O Pessimismo de Horkheimer em Relação ao Progresso Científico

July 27, 2017 | Autor: Rogério Teza | Categoria: Philosophy, Sociology Of Scientific Knowledge, Sociology of Science
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O PESSIMISMO DE HORKHEIMER EM RELAÇÃO AO PROGRESSO CIENTÍFICO 1 Rogério de Souza Teza

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Trabalho apresentado na disciplina de Teoria das Ciências Humanas, ministrada pelo Prof. Dr. Luiz S. Repa, em junho de 2014.

Rogério S. Teza

Horkheimer e a Ciência

INTRODUÇÃO Na Introdução de “A Ciência e Filosofia dos Modernos”, Paolo Rossi, em 1969 (1992, para a edição brasileira consultada, p. 10), lança uma polêmica contra “literatos e jornalistas, filósofos improvisados, epistemólogos de fim de semana, cientistas aposentados que estavam interessados sobretudo em apresentar a um grande público uma imagem totalmente negativa da ciência e da sociedade industrial”. Segundo Rossi, o objetivo desses anticientificistas era recrutar soldados para uma purificadora revolução das massas, que para tanto traziam à moda, injustificadamente, os ingredientes de uma revolta neorromântica que não apenas recusava todo conhecimento racional e científico do mundo, mas também uma condenação sumária de toda a modernidade. Entre os anticientificistas da época, Rossi cita Max Horkheimer. Ora, este foi de fato um crítico radical da razão e um filósofo demasiadamente negativista. (HABERMAS 2007, p. 291). No entanto, parece pouco razoável colocar Horkheimer como um neorromântico. Também parece leviana a acusação de que ele recusava todo pensamento racional em nome de uma revolução ou de uma utopia. O objetivo deste artigo é em mostrar que errado estava Rossi e que o pensamento de Horkheimer é mais nuançado do que o de um filósofo improvisado e seu pessimismo em relação à ciência muito bem justificado não sendo simples adesão a uma moda irracionalista ou neorromântica. Pois, se é verdade que Horkheimer sempre foi crítico e radicalizou sua crítica acerca da ciência ao longo dos anos, também não se deve desprezar que, antes de se ver confrontado com a aporia de “A Dialética do Esclarecimento” (2006), ele não recusava os feitos científicos, e enxergava a ciência dotada de algum papel emancipatório, haja vista estar incluída entre as forças produtiva da sociedade. Nossa tese interpretativa é de que seria mais apropriado considerar que Horkheimer, nos escritos pré-guerra, considera a ciência como uma das esferas de valores da sociedade que também passou pelo processo de liberalização e emancipação da burguesia e formação do capitalismo. Em consequência, a ciência teria se tornado instrumento deste capitalismo. Ou seja, em outras palavras, a ciência passou por um processo de racionalização e, em consequência, passou também por reificação. Em virtude disso, a ciência se transformou em uma das atividades humanas incumbidas de 1

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toda a reificação, assumindo assim a posição negativa e pessimista que dominou os posteriores escritos de Horkheimer. Com vistas a este objetivo, este artigo se divide em duas partes: primeiro, a avaliação do processo de racionalização na formação da ciência moderna; e, em seguida a ciência passagem da ciência a ser um fator de dominação e reificação. As referência sobre o pensamento de Horkheimer, seguindo a sugestão Habermas (2007, p. 276), com vistas a encontrar “a motivação genuína do materialismo de Horkheimer”, se reporta “aos trabalhos que apareceram antes do fim da Guerra”. São, portanto, “Observações sobre Ciência e Crise”, de 1932, e “Teoria Crítica e Teoria Tradicional”, de 1938.

A RACIONALIZAÇÃO DA CIÊNCIA Defender a ciência é relativamente fácil, haja vista ter sido ela quem permitiu encontrar as formas mais eficazes da relação imprescindível, como observara Marx, do homem com a natureza. Não causa, portanto, nenhum estranhamento Horkheimer se por de acordo com as perspectivas positivas que a ciência desenha, tal como ele faz neste texto de 1932, “Observações sobre Ciência e Crise”. A ciência permitiu ultrapassar, diz ele, “de longe o nível de bens de épocas anteriores” (HORKHEIMER 2008, p.8). A ciência deu acesso a matéria-prima em abundância, qualificou a mão-de-obra e possibilitou a construção de amplo maquinário, enfim deu aos homens elementos de produção de riquezas indispensáveis para a possibilidade real de mitigar as calamidades existentes. Não obstante, para o filósofo de Frankfurt, o sucesso do empreendimento científico “não beneficia correspondentemente aos homens” (HORKHEIMER 2008, p.8). Isto quer dizer, na década de 1930, ele reconhece que a ciência não foi capaz de fazer dos homens senhores como dela se esperava. Pelo contrário, a ciência, em vez de emancipar, tem também papel relevante nas relações de dominação. Para compreender esta contradição que se encontra no interior da ciência, é importante, primeiramente, ter em mente que Horkheimer concebe a ciência moderna como um fator do processo histórico. Desta forma a ciência não é desde sempre uma forma de conhecimento humano superior às demais, embora caiba ainda ressalvar que nem por isso a ciência moderna significou o abandono de sua antiga meta: encontrar a verdade. “A própria ciência”, escrevia ele em 1932, “se modifica no processo histórico, [embora] a referência a isso nunca pode valer como argumento para a aplicação de outros critérios de verdade” (HORKHEIMER 2008, p. 7). Ora, isso significa que, 2

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embora os critérios para a verdade devam ser encontrados no interior da própria ciência, eles não são fixos, como desejariam os logicistas e positivistas, que pretendem estabelecer um sistema único e eternamente válido. Tendo em vista que as determinações da forma do conhecimento “não têm origem em elementos puramente lógicos ou metodológicos” (HORKHEIMER 1980, p. 121), a gênese da ciência moderna só pode ser compreendida, para Horkheimer, em conexão com reais processos sociais. Daí a razão para ele identificar os problemas internos à ciência associadas a Descartes, por exemplo. Bem como Horkheimer e Adorno apresentariam mais tarde na “Dialética do Esclarecimento” (2006), a busca pelas explicações dos fenômenos, isto é, o estabelecimento de relações entre os fatos ou percepções e a ordem conceitual, já se encontra nos mitos gregos. Às vésperas da modernidade, porém, o modelo de conhecimento a ser superado é o da cristandade, onde a ordem do mundo é a hierarquia divina e a explicação dos fenômenos naturais são remetidos, como na mitologia, à vontade divina de um só Deus. A ciência moderna só pode surgir relacionada se alguma forma às contestações dos reformistas protestantes. Como diz Horkheimer, a busca pelo conhecimento científico se estabelece na “tarefa, despreocupada com considerações extracientíficas, de assinalar fatos e determinar as regularidades reinantes entre eles [que] fora formulada, originariamente, como uma meta parcial do processo burguês de emancipação, em discussão crítica com os entraves escolásticos à pesquisa.” (HORKHEIMER 2008, p. 8) Descartes foi um dos primeiros a ter sucesso em desvencilhar o conhecimento das esferas das divindades ou da magia, a desencantá-lo e o encaminhar para autonomia. Substituiu a ordem das coisas pela ordem das razões e, através do cogito, separou o sujeito do objeto do conhecimento, inaugurando a era Moderna, a era da subjetividade. É verdade que o movimento da Reforma não se interessava exatamente pelo desencantamento, mas havia algo no racionalismo cartesiano que precisava ser tomado em consideração. No pensamento de Descartes, tal como ele apresenta nas primeiras linhas de Discurso do Método, propões que a distinção do verdadeiro e do falso é deriva do poder do bom senso (DESCARTES, 1979, p.29). Assim, a racionalização enquanto desencantamento promove uma espécie de tolerância, que pode ser assumida como a tolerância religiosa necessária aos protentantes, ao estabelecer uma razão que não se submete aos ditames da substância divina. Isto é, esvaziamento da matéria racional que era assumida desde o antigo platonismo cristão no intelecto divino. Por isso, a 3

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racionalização da ciência é também equivalente dizer que a ela se tornou uma esfera autônoma que determina seus próprios valores, como a verdade. Em vez de se subordinar ao conhecimento mitológico ou teológico, como se dava na pesquisa escolástica do medievo fechando-se inteiramente em si. Mas, como consequência, a ciência precisa criar para si uma legalidade própria e rigorosa, um sistema de coerência interna. O problema que

emerge é que é preciso racionalização do saber, mas é

inadmissível que seja atribuída a qualquer ser transcendente ou qualquer teleologia. Para Horkheimer, todas formas e categorias universais também na modernidade, não são a-históricas, como afirma, em Teoria Tradicional e Teoria Crítica, a maneira como [os homens] veem e ouvem é inseparável do processo de vida social tal como este se desenvolveu através dos séculos. Os fatos que os sentidos nos fornecem são pré-formados de modo duplo: pelo caráter histórico do objeto percebido e pelo caráter histórico do órgão perceptivo. Nem um nem outro são meramente naturais, mas enformados pela atividade humana, sendo que o indivíduo se autopercebe, no momento da percepção, como perceptivo e passivo. (HORKHEIMER 1980, p. 125)

A ciência, assim, como atividade que proporciona o homem a defrontar a natureza, permite ao mesmo tempo manusear os conhecimentos e constatar os fatos como se queira. É preciso montar um novo esquema categorial para atendê-lo de modo que o entendimento possa ser dado como percepção, imediatamente, para que caiba apreendê-lo como “natural”. Esse novas categorias estão, entretanto condicionadas pelo contexto de surgimento da ciência moderna. Como expõe Horkheimer (1980, p. 122) ao falar do sistema copernicano que veio a substituir o modelo ptolomaico no século XVII, sua adoção não se deve apenas às qualidades lógicas, mas principalmente à práxis daquele período. A Revolução Científica é coincidente a um processo histórico de suma importância, que também atua em direção ao desencantamento do mundo: a superação da ordem social feudal. Por isso que, “enquanto a classe burguesa ainda se encontra em formação sob uma ordem social feudal, a teoria puramente científica que surgia com ela tinha em relação à sua época uma tendência fortemente agressiva contra a forma antiga da práxis” (HORKHEIMER 1980 p. 128). A sociedade burguesa emerge na busca de liberdade dos sujeitos econômicos e na crença da possibilidade de agir de acordo com suas decisões individuais. Tendo em 4

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vista, o modo de produção capitalista emergente, se torna habitual inventariar o estoque, a submeter a unidade comum todos os produtos para a troca, e a previsibilidade de sua produção. Não é por acaso que “a maneira pela qual as partes são separadas ou reunidas na observação registradora, o modo pelo qual algumas passam despercebidas e outras são

destacadas,

é igualmente

resultado

do moderno

modo

de produção”

(HORKHEIMER 1980, p. 124). A ciência moderna se estabelece como o trabalho do sujeito autônomo que classifica os fatos em ordens conceituais. Mas, a fim de poder estabelecer conexões objetivas, a fim de dispor os fatos de forma que todos possam utilizá-los e dominá-los, o sujeito não pode intervir nos fenômenos. A formulação leis que enunciam relações de causa e efeito entre os fenômenos então se dá em objetos abstraídos do seu sentido no contexto social e das suas qualidades concretas, conforme aponta Marcos Nobre (2008, pp. 42-43). A forma dedutiva é o novo primado da ciência, que se exprime pelo resultado eficaz, pelo cálculo e pela matematização, pelo princípio da causalidade e da não contradição. Tudo a fim de se estabelecer uma coerência interna, um sistema único, como uma esfera isolada, que se guia apenas pelos próprios valores. E o próprio pensamento passa a equivaler ao raciocínio da matemática e às formas dos cálculos proposicionais da lógica. Desenvolve-se uma razão esvaziada da matéria, que é apenas formal, servindo de instrumento a qualquer propósito, alicerçada pelos fundamentos mecânicos da modernidade, a fim de ser crítica da razão substancial que ela justamente critica. A partir de então, observa Horkheimer a dedução tal como é usual na matemática deve ser estendida à totalidade das ciências. A ordem do mundo abre-se para uma conexão deduções intelectuais [...] Cada vez menor é o número de nomes que aparecem como elementos da teoria e partes das conclusões e proposições, sendo substituídos por símbolos

matemáticos

na

designação de objetos observados. Também as próprias operações lógicas já estão racionalizadas a tal ponto que, pelo menos em grande parte da ciência natural, a formação de teorias tornou-se construção matemática. (HORKHEIMER 1980, pp. 118-9)

Para Horkheimer, a mudança que se operou na ciência natural em relação às demais formas de conhecimento na ciência passou a ter sua subsistência condicionada então a esse sistema unitário da lógica e da matemática, ao qual se concede todo o 5

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poder, pois “no objeto tudo se resolve em determinações intelectuais, o resultado não representa nada consistente e material: a função determinante, classificadora e doadora de unidade, é a única que fornece base para tudo, e a única que o esforço almeja” (HORKHEIMER 1980, p. 124). Assim, conclui-se o processo de racionalização da ciência, que se livra das explicações mitológicas, se desencanta e surge como um das esferas sociais autônoma para determinas seus próprios valores, se contrapondo à práxis anterior que ela tem a criticar. Todavia, se a ciência para conhecer não precisa mais tecer relações, suprime-se a interação entre o agente que pesquisa e o pesquisado; a fórmula é apenas expressão destituída do significado que ajusta o fato aos sentidos, e a regularidade do fenômeno aparece imediatamente aos olhos como lei natural, imediatamente útil para a própria dominação da natureza. Ela então se encontra na forma mais madura próxima da racionalização ideal dos positivistas e pragmáticos, as principais escolas filosóficas que justamente “tomam em consideração o entrelaçamento do trabalho teórico com o processo de vida da sociedade. Eles assinalam como tarefa da ciência a previsão e a utilidade dos resultados” (HORKHEIMER 1980, p. 122). Para Horkheimer, contudo, esse acontecimento da emergência da nova cientificidade, que decorre do aburguesamento do pensamento, resulta, na verdade, no encolhimento da razão a seu aspecto instrumental, que se associa ao ganho na operação calculada da natureza. Despreza-se a história dos dados, os relega à seleção pela metodologia; distancia-se da realidade para alcançar maior aplicabilidade prática que leva à questão da reificação, tema da próxima seção.

A CIÊNCIA REIFICADORA É inegável que Horkheimer reconhece o lugar dominante da ciência no século XX. Embora não seja necessário regredir aos tempos da invenção da agricultura, reconhece-se, como já fizemos, que este sucesso tem raízes em séculos passados. É suficiente guardar que um dos feitos que vieram a caracterizar a civilização ocidental foi a emergência nos últimos quatro ou cinco séculos de uma nova forma de conhecimento que é a ciência. Mas, disto também se reconhece que “os progressos técnicos da idade burguesa”, como escreve Horkheimer, “são inseparáveis deste tipo de funcionamento da ciência” (HORKHEIMER 1980, p. 121). Este conhecimento se construiu sobre a investigação do mundo natural e foi sempre ligado às aspirações de maior controle do mundo através de sua compreensão. 6

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No século XIX, a ciência adquiriu primazia sobre a maioria das formas de conhecimento a que os seres humanos haviam lançados seus olhares antes deste tempo. Sua presença na história recente se fez determinante, alterou o comportamento humano e moldou a vida como nunca antes. Assim, se, por um lado, ela se racionalizou, se reificou, fragmentando-se e criando para si um sistema internamente coerente incapaz de lidar com o próprio papel que tantas vezes se espera dela de atribuir sentido à vida; por outro, a ciência também expandiu a racionalização até aos modelos de estudos da sociedade, na economia e na administração (das empresas e da coisa pública). Também a ciência exerceu o papel de legitimadora do modo de produção e de todas as contradições vigentes, como reconhece Horkheimer Não há dúvidas de que tal elaboração representa um momento de revolução e desenvolvimento constantes da base material desta sociedade. Na medida em que o conceito da teoria é independentizado, como que saindo da essência interna da gnose, ou possuindo uma fundamentação a-histórica, ele se transforma em uma categoria coisificada e, por isso, ideológica (HORKHEIMER 1980, p. 121)

A aposta de uma racionalidade científica fundamentada pelos pensadores modernos pôs fim ao período das trevas. A cientificidade sucedeu as explicações mitológicas, as formas de dominação se sofisticaram. Apesar das grandes contribuições para o controle da natureza e seu papel como força produtiva, haja vista a imbricação de autoconservação e dominação da natureza, a ciência moderna, no processo racionalizador, passou de crítica a tradicional “na medida em que o interesse por uma sociedade melhor, que ainda predominava no Iluminismo, foi substituído pelo empenho em consolidar a eternidade do presente, um elemento obstrutivo e desorganizador se apoderou da ciência” (HORKHEIMER 2008, p. 9). O sucesso alcançado pelas ciências da natureza, que se reificaram nos procedimentos mecanizados e na organização lógica do material coletado, passaram a servir de modelo para a compreensão de demais modelos, bem como o modelo da fábrica e da empresa foram ampliados para outras esferas da vida social, como a administração estatal. É verdade que “desde a passagem do século aponta-se, na ciência e na filosofia, para a deficiência e inadequação dos métodos puramente mecanicistas” (HORKHEIMER 2008, p. 9), mas isso não foi nenhum impedimento. Ao seguir o modelo das ciências naturais, as ciências sociais assumiram os pressupostos de uma 7

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razão instrumental que permeia a teoria tradicional. Isso significa que também no modo de se compreender a própria sociedade e o próprio homem se ocultou a possibilidade da contradição, também se matematizou e submeteu às operações lógicas e aos modelos mecânicos as relações humanas, consagrou-se a autoridade dos fatos e dos procedimentos sem poder para ser crítica em relação aos fins. Como afirma o comentário sobre Horkheimer feito por Nobre (2008, p. 44): “em nome da pretensa neutralidade da descrição, a teoria tradicional resigna-se à forma histórica da presente dominação”. Uma das características do pensamento científico racionalizado é a separação fixa do sujeito em relação objeto que não permite ao sujeito se dar como objeto de estudo. Desta maneira, o estudo das situações sociais foram completamente alijadas. O conhecimento científico, especializado, deixou de ser capaz de abarcar o todo, e alienou-se do restante dos setores da vida social. Não é por acaso que Horkheimer notava no artigo de 1932 que a ciência, racionalizada, mas também reificada, não apresentava mais potencial emancipatório que a havia ensejado contra os escolásticos. O processo de emancipação burguês, “na segunda metade do século XIX, [...] provou ser um instrumento de limitação do processo científico, transformando-se num mero registro, classificação e generalização de fenômenos, despreocupado com a distinção entre o desimportante e o essencial” (HORKHEIMER 2008, pp. 8-9). O sentido da vida foi pela ciência reduzido a uma funcionalidade burocracia racionalizadora. Desta forma, segundo Nobre (2008, p. 44), “o método é transformado em uma instância atemporal”, capaz de abdicar da reflexão sobre o próprio conhecimento. Consequentemente, o pensamento que atende perfeitamente o modelo industrial e das forças produtivas pensa apenas na execução, volta-se apenas ao útil, perde de vista o produtor para enxergar tudo como produto. A razão que esclarecida ainda era crítica a práxis anterior, agora esvaziada na formalização – da lógica e da matemática – se constrange ao desenvolvimento de meio produtivos. Como comenta Nobre (2008, p. 44), para Horkheimer, a teoria tradicional fixa “de maneira rígida o a separação entre ‘conhecer’ e ‘agir’.” O indivíduo, conduzido por esses determinismos, rompe com os laços que poderiam viabilizar a emancipação humana. A ciência, “na medida em que conserva uma feição inibitiva do esclarecimento das causas efetivas da crise” (HORKHEIMER 2008 p. 10), é ideológica como todas as formas de comportamento que escondem a natureza de uma sociedade alicerçada em contradições. Por trás da 8

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noção de progresso e de dominação da natureza se encontra a dominação do homem; a ciência, que amplia a produção material, desenvolve formas de controle social. O progresso científico leva a quantidade tão grande de conhecimentos acumulados que os campos de conhecimento precisam ser fragmentados. Como Horkheimer nota, o cientista treinado, cada vez mais especializado nos seus campos de conhecimento, apenas busca a articulação de um conhecimento de uma área parcializada, e perde a visão do todo. Perde também de vista os parâmetros humanos, a capacidade de reflexão: “O indivíduo deixou de ter pensamento próprio [...], os adeptos dessa crença seguem em segredo apenas os interesses atomizados e por isso não verdadeiros;

eles

agem

como

meras

funções

do

mecanismo

econômico”

(HORKHEIMER 1980, p. 151). Desta forma, as finalidades humanas descem na escala de importância; o pensamento preocupa-se apenas a atender de modo imediatista e instrumental, limitadas ao contexto no qual se está inserido, à visão técnica, à conduzir o aparato tecnológico. A ciência “é incapaz de compreender na sua vivência real a relação abrangente de que depende sua própria existência e a direção de seu trabalho, isto é, a sociedade” (HORKHEIMER 2008 p. 11). Do capitalismo monopolista, que se desenvolve na primeira metade do século XX segundo o diagnóstico que Horkheimer toma de empréstimo a Pollock, a ciência ganha o papel de legitimadora da ordem vidente. Como ele afirma a respeito da teoria tradicional, “a totalidade do mundo perceptível, tal como existe para membro da sociedade burguesa e tal como é interpretado em sua reciprocidade com ela, dentro da concepção tradicional do mundo, é para seu sujeito uma sinopse de facticidades; esse mundo existe e deve ser aceito” (HORKHEIMER 1980, p. 125). A visão de mundo a partir de uma ciência, que se encontra nas sociedades capitalistas reificada, transforma o próprio valor da vida, resumindo-o aos valores econômicos, e amplia, desta maneira, a própria reificação. Prevalece um pensamento científico com frieza, rigidez, de anulamento das vivências, de esvaziamento de significado, de esvaziamento, e da impossibilidade de tecer relações com sujeitos atomizados compondo apenas conexões mecânicas. Não resta outra alternativa a Horkheimer senão, tal como conclui seu ensaio sobre ciência e crise, afirmar que “por mais que se fale com razão de uma crise da ciência, ela não pode separar-se da crise geral.” Pois, tanto “o processo histórico trouxe consigo um aprisionamento da ciência 9

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como força produtiva, que atua em suas partes, conforme seu conteúdo e forma, sua matéria e método”, como também não foi um meio de produção devidamente aplicado. (HORKHEIMER 2008, p. 12)

CONSIDERAÇÕES FINAIS Paolo Rossi menciona, na mesma Introdução citada no início deste artigo, que o sentimento de pessimismo de filósofos como Horkheimer em relação a ciência trata-se de uma recusa que não tem nada de revolucionário. Ora, mas Horkheimer mesmo não recusa o potencial da ciência e rejeita a responsabilização do pensamento científico pela crise (HORKHEIMER 2008, p. 8). Diferentemente do que Rossi (1992, p. 23) aponta, Horkheimer identifica a ciência como o motor de aprimoramento da interação necessária do homem com a natureza e, assim, parte das forças que poderia lutar pela melhor estruturação das condições de vida. Mas o que pudemos identificar em Horkheimer foi o porquê de não ser possível esse potencial científico se realizar. Os dois artigos com que nos defrontamos também apontaram que a direção da crítica inicial de Horkheimer era voltada para a contradição existente no cerne da ciência. Pois, de um lado, a ciência moderna surgiu de um processo de racionalização, como força no processo de busca por emancipação burguesa e fundamentação de uma “razão” que a sustentaria. De outro, a ciência emergente desse mesmo pensamento acabou por ser reificador ao servir à legitimação do capitalismo monopolista, reduzindo o pensamento à pura razão instrumental. Isso nos leva a considerar que a ciência é uma força de racionalização e reificação. Dessas críticas à ciência e à racionalidade científica vigente que exatamente se originam os pontos centrais das suas duas obras posteriores de maior impacto: “A Dialética do Esclarecimento”, em parceria com Adorno, e “Eclipse da Razão”. Mas, é somente nelas que poderemos identificar aquele Horkheimer, que Rossi nos fazia esperar, completamente cético em relação à ciência e envolto na dificuldade de combater a razão instrumental a partir dela mesma. Finalmente, embora nossa análise tenha sido completamente distinta da de Habermas, de quem tomamos as sugestões de textos este trabalho, nossa conclusão a respeito de Horkheimer não é, por assim dizer, tão distinta. Pois, concluímos que a Horkheimer, em vez de anticientificista, desde sempre interessou 10

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como, sob as condições da sociedade burguesa nascente, o conceito de razão foi definido em função das relações de autoconservação individuais e ‘reduzido a seu significado instrumental’. Ele estabeleceu uma conexão entre o egoísmo burguês e a instrumentalização da razão em favor do interesse individual isolado. Mas esta razão instrumental tinha surgido somente como um produto derivado da época burguesa (HABERMAS 2007, p. 281)

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. DESCARTES, R. “Discurso do Método”. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 2. HABERMAS, J. “Observações sobre o desenvolvimento da obra de Max Horkheimer”. Tradução Maurício Chiarello. Educação e Filosofia, v. 21, n. 42, Uberlândia, jul./dez. 2007. pp. 273-293. 3. HORKHEIMER, M. “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”. In: Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. pp. 117-153. 4. ________. “Observações sobre Ciência e Crise”. In: _______, Teoria Crítica: uma documentação – Tomo I. Tradução Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva, 2008. pp. 7-12. 5. ________. Eclipse da Razão. Tradução Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Centauro, 2002. 6. ________; ADORNO, T. W. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução Guido A. de Almeida. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. 7. NOBRE, M. “Max Horkheimer - A Teoria Crítica entre o Nazismo e o Capitalismo Tardio” In: ______ (org.) Curso Livre de Teoria Crítica. Campinas: Papirus, 2008. pp. 35-52. 8. ROSSI, P. A Ciência e a Filosofia dos Modernos: Aspectos da revolução científica. Tradução Álvaro Lorencini. São Paulo: Ed. UNESP, 1992.

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