O PERFEITO ESPELHO

June 9, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: ESCULTURA, Artistas portuguesas
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O PERFEITO ESPELHO1 Emília Ferreira No princípio era o barro. O céu. A água. A terra. O fogo. E com esses elementos se fez a escultura e nela se marcou o tempo. É por aqui que se pode iniciar uma abordagem dos sentidos à obra de Virgínia Fróis. Definimos as formas: taças, vasos comunicantes, casas, berços; paisagens em que se encontra apenas a memória de um lugar; corpos trabalhados sobre o próprio esculpido do tempo. O mesmo é dizer que esta escultura é formulada por um léxico que recorre a vocábulos puros e primordiais como a terracota, o ferro, o xisto, a madeira e, em certas peças, o bronze. Simultaneamente, é percorrida pela água, o ar e a luz, reconduzindo o olhar pelas formas abertas e secretas, convidando ao habitar desses lugares, com a memória ou o por-vir, obrigando a um exercício poético. Esta obra leva à participação, pela força intrínseca dos materiais e das formas, e convence à filosofia pela intenção hermenêutica, levando à constante inquirição do sentido. Tal confronto sublinha o carácter de dualidade ou totalidade dos signos que esses materiais afinal são. Porque tudo no trabalho de Virgínia Fróis se apresenta com a crueza e a poética do mundo e das suas estórias e tentativas de interpretação. O convite desta escultura tem tanto de inocente como de perverso. Na realidade, trata-se do apelo do e ao encantamento. Não é, certamente, casual a sua marcada face simbólica. Senão, atente-se: a taça (muitas vezes transformada em cesta ou cabaça), Graal, símbolo de abundância, imortalidade, é o cálice eucarístico. O seu conteúdo é sagrado. Mas não menos sagrada é a própria taça através da qual bebemos a salvação ou o veneno; o destino, afinal. A água viva da fonte reforça a linha de salvação e imortalidade. Junto à árvore da vida, eixo do mundo, colocada no centro do jardim, simboliza o elixir da vida, a iniciação, a maternidade, o líquido amniótico. A água que daí

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Texto do catálogo da exposição Virgínia Fróis. Espelhos. Casa da Cerca-Centro de Arte Contemporânea, 2000, ISBN 972-8392-72-9.

flui representa também purificação e regenerescência; mas guarda, além disso, a outra face dos poderes: dissolução, provação, finitude. Assim, nesta escultura que reflecte o céu, há múltiplos jogos. Por um lado, a fonte iniciática: o líquido vital nasce em taças de terracota e grés, sustidas por estruturas de ferro com bases triangulares, um outro signo de divindade e harmonia. Por outro, vasos comunicantes, que religam a água, indiciam caminhos, sugerem vias, apontam o rio – fertilidade, morte, renovação. Rios superiores e solares, ou inferiores e escusos, conduzindo as almas para destinos de sombra, como Ofélia, mas sempre com um elemento comum: espelhar o céu. E eis que chegamos ao espelho, afinal o pretexto outro desta passagem iniciática que a escultora nos propõe e obriga. Em si mesmo, o espelho é um reflexo da alma, superfície que lembra água gelada, podendo revelar a verdade ou iludir (velhos sonhos de pescar a lua na superfície espelhada de um lago) e até matar (trágica história de Narciso, morrendo de solidão depois da promessa do amor e da descoberta da impossibilidade da sua concretização). Conta-se que da perfeição do espelho depende a pureza da imagem, do mundo. Assim sendo, aceita-se como verdadeiro tudo o que o espelho dá. Face possível do conhecimento, mágico e indirecto caminho para lugares imaginários, o perfeito espelho, que reflecte o mundo, dele dá a ver, também, a face obscura. Porta para a totalidade, abre vias insuspeitas. A dos poderes malignos, provocada por profundas dores e perdas, como na história torturante da madrasta da Branca de Neve; ou a da perplexidade de Alice na aventura Do Outro Lado do Espelho. É assim, pois, que nos confrontamos com o espelho mágico, onde se lê o passado, o presente e o futuro. Na tradição islâmica a taça do lendário rei Jamshid do Irão é também um espelho. Símbolo do coração do iniciado, sublinha a perda da inocência do paraíso e a passagem para o conhecimento. Essa passagem, sabemos, compreende ganhos e perdas. Comemos a maçã para que se nos abram os olhos, para sermos deus, para conhecermos o bem e o mal. Mas isso significa, talvez, o fim da candura. Ou, talvez, o fim da ilusão de um mundo onde, afinal, a perfeição jamais existiu.

Neste labirinto de significações, se situam as formas depuradas de Virgínia Fróis. A sua escultura manifesta uma gramática que mantém um rosto cosmogónico intacto, nas peças de respiração calma e sapiente, de si mesma e do mundo. Está aqui tudo: a beatitude e o conhecimento.

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