O pintor no seu labirinto

June 9, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: Pintura, Artistas portugueses
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O pintor no seu labirinto1 Emília Ferreira Avant-propos Quanto mais verosímeis são as histórias, tanto mais os leitores se inquietam com a sua veracidade. Para um autor, pelo contrário, mais do que a autenticidade dos acontecimentos importa esse outro conceito que o século XVII inventou: a semelhança com a verdade. A verosimilhança salva-nos do documento, liberta-nos da História e do real como valores absolutos e abre portas aos poderes da ficção. Não vale a pena procurar mais longe; tudo o que é necessário saber sobre uma história está contido nas pregas da narrativa. Porque mais do que o suposto conhecimento do mundo real, o que interessa a um criador é a margem: o lugar já tantas vezes cartografado por outros criadores, que o imaginaram, recriaram, definiram e redefiniram. As paisagens descritas por alguém que nunca saiu do seu quarto podem assim ser mais verosímeis do que as narradas por alguém que passa a vida a correr mundo? Certamente. Basta para tanto que o primeiro detenha mais vezes o seu olhar no essencial. Mesmo que — ou sobretudo se — esse olhar seja (for) interior. É por isso que a história da literatura é o fio de fascínios que liga os escritores uns aos outros, que narra o seu secular e contínuo encantamento pelo verbo, pelas suas possibilidades, pelos seus limites. Pela busca de viagens noutros tempos, noutros lugares. O que é a ficção senão isso? O que é o romance histórico senão a reconstrução de um binómio espaço-tempo que o autor nunca viveu? É por isso também que a História da Arte se opera não só sobre as viagens que os seus agentes fazem pelo mundo, mas sobretudo pelas relações íntimas que estabelecem com os seus mestres de eleição — abrindo deste modo um amplo leque de possibilidades de encontro no espaço e no tempo. 1

Texto publicado em “«Invenzioni Capricciose» segundo Piranesi”, Lisboa, OPWAY, 2008.

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É esta a essência do acto da apropriação. Ir ao encontro de uma fonte e torná-la sua. É isto que faz o pintor Rui Macedo. E ao fazê-lo, insere-se na tradição. E eis porque os romances que este artista tece nas suas pinturas se assumem como históricos. Quer dizer: o autor não é nem se finge coevo de Georges de La Tour, Caravaggio ou, como neste caso, Piranesi. Não pretende dar a ver o que eles viam, pensavam ou sentiam no seu tempo. Pretende, outrossim, dar a ver o que ele próprio viu nessas obras, o que o inquietou do que nelas ficou tenso, aberto, possível. O que delas recolheu e reorganizou, fazendo com alguns excertos de realidade pictórica um outro mundo. É portanto um olhar clara e inequivocamente contemporâneo sobre o passado. Porque por mais que joguemos com o tempo e o espaço ainda não podemos penetrá-los de facto. O que podemos fazer é tão-só isto: recontar as histórias que nos foram deixadas, confiadas, outra e outra vez. Abrir, de cada vez, uma possibilidade nova: e se? Esse é o começo das narrativas. Descobrir-lhe ou rasgar-lhe uma janela, descortinar caminhos, estabelecer ligações. É justamente disso que aqui se trata. Dos antecedentes Como já ficou claro, o exercício reflexivo não é inusitado no percurso de Rui Macedo. Na verdade, ele aconteceu com todos os mestres revisitados por este pintor. Das suas obras recuperou pormenores cujos contornos plásticos o seduzem e cujas narrativas altera, recorrendo portanto à pintura como fonte. Como já notou Ángel Antonio Rodríguez, o seu trabalho “recolhe o testemunho dos artistas neoplásticos para potenciar outras virtudes no quadro, mais além da mera especificação formal. Neste sentido, trata-se de uma pintura distintamente actual, que manifesta um respeitável interesse por dialogar com o passado.” 2 Esse diálogo não escusa a ironia da sobreposição de tempos resultante da reavaliação dos componentes plásticos que introduz no seu trabalho. Do mesmo 2

In Rodríguez, Ángel Antonio, “Espelhos Infinitos”. Catálogo da exposição Rui Macedo: Spectabilis. Oviedo: Galeria Vertice, 2007, p. 7.

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modo, a capacidade de dramatizar uma acção é também notória. Sopesando os efeitos cenográficos das representações do passado, o autor cria os seus aparelhos de cena. As figuras escolhidas (sacras ou profanas) vivem na plena luz da sua dupla teatralidade: a original e a citada, tomando a sua existência pictórica como mote. Nesse sentido, figuras que nasceram sob a égide de uma luz celestial podem surgir dessacralizadas no seu novo entorno (veja-se “«In advance of» A Natividade de Georges de La Tour”). Assim, uma cena religiosa transforma-se num momento do quotidiano, retomando a sua narratividade como pintura de género. Se a História da Arte já viu isto acontecer (relembremos as maternidades do século XIX, actualização laica de um clássico da arte sacra), não é comum que aconteça com colagens tão directas. Ou seja: se a tradição nos habituou a contar a mesma história renomeando as personagens, apresentando-as com outra carnação (na qual os intervenientes vestem as características do seu novo tempo) não nos acostumou do mesmo modo a continuar a história de personagens que já conhecemos, transposta para outro tempo, outro lugar e outro enredo, mantendo contudo em si mesmas os sinais exteriores (vestuário, penteados, jóias e demais objectos) da época original. O desconcerto resultante é coincidente com o olhar lúdico, por vezes até irónico, com que Rui Macedo se dedica a recolher e reorganizar os fragmentos da representação. A coerência da nova imagem — a sua adequação aos propósitos narrativos — pode manter-se próxima da original ou alterar-se por completo. Nas amplas possibilidades que a pintura nos oferece, a adequação resulta apenas de uma lógica que obedece exclusivamente a ditames internos, não se compadecendo com referentes exteriores. Apesar disso, os nossos sentidos de tempo e realidade condicionam a interpretação das imagens. Ciente dessas condicionantes, o pintor insere o exercício parcelar num discurso facultador de múltiplas leituras. Por vezes, a proposta apresentada é clara. Outras vezes, e parecendo embora muito transparente nos seus propósitos, colando-se mesmo a referentes reais, só passado algum tempo conseguimos captar a “mentira” que nela se encontra. Relembremos a sua tela “Aero”. Nela, um pequeno avião passa num céu cinzento. A sua presença quase fotográfica

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confere-lhe uma verosimilhança (outro modo de pensar o real) tão clara e aparente que só alguns instantes depois se revela a dissonância aí inserida. E esta é afinal tão simples como inquietante: o motor está parado (sabemo-lo porque a hélice não indicia movimento) e não há presenças na cabine. Mais uma vez, o jogo pictórico triunfa — e duplamente. Por um lado, o pintor conseguiu cativar o olhar do espectador. Por outro, é a reiteração do postulado de que pintura e realidade não coincidem. Isto não é um avião, diria Magritte. E, mais uma vez, teria razão. Das fontes para as presentes invenções Giovanni Battista Piranesi (Veneza, 1720-Roma, 1778) foi um artista particularmente interessado nas linhas do mundo. A sua experiência como arquitecto, o seu treino de desenho aliado à naturalidade veneziana fá-lo-iam trabalhar o traço num eminente jogo de sombras e luzes. Apaixonado pela Antiguidade, entusiasta da representação do espaço plástico muito para além dos limites do suporte, evocando o que fica no exterior da imagem — inquietando o espectador —, Piranesi soube sempre que o olhar escolhe, determina, mas pode e deve manter os horizontes em aberto. Nas suas muitas gravuras, o artista reflecte um mundo parcelar, em que monumentalidade e tempo se entrelaçam para criar caprichos, vistas ou registos arquitectónicos dotados de grande efeito cenográfico. As muitas voltas das suas linhas no espaço dotam as gravuras de um dinamismo formal de grande envolvência para o espectador, atraindo-nos mas fazendo-nos temer pelo que não podemos ver — ou dominar. Perdidos nas suas sombras, como nas ruínas em que o tempo se enrosca e se manifesta como órgão vital, tornamo-nos testemunhos/agentes das suas recriações. Assim acontece também com o pequeno núcleo de cárceres que o autor inventa e giza, em placas de cobre, e nos quais as suas criações arquitectónicas (em que máquinas e pesadelos se conjugam) se reerguem para nos cativar e esmagar. Para acentuar o carácter desmedido da arquitectura,

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como sempre na obra de Piranesi, figuras humanas pontuam os espaços, revelando a escala. Nestas composições, tema e traço concorrem para a criação de atmosferas soturnas, complexas, labirínticas. Por isso, para quem vê, a vontade de saber a que outros recantos não visíveis conduzem as salas, escadas, patamares e antecâmaras, torna mais inquietante o representado. Entre o medo e a curiosidade, entre as trevas e o virtuosismo que servem a magnificência do conjunto, Piranesi prende-nos. E dentro das suas gravuras, como num espelho cujo espaço reflectido, por muito familiar que nos seja, se investe sempre de mistério, também aqui a nossa vontade é perscrutar a imagem naquilo que ela nos esconde. Foi exactamente por aí que andou Rui Macedo. Dos modos Parte do jogo de Rui Macedo é usar o tempo e o modo a seu favor. Por um lado, a técnica: ele captura a usada por cada uma das suas fontes. Neste caso, recupera a água-forte. E depois usa, como sempre, o óleo. Qualquer uma delas exige demora, acuidade, saber. Qualquer uma delas o deixa — pela eficácia com que resolve os dilemas — mais perto do lugar inicial da produção, nos modos como nos ritmos. O seu primeiro desafio parece portanto ser o medir-se pelas bitolas de outros tempos. O mesmo é dizer que a sua primeira apropriação é, como se percebe, a dos modos de fazer. Uma vez servida a técnica — que bem o serve —, ele apropria-se igualmente da medida. Os “elementos transpostos” que Rui Macedo pinta não patenteiam dimensões diversas dos originais. Pelo contrário. Tudo o que ele toma dos seus mestres, na origem, é em rigor repetido à escala da fonte. Da técnica à dimensão. Mas aí termina a citação. Porque, dadas as suas características intrínsecas de pintor, enquanto contador de histórias, narrador seduzido pela narrativa, a Rui Macedo a estrita cópia não lhe interessa em absoluto. Na realidade, cada pormenor citado abre-lhe outras possibilidades. A cópia só por si prendê-lo-ia inevitavelmente a um pretérito. Se insistisse em apenas repetir e

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colar, o tempo montar-lhe-ia todas as armadilhas, deixá-lo-ia à porta do labirinto. Ora o que atrai o pintor é o que se passa lá dentro. É o que pode fazer a mais; é o poder, de hoje, trazer a criação passada para o presente, de incorporar a tradição actualizando-a, sobrepondo os tempos, tornando-os outros, criando novos instantes, novos fios cronológicos, que nascem da acoplagem imagética. O seu princípio conceptual, no qual cada acto é uma colagem — embora usando para a sua concretização técnicas já pouco cobiçadas pela demora que exigem — permite-lhe assim a criação do novo. E, noutros aspectos, opera nessas “colagens” alguns jogos de espelho, que tudo alteram afinal. Fazendo destas obras reinvenções, inscreve-se no exercício de algo que surge recorrentemente na sua produção: a mîse-en-abyme. A imagem, embora repetida, é assim renovada: pelo contexto, perspectiva, escala, inserção na composição ou alteração cromática. E conta, por tudo isso, uma história diversa da original. Fragmentada, reenquadrada, ela multiplica-se, amplia-se. É isso que acontece nestas «Invenzioni capricciose segundo Piranesi». Do tempo e dos actos Tomando o jogo do tempo em mãos, Rui Macedo mima, nesta exposição, as imagens de Piranesi. Das matrizes de cobre nas quais o artista italiano gravou o seu apurado traço, o que conhecemos é a sua corporização no papel. Desse suporte — que regista a inversão da imagem matricial — fez Rui Macedo a sua nova fonte de trabalho. Na mesma proporção das originais, ele cola o seu gesto ao do veneziano e deixa-o gravado no metal. São traços que pretendem educar a mão, trabalhar os seus movimentos e com esses gestos contidos refazer colunas, escadarias, cabos e roldanas, sumptuosas arcarias e abóbadas. A partir dessa primeira apropriação, Rui Macedo parte para as seguintes, nas quais depura o elemento escolhido, coarctando-o e trabalhando-o como um todo. Já percebemos, portanto, que não se trata aqui de recorrer ao efeito de espelho, mas antes a uma visão paralela, erguida num primeiro momento a par

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da original e logo se transformando em coisa sua, dilatada ou atenuada na sua escala, depurada e refeita. O exercício desenvolve-se num total de trinta peças. Organizadas por oito conjuntos de três trabalhos, outro de cinco e uma pintura isolada, que revisitam cárceres e vedutte, têm como matriz histórica não a das placas de cobre das gravuras que as inspiram, mas a sua impressão em papel. E, neste caso, as matrizes metálicas gravadas por Rui Macedo — e que são assumidas como obra, como fim em si e não como meio para atingir um fim, que não serão impressas — manterão na sua sequência plástica de diálogo com a pintura, sobre papel e sobre tela, a mesma lógica, a mesma organização original, o mesmo sentido do olhar. Mas que sucede de cada vez que se muda de meio? Da placa de cobre para o óleo, o representado é necessariamente diferente. Por um lado, porque o exercício da água-forte é da ordem do desenho, apesar de todas as sombras e tons criados pela mão de Piranesi, educada numa lógica plástica veneziana. E por outro porque, pela única vez nestes conjuntos de Rui Macedo, ali está captada a composição de um modo mais próximo do original. Neste caso, como vimos, a alteração em relação às originais é por um lado a do sentido da imagem e, por outro, do seu suporte (cobre em vez de papel). Os exercícios seguintes operam desde logo mudanças no tratamento compositivo da imagem. No momento em que o tema é transposto da placa metálica para o papel (recordamos que sem recorrer à impressão, mas renovando a abordagem à composição), ele de imediato se torna outro. O referente é ainda reconhecível, mas apenas como fragmento. Simultaneamente, embora permaneça identificável em termos formais, já abandonou a sua natureza de desenho para se tornar pintura. Deste modo, em vez de ser o traço a conduzir-nos o olhar pelos meandros da composição, aquilo que a domina e nos guia são os contrastes abissais entre os fundos claros (brancos ou amarelo de cádmio) e as pinceladas roxas, azuis, verdes e negras (ou em cinzas profundos) que delas se destacam.

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Neste momento da invenção, o elemento apropriado conta uma história distante da original. Citá-lo é isolá-lo como instrumento narrativo, puro pretexto pictórico. É dizer: Era uma vez, Piranesi... Os meios, por sua vez, acentuam a nova ficção criada. A paleta intervém aqui, de modo inequívoco, para recontar a história, preparando o jogo para um novo destino, atribuindo ao excerto que ora surge a contenção necessária para que possa ser tomado como nova “vedutta”, a ter doravante o lugar de honra, como puncto, da composição seguinte, a que tradicionalmente se diria final: a pintura sobre tela. Neste último momento da criação, a composição reavalia a presença do fragmento no espaço. Pode aparecer pintado e já emoldurado como fundo cenográfico, mimando um fresco ou espreitando no rompimento da escala, enquadrado numa grisaille que, por seu turno, mima na pintura a pintura que mima a arquitectura sumptuosa de Piranesi (como em “Invenção sobre «Invenção sobre Carcere VII de Piranesi”). Pode igualmente ser colocada num entorno elegante, como num átrio de arquitectura rica (“Invenção sobre «Invenção sobre Carcere VI de Piranesi»”). Pode ainda surgir encenado numa escala e pose displicente, conferindo-lhe um ar de elemento acidental numa natureza-morta, como em “Invenção sobre «Invenção sobre Carceri d´invenzione di G. Battista Piranesi»”, na qual surge casual e lateralmente colocado ao lado de uma caixa de vidro com carros de linhas (único apontamento de “discordância” cromática no conjunto). Pode também assumir a pose teatral de fragmento “de honra”, já isolado na sua moldura (“Invenção sobre «Invenção sobre Carcere XIV de Piranesi»”), ou até mesmo já pendurado numa sala de uma casa particular, inabitável na sua arquitectura instável (“Invenção sobre «Invenção sobre CarcereIV e Elevazione e prospetto d´un altra piscina... de Piranesi»"). Como pode tão-só ser representado na superfície de um espelho, noutra natureza-morta — “Invenção sobre «Invenção sobre Carceri d´invenzione di G. Battista Piranesi” —, em vasto contraste cromático com a grisaille do restante cenário (mais uma vez relembrando o carácter irreal das arquitecturas de Piranesi). Espelho

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duplamente falso (ceci n’est pas un miroir), a imagem que nele é pintada mantém a orientação da “Invenção” que refere, não a espelhando. Se as potencialidades das “invenções” se operam pelo contraste da cor entre forma e fundo, corporizando com a tensão criada a matéria da composição, e se o tratamento dado aos elementos representados exercita sobretudo condições de percepção das figuras (maior ou menor definição, uso ocasional de velatura — “Invenção «Sobre Carcere XIV de Piranesi»”—, rasgamento de brancos planos em zonas que sabemos pela lógica da imagem serem espaços de sombra e de volume — “Invenção «Sobre Elevazione e prospetto d´un altra piscina... de Piranesi”), já as situações de “Invenção sobre «invenção»” nos dão o jogo pela encenação do espaço no qual a primeira invenção é colocada e se move. Ora, essas mise en scène (apetece traduzir literalmente

e

chamar-lhes

colocação

em

cena),

mesmo

criando

enquadramentos verosímeis não deixam de fora a perturbação espacial ou narrativa — para que não nos esqueçamos de que é de pintura e não de realidade que se trata. Na multiplicidade de visões do mesmo referente, os fragmentos conferem ao espaço pictórico uma qualidade elástica, expandindo-se para lá dos limites da obra, tornando-nos presenças cúmplices e fundamentais na construção do seu sentido. A tradição, iniciada com Velásquez, na qual se alterou a percepção do espaço do quadro e da sua relação com o próprio espectador3, prossegue com Rui Macedo que agora lhe acresce o contemporâneo conceito de instalação (sempre passível de alteração e portanto de re-intervenção e re-invenção) para melhor cenografar a pintura. Do ponto de vista A questão da montagem leva-nos agora ao ponto de vista. Toda a narrativa é sempre a assunção de um modo de ver e a interrogação sobre a sua 3

Para maior desenvolvimento sobre este assunto ver Almeida, Bernardo Pinto de, O Plano de Imagem: espaço da representação e lugar do espectador. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996.

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legitimidade e os seus limites intrínsecos. Façamos um breve paralelo literário. Em O som e a fúria, William Faulkner conta-nos uma história a três vozes. O primeiro narrador deixa-nos uma impressão nebulosa dos acontecimentos; o segundo introduz na trama algum esclarecimento mais e com o terceiro temos enfim a percepção mais clara e estruturada dos acontecimentos. Visões ou exercícios fenomenológicos complementares, essas três apropriações do “real” concorrem para nos compor um quadro a três dimensões. Com esse triplo ponto de vista, Faulkner construiu um edifício de grande materialidade narrativa, denso, espesso. Em torno dos mesmos eventos, a deslocação do lugar do observador é fundamental para que a trama se esclareça, para que o sentido se erga. É um exercício próximo o que Rui Macedo leva a cabo nesta exposição, trabalhando cada instante numa pluralidade de propostas visuais. Como vemos, em nove dos dez episódios desta exposição, são três as vozes que concorrem para criar um conjunto, se assumirmos que a cada voz corresponde o mesmo número de abordagens técnicas à matriz inspiradora, que resultam em momentos e modos diversos de olhar a obra. Apenas num caso o narrador parece único. Mas, como veremos adiante, também ele é plural. Pinturas dentro de pinturas, todo o universo de Rui Macedo se afirma como invenção/reinvenção. Tem por isso a realidade que apenas a pintura lhe confere, afirmando-a sucessivas vezes na multiplicação dos fragmentos. Se nas exposições anteriores como “In Advance of” ou “Spectabilis” isso já era claro (na apropriação de personagens, entornos e tempos de outros autores e reenquadrando-os nas suas composições), esse exercício torna-se inequívoco neste conjunto de obras. E começa desde logo nos títulos destas peças. Com efeito, da matriz de cobre às pinturas a óleo sobre papel (também pouco comum, dada a relação difícil entre medium e suporte) e sobre tela, em citação decorrente, esclarece-se o processo. Assim, sobre um primeiro elemento é erguido o edifício do segundo, uma invenção que daquele recolhe pormenores para alterar tudo o mais — da composição à escala, até ao traço e, à cor, mudando até o recurso perspéctico utilizado. E, por fim, uma reinvenção, ou uma invenção sobre a “invenção” inicial, já colocada entre aspas para acentuar a

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citação, na qual a pintura sobre tela congrega os elementos do jogo, adensando a encenação. Estas ligações incomuns, na sua diversidade de técnicas, suportes, dimensões e modos de olhar, são parte substancial do jogo cronológico que se desenrola. Na verdade, entre técnicas, imagens e movimentos compositivos e cenográficos, Rui Macedo aborda a obra de Piranesi, inscrevendo nela o seu olhar e incorpora-a no seu logos pessoal. As imagens criadas superam por esta via o seu passado, tomam uma natureza que as liberta da matriz. Deste modo, à parte o jogo da montagem das peças — juntando num mesmo conjunto elementos (ou fragmentos) que podem viver só por si e que, pela sua natureza diversa, em grupo assumem um claro espírito de instalação — , vários exercícios se nos apresentam. Por um lado, cada pormenor participa no todo como elemento vibrante da narrativa, simultaneamente remetendo para e dilatando os sentidos da obra original. Por outro, há detalhes que apontam direcções que em muito ultrapassam o âmbito desta exposição, remetendo para outros trabalhos do autor. Tal é o caso de “Invenção sobre «Invenção sobre Carcere V de Piranesi»”, na qual o São Jerónimo de Georges de La Tour, parcialmente citado por Rui Macedo em “São Jerónimo a ler de Georges de La Tour «In advance of » São Jerónimo a escrever de Michelangelo Caravaggio (e vice-versa)”, nos ressurge em novo enquadramento. Neste caso, o vermelho do fato do santo é substituído pelo branco, em gradações de cinzas, operando na figura um efeito a um tempo escultórico e espectral. Ora é exactamente nas folhas que segura para ler, que surgem agora outros pormenores. No verso da última folha, surge agora citada a “invenção”, alterada na escala e na natureza (mimando um papel mais fino, que já foi dobrado, evidenciando sedimentação de tempos). O ciclo completa-se, de momento. E para que nem sequer falte a encenação última, voltamos àquela pintura desta série que nos apresenta algumas das peças da exposição. Mas não sem que pelo meio tivéssemos passado por algumas “portas” misteriosas. Antes de terminar, espreitemos só uma delas. Em “Invenção sobre

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«Invenção sobre Carcere VIII de Piranesi»”, encontramos representadas duas pinturas. Mais uma vez, a encenação falseia a realidade. A pintura retoma o pulso da ficção e ironiza com o documento. Mas se espreitarmos melhor para dentro dessa “porta” encontramos aí outra citação. Desta vez em relação à composição de uma outra obra de Rui Macedo — “São Jerónimo a ler de Georges de La Tour «In advance of » São Jerónimo a escrever de Michelangelo Caravaggio (e vice-versa)”. Que há de comum entre ambas? Numa e noutra situação somos colocados perante as questões do movimento e da posição do espectador face à obra. Com as figuras quase a sair de cena (ambas habitando os limites da tela), o nosso olhar é precipitado no negro, aí atirado pela clareza da luz que as figuras nos devolvem. O abismo experimentado é o reconhecimento do mal-estar provocado pelos espaços vazios ou silêncios da pintura, sobretudo quando tomam o lugar central. A dúvida fica no ar e toma um tom de inquietação. Que estaremos a perder? Como podemos lidar com isto? Antes que a resposta seja dada, o ciclo encerra-se. Por agora. Percorridas vinte e nova obras, tudo está pronto. Eis a mîse-en-abyme final: a trigésima peça, “«Invenzioni Capricciose» segundo Piranesi” mostra em exposição algumas das obras que aqui visitámos. Num contexto sumptuoso, numa galeria à qual se acede por ampla escadaria, essa última tela assume de novo a encenação, a dramaturgia. A carpete e o texturado lustre (que remete para “Invenção sobre «Invenção sobre CarcereIV e

Elevazione e prospetto d´un altra piscina... de Piranesi»")

completam o cenário. Mas já sabemos que não podemos sair da pintura para a confirmar como verosímil. Assim, além do local e desta montagem que patenteia, que outro desacerto aqui se encontra? Deixamos essa porta por abrir à descoberta do espectador.

Almada, Fevereiro de 2008.

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