O perigo da literatura, a pedagogia do mal

June 16, 2017 | Autor: G. Rocha Pinezi | Categoria: Literary Theory
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O perigo da literatura, a pedagogia do mal

Gabriel Pinezi

Há poucos anos atrás, o teórico da literatura e historiador Tzvetan Todorov publicou um pequeno livro chamado A Literatura em Perigo. Nele, Todorov critica o sistema francês de ensino de literatura para os jovens, o que seria para nós o equivalente aos ensinos médio e fundamental. Sua preocupação principal é com a predominância de um viés estruturalista de leitura do texto, cujo fundamento principal é a tese de que a literatura é feita de linguagem e que, portanto, seria possível estudá-la aplicando os mesmos métodos e paradigmas da linguística. Como se sabe, um dos paradigmas da linguística estruturalista é o de que o funcionamento da linguagem não depende, em hipótese alguma, de um referente no mundo; para o estruturalismo, é necessário estudar a linguagem sem se referir a nada que seja exterior a ela mesma. Em vez de se perguntar como a linguagem literária traduz o mundo em palavras, o estruturalismo investigou a fundo quais eram as regras inerentes à produção de sentido dos textos literários. A metáfora de Deleuze ilustra bem as intenções do estruturalismo: trata-se de investigar uma “casa vazia”, ou seja, estudar não a cor das paredes, os quadros que enfeitam as salas, as mobílias ou as pessoas que vivem lá, mas tão somente sua engenharia, seus pilares, sua fundição, o cálculo de forças que a mantém em pé e não a deixa desmoronar. Num exemplo concreto: em vez de especular sobre as razões psicológicas, sociais ou existenciais que levam Bentinho a escrever suas memórias em Dom Casmurro, ou em vez de se perguntar pelo contexto histórico do livro, os estruturalistas estariam mais preocupados em identificar as figuras de linguagem, os marcadores textuais do tempo da narrativa, os desníveis entre narrador, autor e narratário, etc. Pois bem, quando Todorov diz que “a literatura está em perigo”, ele está ponderando sobre os limites dos estudos estruturalistas para a compreensão da literatura. Para ele, conhecer os fundamentos estruturais de uma narrativa ou de um poema ajuda – e muito – a compreensão dos textos, mas este conhecimento não pode esgotar o sentido mais amplo da literatura, seus vínculos com a sociedade, com a natureza e com o homem. Em outras palavras: não se pode apenas aprender o que é a

literatura, é preciso também se perguntar o que a literatura pode nos ensinar, e assim admitir que ela não está separada do mundo. Está aí uma tese que eu admiro e acho correta. Seria muito mais interessante que nossos professores de ensino médio nos mostrassem como tirar da literatura respostas para a vida, fazer da literatura um meio para ensinar a viver. Mas Todorov apresenta essa ideia de uma forma tão inocente que, confesso, acho extremamente empobrecedor. Cito Todorov: “O que o romance nos dá não é um novo saber, mas uma nova capacidade de comunicação com seres diferentes de nós; nesse sentido, eles participam mais da moral do que da ciência. O horizonte último dessa experiência não é a verdade, mas o amor, forma suprema da ligação humana”. O que realmente me incomoda nesta afirmação é este lugar comum de achar que tudo o que gira em torno da literatura é edificante, que lendo um romance ou um poema poderíamos aprender a lidar melhor com nós mesmos e com os outros. O que me pergunto diante dessa inocência é o seguinte: ora, será mesmo que “o horizonte último” do romance e da literatura é esta “forma suprema de ligação humana” que chamamos no dia a dia de amor? Ou melhor: será mesmo que o “amor” pode ser entendido como uma “forma suprema de ligação humana”? Será que tudo que gira em torno do amor e da literatura pode ser entendido como comunicação, como algo que nos une e nos torna mais próximos uns dos outros? Não seria possível pensar na literatura e no amor como formas supremas do mal ao invés de formas supremas do bem? Aprecio muito uma definição de amor proferida pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek na abertura do documentário que leva seu nome. Diz ele que sua visão do mundo é muito sombria, muito próxima à da física quântica: se olharmos para o conjunto do universo, se pudéssemos ver o mundo lá do alto em sua totalidade, basicamente veríamos um grande vazio, mas um vazio carregado de positividade; se as coisas particulares brotam deste vazio, se é possível olhar para elas e ver que elas existem, trata-se na verdade de um erro, de um desequilíbrio deste universo. Basicamente, aceitar isto seria aceitar que a criação é um erro, que nós estamos nesse mundo por mero acaso; aceitar isso, em outras palavras, seria aceitar que, se há Deus, esse Deus é absolutamente mau, absolutamente perverso. Ora, diante deste acaso essencial, diante deste mundo que é em si mesmo um erro, qual a reação do homem, senão assumir este erro até às últimas consequências e cometer a violência que chamamos de amor? Cito Zizek: “Não é o amor uma espécie de desequilíbrio cósmico? [...] O amor, para mim, é

um ato extremamente violento. O amor não quer dizer ‘Oh, eu amo a todos vocês’. O amor significa que eu seleciono algo – é o desequilíbrio do universo. Ainda que esse algo seja um pequeno detalhe ou um indivíduo frágil, eu digo ‘te amo mais que qualquer outra coisa no mundo’. Neste sentido preciso, o amor é o mal.” Estou convencido de que, se a literatura tem como horizonte o amor, é apenas nesse sentido pontual de que, diante da totalidade das coisas, da vastidão espetacular do universo, ela seleciona e recorta alguns fragmentos e diz “amo a você mais que tudo”. Esse tipo de amor, que é o mal absoluto, uma espécie de egoísmo perverso diante dos fragmentos do universo, é aquilo que há de mais interessante nos grandes escritores. Não acho que o potencial educador da literatura esteja na capacidade de nos ensinar a lidar com os outros, a mostrar que os outros são iguais a mim e que, portanto, devo amá-los e respeitá-los. Na verdade, eu iria desprezar profundamente a literatura se, de Homero a Dante, de Cervantes a Sade, de Proust a Kafka, o que estivesse em jogo fosse sempre o mesmo homem, com seus mesmos dilemas e seus mesmos problemas morais, sempre aquela tentativa de mostrar que sou igual aos outros, que devo amá-los e etc. Por sorte, a literatura não é e nunca foi isso. Se a literatura é bela, se ela ensina o amor, é pela forma violenta com que ela se dirige ao mundo e seleciona aquilo que mais lhe interessa, é pela maneira maléfica com os escritores dizem “isto que mostro é diferente daquilo que os outros veem, meu homem é diferente dos outros homens, minhas palavras não são iguais às palavras dos outros, e tudo o que posso lhes mostrar é o abismo que me separa de todos os seres”. Dou um exemplo a vocês. Eu desafio vocês a lerem A Metamorfose de Kafka e me apontarem onde está o amor, nesse sentido dado por Todorov. Podem ler e reler, nunca o encontrarão. Se há amor na novela de Kafka, não é um amor que une os personagens uns aos outros, apagando suas diferenças e instaurando novas formas de comunicação; ali, não há união nem comunicação entre seres diferentes, mas há diferenças radicais entre os seres, que os condenam, de certa forma, a uma solidão próxima à solidão absoluta. Percebam a ironia fantástica de Kafka: ao transformar Gregor Samsa em um monstruoso inseto, ele torna impossível até uma comunicação e uma identificação do protagonista para consigo mesmo; é como se Samsa, preso no quarto sob uma forma monstruosa, estivesse condenado a uma solidão tão intensa que seria impossível fazer companhia a si mesmo. E é neste tipo de jogo, da alienação do

homem perante a si mesmo, perante às coisas e aos outros, que reside a beleza perversa da prosa de Kafka. Não acredito que o valor literário de um texto qualquer esteja na capacidade de nos ensinar o que há de mais universal no ser humano, segundo aquele velho senso comum de que os grandes escritores são radiólogos da alma. Pensem bem no quanto a metáfora da radiografia é triste, enganadora, empobrecedora; ela insinua que um texto literário, ao falar do homem, não tem o mínimo interesse em mostrar o rosto, a pele, a superfície, os traços únicos que configuram um indivíduo ou um ser humano; a metáfora da radiografia insinua que o importante mesmo é conhecer aquilo que há dentro do homem. Não suporto a noção de “profundidade”, quando aplicada ao ser humano; porque se vocês pensarem bem, no fundo, por dentro, todos nós somos iguais e entediantes: um bocado de ossos que, encaixados na ordem certa, sustentam um monte de carne. E, vamos concordar, que chatice seria se todos os romances e poemas que vocês já leram fossem como um álbum de fotografias onde, em vez de rostos, sorrisos, lágrimas, expressões de dor e de satisfação, vocês só pudessem ver uma sequência interminável de ossos azuis num fundo preto. Se eu colocasse diante de vocês 10 radiografias dos crânios de 10 pessoas que vocês amam ou já amaram, vocês provavelmente não conseguiriam reconhecer nenhuma delas. Isso porque é na superfície que nos diferenciamos, é na superfície que somos interessantes, é pela superfície dos outros que nós nos apaixonamos. Daí porque, se eu tivesse que escrever um livro sobre a função pedagógica da literatura, eu ia inverter o título de Todorov e escreveria sobre o perigo da literatura: em vez de chorar pela literatura que está em perigo por ter perdido seu vínculo com o homem e o mundo, me perguntaria quais são os perigos a que nos lança a literatura, quais são as perigosas formas com que a literatura nos re-ensina a olhar para as entrelinhas do mundo, quais são as formas perigosas com que a literatura nos mostra a diferença radical entre nós mesmos e tudo o que nos cerca. Em um dos capítulos desse livro, falaria da morte; em outro, falaria da solidão. Mas o principal seria o capítulo sobre os perigos da loucura. Não é à toa que, na história da modernidade, de Cervantes aos surrealistas, a literatura e a loucura estiveram profundamente ligadas, sempre assinalando para os limites da razão, os limites do humano, os limites entre o bem e o mal, a terra firme e o abismo, o bom caminho e a errância.

Vocês se lembram qual o motivo de Dom Quixote ter enlouquecido, não é mesmo? De tanto ler os romances de cavalaria, saiu pelo mundo vestido com sucata tentando imitar na vida real aquelas aventuras típicas do imaginário medieval. Toda sua viagem é um erro; sua aventura é a própria ridicularização da aventura. Todos conhecemos o nome desse tipo de narrativa: trata-se da paródia, um tipo de discurso que rebaixa os ideais mais belos dos homens ao nível da realidade banal, mostrando o ridículo que é levar a sério coisas que não passam de sonhos, de idealizações, de ficção, de literatura. Quando Quixote olha para moinhos e enxerga gigantes, é porque tenta inutilmente transportar as imagens maravilhosas dos romances de cavalaria para um mundo comum, banal, cotidiano, um mundo real que não guarda nada de fantástico em sua tessitura. Basicamente, o que Cervantes tenta nos mostrar com a errância de Quixote é que a literatura não pode servir como modelo para se olhar para o mundo; o que Cervantes tenta nos mostrar é que a literatura engana o homem, que o espaço da ficção não se confunde com o espaço do real, que é inútil tentar transpor um espaço no outro. O amor pela literatura aparece aí como um perigo, como uma forma de erro, de engano, como um dos limites entre a razão e a loucura. E não é à toa que Dom Quixote é o primeiro dos grandes livros modernos: ele nos ensina - ainda que avalie isso de forma negativa – que o amor pela literatura é perigoso, a ponto de fazer moinhos imóveis parecerem perigosos gigantes. É por essa reprovação do perigo da literatura que vocês precisam ficar bem atentos ao ler o romance de Cervantes e perceber que tudo o que Quixote faz é o contrário do que Cervantes faria. Estritamente falando, Cervantes não defende em nenhum momento o olhar maravilhoso de Quixote. Para Cervantes, não há nada de edificante nem de maravilhoso no fato de Dom Quixote olhar para o mundo sob o prisma da literatura; para Cervantes, isso é só motivo de piada, de erro, de ilusão. Ora, eu penso justamente o contrário de Cervantes. Cada dia mais percebo que literatura e ficção devem nos servir como uma espécie de óculos que filtra a realidade vazia do mundo, como uma forma de ferramenta que violenta o absurdo, como uma forma primordial e maléfica de amor. Vocês poderiam achar isso contraditório, mas não tenho vergonha de dizer que, tamanho é meu amor por Dom Quixote, que chego a me irritar com Cervantes. Se olharmos com atenção, perceberemos que Cervantes e Dom Quixote não possuem uma relação amigável, que eles são inimigos, que suas visões de mundo são completamente diferentes. Eu pergunto a vocês: se eles fossem

verdadeiramente amigos, por que então Cervantes precisou matar Quixote no fim do livro?; por que não deixou ele vivo, para que nós leitores pudéssemos manter a esperança, esperar que ele aparecesse a qualquer momento em outro lugar, em outros livros, em outras histórias?; por que Cervantes matou Quixote e, ainda por cima, fez ele retomar sua razão, se não fosse para tentar evitar o mal da literatura, para retirar da literatura toda sua loucura, todo o seu perigo? Quixote é, para mim, o primeiro dos surrealistas. E tal como Quixote e como os surrealistas, eu amo a literatura, justamente porque ela me ensina a lidar com o mal e a loucura, justamente porque ela me ensina a lidar com o perigo, justamente porque ela faz brotar o maravilhoso de umas poucas fagulhas de mundo. Numa sociedade como a nossa, que condena todo tipo de mal, que exorta da vida todo tipo de crueldade, que não consegue mais lidar com as catástrofes e as tragédias da existência sem adoecer e se deprimir, que a todo tipo de dor e sofrimento oferece um anestésico, que já oferece junto a toda realização do desejo também uma carga de culpa (e é por isso que agora todas as embalagens de cigarros já expõe a face da morte encarando nossos olhos), eu acredito, sem sombra alguma de dúvida, que a literatura tem uma tarefa importantíssima: ensinar-nos não o amor que é puro bem, mas um amor que é puro mal. Não estou dizendo que nós devamos ser maus, que nós devamos acreditar ou agir de acordo com toda a maldade que gira em torno da literatura, que nós devamos ser intolerantes, sair por aí clamando que somos diferentes e que devemos tratar todos com indiferença e violência. Não confundam a violência pobre com uma violência rica, uma violência escrava com uma violência nobre. Não estou dizendo que nós devemos ser rebeldes sem causa. Estou apenas dizendo que, hoje em dia, nossa tendência diante do mundo é sempre a de se afastar do mal, assim como afastamos os loucos de nossas famílias; e que, ao fazermos isso, perdemos também a capacidade de amar, ou seja, a capacidade de olhar para o mundo e reconhecer que há certas coisas que são mais importantes que outras, reconhecer que, apesar do mundo ser perverso, da realidade ser um grande vazio, um grande caos, apesar de nem sempre nossas vontades se realizarem plenamente, é preciso se apegar a alguma coisa, é preciso decidir o que é mais importante, é preciso amar algo. O amor universal é uma fraude, é um amor vazio, se dirige a coisa nenhuma: quem ama tudo e todos, ao mesmo tempo não ama nada e ninguém. O amor que a literatura nos ensina é um amor muito mais nobre, porque é o

amor seletivo, amor maléfico, amor louco, amor perigoso, amor que não deixa a vida se acomodar.

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