tratava-se de uma relação de dominação que incorporava à assimetria econômica, a influência política e até militar, em casos específicos. 6

Assim, a dinâmica centro-periferia constitui o reconhecimento das condições objetivas da inserção latino-americana na divisão internacional do trabalho. Para Raúl Prebisch, fazia-se necessária a quebra desse ciclo. 2. A deterioração dos termos de troca No mesmo estudo de 1948, Prebisch também trouxe à luz uma das mais contundentes críticas à teoria do comércio exterior defendida pelos países centrais. Tratava-se da teoria da deterioração dos termos de troca, pedra de toque da análise estruturalista da política cambial e de comércio exterior dos países latino-americanos durante os anos 1950 e 1960. Antes de tudo, é relevante expor a teoria do comércio exterior difundida pelos países centrais, a qual consistia numa variante neoclássica da teoria das vantagens comparativas, originalmente exposta nos Princípios de Economia Política e Tributação (1817), de David Ricardo. Ela baseia-se nas seguintes premissas: i) Existem diferenças produtivas entre os países, que fazem com que determinadas atividades sejam mais interessantes do ponto de vista do emprego dos recursos do que em outros; ii) Num sistema comercial perfeitamente livre, cada país naturalmente dedica seu capital e seu trabalho à atividade que lhe seja mais benéfica. iii) A troca generalizada dos excedentes da produção especializada de cada país faria com que os países maximizassem a utilidade dos fatores produtivos. Assim, um país que fosse mais eficiente em produzir café deveria trocar seu excedente em café pelo produto excedente de um outro país, por exemplo, tecido. Quanto mais café vendesse, mais tecido poderia comprar, sem o fardo de uma produção interna ineficiente. Prebisch era rigorosamente contrário a essa visão ricardiana da divisão internacional do trabalho. A diferença na composição das mercadorias faria com que as economias exportadoras de bens manufaturados e importadoras de produtos primários (matérias-primas e recursos naturais) obtivessem vantagens em detrimento das economias que fizessem o contrário (op.cit. p 71) . Posto este argumento, Prebisch passa à análise da inserção dos países periféricos na economia internacional (idem, p. 73). Os países primário-exportadores produziam bens de 7

baixa eficácia no fomento da demanda efetiva interna, ou seja, do crescimento das atividades econômicas domésticas. Os bens exportados pelos países latino-americanos, de natureza primária, apresentavam baixa elasticidade-preço em relação à demanda, e por isso tendiam a deteriorar seu preço em relação aos produtos ofertados pelos países centrais, industrializados, fomentadores do emprego e do aumento da demanda efetiva, bem como de inovações tecnológicas que permitiam uma elevada elasticidade-preço em relação à demanda. Assim, a tendência seria a de valorização dos produtos dos países industrializados em relação aos dos países primário-exportadores, o que geraria efeito similar na taxa efetiva de câmbio. Então, contrariamente à prescrição dos países centrais, os países periféricos deveriam buscar o caminho da industrialização, para que seus produtos exportáveis, seus “termos de troca” não se deteriorassem no comércio exterior. É de se notar que, longe de uma postura isolacionista, Prebisch defendia o comércio exterior, sobretudo entre os países latino-americanos. Em sua opinião, que se tornou ponto central do pensamento Cepalino nos anos 1950 e 1960, o problema do emprego do comércio exterior indiscriminado estava na troca desigual entre países centrais e periféricos, a qual reforçava a condição de subdesenvolvimento daqueles que optavam pela inserção primárioexportadora. 3. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento O conceito cepalino de desenvolvimento pode ser apontado como a contribuição mais relevante da CEPAL ao pensamento econômico. É também o ponto de partida da formulação de políticas públicas voltadas à mudança da situação interna dos países latino-americanos, dadas as condições (1) e (2), ou seja, a dinâmica centro-periferia e a deterioração dos termos de troca na periferia da divisão internacional do trabalho. A teoria do desenvolvimento foi primordialmente concebida nos grandes centros universitários do mundo ocidental, especialmente a partir das obras de John Maynard Keynes e Joseph Alois Schumpeter. Sua preocupação inicial era a de, através da análise da estrutura de uma economia, estabelecer os meios pelos quais seria possível o aumento da renda. Celso Furtado, em obra de 19611, fez a crítica dessa forma de pensamento: 1

Celso FURTADO. Desenvolvimento e subdesenvolvimento in Bielschowsky, Ricardo (org.) Cinqüenta anos de pensamento

na Cepal. São Paulo, Record, 2000. volume 1, p. 242.

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“A teoria do desenvolvimento que se limite a reconstituir, em um modelo abstrato – derivado de uma experiência histórica limitada -, as articulações de determinada estrutura, não pode pretender elevado grau de generalidade.” Com isso, Celso Furtado queria dizer que países com experiências históricas distintas teriam mais diferenças do que semelhanças em suas estratégias de desenvolvimento. Países agroexportadores e industrializados não poderiam, dessa forma, compartilhar das mesmas prescrições de uma teoria do desenvolvimento formulada a partir do centro da divisão internacional do trabalho. Assim, a experiência histórica da industrialização dos países centrais não se aplicaria mais à periferia, nem tampouco a reprodução pura e simples das receitas formuladas por estes à periferia. Na verdade, essas receitas, quando adotadas pelos países periféricos, acabaram beneficiar menos a estes do que àqueles. Por outro lado, mesmo a industrialização não traria por si só o desenvolvimento. E qual seria a concepção de desenvolvimento para Celso Furtado? Em primeiro lugar, caberia dissociar crescimento de desenvolvimento econômico. O crescimento econômico seria a pura e simples ampliação da renda. O desenvolvimento econômico envolveria, por sua vez, modificações estruturais na economia, tais como (FURTADO, 1968, p. 79): “(...) transformações nas relações e proporções internas do sistema econômico, as quais têm como causa básica modificações nas formas de produção, mas que não se poderiam concretizar sem modificações na forma de distribuição e utilização de renda.” Assim, Furtado vincula o desenvolvimento a uma questão de mudança da estrutura econômica

em seu duplo caráter: a produção e a distribuição de riqueza. O

subdesenvolvimento, então, não seria simplesmente uma questão de emprego de tecnologia menos produtiva ou da abertura ao comércio exterior, envolvendo a estrutura produtiva e distributiva da economia subdesenvolvida. Por outro lado, o desenvolvimento ou subdesenvolvimento de uma economia envolveriam questões ligadas à sua própria história. A constituição de relações de relações de produção características do subdesenvolvimento formaria grupos de interesse beneficiários de sua manutenção, estabelecendo relações seculares tanto no emprego dos fatores de terra e capital quanto no uso da mão-de-obra. Conduzir uma economia de uma condição subdesenvolvida para o desenvolvimento implicaria - na visão de Furtado, e da Cepal - na

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superação dessas relações, através do instrumento da política econômica. O agente formulador e condutor dessas políticas seria o governo, nos termos keynesianos da “agenda do Estado2”. 4. Substituição de Importações Conforme foi dito no item anterior, a industrialização constitui uma tática na estratégia do desenvolvimento, e não o contrário. Na América Latina, após a Primeira Guerra (1914 – 1918), deu se um processo de industrialização que conduziu a transformações significativas nas estruturas produtiva e distributiva dos países do subcontinente. Originariamente primárioexportadores, países como Argentina, Chile, Brasil, etc, satisfaziam até então suas demandas por bens manufaturados com o comércio exterior. Com as duas guerras da primeira metade do século XX, intercaladas pela crise de 1929, houve forte restrição tanto da oferta dos bens manufaturados quanto da demanda externa pelos produtos primários. Nesse contexto, a América Latina desenvolveu um sistema de controle de suas importações e fomento de um setor industrial voltado ao atendimento da demanda doméstica, conhecido como substituição de importações. O processo de substituição de importações conjugava duas formas de ação, ora dadas pela conjuntura econômica, ora dadas pelas políticas governamentais. Estas eram, em linhas gerais: (a) restrição às importações; (b) estímulo à produção industrial doméstica para o atendimento da demanda interna. As combinações de uma com a outra foram variadas: políticas cambiais, fiscais e monetárias integravam-se a investimentos em infra-estrutura e até à ação efetiva dos governos em suas economias, criando empresas estatais em setores considerados estratégicos para o desenvolvimento, como a Petrobrás no Brasil e a YPF na Argentina para o caso do petróleo, por exemplo. O papel da Cepal foi o de identificar e apontar os principais aspectos desse processo, indicando possíveis futuros "pontos de estrangulamento", como o endividamento dos governos, o desequilíbrio do balanço de pagamentos, e o problema da eficiência decrescente do coeficiente de substituição de importações, uma razão entre a produção setorial e a 2

A concepção Keynesiana de “agenda do Estado” aparece pela primeira vez num texto de J.M. Keynes, datado de 1926: The End of Laissez-faire.

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importação de um dado produto. Novas “rodadas” de substituição de importações transferiam a responsabilidade de ações mais contundentes ao governo, com impactos negativos nas contas públicas e no balanço de pagamentos, o que levava a pontos estacionários no crescimento econômico e ao problema inflacionário.. Em verdade, visto de uma perspectiva de décadas, o processo de substituição de importações parece ter constituído mais uma postura conjuntural e momentânea das elites latino-americanas do que uma política de longo prazo. Isso não retira do processo de substituição de importações seu caráter intrínseco a estratégia de desenvolvimento econômico da América Latina, formulada pela Cepal. Sobre esta, é importante reconhecer que se trata de um caminho lógico, o qual iniciase no reconhecimento da posição periférica da América Latina, estrutura-se na tese da deterioração dos termos de troca, identifica-se em uma condição subdesenvolvida, a qual também serve para identificar os pontos relevantes ao desenvolvimento do subcontinente, e termina por apresentar uma saída, através da política econômica. Mas o trabalho da Cepal foi além deste caminho, com a introdução da prática de planejamento e planificação econômica aos governos latino-americanos. 5. O Planejamento Cepalino A Cepal, juntamente com as missões estrangeiras das décadas de 1940 – 1950, introduziu a cultura do planejamento econômico (HIRSCHMANN, 1968) aos governos da América Latina. Em comum, pode-se dizer que essas missões de planejamento visavam ampliar o produto por quantidade de fator de produção empregado, bem como, em última análise, o emprego de uma quantidade maior dos fatores de produção disponíveis nos países latinoamericanos. O que diferenciava o planejamento econômico Cepalino, de maneira geral, do elaborado pelas missões estrangeiras era o seguinte conjunto de preocupações: (1) estímulo da demanda interna; (2) redução e eliminação das diferenças sócio-econômicas em nível regional; (3) intensificação em trabalho da cesta de exportações; (4) melhoria da distribuição de renda. 11

Longe de apresentar - como as missões estrangeiras - um caráter diretivo e intervencionista nas decisões dos países, o pensamento Cepalino mostrou-se muito mais como uma fonte de referências, um centro de sugestões de técnicas e procedimentos. Evidentemente, o fato de as opiniões das missões européias e norte-americanas estar embasado em possibilidades de financiamento de órgãos como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, dava a estas um poder de persuasão muito maior do que o dos técnicos da Cepal, mesmo que estes estivessem ocupando cargos no governo local. Apesar disso, algumas iniciativas no campo do planejamento econômico sofreram forte influência das idéias da Cepal. Exemplo disso foi o Plano de Metas brasileiro (1956 – 1960), o qual, através da atuação de Celso Furtado, criou a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, a SUDENE (1958), um dos primeiros órgãos públicos a tratar de questões específicas do desenvolvimento regional em um país subdesenvolvido. O planejamento econômico Cepalino teve resultados tão distintos quanto a gama de países que a ele recorreram. Mas, em todos, não se pode deixar de reconhecer a importância da introdução da cultura de planejamento. Ao fazer-se um balanço da atuação da Cepal na segunda metade do século XX, tornase notório o maior interesse que as primeiras décadas, de 1950 e 1960, despertam nos estudiosos do pensamento econômico latino-americano. É o período em que, baseada em premissas centrais de reforma do capitalismo diante de uma nova ordem mundial – as teorias econômicas de Keynes, Schumpeter e outros – a Cepal adota uma linha propositiva de reformas do capitalismo a partir da mudança da estrutura econômica da periferia. Tal implicava no choque de interesses imperialistas e de classe, em algum momento. Quando este se deu, em seu ápice em meados dos anos 1960 e princípios dos anos 1970, o espaço para um pensamento reformista-progressista no subcontinente ficou inviabilizado, politicamente. O esvaziamento da importância da Cepal, iniciado nesse período, deu-se por completo durante as décadas seguintes, em que esta adotou, docilmente, as diretivas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, tornando-se mera reprodutora de suas idéias. De certa forma, esse caráter delimita o alcance da atuação de um órgão que, durante décadas, forneceu pensamento econômico relativamente autônomo e original à solução dos problemas da América Latina. 12

7. Considerações sobre a exaustão do modelo de Substituição de importações A “decadência“ da CEPAL – observada tanto em sua relevância e originalidade no pensamento econômico contemporâneo, quanto em sua capacidade efetiva de exercer planejamento de caráter progressista e/ou desenvolvimentista nos países da América Latina e do Caribe - está relacionada ao esgotamento e/ou derrota do modelo substitutivo de importações. Os impasses relacionados à exaustão do modelo de industrialização substitutiva, assim como as possíveis alternativas de superação, levaram a grande instabilidade política e social nos primeiros anos da década de 1960. A solução final foi determinada pela força, quando se iniciou o ciclo militar na América Latina. Em alguns países, como o Chile, o Peru e a Colômbia, a opção da elite local foi a de liquidar rapidamente o processo de industrialização. Noutros, o processo estagnou, como na Argentina e no México. No Brasil, a industrialização ganhou força por conta da aliança de grupos locais com empresas multinacionais, sob o franco patrocínio do Estado. No entanto, a crise da dívida externa e a implementação das políticas liberalizantes, no período compreendido entre 1980 e 2002, levaram à liquidação de um projeto com algum conteúdo nacional. Bibliografia BARBOSA, Wilson do Nascimento. Relembrando a formação da CEPAL. Pesquisa & Debate, PUC-SP, Volume 15, n°. 2(26), julho a dezembro de 2004, pp. 176 – 199 BIELSCHOWSKY, R. (org.) Cinqüenta anos de pensamento na Cepal. São Paulo, Record, 2000. 2 volumes. _____________________. Sessenta años de La CEPAL: estructuralismo y neo estructuralismo. Revista de La CEPAL 97, abril 2009, pp. 173 – 194. CONDE, R. Raúl Prebisch: los años de gobierno. Revista de La CEPAL, 75, dezembro de 2001, pp. 83 – 87. FURTADO, C. A hegemonia dos Estados Unidos e o subdesenvolvimento da América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. FURTADO, C. Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico. São Paulo, Abril Cultural, 1982 (1968). 13

GURRIERI, A. (org.) La obra de Prebisch en la Cepal. México: Fondo de Cultura Econômico, 1982, 2 vols. HIRSCHMANN, A. Projetos de Desenvolvimento. São Paulo, Zahar, 1968. PREBISCH, R. Dinâmica do desenvolvimento latino-americano. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1968. RODRIGUEZ, O. Teoria do Subdesenvolvimento da CEPAL. Rio de Janeiro, 1981. SINGER, P. Desenvolvimento e crise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. STALLINGS, B e PERES, W. Crecimiento, Empleo y Equidad: el impacto de las reformas económicas en América Latina y el Caribe. Santiago: Fondo de Cultura Económica – CEPAL, 2000.

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