O PENSAR AFRODESCENDENTE: UM ENSAIO PARA DISCUSSÃO EDUCACIONAL - IX Congresso Internacional de Filosofia / ISSN: 2177-8663 v. 9, n. 1

Share Embed


Descrição do Produto

O PENSAR AFRODESCENDENTE: UM ENSAIO PARA DISCUSSÃO EDUCACIONAL

Lucas Collito Martins UNICENTRO / Núcleo de Estudo Africanos e Ameríndios - NEAA Jefferson Olivatto (Orientador) [email protected] Palavras-chave: Cultura. Educação. Candomblé. Discute-se de modo teórico a perspectiva intercultural da educação, com ênfase no contexto brasileiro as relações de identidade e diferenças que se desenvolvem em movimentos sociais, assim como na educação popular e escolar, aqui dentro de uma religião de matriz afrodescendente, o Candomblé. Dentro desta linha volta-se o olhar à intercultura, a educação do Ser a partir destes espaços, bem como a ideologia alimentar sobre construção importante do individuo em educação e o contexto educacional social, mostrando assim como a educação acontece dentro desta cultura e como ela se estende através do pensar social e comunitário.

A comida e o comer como pilar social importante à educação no terreiro O Candomblé é considerado uma das religiões que mais possuem rituais com alimentos presentes, onde estes se difundem às mais diversas maneiras de simbologias e significados econômicos e sociais em modos rituais de relevante importância na comunicação e linguagem cultural. É visível o terreiro em sua gênese como um espaço de convivência e estabelecimento de laços e alianças interpessoais e coletivas dos membros, tendo assim a construção de um lugar especial, pois é ali que será compartilhado o momento sagrado, será o espaço físico social onde os deuses serão recebidos. Assim, a oferenda alimentar em práticas e festividades sagradas é a forma de seus seguidores terem contato com seus Orixás e por assim, tê-los em sua vida, além de perpetuarem como prática educacional à uma hierarquia interna (MACIEL, Antropologia e Nutrição: um diálogo possível, 2005). __________________________________________________________________________ IX Congresso Internacional de Filosofia da UNICENTRO De 22 à 26 de Junho – Ser e pesar, inícios ISSN 2177-8663

A iniciação corresponde a um pacto estabelecido entre o homem e os orixás. Antes de tudo, o que os humanos esperam deles, é a proteção. Para proteger os humanos, no entanto, eles precisam estar fortes, e para tanto se torna necessário mantê-los sempre bem alimentados. É este justamente a principal responsabilidade social dos iniciados, as chamadas ‘comidas de obrigação’. Não alimentar o Orixá, ou seja, não cumprir o pacto, é não apenas perder sua proteção, mas, sobretudo ficar exposto a riscos. Entende-se que o orixá exerce aqui uma gama de significações espirituais à proteção do fiel – mais especificamente de sua cabeça, onde ‘mora’. É neste momento da iniciação, ou melhor, antes dele que todos são “preparados” para tal destaque e responsabilidade dentro do espaço social. Para Caputo (Educação nos Terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de Candomblé, 2012) muitas das crianças já são iniciadas quando à partir deste aprendizado social e cultural, e algumas, apenas depois de um processo longo de aprendizado dentro das práticas educacionais desta classe religiosa é que se tornam aptas a receber posteriormente o Orísà, com a alimentação como vínculo a ser aprendido nesta fase, como citado anteriormente. Falção (“Ele já nasceu feito”: o lugar da criança no Candomblé, 2010) em sua pesquisa no campo antropológico deixa claro que o peso social como construção de cidadão à partir desta linha ensinada em terreiros é de relevância tanto quanto essencial ao mesmo peso simbólico a um adulto dentro da religião afrodescendente. Seguindo este prisma, é ação e ligação entre o dar, receber e retribuir, tão presente no candomblé como principal forma enquanto elemento de mediação fundamental, a comida enfatizada. A partir daqui, vemos a cozinha ganhando um status de “santuário”, onde tudo gira em torno do sagrado, e todos com o pensamento firmado em energias positivas, que são repassadas ao alimento no momento de sua preparação elaborada. Seguindo esta visão, é muito comum encontrar-se com a fartura na oferta de alimentação em terreiros de candomblé, além de uma qualidade da comida oferecida neste âmbito social. Assim, a principal característica desses alimentos em meio às práticas é seu próprio direcionamento aos Orixás e posteriormente também às outras pessoas que frequentam o espaço ou apenas visitam em dias de festa de santo, sempre tendo a finalidade __________________________________________________________________________ IX Congresso Internacional de Filosofia da UNICENTRO De 22 à 26 de Junho – Ser e pesar, inícios ISSN 2177-8663

de preparar o melhor com o melhor ingrediente, partilhando tudo e nunca desperdiçando nada (HUBERT, Manjar dos deuses: as oferendas nas religiões afrobrasileiras, 2011). A relação entre os devotos de sociabilidade e suas divindades se estende à comunidade do entorno do terreiro bem como aos visitantes, através dos rituais públicos, as festas. Este é o momento em que a relação mediada pela comida assume o significado mais amplo, promovendo a socialização entre os iniciados, a comunidade e os Orixás, moldando valores e toda uma teia de significados construídos ao longo desta prática como ensinamento aos devotos e à própria sociedade de partilha.

Uma Filosofia Cultural como Educação social Preliminarmente, para compreendermos o papel desta intercultura dentro de ambiente educacional, voltamos aos dois planos de importância. O plano social, como ação de favorecer o desenvolvimento autônomo de sujeitos individuais ou coletivos e, ao mesmo tempo, construir relações sociais de respeito e solidariedade e um possível plano educativo, a desenvolver uma disposição que explicite e elabore conflitos, para que assim se fortaleça a identidade pessoal e cultural e, que ao mesmo tempo possa construir processos de entendimento e de cooperação entre estes grupos sociais diferentes neste mesmo ambiente (BONFIGLI, Intercultura e cooperazione, 1995). Oliveira (Educação nos Terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de Candomblé, 2012) coloca em seu trabalho, sobre o próprio plano social e educativo visto de tais crianças em torno de um terreiro de Candomblé no social, quanto dentro do próprio, para o segundo plano: [...] apesar das crianças ocuparem a mesma posição de um adulto no Candomblé, sua particularidade em termos sociais não seria olvidada completamente (p.309).

Neste espaço de educação social religioso, observa-se que todo um processo de aprendizagem, ganha enfoque especial na construção da criança principalmente por meio da observação e dos próprios cultos. Corsaro (Sociologia da Infância, 2011) coloca ainda em seu trabalho que o processo educacional é continuamente vivenciado em formação enquanto “ser” dentro deste campo religioso, com brincadeira que remetem ao Candomblé, mas que __________________________________________________________________________ IX Congresso Internacional de Filosofia da UNICENTRO De 22 à 26 de Junho – Ser e pesar, inícios ISSN 2177-8663

tal ação acaba sendo colocada muitas vezes de lado frente à “culturas pares” de outras crianças no ambiente escolar. Os campos da educação e da cultura estão cada vez mais articulados, compreendendo-se a educação como prática social de formação cultural, política e identitária e a cultura como complexo simbólico que nomeia, julga, orienta e educa os sujeitos face ao mundo em que vivem. A centralidade da cultura na teoria educacional contemporânea tem a ver com a “virada cultural” observada entre as diferentes disciplinas científicas, e que, segundo o historiador Peter Burke (O que é história cultural?, 2005), ficou mais visível nas décadas de 1980 e 1990 em termos de ciência política, geografia, economia, psicologia, antropologia e estudos culturais. Seguindo está linha, a educação acaba sendo compreendida como uma prática social, que vai para além dos muros de uma escola, a pedagogia amplia seu campo de estudos de modo a passar a considerar práticas educativas desenvolvidas neste cotidiano social, como ambientes de trabalho, escolas de samba, manguezais, religiões, entre outros vastos espaços da sociedade. Com essa compreensão, o saber não habita um único espaço (a escola) e não é privilégio dos mais competentes (os intelectuais, os professores, os cientistas). Ele é local porque tem as raízes de quem o produz e manipula, mas também universal pelo fato de estar apoiado em princípios de pensamento presentes diferencialmente em todos os significados de culturas. Cada uma delas, aliás, cria sua forma própria de compreender o mundo; os sujeitos escolhem os seus critérios de verdade; realizam uma leitura do mundo significativa para si e acabam por agirem de acordo com estas referências. Há sentido, desse modo, em falar destes processos de transmissão por este acervo cultural – os saberes – para a continuidade do grupo e da constituição de “comunidades culturais”. Estes saberes acabam sendo produzidos à partir de relações sociais, e todos os indivíduos, nos diversos espaços por onde transitam, constituem-se como sujeitos de ensino aprendizagem. Os grupos subalternizados, que, historicamente, foram vistos como sendo “sem cultura”, são, nessa visão, compreendidos como produtores do saber. __________________________________________________________________________ IX Congresso Internacional de Filosofia da UNICENTRO De 22 à 26 de Junho – Ser e pesar, inícios ISSN 2177-8663

Segundo Martinic (GADOTTI, 1994), o saber cotidiano está vinculado a uma ação e a uma prática de tais sujeitos, sendo assim um saber imediato que lhes permita resolver problemas práticos; é adequado, então, para o desempenho concreto, produzindo-se e atualizando-se por meio da experiência. Dessa maneira, observamos nas modalidades de educação no terreiro que esses universos culturais se entrecruzam no cotidiano da casa, dimensionando uma educação intercultural, compreendendo-se esse conceito, a partir da noção de intercultura de Reinaldo Fleuri (Intercultura e Educação, 2003), como “um campo complexo em que se entretecem múltiplos sujeitos sociais, diferentes perspectivas epistemológicas e políticas, diversas práticas e variados contextos sociais”, permitindo reconhecer “a complexidade, a polissemia, a fluidez e a relacionalidade dos fenômenos humanos e culturais”. Para Tramonte (Práticas de Educação Intercultural e Comunitária das Religiões Afro-Brasileiras em Santa Catarina, 2004), sob o prisma da intercultura, as práticas das religiões afro-brasileiras apresentam-se como um campo híbrido de construção de identidades e filosofias em campo. Este possibilita a criação e circulação de saberes interculturais, que são preservados na religião em decorrência da importante atuação dos sacerdotes e demais adeptos, os quais, por meio da oralidade, das narrativas mitológicas, do aconselhamento e dos trabalhos de desenvolvimento, iniciam uma socialização de saberes e tradições registrados na memória coletiva do povo-de-santo.

Considerações finais Compreender os fundamentos das religiões de matriz africana a partir destes códigos sociais, culturais e educativos, como uma forma de sociabilidade, pode ser um dos caminhos para combater situações como a indiferença, a intolerância e o preconceito quando tratada em uma âmbito de educação escolar. Essa análise de compreensão contribui para que tanto o estudante negro, quanto também aquele não-negro, adepto das religiões de matriz africana, possa ver sua religião ser abordada na escola como uma referência identitária positiva. Retomo, assim, um dos aspectos do primeiro pressuposto deste trabalho: o de que a escola é um espaço e tempo de afirmação de identidade. Certamente, isso exige um esforço __________________________________________________________________________ IX Congresso Internacional de Filosofia da UNICENTRO De 22 à 26 de Junho – Ser e pesar, inícios ISSN 2177-8663

muito grande de educadores/as deste nosso País, com relação à mudança de mentalidade e práticas educativas.

Referências bibliográficas BONFIGLI, Gabriele; SPADARO, Marina. Intercultura e cooperazione. MCE. São Paulo: 1995. BURKE, Peter. O que é história cultural?. Jorge Zahar. Rio de Janeiro: 2005. OLIVEIRA, Amurabi. CAPUTO, Stele Guedes. Educação nos Terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de Candomblé. Pallas. Rio de Janeiro: 2012. CORSARO, Willian A. Sociologia da Infancia. Artmed. Porto Alegre: 2011. MACIEL, Maria Eunice. Antropologia e Nutrição: um diálogo possível. Ed. Fiocruz. Rio de Janeiro: 2005. CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos Terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de Candomblé. Pallas. Rio de Janeiro: 2012. FALÇÃO, Christiane Rocha. “Ele já nasceu feito”: o lugar da criança no Candomblé. PPGA/UFPE. Recife: 2010. FLEURI, Reinaldo Matias. Intercultura e Educação. UFRJ. Rio de Janeiro: 2003. MARTINIC, Sergio. GADOTTI. Cortez. São Paulo: 1994. TRAMONTE, Cristiana. Práticas de Educação Intercultural e Comunitária das Religiões Afro-Brasileiras em Santa Catarina. Os Urbanitas. São Paulo: 2004. HUBERT, Stefan. Manjar dos deuses: as oferendas nas religiões afrobrasileiras. Primeiros Estudos. São Paulo: 2011.

__________________________________________________________________________ IX Congresso Internacional de Filosofia da UNICENTRO De 22 à 26 de Junho – Ser e pesar, inícios ISSN 2177-8663

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.