O pessimismo e as distopias do séc. XX: a noite como refúgio?

May 22, 2017 | Autor: Rosa Fina | Categoria: Nightlife, Utopia/Distopia, Distopian Literature
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Texto resultante de uma comunicação apresentada no XVIII Colóquio de Outono 2016 – CEHUM: Outros lugares: utopias, distopias, heterotopias (UMinho, 17 e 18 de Novembro de 2016) e publicado nas respectivas Actas (no prelo, 2017).

O pessimismo e as distopias do séc. XX: a noite como refúgio? Ao longo do século XX assistimos a uma inspiração pessimista que grassou a produção literária e mesmo ensaística de alguns autores. Neste artigo há uma reflexão sobre os motivos desse pessimismo, bem como uma tentativa de relação destes com o mundo nocturno. Poderá ser a noite simultaneamente uma fuga para um quotidiano cada vez mais distópico? Recorrendo a diferentes autores e a diferentes textos, ensaísticos e literários, tentaremos encontrar ecos e correspondências para esta nossa hipótese. Palavras-Chaves: noite; pessimismo; distopia; utopia; literatura.

ROSA FINA1 [email protected] O que mais impressiona nas narrativas utópicas é a ausência de faro, de instinto psicológico. As personagens são autómatos, ficções ou símbolos: nenhuma é verdadeira, nenhuma ultrapassa a sua condição de fantoche, de ideia perdida no meio de um universo sem pontos de referência. E. M. Cioran

Cioran, no seu livro História e Utopia, de onde é retirada a nossa epígrafe, faz uma análise deveras negativa das conhecidas utopias clássicas, como a de Tomás Morus ou de Campanella, argumentando que nenhuma delas espelha a verdadeira natureza humana, que não é a felicidade, o contentamento, mas o absoluto contrário_ a inquietação e a insatisfação. Partindo da questão mais geral, que Cioran deixa no ar, do que são na verdade as utopias e as distopias, levamos esta questão até ao mundo nocturno e veremos até que ponto haverá um diálogo possível. O mundo da noite está desde tempos remotos intrinsecamente ligado a uma liberdade diferente da que é possível durante o dia, consequentemente ligando-a ao desejo de controlo e poder. A invasão da noite pelo mundo quotidiano e diurno ao longo do tempo, iluminando-a, legislando-a, sectarizando-a, visa acima de tudo uma tentativa 1

Rosa Fina é doutorada em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigadora no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa (IHC) e no Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa (CLEPUL).

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de controlar a noite, limitar e conhecer as liberdades proporcionadas pela noite tornando-a também um capo de acção do poder instituído. A propósito deste mesmo poder, recuperamos o texto do século XVI do filósofo francês Etiènne de La Boétie: o Discurso sobre a Servidão Voluntária2 e relacionamo-lo com o poder mais preponderante nos séculos da contemporaneidade: o capital e o seu exercício de controlo na sociedade diurna e – com um pouco mais de atrito – nocturna. La Boétie no seu texto escrito no século XVI dá-nos vários exemplos de tiranos ao longo da história (com especial incidência no Mundo Antigo) contando e reflectindo sobre a forma como conseguiram subjugar o seu povo. Se, por um lado, compreendia como um povo era subjugado pela força de exércitos, a sua compreensão era surpreendida pela quantidade de exemplos em que o povo obedecia sem qualquer jugo se não o de um complexo controlo psicológico de que resultava a servidão voluntária. Acima de tudo, as diferenças partiam da história do povo (“Pois não era possível que o Persa lamentasse a liberdade, não a tendo tido nunca, nem que o Lacedemónio suportasse a sujeição, tendo provado a autonomia”3) e, nitidamente, dos seus líderes. Surge-nos então o exemplo de Ciro, que havia tomado a Lídia e ao saber de uma revolta na sua principal cidade, mais concretamente a cidade dos Sardos, resolveu tomar medidas: como não queria saquear uma cidade tão bela nem inquietar-se sempre com o mantimento de um exército para guardá-la, descobriu um grande expediente para apoderar-se dela: ali estabeleceu bordéis, tavernas e jogos públicos, e proclamou uma ordenação que os habitantes tiveram de acatar. Ficou tão satisfeito com tal guarnição que desde então nunca mais foi preciso puxar da espada contra os Lídios: essa gente pobre e miserável divertia-se inventando todo o tipo de jogo.4

Assim nos diz o pensador francês de quinhentos, assim nos prova a história que a servidão é, de facto, um jugo voluntário que os povos aceitam por julgarem necessária, ou mesmo vital, a autoridade do tirano sobre eles, conquanto lhes dêem o entretenimento de que precisam para esquecerem a sua liberdade: “Os teatros, os jogos, as farsas, os espetáculos, os gladiadores, os bichos estranhos, as medalhas, os quadros e outras drogas que tais eram para os povos antigos os iscos da servidão, o preço da sua liberdade, as ferramentas da tirania.”5 La Boétie condena, pois, toda a tirania e todas as suas “ferramentas” de domínio sobre os povos, comparando-os, no final efabulado do 2

Étienne de la Boétie, Discurso sobre a Servidão Voluntária, 2.ª edição, Lisboa, Antígona, 1997. Ibidem, p. 42. 4 Ibidem, p. 55. 5 Ibidem, p. 56. 3

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discurso, ao leão que engana as presas para se aproximarem dele, acabando todas por ser devoradas. A passagem dos séculos demonstrou-nos que a tirania, no mundo ocidental e no sentido em que La Boétie a determina, foi perdendo a sua importância, perecendo definitivamente com o fim das monarquias absolutistas, simbolicamente com a Revolução Francesa (ainda que a própria França tenha depois divergido para intuitos imperialistas com Napoleão) e efectivamente um pouco por toda a Europa ao longo do final do século XVIII e do século XIX. Porém, com o desenvolvimento da indústria e dos mercados, algo surgiu em semelhante nível tirânico: o capital. Vemos ainda hoje toda a civilização ocidental com uma tendência a obedecer a este valor que se vai tornando comum acima de todas as diferenças, a construir-se (e a destruir-se?) em prol do capitalismo. Não será este o lugar ou o tempo para o desenvolvimento de uma reflexão sobre esta temática, que seria decerto demasiado demorada, desejamos antes seguir a linha de raciocínio de Brian D. Palmer na sua obra Night Travels in the History of Transgression6. De uma perspectiva em parte marxista, o historiador canadiano analisa a forma como a transgressão acaba por ser uma fuga à ordem imposta e à subsequente tirania do capitalismo. Na verdade Palmer defende que é precisamente no mundo do entretenimento, que é metonimicamente o mundo nocturno – a diversão depois do trabalho – onde se criam as condições necessárias à abertura desse caminho da transgressão e, muitas vezes, da rebelião. Lidamos, portanto, com uma espécie de paradoxo da liberdade. Se, por um lado, segundo o texto de La Boétie, Ciro ofereceu o entretenimento para toldar e controlar a liberdade do povo, hoje em dia o mesmo entretenimento, muitas vezes associado às artes e à cultura, serve como expressão de uma liberdade que o quotidiano do mundo capitalista não permite – ou pelo menos não estimula – exprimir. Uma liberdade transgressiva que procura fugir ao poder instituído e, assim, conceber um mundo alternativo, marginal ao sistema. Decerto a já antiga expressão latina panis et circenses7, que é acima de tudo uma crítica à política romana

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Brian D. Palmer, Night Travels in the Histories of transgression [from medieval to modern], New York, Monthly Review Press, 2000. 7 O grupo musical brasileiro “Mutantes” (integrado no movimento musical e cultural Tropicália), em 1968, compôs uma música chamada precisamente panis et circenses, inspirada na expressão latina de Juvenal, que criticava a sociedade já consumista e capitalista dos anos 60, completamente autocentrada, sem preocupações sociais ou culturais, como se poderá constatar em alguns versos da letra: “Mandei fazer/ De puro aço luminoso um punhal/ Para matar o meu amor e matei/ Às cinco horas na avenida central/ Mas as pessoas na sala de jantar/ Estão ocupadas em nascer e morrer.” (Mutantes, “panis et circenses” in AAVV, Tropicalia ou panis et circenses, LP, 1968). Esta música ficou muito associada ao movimento revolucionário Tropicália figurando como subtítulo do álbum homónimo do movimento.

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de dar “pão e circo” aos seus cidadãos, inspirou La Boétie na redacção do seu Discurso, mas acrescentando-lhe exemplos concretos e reflectindo sobre a necessidade da subserviência. Já Brian D. Palmer, focando também a problemática do poder e da liberdade, demonstra como o “circo”, ao contrário de simples entretenimento que adormece o pensamento, se transformou nas artes e no consequente estímulo ao pensamento. Ou melhor, se as artes e o pensamento eram actividades nobres e limitadas a uma elite no mundo antigo, no mundo hodierno tiveram de encontrar o seu refúgio na noite, já que o dia é plenamente dedicado ao trabalho, à produção e, logo, ao sustento. Posto isto, transcrevemos as palavras de Palmer sobre o assunto. Ao longo da história, a associação da noite com a escuridão tem caracterizado as horas ensombradas da noite e da madrugada como um ambiente propício à transgressão, um tempo e um lugar onde o jugo do poder pode ser aliviado e onde podem ser consideradas as aspirações contrárias ao poder instituído. […] Situar a transgressão na noite como um facto e uma representação oferece a oportunidade de explorar estas culturas, que dão expressão à discordância e à alternativa, bem como à desmoralização, à derrota e ao desapego, entre os quais o desejo e o perigo percorrem o seu caminho sempre sinuoso.8

Todos os conceitos têm uma história em que se vão esculpindo à medida do seu tempo, a tirania que La Boétie despreza em quinhentos, mudou de rosto ao longo dos séculos e alargou o seu espectro, a liberdade que ela condena também se metamorfoseou. Contudo, há que notar que a maior parte do entretenimento ainda hoje serve para estimular não a liberdade, mas a servidão, o chamado entretenimento de massas, que assume todas as formas: cinema, literatura (light), música e, principalmente, a televisão. Será difícil estabelecer a fronteira entre o que é e não é entretenimento de massas – e é efectivamente uma questão deveras complexa – ainda assim aventamos a hipótese de defini-lo como aquele que pretende uniformizar e parametrizar o pensamento dos receptores. Aquele que não questiona de forma nenhuma a realidade vigente nem tão pouco a subverte, mas antes a reproduz e enaltece. O entretenimento que estimula a liberdade, na esteira do raciocínio de Palmer, é aquele que tem um comprometimento – um engajamento para usar uma expressão brasileira –, uma mensagem, não obrigatoriamente política, mas artística e filosófica. Esse, sim, poderá levar a questionar o instituído e consequentemente levar à

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Brian D. Palmer, op. cit., p. 6 e 7 (tradução nossa).

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vontade da subversão, da transgressão, à rebelião e ao rompimento dos limites cada vez mais apertados da sociedade do século XXI. Depois de estabelecer este quadro comparativo entre os dias do capitalismo e a filosofia quinhentista de La Boètie, pensamos ser pertinente referir duas das mais importantes distopias do século XX que enriquecem decerto esta discussão. Falamos das obras britânicas da primeira metade do século XX, Brave New World e 1984, romances chamados distópicos porque apresentam uma projecção de um futuro fictício para a humanidade que é na realidade bastante negro e negativo. A obra Brave New World9, de Aldous Huxley, escrita nos anos 30 do século XX acaba por, de certa forma, recuperar a teoria LaBoetiana de que o entretenimento é a melhor forma de obter a servidão de um povo. Huxley escreveu um romance que tem lugar num futuro não muito longínquo, em que uma sociedade tecnológica, mecanizada e homogénea é constituída por pessoas a quem é dada diariamente uma espécie de estupefaciente (somma) e toda uma miríade de estímulos sensoriais, incluindo sexuais. Aparte isso, é-lhes somente exigido que realizem um trabalho monótono, de acordo com as suas capacidades físicas e intelectuais, e – sobretudo – que não se pensem enquanto indivíduos, mas sim como uma parte de um todo. Sendo que esta é a exigência mais importante: a eliminação de toda a subjectividade (para o que contribui a prescrição diária de somma), a eliminação do eu e do ser pensante, do ser que sofre, a eliminação de todos os afectos. Retraindo assim todo o intuito de rebelião ou transgressão através da oferta de prazeres vários, dando o que mais precisam as pessoas facilmente farão o que devem (de um ponto de vista fisiológico, como é conhecido, a satisfação dos desejos sensoriais provoca uma sensação incomparável de recompensa). Além do controlo total no trabalho durante o dia, é também exercido um total controlo nas horas de lazer durante a noite, que devem ser o mais preenchidas possível com toda uma panóplia de ofertas de satisfação sensorial. Isto, como não se pode deixar de ver, é uma versão futurista do panis et circences. Uma abordagem mais politizada é protagonizada pelo livro que George Orwell escreve em 1949, um romance também distópico e mais negro – 198410 – muito inspirado na aftermath da 2.ª Guerra Mundial, em Hitler e Estaline, nas ditaduras 9

Aldous Huxley, Admirável mundo Novo, Tradução de Mário Henrique Leiria, Lisboa, Livros do Brasil, s.d. George Orwell, 1984, Tradução de Paulo Santa-Rita, Prefácio de Álvaro Ribeiro, Lisboa, Odisseia, 1955.

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europeias e no controlo que elas exerciam sobre as populações. Neste romance o enfoque surge sobre o poder, a verdade e a comunicação. Ou melhor, o poder como detentor absoluto da verdade indiscutível, mesmo que seja mudada frequentemente, conforme a necessidade de manipulação dos factos – o chamado double thinking: acreditar em duas verdades opostas simultaneamente. No romance orwelliano é o Partido do poder, cujo líder é apenas uma imagem – a desumanização do líder é aliás um dos pontos fulcrais da narrativa – que dita a Verdade, independentemente dos factos e dos acontecimentos. Acresce o facto de todos os cidadãos serem vigiados por uma câmara (Big Brother is watching you) vinte e quatro horas por dia, registando todos os comportamentos e penalizando todas as infracções. Impossível não relacionar todo este universo com a questão da vigilância panóptica, em que Foucault afirma que o poder será tanto mais absoluto quanto for “visível e inverificável”11, desenvolvendo a ideia no sentido de que a visibilidade e a inverificabilidade têm um efeito absolutamente infalível de auto-sujeição. E deste modo voltamos à servidão voluntária descrita anteriormente que nada mais é do que uma prisão auto-inflingida. Diz-nos Foucault: Quem está submetido a um campo de visibilidade, e disso tem consciência, assume as coerções do poder, fá-las agirem espontaneamente sobre si próprio; inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o princípio da sua própria sujeição.12

Ora, entre a futurologia de Huxley e a de Orwell, digamos que a sociedade de hoje nos aproxima a passos largos da primeira – somos afinal hoje a sociedade da busca do prazer imediato e ao mesmo tempo de uma individualidade ilusória que só nos encaminha para uma uniformização –, simultaneamente sem descartarmos a segunda, numa versão mais pessimista. Jean Delumeau, na sua obra Mil anos de felicidade. Uma história do paraíso, atribui o nascimento do pessimismo que alimentou estas (e outras) distopias novecentistas ao contributo de alguns autores europeus fundamentais da passagem do século XIX para o séc. XX, nomeadamente Schoppenhauer, Freud, Nietzsche e Kafka. Com o autor da Metamorfose o autor diz que “a desesperança atingiu o seu ponto

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Michel Foucault, Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão, Lisboa, Edições 70, 2013, p. 231. Michel Foucault, op. cit., p. 33.

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culminante” – “o herói de Procès e de Château encontra-se perdido num labirinto cuja origem ou saída ninguém conhece. (…) Logo à partida a vida é um combate perdido.”13 Já Robert Musil, apesar de se inscrever (principalmente com o seu romance O homem sem qualidades) no terreno do pessimismo, sublinha que todos estes fatalismos e pessimismos espelham a “incapacidade da nossa civilização para encontrar as soluções dos problemas”14. Enquanto no século das Luzes ainda acreditávamos “na trindade da natureza, da razão e da liberdade”, nas primeiras décadas do séc. XX assistimos à perda um tanto generalizada tanto da expectativa científica como da esperança espiritual numa humanidade melhor. Também na literatura portuguesa da segunda metade do século XX – muito além de Pessoa – há autores que adoptam uma espécie de pessimismo nocturno nos seus romances. Os nomes de José Saramago e António Lobo Antunes surgem quase espontaneamente quando se aborda esta questão. Saramago foi muitas vezes a voz distópica que aponta os erros da comunidade humana e descreve a forma como ela acaba por cair nos seus próprios erros. A título de exemplo, referimos os romances Ensaio sobre a cegueira e Intermitências da Morte. Tanto um como outro apresentam uma espécie de quadro apocalíptico em que as (des)virtudes humanas são postas à prova em situações limite. Se, por um lado, vemos tudo desmoronar, por outro há sempre uma esperança que se ergue acima de todo o pessimismo. Pois apesar de muitas vezes ter profetizado um futuro negro para a humanidade, a verdade é que Saramago tem fé na bondade humana como poucos. Nas suas palavras: “Talvez o meu olhar sobre o mundo seja demasiado pessimista, mas, em consciência, não creio que o mundo, tal como é, dê a alguém o direito de ser optimista. Para mudar de vida é preciso mudar a vida.”15 Por outro lado, Lobo Antunes foca mais o seu pendor pessimista no indivíduo, numa voz interior que habita muitas das suas personagens e relata todo um rol de fragilidades e fraquezas da carne e do espírito. Muitos dos romances antunesianos podem caracterizar-se de forma geral por uma ambiência nocturna de vozes murmuradas e solilóquios de personagens que constroem muros à sua volta, 13

Jean Delumeau, Mil anos de felicidade. Uma história do paraíso, Lisboa, Terramar, 1997, p. 453. Jean Delumeau, op. cit., p. 454. 15 José Saramago, "Pessimismo - Documentos avulsos", disponível em linha no sítio da Fundação José Saramago. (Dezembro de 2015). 14

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frequentemente em diálogo com o absurdo e as grandes questões existenciais. As suas crónicas, por sua vez, imprimem um registo confessional predominantemente negro e até depressivo. A título ilustrativo, transcrevemos um excerto da crónica “As veias dos búzios”, uma das que consideramos mais exemplificativas do tema nocturno. Quando penso em ti, lembro-me da última carta do Nerval antes de se enforcar num candeeiro da rua: Ne m’attends pas ce soir car la nuit sera noir et blanche. E deixei de te esperar esta noite. Deixei de te esperar todas as noites. E o espelho é uma poça de água de chuva que não reflecte nada, nem rostos, nem gestos, nada a não ser o peso trémulo da tua ausência.16

Por outro lado, numa linha de aprofundamento do pessimismo pelos ambientes de guerra e conflito que grassaram o século XX surge-nos mais recentemente o livro Nocturno Europeu, de Rui Nunes17. Este livro enquadra-se numa espécie de literatura de guerra, em que o escritor vive atormentado pelo fantasma do Holocausto, marcado pelas trevas e pelo horror, pela constatação da existência do mal puro que pode existir dentro de cada indivíduo. Consequentemente a morte contagia o imaginário literário, como se fosse banalizada. Esta terra é uma esfera de mortos, pesada de mortos, é sobre eles que vivemos. Doenças, guerras, epidemias. Matança após matança, compactos, os cadáveres acumulam-se. Ruínas, ossos, excrementos. Respiramos mortos. Fogos, vulcões, cinzas. Pisamos mortos, o vento arrasta mortos, bate-nos na cara o grande esquecimento, tudo é a memória de um grande esquecimento.18

Há efectivamente uma literatura de resposta à angústia, com inumeráveis exemplos, não só das Grandes Guerras, mas dos outros conflitos posteriores, como a questão do médiooriente e o terrorismo que nos chega aos dias de hoje. A violência cria um sentimento agónico de se viver tempos de noite obscura, sentimento que é transposto pelos escritores para as suas obras. Na verdade, o pessimismo nocturno do século XX exprime-se de forma bastante contundente em algumas obras literárias ou ensaísticas, como vimos, reflectindo um estado de espírito obscurecido pelas consecutivas falhas humanas em atingir a utopia da felicidade ou de algo semelhante. Segundo Cioran19, o problema pode mesmo estar

António Lobo Antunes, “As Veias dos búzios” in Livro de Crónicas, Lisboa, D. Quixote, 1998, p.179. Rui Nunes, Nocturno Europeu, Lisboa, Relógio d’Água, 2014. 18 Rui Nunes, op. cit, p. 106. 19 E. M. Cioran, História e Utopia, Lisboa, Editora Letra Livre, 2014, . p. 53. 16 17

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nessa procura, que será sempre vã, simplesmente porque a satisfação do homem é inatingível. A pergunta do título da nossa comunicação versava: será a noite um refúgio para os pessimismos e para as distopias? Refúgio como lar que acolhe os pessimistas e os distópicos ou refúgio como fuga desse lado negativo da vida? Ambas, pensamos. Não foi de todo por acaso a escolha do vocábulo “refúgio”, que contém em si etimológica e semanticamente a ideia de lar, acolhimento e também de fuga, retiro. Desejamos pensar a noite com a mesma amplitude: abrigo para os de mentalidade nocturna, pessimista, distópica, sim, mas também para os que não encontram o seu espaço no quotidiano fútil e tributável do dia, encontrando aqui a diferença, a marginalidade e a transgressão que procuram. Não será por acaso, por exemplo, que Winston, o protagonista de 1984 escolhe a noite para visitar o bairro dos proles e comprar um caderno e uma caneta – objectos absolutamente proibidos pelo regime. A noite é um lugar, como refere Brian D. Palmer20, onde as tensões do poder se aligeiram e mais facilmente encontramos o kayros – o tempo da oportunidade – e esquecemos momentaneamente o chronos – o tempo medido. Ou seja, um lugar para esquecer a espécie de distopia diurna (com regras, obrigações, rotinas, trabalho) e encontrar a utopia do lazer, da arte, do momento oportuno e único, a utopia da noite.

Referências Bibliográficas Antunes, António Lobo, “As Veias dos búzios” in Livro de Crónicas, Lisboa, D. Quixote, 1998. Boétie, Étienne de la, Discurso sobre a Servidão Voluntária, 2.ª edição, Lisboa, Antígona, 1997. Cioran, E. M., História e Utopia, Lisboa, Editora Letra Livre, 2014. Delumeau, Jean, Mil anos de felicidade. Uma história do paraíso, Lisboa, Terramar, 1997 Foucault, Michel, Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão, Lisboa, Edições 70, 2013

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Brian D. Palmer, op. cit.

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Huxley, Aldous, Admirável mundo Novo, Tradução de Mário Henrique Leiria, Lisboa, Livros do Brasil, s.d. Nunes, Rui, Nocturno Europeu, Lisboa, Relógio d’Água, 2014. Orwell, George, 1984, Tradução de Paulo Santa-Rita, Prefácio de Álvaro Ribeiro, Lisboa, Odisseia, 1955. Palmer, Brian D., Night Travels in the Histories of transgression [from medieval to modern], New York, Monthly Review Press, 2000. Saramago, José, "Pessimismo - Documentos avulsos", disponível em linha no sítio da Fundação José Saramago. (Dezembro de 2015).

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