O PERVERSO FIM DE UMA ILUSÃO: MAX HORKHEIMER E A TERAPÊUTICA PSICANALÍTICA

May 27, 2017 | Autor: Maurício Chiarello | Categoria: Critical Theory, Psychoanalysis, Max Horkheimer
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Maurício Chiarello e Regina Helena Lima Caldana

O perverso fim de uma ilusão. Max Horkheimer e a terapêutica psicanalítica

Se é certo que a psicanálise, a partir da Dialética do Esclarecimento, passa a integrar a interioridade constitutiva da Teoria Crítica, não é menos certo que o pensamento tardio de Max Horkheimer não deixa de recriminar seu teor positivista – e isto em termos de uma renitente dimensão teológica característica de seu pensamento. > Palavras-chave: Max Horkheimer, psicanálise, positivismo, expressão

pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 176, dezembro/2003

artigos > p. 10-24

If it is true that, based on the “Dialectic of Enlightenment,” psychoanalysis has been incorporated into the interiority of Critical Theory, it is also true that the ideas of Max Horkheimer in later life incriminate his positivist tenor in terms of the permanent theological dimension so characteristic of his thought. > Key words: Max Horkheimer, psychoanalysis, positivism, expression

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Más vale trocar plazer por dolores que estar sin amores.

Poderá parecer algo inusitado, e vocês hão certamente de achar um tanto estranho, que comecemos aqui a falar de Schopenhauer quando aquilo a que nos propomos é tratar das relações de Max Horkheimer com a psicanálise. A nós nos parece, porém, que a estratégia conceitual da crítica da razão instrumental, característica sobretudo da filosofia tardia de Horkheimer, esta estratégia que podemos chamar propriamente psicanalítica, com o perdão do esquematismo da

apreciação, quem a fornece é, em última instância, a doutrina de Schopenhauer. Muito embora, digamos desde logo, tal estratégia conceitual detenha-se no terceiro livro do Mundo como vontade e representação e se veja, em Horkheimer, imbuída de uma indeclinável dimensão teológica – transcendente se quisermos –, que não encontra em Freud correspondência alguma, muito pelo contrário. Aliás, é precisamente este o ponto crucial, o fulcro em torno do qual giram as críticas que Horkheimer reiteradamente endereça à teoria psicanalítica: seu assentimento positivista para com o fim das ilusões transcendentes. Este o ponto também

Crítica da razão instrumental como reflexão psicanalítica

Como se compreende, não atentaremos aqui para o papel desempenhado pela

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psicanálise, ao lado das ciências sociais e de outras disciplinas especializadas, no projeto de materialismo interdisciplinar desenvolvido pela primeira Teoria Crítica. Nossa atenção se volta para o pensamento do “pai dos frankfurtianos” a partir da redação da Dialética do esclarecimento, ou melhor, a partir da eclosão da barbárie nazista e da Shoah, quando a psicanálise vem a assumir um estatuto privilegiado. Com efeito, poderíamos dizer que ela passa a tomar parte da interioridade constitutiva da Teoria Crítica desde que a noção de reificação se verifica recrudescida até não mais poder, e a dominação se revela sobremaneira internalizada, posto que indissociável da estrutura psíquica moldada pela racionalidade instrumental constitutiva da civilização. “A essência do esclarecimento é a alternativa que torna inevitável a dominação. Os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se à natureza ou submeter a natureza ao eu” (Horkheimer, 19851991, v. 5, p. 55; Adorno e Horkheimer, 1985, p. 4). Frase já notável da Dialética do esclarecimento. Compreendida como indissociável da repressão da própria natureza humana, a violência cometida contra a natureza exterior afigura-se tão-somente a outra face da violência impingida pelos homens contra si mesmos. Significativa é, neste sentido, a ambigüidade de que se reveste uma outra frase da mesma obra, a assinalar a gênese traumática da racionalidade esclarecida: “o espírito não passa de natureza mutilada”. À elevação espiritual consumada pela segregação da natureza externa, por sua desfiguração, corresponde um processo traumático de mutilação de si mesmo, de recalque de suas inclinações naturais, graças ao qual

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que faz Horkheimer tomar distância do desfecho niilista-conformista consumado no quarto livro da obra capital de Schopenhauer. Ademais, podemos ver como variações sobre este tema as restrições feitas ao trabalho individual do terapeuta, que pontilham os escritos tardios. Como técnica médica de domínio da natureza profunda, a terapêutica psicanalítica sucumbiria, via de regra, a uma racionalidade eminentemente instrumental, adequada ao pragmatismo imperante, votada à conformação de sujeitos realistas, objetivos e racionais, “saudáveis”, enfim, em meio a uma totalidade repressiva e indiferente. Mas tais objeções e ressalvas endereçadas à teoria psicanalítica e à sua aplicação corrente denotam, por parte de Horkheimer, o contrário de desapreço; denotam o zelo excessivo de quem reconhece a importância de que se vê investida no contexto atual. Zelo excessivo de quem compreende que é ao materialismo de sua doutrina, científica neste sentido, que cabe doravante a última palavra, e não mais à religião, à teologia, a moral ou a filosofia, estas ilusões transcendentes relegadas à impotência, condenadas efetivamente à desaparição. Justamente por isso, porém, ela, teoria psicanalítica, não poderia deixar de ser vista à luz de uma reflexão social depositária das promessas da cultura, reflexão esta capaz de proporcionar uma perspectiva de totalidade a uma analítica centrada, por princípio, no sujeito isolado e voltado sobre si mesmo.

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o espírito conquista a impassibilidade das coisas. Feito insensível como pedra, ele alcança então dominar com maior eficácia a natureza, tornada, por sua vez, objeto manipulável, desespiritualizada. A denegação da natureza interior conexa à proibição de deixar-se dominar por suas emoções e inclinações – o dever da apatia – é mesmo essencial à razão de autoconservação, lemos numa outra passagem (ibid., p. 118-20; ibid., p. 93-5). Por meio do exercício do autodomínio, todas as inclinações do sujeito submetem-se ao poder inflexível da razão, que se volta com crueldade tanto mais implacável sobre toda natureza exterior quanto maior é seu sangue-frio. Esta razão é avessa à compaixão: “o estoicismo – é nisto que consiste a filosofia burguesa” (ibid., p. 119; ibid., p. 94). O espírito reduz-se, assim, à natureza dessensibilizada, natureza esquecida de si mesma. Afirmando-se antinatureza ele toma parte, como fúria cega, no conflito incessante que faz dele natureza vitoriosa. Requintado artifício de adaptação ao lado de tantos outros de que se servem os seres vivos na luta sem tréguas pela sobrevivência. Nesta natureza as criaturas, inclusive e notadamente as pretensamente espirituais, estão constantemente a se autodevorar – e com êxito tanto maior quanto mais denegam o fato. À semelhança da Vontade schopenhauriana, esta natureza mostra-se refratária à representação conceitual – ou a uma representação conceitual que lhe faça justiça. Ora, a filosofia deve ser capaz de atuar como um espelho, e nele fazer brilhar o reflexo de nossa natureza que já não vemos. Deve ser capaz de preservar o que se arruína nos dias de hoje com a redu-

ção do espírito à mera função de autoconservação: a possibilidade da representação sem disfarces de nossa crueldade animalesca. Na seriedade obstinada de nosso mundo, no qual desaparecem a arte, o pensamento, a negatividade, vão sendo desacreditados os meios de exprimir a contradição entre o ideal e o real. Com a perda da reflexão o mundo tornase cego, incapaz de representar a si mesmo; sua aparência coincide exatamente com a realidade nua e crua: Neste mundo liberado da aparência, em que os homens depois da perda da reflexão de novo se tornaram os animais mais inteligentes, que subjugam o resto do universo, quando não estão se dilacerando entre si... (ibid., p. 286; ibid., p. 236)

Mas a crítica da razão instrumental pretende ser uma reflexão no sentido radical do termo, prolongando-se até as origens imemoriais da espécie e aprofundando-se até o mais íntimo de nossa alma para tornar manifesta a natureza que, desde os primórdios da civilização, foi tão violentamente renegada e tão profundamente esquecida que hoje não mais se deixa reconhecer: A verdadeira crítica da razão descobrirá necessariamente os substratos mais profundos da civilização e explorará a sua história mais antiga. Desde o tempo em que a razão se tornou o instrumento para a dominação da natureza humana e extra-humana pelo homem – quer dizer, desde suas origens mais remotas – ela tem se frustrado em sua intenção de descobrir a verdade. Isso se deve ao próprio fato de que a razão fez da natureza um mero objeto, falhando em descobrir sua própria marca em tal objetivação, nos conceitos de matéria e de coisas, tanto quanto nos conceitos de deuses

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Fornecer à natureza, que desde sempre foi contemplada como uma presa, a oportunidade de refletir-se no domínio do espírito, eis a tarefa da filosofia que neste sentido identifica-se plenamente com a arte: “Este processo está no âmago de toda cultura, particularmente na da música e das artes plásticas” (ibid., p. 179; ibid., p. 190). Tarefa essencialmente reconciliadora, própria imagem, que o conceito de razão instrumental desfigura a ponto de tornar irreconhecível, a natureza pode adquirir uma certa tranqüilidade. Consistindo assim em fazer ver o que a razão recusa ver, e em fazer recordar o que teima em esquecer – o trauma de sua origem –, a crítica da razão instrumental poderia ser dita, na falta de termo melhor, uma reflexão psicanalítica por meio da qual a razão poderia reconhecerse como natureza não reconciliada. Mas ainda mais notáveis são as correspondências existentes entre estas teorizações e as considerações de Schopenhauer concernentes à representação artística. Bastaria talvez lembrar aqui as passagens de Parerga e Paralipomena em que a poesia é concebida como representação do lado medonho da natureza humana, a dor sem nome, os tormentos, o triunfo da maldade; ela é como um espelho que apresenta para a humanidade sua imagem clara e fiel, tal como o poeta a sente. A música, por seu turno, exprime, numa linguagem incompreensível para a razão, a essência mais íntima do mundo; ela dá voz às profundas e surdas agitações de nosso ser, fala de um paraíso familiar e inacessível ao mesmo tempo – e

isto sem sofrimento, porque, como toda arte, fora da realidade. Certo que a compreensão trágica da existência, o conhecimento da finitude e da futilidade de todo ser é, inegavelmente, uma faceta nietzscheana da filosofia tardia de Horkheimer. Contudo, é preciso insistir em que Horkheimer não abre mão de uma dimensão teológica em sua filosofia que muito a distancia de Nietzsche. Sua filosofia não chega jamais ao ponto de aprovar a morte, o aniquilamento, a contradição e a guerra, enfim, o jogo primordial do ser nietzscheano. Ela não se faz como aceitação da vida (jubilosa adesão ao horrível, ao medonho e ao declínio) pelo simples fato de que entende sua tarefa antes como designação da maldição. Como já salientamos, ela não deixa de confiar na virtude redentora da representação, segundo a qual a contemplação da maldição desperta o anseio para pôrlhe fim. O que o aproxima bem mais de Schopenhauer, mas também do Nietzsche do Nascimento da tragédia. A atitude de Horkheimer a respeito de Nietzsche é, assim, ambivalente. Por um lado, ele é valorizado como um dos raros filósofos que reconheceram a dialética do esclarecimento, a identidade entre dominação e razão. De outro, recriminado, porque sua doutrina, a despeito de todos os hinos à vida, suprime o próprio espírito crítico. A glorificação pura e simples da vontade de poder não passa de retorno da natureza reprimida: “O gozo é, por assim dizer, a vingança de uma natureza terrível que acabou por ser inteiramente dominada” (Horkheimer, 198-1991, v. 5, p. 128; Adorno e Horkheimer, 1985, p. 101). Sucumbindo à natureza, o gozo abdica do que seria possível, da mesma forma que a com-

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e espíritos. (Horkheimer, 1985-1991, v. 6, p. 179; Horkheimer, 1976, p. 190)

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paixão renuncia à mudança do todo. Para a Dialética do esclarecimento, as obras de Nietzsche (e também as de Sade) servem, é verdade, como um espelho no qual o esclarecimento tem a oportunidade de contemplar sua verdadeira face:

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Ao invés do ideal de uma sociedade harmoniosa, Sade levou a cabo a tarefa de fazer o esclarecimento horrorizar-se consigo mesmo: isto faz de sua obra uma alavanca para salvar o esclarecimento. (ibid., p. 141; ibid., p. 111)

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Ao acatar abertamente os imperativos da vontade de poder antes dissimulados, tudo se passa, porém, como se tivesse escapado a Nietzsche (e também a Sade) a melhor conseqüência de sua reflexão. Ao refletir o sofrimento, ao rememorar a angústia e a dor, e ao tornar consciente a finitude de toda criatura, a razão que desmascara o verdadeiro atua, para Horkheimer, como um instrumento de reconciliação: “Assustado com a própria imagem refletida no espelho, o pensamento abre uma perspectiva para o que está situado além dele” (ibid., p. 141; ibid., p. 110). A este respeito, que nos seja permitida uma curta digressão no sentido de caracterizar a estratégia conceitual própria da filosofia horkheimeriana, amiúde identificada sem mais com o pensamento adorniano. Digamos que, para Horkheimer, muito mais que para Adorno, delineia-se claramente a fronteira que circunscreve uma racionalidade eminentemente instrumental diante de uma outra concepção de razão, que àquela não se reduz. Justamente porque para Horkheimer, e sobretudo para o último Horkheimer, sobressai mais distintamente uma concepção enfática de razão é que sua filosofia, a partir do momento em que irrompe a barbárie

na história ao invés da acalentada revolução, acusa de forma tão bombástica o envolvimento inextricável da razão formal e calculista com o horror. Porque se põe de um ponto de vista transcendente, de que gostaria de estar seguro, sua filosofia passa a confiar, em grande medida, na virtude decorrente da contemplação do horror, como aquela proporcionada pelas obras de Sade e Nietzsche. A auto-reflexão conscientizadora que sua filosofia entende promover, no intuito de despertar o genuíno anseio emancipador, funda-se neste delineamento relativamente claro dos momentos dissociados da razão. Auto-reflexão que lhe resulta ser, precisamente por isto, tanto mais simples na forma do procedimento conceitual quanto mais desalentadora na realidade. Pois não lhe escapa, ao mesmo tempo, que ambos os momentos da razão são constitutivos de um mesmo processo civilizador desenhado pela dialética do esclarecimento – o que desmascara a vaidade de seu referencial transcendente. Vem daí, desta acusação da cegueira irremediável do princípio dominante na história da civilização, o aspecto dolorosamente sombrio que assume uma vertente de sua filosofia tardia, em face da qual o pensamento adorniano chega a resplandecer cheio de alento. Certo que, para Horkheimer, o que importa resgatar é o impulso utópico e materialista perdido para uma razão predominantemente formal e calculista. Mas este impulso perdura, para ele, antes de tudo nesta esfera do transcendente e no anseio pelo além do existente, pelo inteiramente outro, que ela encerra. É o que explica a equiparação que não raro sua filosofia promove entre os domínios da

tencial verdadeiramente racional e autoreflexivo capaz de escapar à violência mítica remete, notemo-lo, não exatamente ao mero desnudamento da crueldade, mas à sua expressão, levada a termo pela própria razão esclarecida. Graças ao artifício do distanciamento e do silenciar escrupuloso, o logos ensaia acolher o momento mimético da reflexão – prenúncio de uma teoria estética que não encontra qualquer correspondente na filosofia de Horkheimer. Psicanálise, Schopenhauer e religião

Ao eleger a vontade como princípio supremo, a doutrina de Schopenhauer avizinha-se da teoria psicanalítica da libido: “Elementos essenciais de sua metafísica, a exemplo do querer viver dos homens isolados, poderiam ser interpretados psicologicamente como libido” (Horkheimer, 1985-1991, v. 7, p. 244).1 Tal vizinhança, que evidencia seu cunho propriamente positivista, afirmação da ciência como único conhecimento confiável, é precisamente aquilo que lhe confere atualidade: “Toda positividade para além do fenômeno é negada” (ibid., p. 248). “A doutrina de Schopenhauer condiz com a ciência; não é por acaso que Freud refere-se reiteradamente à ‘notável concordância da psicanálise com a filosofia de Schopenhauer’” (ibid., p. 246). Sua atualidade está mesmo na constatação de que o desenvolvimento subseqüente da razão consumou-se como razão instrumental e consolidou-se na forma do progresso científico, obrigando o pensador a conviver com o credo abjurador da idéia do Além,

1> Trata-se do ensaio “O pensamento de Schopenhauer com relação ‘ciência e religião’” , de 1971.

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arte, da cultura e da grande filosofia. Englobados em seu amplo conceito de razão objetiva, revivescência do âmbito da metafísica teológica e seu sucedâneo, eles se põem todos no mesmo plano transcendente, contraposto ao plano de uma razão rebaixada a seu momento subjetivo e instrumental. Para Adorno, em contrapartida, o movimento auto-reflexivo se perfaz de modo mais intestino, imanente, se quisermos: o conceito, cuja dissociação esquemática não se sustenta, deve ser capaz de reassumir o momento propriamente materialista de prazer e dor que ele subsumiu, deve ser capaz de resgatar a componente mimética que ele próprio recalcou para constituir-se como tal. Isto concede a seu pensamento uma feição psicanalítica bem mais acentuada que a de Horkheimer, para quem o teor de verdade da esfera da arte e da cultura como que se esvazia na figura do espelho e no motivo do despertar do anseio pelo inteiramente outro (Schweppenhäuser, 1993, p. 267-8, cap. 7, nota 5). É significativo, a propósito, que seja reconhecidamente de autoria de Horkheimer o excurso sobre “Juliete” na Dialética do esclarecimento. Neste excurso, as obras de Sade e Nietzsche são apreciadas, como já assinalamos, por terem escancarado toda crueldade associada ao progresso da razão esclarecida. O movimento reflexivo, essencialmente moral, que faz falta à razão triunfante, resulta deste voltar contra o mundo normal uma caricatura do mal capaz de lhe revelar sua própria perversidade. Ora, no excurso de autoria de Adorno, sobre “Ulisses”, o po-

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que reduz efetivamente a nada sua esperança metafísica: “Quanto maior o progresso, mais ameaçada fica não só a fé, mas também o verdadeiro anseio [Sehnsucht] pelo diferente” (ibid., p. 246). Mas se tal atitude é mais condizente com a realidade atual, é também a mais difícil para o pensador: “A injustiça do passado e do presente, a morte dos martirizados, o gozo dos malfeitores, permanece a última palavra para os atingidos, pelo menos para o eu da vítima” (ibid., p. 251). E se a doutrina schopenhauriana possui um quê a mais, para Horkheimer, em relação à psicanálise, ele diz respeito a seu pessimismo metafísico, em consonância com o qual a realidade se descortina desapiedada. O que a distingue, entre tantas outras teologias, filosofias e teodicéias, é que seu princípio metafísico, para o qual o mundo fenomenal se abre ao deixar de ter vigência como mera representação, é a própria realidade desapiedada, a vontade irracional fonte de todo o mal e de toda dor. Bem exprime o teor desta realidade última a frase de Voltaire deveras apreciada por Schopenhauer: le bonheur n’est qu’un rêve, et la douleur est réelle. O distanciamento estético desempenha neste ponto um papel crucial, na medida em que só por seu intermédio pode atingir a consciência aquilo que se acha vedado a uma racionalidade obcecada pelos imperativos da autoconservação individual: o reconhecimento da frustração universal da vontade individual, o pressentimento do desejo insatisfeito e fadado à insatisfação que habita o âmago de cada criatura individual – o que remete ao conflito, so-

cialmente determinado, entre o desejo individual e uma totalidade repressiva. Tal visão está na raiz do impulso de compaixão e de solidariedade, assim como do anseio por um outro mundo. Deste modo, Horkheimer demonstra simpatia pelo Schopenhauer que, embora declaradamente ateu, considera sua doutrina como a verdadeira filosofia cristã, e distingue o humano por sua necessidade metafísica, enraizada em padecimentos demasiadamente terrenos, inegavelmente físicos. Mas sua doutrina descarrila ao passar da visão do mal para sua enunciação como princípio metafísico, ao passar da compreensão da futilidade do indivíduo para a proposição redentora da aniquilação deliberada e consciente da vontade individual. A dor que se dá a perceber, escreve Horkheimer num de seus apontamentos tardios, derroga-se a si mesma quando se desprega em sistema, que só existe como algo positivo, como afirmação (Horkheimer, 1985-1991, v. 6, p. 286).2 Tal reflexão, é preciso que se diga, corrói a filosofia em geral, neste sentido aparentada à religião, pois o conceito tende a assumir a forma da consolação desde que racionaliza a expressão, desde que reinterpreta a expressão como verdade. Eis, portanto, o cerne da crítica endereçada especialmente a Schopenhauer: o momento em que a totalidade da vida, com seus desejos e tormentos, esperanças e infortúnios, alcança a consciência, este momento perde-se, como expressão, ao configurar-se como sistema. Seu pensamento descarrila aí, neste ponto em que, como metafísi-

2> Trata-se do apontamento “Paradoxo da filosofia”.

O “contrário da religião” aqui visado é evidentemente o ateísmo radical de Schopenhauer, mas se estende, é certo, às concepções de teor positivista, fundadas na absolutização da verdade científica,

3> Trata-se da conferência “Sobre os limites da verdade científica” , de 1972.

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Quando Schopenhauer declara que o mais elevado, o mais belo, que poderíamos imaginar após a morte seria o nada, a isto poder-se-ia replicar que o nada é um conceito do sujeito cognoscente tanto quanto o é o conceito de um Deus. (Horkheimer, 1985-1991, v, 13, p. 252).3

entre as quais Horkheimer inclui a teoria psicanalítica. Mas ainda sob um outro aspecto, este mais afeito à terapêutica schopenhauriana da vontade – se é que a expressão não é descabida –, a doutrina do pessimista metafísico se afigura, aos olhos de Horkheimer, mais apreciável que a terapêutica psicanalítica. Ante o desalentador assentimento comum, seja de que o desejo prisioneiro do princípio de individuação está na raiz de todo mal, seja de que não há civilização sem repressão, pode-se certamente advertir que a solução schopenhauriana é ainda mais drástica e radical que a freudiana. A renúncia à vida, aniquilação do querer viver, é ainda mais falta de esperança que o ensejo de apropriação racional das pulsões – irracionais em sua inconsciência –, tendo em vista sua adequação ao existente, sua conformação ao trabalho e ao gozo socialmente instituído. Curiosamente, porém, mesmo neste ponto em que, para Horkheimer, o pessimismo de Schopenhauer descarrila em otimismo idealista, reiterando o processo de aniquilação da individualidade em curso, mesmo aí algo se salva. Pois no gesto que preside a renúncia resplandece o anseio por um outro mundo, regido não pelo domínio crescente e bem-sucedido de nossa natureza psíquica, mas sim pela vida enfim reconciliada. Há nesta renúncia a abjuração de um mundo profunda e indelevelmente marcado pelo princípio de razão subjetiva, em nome de um outro mundo, cada vez mais distante com as crescentes exigências do progresso, em que as relações dos homens ultrapassariam a mera motivação

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ca da vontade, a visão intolerável das dores do mundo cristaliza-se em afirmação pura e simples. Pois “o olhar lançado ao mundo não pode converter-se em asseveração” (ibid.). Ora, mutatis mutantis, não ocorreria o mesmo com a psicologia e, por extensão, com a psicanálise? Não se convertem as dores e as emoções profundas em aperçu psicológico, mera constatação que não alcança a expressão capaz de lhes render justiça? Esta suspeita, como se compreende, é o próprio Horkheimer quem a levanta. Ao afirmar o Além como o mal, ou como o nada, a doutrina schopenhauriana passa a ser tão discutível quanto a dogmática teísta do Bem supremo, e na exata medida em que não deixa de emitir um juízo sobre o transcendente, de representar de alguma forma o Absoluto, infringindo assim aquela proibição: “O conceito de um ser todo poderoso, seja ele único ou múltiplo, não é mais subjetivo do que o conceito do nada” (Horkheimer, 19851991, v. 7, p. 241). Pois a proibição de se fazer uma idéia do transcendente aplicase não só à religião dogmática como também a seu contrário, o ateísmo crasso:

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racional, em que ainda vigoraria ... o apego às coisas e aos seres humanos, o cultivo de relações que não possuem qualquer valor prático, o cumprimento de promessas sem qualquer coerção, a atenção à natureza que se deixa pressentir em nosso íntimo. (Horkheimer, 1985-1991, v. 6, p. 253)4

Psicanálise como teoria positivista

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A adesão irrestrita à estrutura monadológica da sociedade, entronização do principium individuationis como princípio universal, marca a teoria psicanalítica com os traços do pensamento positivista moderno. Pela mesma razão, revela-se de cunho positivista o critério psicanalista para o comportamento sadio. O juízo de Horkheimer não tem aqui meias-tintas. As angústias, conflitos e desesperanças, que a prática psicanalítica contempla e pretende apaziguar de um ponto de vista estritamente subjetivo, radicam, em última instância, em processos objetivos que ela não põe em questão.

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Não é que se questione que as representações conscientes sejam referidas ao eu, ou, segundo Freud, organizadas pelo eu, mas que sentido pode ter fazer depender disto meus sentimentos, minhas aspirações, minha compreensão do mundo, minha felicidade e meu infortúnio, minha honra e minha vergonha, todo este complexo de sensações e átomos que leva a marca de meu nome dentro deste confuso microcosmos que se chama sociedade humana. (ibid., p. 215) 5

Um disparate, sem dúvida, tomar o próprio eu como critério decisivo para o prazer e o desprazer, sobretudo quando a futilidade do indivíduo se verifica cada vez maior. Mais ainda. Uma vez que toda a atenção da terapêutica psicanalítica recai sobre o sujeito em detrimento da constelação objetiva, ela tende a culpabilizar os impulsos internos da pessoa tratada, terminando por recriminar exclusivamente o sujeito: ele está condenado de antemão. Qualquer que seja sua justificação, ela se voltará contra ele – colaborando assim para com o processo de aniquilação da individualidade. A tarefa terapêutica por excelência reduz-se, assim, ao enquadramento social, à adequação ao existente. A cura, orientada no sentido de tornar o paciente capaz de trabalho e gozo, põe-se via de regra de acordo com a compartimentalização prática da vida, assente numa concepção de realidade empírica e pragmaticamente estabelecida. Como técnica de vida racional, a técnica analítica mostra-se condicionada essencialmente pelo princípio de autoconservação. Onde quer que este tende a ser suplantado pelo prazer no sentido pleno, ele ameaça tornar-se elemento de uma constelação patológica: “Prazer, no sentido enfático do termo, torna-se algo tão problemático quanto o luto profundo – o qual, aliás, compreende o verdadeiro prazer” (Horkheimer, 1981, p. 136). 6 Horkheimer ressente-se da falta de uma concepção do justo, do verdadeiro e do razoável na noção psicanalítica de saúde

4> Trata-se do apontamento “Falso ascetismo”. 5> Do apontamento “A futilidade do indivíduo”. 6> Do ensaio “A psicanálise à luz da sociologia”, de 1968.

Na ausência de princípios que visem transcender o caráter monadológico de sua terapêutica, a pretensa cura pela palavra só pode ser vã e insípida, mais ainda, converte-se em meio hipnótico que induz à obediência involuntária. No limite, ela prepara o terreno para o uso instrumental e manipulador que a palavra assume na sociedade massificada: “a palavra converteu-se em instrumento de manipulação; pressente-se o dia em que o Grande Irmão tomará o lugar do psicanalista” (Horkheimer, 1985-1991, v. 6, p. 212).7 A crítica de Horkheimer recai insistentemente, pois, sobre o ingênuo assentimento freudiano da estrutura monadológica

7> Do apontamento “O fim das palavras”. 8> Ver notadamente o ensaio de Adorno “A revisão da psicanálise”.

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Não podem ser concebidas constelações sociais em que uma vida normal, sem sintomas psíquicos, seja ilusória, patológica? [...] De acordo com a terminologia atual, a crueldade possuiria um traço patológico em razão do qual sua ação sanguinária ver-se-ia confrontada com castigos penais. Foi ela doentia sob Hitler? Seria a idéia de saúde inconciliável com o exercício da tortura, quer consentida, quer condenada pela sociedade? Quer produza sentimento de culpa, quer de gozo legítimo? Seria a capacidade de trabalho e de prazer um critério suficiente? Ou demasiadamente positivista, demasiadamente adequado à realidade? (ibid., p. 142)

da sociedade. Nisto ele faz coro com os revisionistas. Mas seríamos injustos com Horkheimer se não disséssemos que ele afasta-se decididamente deles ao reconhecer que a teoria freudiana, precisamente por força de sua atomística psicológica, expressa adequadamente uma realidade em que os homens são de fato atomizados e separados uns dos outros por um abismo incontornável. É a cegueira freudiana para com a dissociação entre o sociológico e o psicológico que, paradoxalmente, como assinala Adorno, confere à psicanálise seu poder de penetração e acerto. 8 É ainda esta cegueira que, à sua revelia, faz jus à violência do processo de alienação vigente e de seu caráter destrutivo. Ela ainda impede Freud de depositar falsas esperanças na superação, por obra do trabalho psicoterapêutico, do antagonismo reinante entre o ser privado e o ser social – como ocorre na escola revisionista. Mas enquanto Adorno tende a enfatizar o acerto e a atualidade da teoria freudiana, Horkheimer inclina-se no sentido de denunciar o cego acatamento da estrutura monadológica da sociedade, tomada como princípio universal. A ênfase posta por ele na necessidade de contemplar o dinamismo impulsivo do indivíduo, atomisticamente isolado, à luz do processo social em sua totalidade, faz sua filosofia tardia parecer, por vezes, afinada com a dos revisionistas. Assim, por exemplo, na zelosa defesa dos afetos de ternura e amor, muito embora não compactue com

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psíquica, e mesmo de princípios morais e religiosos, na ausência dos quais só pode parecer ilusória a resistência esboçada contra o supremo poder político e social. Afinal, pergunta-se Horkheimer de modo bastante inquietante:

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a cesura moralista que distingue o amor sexual do sublime como defesa ante a intolerável suspeita de sua gênese sexual. Gostaríamos, neste sentido, de retornar por fim àquela aludida divergência entre estes dois pensamentos (de Adorno e de Horkheimer) que porém tanto fazem questão de se congraçar, sobretudo a partir da redação conjunta da Dialética do esclarecimento. Mas agora apenas indicando, não mais que isso, uma sutil discordância na apreciação da noção freudiana de sublimação, divergência esta que se atém, como veremos, àquela inarredável dimensão teológica atuante desde sempre no pensamento de Horkheimer.

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Sublimação e expressão

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Num aforismo de Minima Moralia, Adorno censura veementemente a noção de sublimação tal qual elaborada por Freud. Se é que um processo como este pode existir, escreve ele, não é algo desta natureza que caracteriza o autêntico afazer artístico, não é a satisfação de uma moção pulsional mediante a consecução de algo socialmente desejado. Adorno é taxativo: Os artistas não sublimam. (...) Na renúncia ao objeto pulsional a arte continua fiel a este, com uma fidelidade que desmascara o que é socialmente desejado, ingenuamente glorificado por Freud como a sublimação que, provavelmente, não existe. (Adorno, 1992, p. 187)

A criação artística deve ser concebida não nos termos freudianos da sublimação, mas sim em termos de expressão – esta noção cara a Adorno –, e precisamente porque, ao retirar-se para a imaginação, ela vai além de uma fuga resignada e acomodada à realidade. A ela é dado con-

tinuar fiel a seu objeto pulsional, tanto que é capaz de esboçar um gesto de recusa contra seu caráter ilusório, de aparência: “a arte é tão hostil à arte quanto o são os artistas” (ibid.). O sublime da arte autêntica não se envergonha absolutamente do baixo e do degenerado a partir do qual se eleva; ao contrário, assumindo os momentos de prazer e dor que lhe são congênitos, ele cora é de si mesmo, revoltando-se contra seu caráter pretensamente puro e sublime, na esperança de lhes fazer justiça. Ora, Horkheimer certamente abonaria esta crítica ao pendor conformista da noção freudiana de sublimação. Mas ele não a formularia nos mesmos termos, sobretudo porque não encontramos em sua obra uma teoria estética elaborada como a de Adorno, teoria esta formulada, lembremos, em vista de uma concepção radical de arte que reverbera nos movimentos de vanguarda de seu tempo. Contra Freud, Horkheimer insiste sobretudo no inconformismo latente de modo geral neste reino que congrega os derivados da sublimação freudiana, vale dizer, no “reino da ilusão e da fantasia” condenado efetivamente à impotência do ilusório pelo processo histórico. A religião, a arte, a filosofia, a cultura, enfim, no sentido amplo do termo, mas também, e notadamente, o amor romântico, não se coadunam de forma alguma ao pragmatismo imperante no mundo tecnificado – este mundo cada vez mais amalgamado pelo instinto de autoconservação. Horkheimer não se encontra longe, aqui, de sustentar que a inadequação própria das ilusões transcendentes, sua inconveniência mesmo, prende-se à sua natureza fantasiosa, aparente, em face da realida-

Freud professa que a cultura é o resultado da sublimação. Se tem razão, o processo atual de retirada da folha de parreira nos meios de comunicação de massa, nos espetáculos públicos e até mesmo, em larga medida, na moda é, ao mesmo tempo, a supressão [Aufhebung] da cultura. A abstenção sexual encontra-se em retrocesso, e já não necessita da superação através da fantasia transformadora. Com a proibição cessa também o anseio, e com ele a

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quais se encontram, contudo, fadadas à desaparição num mundo cada vez mais tecnocrático e administrado. Constatação tanto paradoxal como desesperadora que delineia a feição sombria de sua filosofia tardia, frontalmente contraditória com a feição primeira. Com efeito, na medida em que o último Horkheimer prossegue fiando-se nas promessas da cultura, ele vê o solo fugindo sob seus pés. O que reina soberano e incontestável ao termo da história, assevera ele, é a racionalidade instrumental como instinto de autoconservação. Neste sentido, a teoria freudiana não faz mais que corroborar, para Horkheimer, este processo cuja lógica imanente decreta o declínio e o fim das ilusões – que Horkheimer traduzirá ainda nos termos do fim da sublimação. A acusação da base pulsional subjacente à esfera do sublime, levado a efeito pela teoria psicanalítica, tão-somente corresponderia, assim, a um processo real em curso de retrocesso da sublimação, isto é, de descrédito da fantasia transfiguradora e, por extensão, de liquidação do amor sublime. Este regride, com efeito, a uma pulsão que se submete ao controle direto de mecanismos psíquicos, em vista de uma adequação mais perfeita à realidade existente. Leiamos o apontamento “O fim de uma ilusão”:

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de inexorável do mundo administrado – assim como ao anseio utópico pelo diferente que a fantasia encerra. Mas, para ele, a acusação da origem instintual, da baixa extração daquilo que, sendo sublimado, se apresenta como algo sublime, nem o desacredita, nem o torna suspeito por princípio. É, aliás, precisamente graças ao materialismo de seu fundamento que o âmbito do sublimado vem a encerrar, efetivamente, uma promessa capaz de ultrapassar a mera adequação ao socialmente útil ou proveitoso, capaz de ultrapassar o ponto de vista individualista da adaptação ao existente em nome da autopreservação a qualquer custo. Replicando a Freud, é como se ele dissesse: os artistas sublimam sim, mas esta sublimação, conversão transfiguradora do mais baixo no mais elevado, revela-se intrinsecamente emancipadora, pois guarda o caráter de uma expressão pulsional que não se submete a priori ao crivo da sociedade existente, ou melhor, que não se orienta em função da gratificação individual numa totalidade administrada, mas sim pelo anseio de algo inteiramente diferente. A filosofia tardia de Horkheimer compõe, assim, uma espécie de reapreciação da sublimação, mas como processo de transfiguração (dos instintos egoístas de autoconservação) que encerra a promessa de sua redenção coletiva. A rememoração da natureza denegada no sujeito, este processo de índole propriamente psicanalítica de tomada de consciência do recalcado, só se perfaz, para Horkheimer, ou só pode nutrir a esperança de se perfazer, mediante o recurso a este domínio das ilusões transcendentes, das promessas sedimentadas na cultura, no sentido amplo do termo – as

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imagem, a idéia de tudo quanto é diferente, e, por fim, todo amor. Não só a religião, mas também o espírito cai vítima do instrumentalismo. O fim de uma ilusão afeta tudo quanto se põe mais além da realidade desnuda. (Horkheimer, 1985-1991, v. 6, p. 421)9

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Leiamos também, entre outros, o apontamento “Impulso de autoconservação”. Horkheimer discorda aí da dicotomia proposta por Freud entre a plasticidade das pulsões sexuais e a inexorabilidade dos instintos de autoconservação. Ao contrário do que Freud pensava, não são as pulsões sexuais as primárias; também elas subsumem ao instinto dominante de conservação. Assim se compreende como é que se dissipam como fumaça, neste estágio final do processo civilizatório, todo complexo das ilusões florescentes sob a égide do princípio de prazer. Eis então a cultura relegada a mero reflexo impotente e evanescente de nossa natureza animal, incapaz de suplantar a primazia do instinto de autoconservação: ela ultrapassa esta natureza apenas como aparência, e assim, apenas aparentemente – até quando ainda existir. Mas voltemos àquela acusação a que nos referimos, endereçada ao espírito positivista e conformista assumido pela prática psicanalítica, espírito este perfeitamente condizente com o processo reinante de desintegração social. Nos termos de Horkheimer, a teoria freudiana, como dissemos, não faz mais que responder a um processo real em curso ao desmasca-

rar a gênese instintual do sentimento amoroso. Assim como Nietzsche golpeia com espalhafato as tábuas já carcomidas da lei moral, Freud golpeia tabus burgueses – como o do casamento, do amor conjugal e filial – que já mal se sustinham em pé. A psicanálise contribui, assim, para a dissolução daquelas relações desinteressadas, imbuídas de sentimentos amorosos e fraternos, que já não têm lugar na administração pragmática da vida hodierna – eis a causa de sua necessidade atual.10 Ao mesmo tempo, atua no sentido de favorecer aquelas regidas pelo interesse próprio, e em detrimento das que ainda guardam a virtude da doação, da entrega ao outro, propriamente erótica, e, por isto mesmo, situadas mais além da mera satisfação sexual. A pergunta que Horkheimer endereça à psicanálise, num outro apontamento, bem exprime esta sua desconfiança: Torna-se suspeito um amor porque, sendo algo sublimado, pode voltar a converter-se no instinto comum, mais ainda, na agressão? Acusa-se-lhe a origem e seu possível futuro ou, com a conversão do instinto comum em outra coisa, não apenas o objeto do impulso se transforma mas também sua própria essência? (Horkheimer, 1985-1991, v. 6, p. 231)11

Sim, a psicanálise termina por contribuir, ainda que involuntariamente, sugere Horkheimer, para tornar suspeito o amor no sentido pleno do termo. Quando não, põe-se ao sabor da liquidação dos laços de amor e compaixão num sistema social

9> Do apontamento “O fim de uma ilusão”. 10> Ver especialmente Horkheimer, 1985-1991, v. 6, p. 203, apontamento “A psicanálise enquanto causa de sua necessidade”. 11> Do apontamento “Questão à psicanálise”.

Fiz uma descoberta. Que os nazistas espezinhassem os judeus até abatê-los como gado, que aquele carrasco estalasse o látego no ros-

12> Do apontamento “A psicanálise enquanto causa de sua necessidade”. 13> Que se veja ainda o apontamento “Curado pela psicanálise” (Horkheimer, 1985-1991, v. 6, p. 378).

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conformidade com a ordem do dia. Analogamente, concede-se especial atenção aos mecanismos de defesa atuantes sempre que os instintos mais primários, os impulsos propriamente egoístas (de autoconservação), vêem-se contrariados. Contudo, a prática psicanalítica costuma fazer vista grossa para estes mesmos mecanismos de defesa atuantes quando impulsos de compaixão são refreados, o que se faz cada vez mais freqüente na frialdade reinante. Este, aliás, o tema do apontamento “Mecanismos de defesa”. Para com a compulsão irrefletida de identificar-se com o padecimento alheio, uma extensa e variada série de reações involuntárias e imediatas de defesa trai o impulso de entrega ao outro. Dela faz parte, por exemplo, tratar como irrisório e insensato tudo o que contradiz a “natureza das coisas”, tudo o que não se mostra razoável em vista do cálculo e do interesse próprio: “O que se costumou chamar de riso liberador denuncia a compulsão de entrega ao padecimento alheio” (Horkheimer, 1985-1991, v. 6, p. 383). Mais ainda. Segundo lemos noutro apontamento, todo sadismo, toda agressividade das pulsões destrutivas, até mesmo o inominável da barbárie nazista, pode ser posto à luz deste mecanismo de defesa tão investigado pela psicanálise, mas, ao contrário de seu modo usual de consideração, concebendo a crueldade como reação à intolerável provocação exercida pela bondade em sua impotência:

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que se desagrega: “Denomina ‘curar’ ao ato de alentar a inescrupulosidade condizente com a época” (ibid., p. 203).12 Ora, podemos ler o apontamento “Sobre uma teoria de Freud” (ibid., p. 382) como uma réplica ao descrédito que a psicanálise deixa recair sobre o amor romântico ou sublime. Na sua teoria do complexo de Eros, Freud tinha mais razão do que pensava, escreve ele. E para inverter os termos da apreciação. Pois como se mostra sublime, para Horkheimer, este amor erótico dos amantes porquanto se replena da imagem do amor materno! Não é o casto sentimento de amor filial que se rebaixa pelo desvelar de seu pano de fundo sexual; ao contrário, é o amor do amante, que um dia soube sentir-se plenamente amado como filho, que se eleva sublime na entrega erótica, como dádiva de gratidão do incondicional amor materno. Em contrapartida: como a frialdade que preside a relação terapêutica de contratransferência espelha perfeitamente a mentalidade racionalista e pragmática reinante! “A razão do analista reflete as relações de dominação imperantes na sociedade” (ibid.).13 A prática psicanalítica não se mostraria, assim, à altura de tratar com isenção e imparcialidade os afetos do sujeito. Mais uma vez ela demonstra conformismo, ou, ao menos, incapacidade de oferecer resistência às tendências dominantes de fragmentação do social. Os impulsos que, transcendentes ao mero interesse individual, denotam fraternidade, amor e compaixão, estes são quebrantados inescrupulosamente no trabalho terapêutico, em

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to da judia que o amaldiçoara quando a arrastava na turba para as câmaras de gás, tudo isto tem sua origem no perverso anseio pela bondade que detém o poder – na provocação da bondade. Em cada açoite põe-se a incapacidade de amar a bondade impotente. A desesperação para com este poder. (ibid., p. 248).14

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A prática psicanalítica não concederia, assim, a devida atenção à bondade, à compaixão, à doação gratuita, ao amor incondicional, a estes impulsos afetivos que implicam comunhão, solidariedade e generosidade, afetos que podemos designar como sendo de humanidade, no sentido próprio do termo, na medida em que encerram este impulso de identificação com o próximo, de entrega ao outro. Se a psicanálise não faz jus a eles, é porque se faz cega, como já dissemos, à estrutura monadológica da sociedade em que se insere, endossando as tendências desintegradoras da vida em comunidade. A este respeito, choca especialmente a Horkheimer o modo como Freud, mas não só ele, é certo, relega o luto a um comportamento insensato porquanto inútil.

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Referências ADORNO, Theodor W. Minima Moralia: reflexões a partir da vida danificada. Trad. de Luiz Eduardo Bica. São Paulo: Ática, 1993. ______. Sociológica II. Madri: Taurus, 1966. ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Trad. de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. Trad. de Sebastião Uchoa Leite. Rio de Janeiro: Labor, 1976.

14> Do apontamento “O diabo”.

_____ .Gesammelte Schriften. Org. por Alfred Schmidt e Gunzelin Schmid Noerr. Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1985-1991. _____ . Gesellschaft im Übergang: Aufsätze, Reden und Vorträge 1942-1970. Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1981. SCHWEPPENHÄUSER, Gerhard. Ethik nach Auschwitz: Adornos negative Moralphilosophie. Hamburgo: Argument Verlag, 1993.

Artigo recebido em maio de 2003. Aprovado para publicação em agosto de 2003.

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