O pensamento saussuriano e os trabalhos publicados em vida

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O PENSAMENTO SAUSSURIANO E OS TRABALHOS PUBLICADOS EM VIDA1

Fernando Silva e Silva2

1. Introdução A herança saussuriana, conceitual e textual, não se apresenta de forma clara para nenhum pesquisador. O trabalho seminal, agora com 100 anos, que abalou para sempre o fazer da linguística, o Curso de linguística geral (doravante CLG), não é da autoria de Ferdinand de Saussure. Isto é, se pensarmos em um autor que deliberadamente ponderou sobre cada palavra que constaria na versão final de seu texto. No entanto, o CLG despertou as mais diversas reações em seus contemporâneos e desde então é referência quase que obrigatória para qualquer linguista. Mesmo Noam Chomsky, que reclama desde suas primeiras obras diferentes raízes para seu pensamento, anteriores mesmo aos cursos do mestre genebrino, não deixou de se posicionar quanto a essa tradição. Esse legado poderoso acabou por fazer de Saussure um nome tão significativo que foi impossível no escopo de sua recepção não esquecer que ele não escreveu nenhuma linha daquele texto, mesmo que essa informação constasse nas primeiras páginas do livro, no prefácio dos editores. Eventualmente, a obra foi fagocitada nos escritos daqueles que deram continuidade, à sua maneira, ao que se encontrava no CLG: Roman Jakobson, Louis Hjelmslev, André Martinet e outros. Uma forma genérica dessas múltiplas e divergentes leituras veio a ser chamada de estruturalismo e tomada como a disciplina que Saussure buscou fundar. Vale comentar ainda que paralelamente a esse movimento, alguns poucos linguistas continuavam a obra dele de outra forma, norteando-se principalmente pelo Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-européennes (doravante apenas Mémoire), entre esses Antoine Meillet, seu aluno na década em que Saussure ensinou em Paris e amigo próximo. Em uma intersecção dessas duas principais tradições pós-saussurianas, estaria ainda Émile Benveniste. Neste artigo, então, desejo chamar atenção a textos que não foram absorvidos de maneira uniforme por essa linguística do século XX.

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Versão levemente alterada do texto apresentado em 2013 na Jornada Internacional Ferdinand de Saussure e os Estudos Linguísticos Contemporâneos/II Simpósio Nacional de Estudos sobre os manuscritos de Ferdinand de Saussure e publicada em 2015 em Diálogos: Saussure e os estudos linguísticos contemporâneos. 2 Professor e pesquisador na Associação de Pesquisas e Práticas em Humanidades (APPH). Mestre em estudos da linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Assim, desejo explorar textos pouco mencionados de Saussure, a saber, aqueles que o autor publicou em vida3. O objetivo não é, com eles, fazer o que se fez dos manuscritos, torná-los um lugar de verdade anti-CLG. Se a corrente de uma crítica genética do curso pode ser rastreada até Godel, o movimento anti-CLG tem um principal idealizador: Simon Bouquet. No texto De um pseudo-Saussure aos textos saussurianos originais, afirma que “a descoberta dos manuscritos De l’essence double du langage e a publicação dos Écrits de Linguistique Générale poderiam modificar este estado factual, evidenciando a necessidade de evitar todo amalgama entre o Pseudo-Saussure e o Saussure autêntico” (2009, p.174). Essa mesma posição, em diferentes modalizações, pode ser igualmente identificada na obra Compreender Saussure a partir dos manuscritos de Loïc Depecker (2012). Duas atitudes paradoxais podem ser identificadas nessa posição. Primeiramente, a de negar qualquer autenticidade ao CLG, mas não conseguir deixar de referir-se a ele. Em segundo lugar, a insistência, explícita ou não, de que essas verdades sobre Saussure estão nos materiais publicados nos Escritos de linguística geral (doravante ELG), ignorando, no entanto, os trabalhos publicados em vida. Fato curioso sob diversos aspectos, se considerarmos que esses textos por vezes são até mesmo contemporâneos dos diversos fragmentos, notas e rascunhos que compõem o corpus dos manuscritos. Só é possível concluir que seja negado a essas obras alguma característica essencial, a qual lhes dê o estatuto necessário para participar do pensamento saussuriano. O prefácio de Depecker a seu livro nos dá uma pista nesse sentido. Ao falar do Mémoire e do De l’emploi du génitif absolu en sanscrit, o autor os louva por introduzir os conceitos – ou, talvez, seja melhor dizer os termos – de sistema e valor, respectivamente, e fim (2012, p.15-16). É uma espécie de fetiche de um terminólogo idealista que se apresenta, valorizando o aparecimento de uma palavra acima da construção de um raciocínio. Se não fosse o caso, veria sem dificuldades a presença atuante do conceito de valor no Mémoire. Depecker ainda se preocupa em encerrar possíveis interpretações divergentes: “[é] preciso aceitar a seguinte constatação: as publicações realizadas por Saussure durante sua vida abordam questões de gramática comparada e de reconstrução do indo-europeu. Elas não tratam de linguística geral, ainda que expressem pontos de vista de linguística geral” (p. 16). Não é por nada que as palavras “verdade”, “verdadeiro”, “real”, “autêntico” e outras ocorram com tanta frequência no prefácio de sua obra para se referir a Saussure e aos textos

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O material referido está integralmente disponível no Recueil des publications scientifiques de Ferdinand de Saussure, organizado por Charles Bally e Léopold Gautier.

relacionados, já há um quadro de interpretação pré-determinado que diz o que é e o que não é “linguística geral”. No entanto, nos próprios ELG, se conferirmos, por exemplo, as conferências proferidas em Genebra em 1891, vemos uma descrição divergente do que seria a ocupação da linguística (geral). Nelas, Saussure defende antes de tudo o estudo das línguas para se dizer algo sobre a linguagem: “com efeito, o estudo da linguagem como fato humano está todo ou quase todo contido no estudo das línguas. [...]. Percebe-se que o último detalhe dos fenômenos é também sua razão última e que, assim, a extrema especialização pode servir eficazmente à extrema generalização” (p. 128-9, grifo do autor). Quanto mais singular, mais universal. Parece que, mais uma vez, os críticos do CLG reforçam sua tradição, aceitando como linguística geral apenas o campo delineado pelo próprio texto no início do século XX e ainda continuam a tradição dos leitors do CLG, os quais limitam sua utilidade às três primeiras partes. A inserção no escopo do pensamento saussuriano dos trabalhos publicados em vida, então, despida de preconceitos de um suposto abismo entre linguística histórica e geográfica e linguística geral e do desejo de instaurar uma nova fonte de verdade, possibilita a reavaliação e o enriquecimento de um legado. A minha leitura aqui, vale ressaltar, parte de um préjulgamento teórico que pauta aquilo que será destacado nos textos, ainda que não insista sobre este ponto: o pensamento saussuriano é sobretudo um pensamento sobre um sistema diferencial e é, causa e efeito, sempre um pensamento sobre o valor.

2. Alguns elementos de textos do Recueil

Faço questão de resgatar aqui principalmente textos da juventude de Saussure, por nenhuma outra razão, além da intenção de mostrar que 3 décadas antes dos célebres cursos ministrados na universidade de Genebra, que serviriam de base para a publicação póstuma do CLG, um pensamento linguístico instigante já se desenvolvia. Além disso, para sugerir, pois não será possível fazer mais do que isso neste momento, que o trabalho do linguista não é uma súbita ruptura na história da ciência linguística, um salto qualitativo devido ao surgimento de novos conceitos, seja do céu das ideias ou das profundezas da mente de gênio, como o quereria uma epistemologia modernista, mas uma escrita que produz saber e, como qualquer escrita, não foge ao abritrário, sua localização no tempo e no espaço, com termos já dados e recriados a cada emprego.

A obra publicada em vida que se resgata com mais frequência é o Mémoire, mesmo por aqueles, como apontei na introdução, que dão pouca importância a esses trabalhos. Primeiramente, por simples razão histórica. Esse texto encerrou a época de estudos de Saussure em Leipzig voltada sobretudo a antigas línguas indo-europeias, como o celta e o persa antigo, que buscava na língua primitiva uma organização dos vários dados obtidos na comparação delas. Além disso, ele deu sustentação à posição obtida alguns anos antes pelo linguista na Société linguistique de Paris (doravante SLP), mesmo que a publicação do trabalho tenha recebido uma recepção mista, entre altas honrarias e alusões a possíveis plágios de ideias de seu professor, Karl Brugmann (cf. JOSEPH, 2012, p.195-7). Em segundo lugar, ele também é eventualmente trazido de volta às discussões por ser o trabalho de maior fôlego produzido por Saussure e que, mesmo para aqueles que desconhecem as muitas línguas, documentadas ou reconstruídas, em questão, deixa entrever a radicalidade do pensamento sistêmico do linguista. Por isso, ainda que a obra mereça atenção detalhada, nesta seção trago textos menores, em sua maioria publicados no Boletim da SLP. Uma série de publicações anteriores ao Mémoire apresentam alguns traços interessantes da linguística saussuriana em seus primórdios – lembrando que, na época, ele tinha 19 anos.. Duas especialmente interessantes são Sur une classe de verbes latins en –eo (IN:

1922, p. 352-69) e Essai d’une distinction des différents a indo-européens (ibidem, p. 379-90). O primeiro texto pretende analisar a distribuição entre os verbos latinos terminados em –io e aqueles terminados em –eo, os quais derivariam de uma mesma terminação -ja. O que chama atenção aqui, diferente de outros textos que o seguiriam no mesmo ano, são os critérios para a distribuição. Opondo-se a análise proposta por Hermann Graßmann, autor já renomado na época, que defendia a distribuição baseada exclusivamente na duração da vogal anterior à terminação verbal (căpio vs. sēdeo, por exemplo), Saussure propõe o uso também de um indicador semântico. Para ele, outro fator, mais importante que o fonológico, na diferenciação desses verbos seria se o mesmo tem sentido ativo ou neutro. Ainda que a explicação tivesse menos exceções do que a proposta por Graßmann, foi acolhida com pouco interesse pela comunidade linguística, por utilizar critérios além da objetividade oferecida pelos fonemas (cf. JOSEPH, 2012, p. 201). O segundo texto divulga primeiras conclusões sobre o “a” indo-europeu, antecipando o Mémoire e a teorização do sistema linguístico e de suas entidades. Nele, Saussure defende a existência, não exclusiva, de quatro fonemas antes da divisão das línguas indo-europeias, os quais ele chama de “a”, “a2”, “A” e “A2”. A existência dessas entidades é sustentada por sua distribuição não-redundante em um sistema. Importante notar também o aspecto fonológico

da análise, pois Saussure não associa necessariamente essas entidades a nenhuma realização material determinada, ainda que o sugira, ao indicar quais teriam sido as formas resultantes em idiomas posteriores. A análise toca também em aspectos da realização no sintagma, pois destaca o efeito que esses fonemas poderiam ter sobre outros em seu contexto, provocando a separação de k2 em k (velar) e c (palatal) (1922, p. 389). Além disso, se entrevê a distinção entre estado de língua e da língua vista na passagem do tempo – isto é, a divisão entre sincronia e diacronia –, pois no mesmo artigo, Saussure tenta distinguir quatro estados totalmente independentes e completos do sistema vocálico indo-europeu. Em obra posterior, De l’emploi du génitif absolut en sanscrit, tese que rendeu a Saussure o título de doutor summa cum laude em 1880, encontramos também, como em Sur une classe de verbes latins en –eo, uma distribuição de entidades linguísticas que não insiste apenas no aspecto formal dos termos em questão, mas também toma o sentido como critério. Aqui, mais especificamente, trata-se de fato do emprego das formas, uma vez que o trabalho conta com extenso corpus de análise. O assunto do genitivo absoluto, em suma, é abordado através de duas diferenças. Primeiramente, como esse emprego se diferencia do locativo absoluto, utilizado em orações circunstanciais semelhantes. Saussure se distancia das leituras de então que colocavam as formas em sinonímia, sublinhando apenas a diferença gramatical e o uso, a princípio, menos frequente do caso genitivo. Recenseando quase 500 usos do torneio frasal, o linguista destaca que parece haver uma classe de verbos específica, a dos de percepção, que é utilizada conjuntamente ao genitivo. Além disso, Saussure se recusa a ignorar o testemunho de Pānini sobre o sânscrito, valorizando seu conhecimento de falante nativo. A segunda diferença é entre as circunstanciais independentes expressas com o genitivo absoluto e aquelas que alteram diretamente o sentido da oração principal. O autor distingue essa diferença em dois grupos de análise, A e B, (ibidem, p. 278-9), apontando algumas possibilidades de tradução para ambas. O segundo grupo interessa especialmente a Saussure, visto que a construção intervém no sentido da frase, sendo na maioria dos casos traduzível para “ainda que” ou “apesar de”. Sobre isso, o linguista faz um comentário ao qual vale a pena darmos atenção:

On aurait tort toutefois de croire que le génitif absolu jouisse d'une faculté propre pour exprimer l'idée de quoique. I1 faut que cette idée se dégage plus ou moins clairement des mots eux-mêmes, et dans ces conditions le locatif absolu indien, comme l'ablatif absolu latin, comme le génitif absolu grec, se charge parfaitement de la même fonction. (p.280)4. 4

“Enganaríamos, no entanto, ao acreditar que o genitivo absoluto goze de uma faculdade própria para expressar a ideia do que for. É preciso que essa ideia se depreenda mais ou menos claramente das próprias palavras e,

Saussure nega que o sentido que se traduz por “ainda que” possa residir no genitivo ele mesmo, que lhe seja essencial expressar tal relação entre termos. É apenas na frase, no emprego efetivo, que essa relação será percebida e, assim, diferentes construções em diferentes línguas estão igualmente aptas a expressar esse tipo de relação. Ainda sobre a tese, é interessante notar que em seu planejamento inicial, apresentado aos avaliadores, ela possuía três partes, duas primeiras que tratariam do uso do genitivo absoluto e uma terceira que mostraria a origem indo-europeia do torneio sintático. No entanto, na versão apresentada para a banca avaliadora, não constava terceira parte. Uma apresentação clara da origem da forma apresentava algumas dificuldades ao linguista e, como ele aponta em uma nota após a desistência, uma discussão histórica parecia estar deslocada ao se tentar tratar do emprego efetivo do genitivo (JOSEPH, 2012. p. 267-8). Após a publicação da versão final de sua tese, antecedida por longas revisões, em 1881, Saussure diminui o ritmo de publicações, principalmente, é provável, devido a sua mudança a Paris e ao início de sua carreira como professor. Em 1884, no entanto, temos outro trabalho de interesse, Une loi rythmique de la langue grecque. Nesse texto, o autor tenta demonstrar a relação entre versificações adotadas na poesia clássica e a prosódia do falar comum do grego antigo. Ele elabora algumas leis fonéticas no cruzamento desses estudos que dariam conta da evolução sonora de uma série de palavras. Porém, o que parece mais interessante na proposta é a tentativa de situar a poesia dentro dos fenômenos de linguagem, despindo-a da romantização tão frequente no século XIX. A análise parte do pressuposto que, ainda que adotando uma forma cristalizada e a ser reproduzida, não há artificialidade na versificação poética, ao menos enquanto ela ainda diz respeito, dentro do possível, ao funcionamento rítmico da língua. Em tempo, vale ressaltar que esse é o único trabalho sobre poesia que Saussure optou por publicar, ainda que não entre seus colegas da SLP, diferente dos estudos sobre o verso saturnino ou A canção dos nibelungos. Com apenas uma ou duas exceções, o linguista publicou apenas uma série de curtas notas etimológicas por um período de 10 anos, rompendo o silêncio com Sur le nominatif pluriel et le génitif singulier de la déclinaison consonantique en lituanien. Como indica o título do trabalho, se trata nesse trabalho de explorar as formas gramaticais destacadas. O objetivo do autor é analisar as terminações usadas em diferentes gêneros para constatar a existência de uma alteração fonética e o período em que ela teria ocorrido. Como em outros nessas condições, o locativo absoluto indiano, como o ablativo abosluto latino, como o genitivo abosluto grego, se ocupa perfeitamente da mesma função” (tradução minha).

trabalhos sobre o lituâno que seguiriam, o intuito, não declarado, é de encontrar alguma fundamentação complementar à teoria proposa no Mémoire5. O artigo segue na linha de trabalhos anteriores, com tentativas de reconstituição de estados definidos para a comparação de mudanças ao nível do sistema. O trabalho não é conclusivo quanto à questão que levanta, mas o interessante para nós é de observar a recorrência desses procedimentos de análise. Aqui se apresenta com clareza, por exemplo, uma das bases da linguística saussuriana, ao mesmo tempo em que se aborda certo descrédito que começavam a adquirir os estudos dos indo-europeanistas: Nous n'ignorons pas sans doute qu'un discrédit général, assez justifié par certains excès, enveloppe les formes „indo-européennes‟ qui sortent depuis trente ans des vieux imprimés de Königsberg et de Wilna. Tout dépend ici de l'esprit dans lequel chaque recherche est conduite, et dont le lecteur reste juge. Avant tout on ne doit pas se départir de ce principe que la valeur d'une forme est tout entière dans le texte où on la puise, c'est-à-dire dans l'ensemble des circonstances morphologiques, phonétiques, orthographiques, qui l'entourent et l'éclairent (p. 514)6.

Saussure reconhece a crítica crescente aos estudos de linguística da época e parece somar-se a ela, ao menos parcialmente ao sugerir que a validade das reconstruções depende de como a pesquisa é conduzida. Para assegurar a qualidade de seu trabalho, apresenta o princípio do valor de uma forma como princípio científico basilar; quer dizer, o princípio que assegura a geração de um dado linguístico. O valor está inteiramente no texto, isto é, no conjunto do contexto e só pode ser determinado levando-o em conta. Essa elaboração, espero ter deixado isso patente até aqui, não é totalmente nova nos trabalhos saussurianos e está presente, com crescente clareza sem dúvida, desde as primeiras publicações7.

3. Conclusão 5

Sobre esse ponto, ver o trabalho essencial de JOCHIMS, 2016. “Sem dúvida, não ignoramos que um descrédito generalizado, um tanto justificado por certos excessos, envolve as formas „indo-europeias‟ que saem há 30 anos dos velhos impressos de Königsberg e Wilna. Tudo depende aqui do espírito com que cada pesquisa é conduzida e cujo leitor permanece o juíz. Antes de tudo não devemos abrir mão do príncipio de que o valor de uma forma esta inteiramente no texto de onde a colhemos, isto é, no conjunto de circunstâncias, morfológicas, fonéticas, ortográficas, que a circundam” (tradução minha). 7 Essencial não esquecer, também, que o conceito de valor não é novidade na linguística europeia. Na verdade, quando Saussure começa a utilizá-lo, com cada vez mais frequência do final do século XX ao início do XX, ele já conta com longa história. Como aponta Haßler: “pour la notion de valeur, on peut constater une histoire d‟au moins trois siècles avant Saussure. Cette histoire concerne le mot même dans le contexte d‟observations sémantiques aussi bien que son contenu différentiel et son opposition à d‟autres termes.” (2007, p.1) 6

Espero que o breve percurso traçado na seção anterior, o qual compreende 18 anos da carreira do linguista, tenha servido para demonstrar que, diferente das narrativas usuais sobre o desenvolvimento do pensamento saussuriano, não há aí clara separação entre as ocupações da linguística comparada e da linguística geral. Não só se faz evidente que a linguística histórica não prescinde de constatações gerais sobre a linguagem e seu funcionamento, mas também que os seus estudos mais meticulosos são sempre descobertas sobre a realidade da linguagem. Se continuássemos no caminho cronológico desenhado no cerne deste trabalho, ainda faltariam 12 anos para chegarmos no primeiro dos famosos cursos de linguística geral. Dizer que esses primeiros trabalhos anunciam o futuro “rompimento” do CLG com a linguística tradicional seria sucumbir ao hábito tautológico da história das ciências. Muito pelo contrário, o que gostaria de ressaltar é a continuidade de ideias em ininterrupto desenvolvimento. Não tendo em vista um conceito estático final, mas uma série de procedimentos de análise e propostas epistemológicas, não só transparece a ausência de ruptura no pensamento saussuriano, incluindo nessa afirmação sua pesquisa sobre poesia e mitologia, como também uma complexa rede que liga a linguística saussuriana e as práticas científicas da época8. Esse é um percurso ainda não trilhado.

REFERÊNCIAS BALLY, Charles; GAUTIER, Léopold (eds.). Recueil de publications scientifiques de Ferdinand de Saussure. Genebra: Payot, 1922.

BOUQUET, Simon. De um pseudo-Saussure aos textos saussurianos originais. IN: Letras & letras, 25 (1) 161-175, jan./jun. Uberlândia. 2009.

DEPECKER, Loïc. Compreender Saussure: a partir dos manuscritos. Petrópolis: Vozes, 2012.

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O irmão de Ferdinand de Saussure, René de Saussure, por exemplo, era físico teórico e enviou alguns de seus primeiros trabalhos ao linguista. Várias de suas elocubrações parecem ter encontrado seu caminho para dentro da linguística saussuriana, como já sugeria, por exemplo, o uso de termos como sistemas estáticos, opostos aos dinâmicos, expressões transpostas da mecânica (cf. JOSEPH, 2012, 265-9).

HAßLER, Gerda. La notion de valeur saussurienne: continuité ou innovation?. Genf: anais do congresso Révolutions Saussuriennes, 2007. JOCHIMS, Vítor. Notes sur l’accentuation lituanienne: uma ciência em construção. Tese (doutorado) -- Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras, Porto Alegre, BR-RS, 2016.

JOSEPH, John. Saussure. Oxford: Oxford university press, 2012.

PINHEIRO, Clemilton Lopes; LIMA, Maria Hozanete Alves de (orgs). Diálogos: Saussure e os estudos linguísticos contemporâneos. Natal: EDUFRN, 2015.

SAUSSURE, Ferdinand. Escritos de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2004.

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