O Pluralismo Global de Paul Feyerabend - Tese de doutorado UFMG/2015 [On Paul Feyerabend\'s Global Pluralism - PhD dissertation]

July 5, 2017 | Autor: Luiz Abrahão | Categoria: Philosophy of Science, Paul K. Feyerabend, Pluralism, Unity of science
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS – UFMG FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – FAFICH

LUIZ HENRIQUE DE LACERDA ABRAHÃO

O Pluralismo Global de Paul Feyerabend

Belo Horizonte 2015

LUIZ HENRIQUE DE LACERDA ABRAHÃO

O Pluralismo Global de Paul Feyerabend

Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Filosofia. Área de concentração: Filosofia Orientadora: Profa. Dra. Patrícia Kauark-Leite

Belo Horizonte Universidade Federal de Minas Gerais 2015

Abrahão, Luiz Henrique de Lacerda O Pluralismo Global de Paul Feyerabend [manuscrito] / Luiz Henrique de Lacerda Abrahão. - 2015. 351 f. Orientadora: Patrícia Maria Kauark-Leite.

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Feyerabend, Paul K., 1924- 2.Filosofia – Teses. 3.Ciência – Metodologia - Teses. I. Leite, Patrícia Maria KauarkLeite. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Banca Examinadora

Dissertação defendida e __________________________, com nota _______________ pela Banca Examinadora constituído pelos Professores:

___________________________________________________________ Profa. Dra. Patrícia Maria Kauark-Leite – UFMG (Orientadora) ___________________________________________________________ Prof. Dr. Porfírio Simões de Carvalho Silva – FCUL/ISRg ___________________________________________________________ Profa. Dra. Anna Carolina Krebs Pereira Regner – UFRGS ___________________________________________________________ Prof. Dr. Osvaldo Frota Pessoa Jr. – USP ___________________________________________________________ Prof. Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé – UFMG ___________________________________________________________ Prof. Dr. Olímpio José Pimenta Neto – UFOP

Pós-graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte, 10 de julho de 2015

“Cada vez se torna mais claro, para mim, que a ética deve dominar a razão”. José Saramago

AGRADECIMENTOS À Patrícia M. Kauark-Leite, pela impecável orientação e pelo incentivo constante. A Porfírio Silva, Anna Carolina K. P. Regner, Osvaldo Pessoa Jr., Mauro L. L. Condé e Olímpio Pimenta, membros da banca examinadora, pela análise atenta deste trabalho. My special thanks go to Paul Hoyningen-Huene, John Preston, Gonzalo Munévar, Luca Tambolo, George Couvalis, Baudoin Jurdant, Friedrich Stadler, Zbigniew Kotowicz, Olga Pombo, Tula Molina, Ian J. Kidd, Matteo Collodel, Daniel Kuby, and Eric Martin for grateful suggestions, useful feedback, critical commentary, and for allowing me to access their manuscripts. I would like to express my deepest gratitude to the following institutions: Center for Philosophy of Science of University of Lisbon (Lisbon, Portugal), Institut Wiener Kreis (Vienna, Austria) and Zentralen Einrichtung für Wissenschaftstheorie Wissenschaftsethik (Hannover, Germany). Ao Departamento de Filosofia da UFOP, pelas bases. Ao Departamento de Filosofia da UFMG, pelo amplo suporte. Ao IFMG – campus Ouro Preto, pelo sabático. Ao CEFET-MG, pelas possibilidades. Aos alunos, pela confiança. Aos velhos amigos, pela constância; aos novos, pela oportunidade. Ao Bruno, por ser o irmão que é. À Larissa, por compartilhar sonhos comigo…

RESUMO

A tese pretende identificar elementos conceituais que permitam apreender a unidade teórica da filosofia de Paul Karl Feyerabend (1924-1994). O Capítulo I expõe um catálogo de leitores da filosofia de Feyerabend e as divergências entre essas leituras. O Capítulo II analisa alguns dogmas exegéticos associados ao pensamento de Feyerabend e explora os dois leitmotifs do programa feyerabendiano de ‘Crítica da Razão Científica’: a estrutura/natureza e o mérito/excelência da ciência. O Capítulo III delineia distintas etapas do desenvolvimento intelectual de Feyerabend nas décadas de 1940 e 1950, com ênfase na Teoria Pragmática da Observação e no Voluntarismo Epistêmico. Em seguida, introduz uma nova hermenêutica do corpus feyerabendiano como um Pluralismo Global. O Pluralismo Global de Feyerabend se basearia na premissa da expansão irrestrita do princípio de proliferação aos domínios das ideias (pluralismo teórico), ações (pluralismo metodológico), formas de vida (pluralismo cultural) e cosmovisões (pluralismo ontológico). O Capítulo IV investiga as repercussões da oposição de Feyerabend ao ideal epistemológico de Unidade da Ciência para a imagem da ciência como uma prática fragmentada. A Conclusão sugere limites humanitários para valores como a liberdade de pensamento, autonomia de ação, diversidade cultural e abundância de visões de mundo.

ABSTRACT

This thesis seeks to identify conceptual elements to grasp the theoretical unity of Paul Karl Feyerabend’s (1924-1994) philosophy. Chapter I examines a range of readings and readers of his philosophy and their disagreements. Chapter II criticizes some exegetic dogmas associated to Feyerabend’s ideas and explores the two leitmotifs of his philosophical programme of ‘Critique of Scientific Reason’: science’s structure/nature and science’s merit/excellence. Chapter III examines the different stages in Feyerabend’s intellectual development in the 1940s and 1950s focusing on the Pragmatic Theory of Observation and on the notion of Epistemic Voluntarism. Afterwards it introduces the new hermeneutic of Feyerabend’s corpus: the notion of Global Pluralism, which unrestrictedly expands the Principle of Proliferation to the domains of ideas (theoretical pluralism), actions (methodological pluralism), forms of life (cultural pluralism), and cosmovisions (ontological pluralism). Chapter IV looks into the repercussions of Feyerabend’s opposition to the monist ideal of Unity of Science for the contemporary image of science as a fragmentary practice. The Conclusion suggests humanitarian limits for values such as freedom of thought, autonomy of action, cultural diversity, and abundance of worldviews.

ABREVIAÇÕES AA – Ambigüedad y armonía CA – A Conquista da Abundância AM – Against Method (3ª edição, 1993) AR – Adeus à Razão AR1 – Adiós a la Razón CM1 – Contra o Método (1ª edição, 1975) CM2 – Contra o Método (2ª edição, 1988) CM3 – Contra o Método (3ª edição, 1993) CSL – A Ciência em uma Sociedade Livre DC – Diálogos sobre o Conhecimento DM – Diálogo sobre o Método EFM – Erkenntnis fiir freie Menschen FAM – For and Against Method FN – Filosofía Natural FTR – Farewell to Reason MT – Matando o Tempo NP – Naturphilosophie PE – Probleme des Empirismus – Schriften zur Theorie der Erklärung der Quantentheorie und der Wissenschaftsgeschichte PF – Provocaciones Filosóficas PnP – ¿Por que no Platón? PP1 – Realism, Rationalism & Scienctific Method – Philosophical Papers (Vol. I) PP2 – Problems of Empiricim – Philosophical Papers (Vol. II) PP3 – Knowlwdge, Science and Relativism – Philosophical Papers (Vol. III) STA – La Science em tant qu’art TDK – Three Dialogues on Knowledge TS – The Tyranny of Science WRAW – Der wissenschaftstheoretische Realismus und die Autorität der Wissenschaften

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO “EU NÃO SOU UM FILÓSOFO” ....................................................................................... 14 CAPÍTULO I FEYERABENDIANA LEITURAS E LEITORES .................................................................................................. 19 1.1. “FEYERABEND DIZ X”: OS ESTUDOS PRIMÁRIOS ................................................. 21 1.1.1. George Couvalis e o Pluralismo Restrito ......................................................... 21 1.1.2. A Visão Padrão: John Preston e o Pluralismo Bipartido................................ 24 1.1.3. O Review Symposia da AAHPSSS: revisionismo da ‘Visão Padrão’ ............. 27 1.1.3.1. Couvalis crítico da Visão Padrão ................................................................... 28 1.1.3.2. Munévar crítico da Visão Padrão................................................................... 29 1.1.3.3. Hoyningen-Huene & Oberheim críticos da Visão Padrão ............................. 31 1.1.3.4. Réplicas de Preston aos seus críticos ............................................................. 33 1.1.3.5. Teses adicionais da Visão Padrão: relativismo e realismo ............................ 35 1.1.4. Robert Farrell e o Pluralismo Axiológico ........................................................ 38 1.1.5. A Escola de Hannover: Hoyningen-Huene & Oberheim e o Pluralismo Filosófico ..................................................................................................................... 42 1.1.5.1. O Método da Crítica Imanente: o ‘estilo filosófico’ de Feyerabend .............. 43 1.1.5.2. A consolidação da Escola de Hannover: o ‘Pluralismo Filosófico’ .............. 46 1.2. “FEYERABEND DIZ X”: ESTUDOS SECUNDÁRIOS .................................................. 52 1.2.1. Porfírio Silva e o Pluralismo Radical............................................................... 52 1.2.2. Malolo Dissakè e o Pluralismo Antifundacionista .......................................... 59 1.2.3. Gonzalo Munévar e o Pluralismo Generalizado .............................................. 65 1.2.4. Luca Tambolo e o Pluralismo Libertário ......................................................... 71 1.3. QUAIS/QUANTOS PLURALISMOS? ......................................................................... 77 CAPÍTULO II ‘CRÍTICA DA RAZÃO CIENTÍFICA’ LEITMOTIFS DA FILOSOFIA DE FEYERABEND .............................................................. 82 2.1. A PRIMEIRA DICOTOMIA ..................................................................................... 83 2.1.1. Três críticas iniciais à ‘primeira dicotomia’ .................................................. 84 2.1.2. Obstáculos iniciais da Escola de Hannover ..................................................... 89 2.1.2.1. Obstáculos metodológicos da abordagem gradualista................................... 89 2.1.2.2. Obstáculos textuais da abordagem gradualista ............................................. 91 2.1.3. Críticas adicionais à Escola de Hannover ....................................................... 98 2.1.3.1. A ‘concepção de filosofia’ feyerabendiana..................................................... 99 2.1.3.2. A ‘teoria do conhecimento’ feyerabendiana ................................................. 102 2.2. A SEGUNDA DICOTOMIA .................................................................................... 106 2.2.1. Argumentum ab auctoritate.......................................................................... 108

2.2.1.1. A Visão Padrão sobre a filosofia política de Feyerabend ............................ 109 2.2.1.1.1. A ‘fonte primária’ da Visão Padrão ........................................................... 109 2.2.1.1.2. As ‘fontes secundárias’ da Visão Padrão ................................................... 110 2.2.1.1.3. A ‘teoria social’ de Feyerabend em nova ótica .......................................... 114 2.2.1.2. Panorama das ideias políticas de Feyerabend ............................................. 121 2.2.1.2.1. “…uma reunião de pessoas maduras”........................................................ 121 2.2.1.2.2. “Iniciativa cidadã, não filosofia (ou teoria política, ou epistemologia etecetera etecetera!)” .................................................................................................. 126 2.3. DUAS “PERGUNTAS FUNDAMENTAIS” DA FILOSOFIA DE FEYERABEND ............ 130 2.3.1. O ‘projeto crítico’ feyerabendiano ................................................................. 131 2.3.1.1. Constituição do ‘projeto crítico’ feyerabendiano ........................................ 132 2.3.1.2. Diretrizes gerais do ‘projeto crítico’ feyerabendiano .................................. 134 2.3.1.3. Desdobramentos do ‘projeto crítico’ feyerabendiano .................................. 139 CAPÍTULO III PLURALISMO GLOBAL UMA NOVA HERMENÊUTICA DO CORPUS DE FEYERABEND......................................... 142 3.1. ESBOÇO DE BIOGRAFIA INTELECTUAL: FEYERABEND (ANOS 1940-1950) ........ 144 3.1.1. Início e estabilização da formação acadêmica (1938-1948).......................... 145 3.1.1.1. Origens austríacas (1938-1942) ................................................................... 145 3.1.1.2. Período formativo (1946-1947) .................................................................... 146 3.1.1.2.1. Spollium – Trechos da carta inédita de Feyerabend, redigida em agosto de 1947, para o Dr. Weikert, editor da revista Der Student............................................ 147 3.1.1.3. Estágio de socialização (1948) ..................................................................... 148 3.1.2. Início e estabilização da carreira profissional (1949-1959) .......................... 150 3.1.2.1. Iniciação científico-filosófica (1949-1951) .................................................. 151 3.1.2.1.1. Spollium – Curriculum vitae de Feyerabend, depositado no departamento da Universidade de Viena como anexo da solicitação de defesa da tese de doutorado Zur Theorie der Basissätze, em 1951. ....................................................................... 153 3.1.2.1.2. Spollium – Arquivo de defesa de tese n. 18.107 (Universidade de Viena) – parecer final de membros da banca avaliadora da tese Zur Theorie der Basissätze, de Feyerabend. ................................................................................................................ 154 3.1.2.2. Atividades de pós-doutoramento (1952-1954).............................................. 155 3.1.2.3. Processo de profissionalização (1955-1959)................................................ 157 3.1.3. De Viena a Berkeley ........................................................................................ 160 3.2. CRÍTICA DO FUNDACIONISMO............................................................................ 162 3.2.1. A assimetria entre observação e teoria ........................................................... 163 3.2.1.1. O Nachtrag de 1977 (Excertos)..................................................................... 166 3.2.2. Crítica da uniformidade e neutralidade da experiência ................................ 168 3.2.3. Teoria Pragmática da Observação e Voluntarismo Epistêmico.................... 174 3.3. O PLURALISMO GLOBAL DE FEYERABEND: PANORAMA .................................. 178 3.3.1. O método das alternativas: o Pluralismo Teórico (anos 1960) ..................... 180 3.3.1.1. Proliferação e Incomensurabilidade (1962) ................................................. 181 3.3.1.2. A racionalidade da proliferação (1968) ....................................................... 189 3.3.2. A “máscara anarquista”: o Pluralismo Metodológico (anos 1970) .............. 192 3.3.2.1. O “mito do método oculto” .......................................................................... 193 3.3.2.2. Elogio do oportunismo metodológico ........................................................... 196

3.3.2.3. O “salto anarquista” .................................................................................... 198 3.3.2.4. Comentários adicionais à crítica do ‘conto de fadas’ monista .................... 200 3.3.2.4.1. A progressividade dos desvios metodológicos (1978)............................... 201 3.3.2.4.2. Um (circunstancial) princípio (antiautoritário) (1981 e 1982) .................. 202 3.3.2.4.3. Tutto fa brodo e o método anárquico (1984) ............................................. 203 3.3.2.4.4. A impossibilidade de teorias da ciência (1987) ......................................... 204 3.3.2.4.5. A singularidade das pesquisas (“Introdução à edição chinesa” de 1988) .. 206 3.3.2.4.6. Repercussões do Contra o Método (1989)................................................. 207 3.3.2.4.7. Uma teoria da desordem (os Dibbattito de 1992) ...................................... 207 3.3.2.4.8. A consulta a não especialistas (“Prefácio” de 1992) ................................. 208 3.3.2.4.9. A trivialização da metodologia liberal (1994) ........................................... 209 3.3.2.4.10. O fato do pluralismo metodológico na ‘Última Entrevista’ (1994) ......... 211 3.3.3. Crítica da Tradição Racionalista: o Pluralismo Cultural (anos 1980)......... 212 3.3.3.1. Elitismo intelectual e Relativismo Democrático ........................................... 213 3.3.3.2. Uma (histórica/empírica) tradição (abstrata/teórica).................................. 215 3.3.3.3. R1, R2, R3… R11 .......................................................................................... 218 3.3.4. As Vertigens da Abundância: o Pluralismo Ontológico (anos 1990) ........... 228 3.3.4.1. Esculpindo Seres: elementos para uma ontologia ‘multifacetada’ .............. 231 3.3.4.2. O Princípio de Aristóteles e a tese da Incognoscibilidade do Ser ................ 235 3.3.4.3. Crítica ao materialismo e tese da Inefabilidade do Ser ............................... 238 3.4. “POR QUE É QUE VOCÊ NÃO O DENOMINA DESSE MODO?” ................................ 241 CAPÍTULO IV IMAGENS DA DESUNIDADE FEYERABEND CONTRA A ‘VISÃO CIENTÍFICA DE MUNDO’ ......................................... 247 4.1. A ‘POSIÇÃO BÁSICA’ DE FEYERABEND ............................................................... 252 4.1.1. As três fontes da ‘posição básica’ ................................................................... 252 4.1.1.1. O ‘empirismo depurado’ ............................................................................... 252 4.1.1.2. Contra o ‘monismo paradigmático’.............................................................. 254 4.1.1.3. Contra a uniformidade de pensamento ......................................................... 256 4.1.1.3.1. Uniformização de ideias revolucionárias ................................................... 256 4.1.1.3.2. Importância ética de instituições não científicas ....................................... 257 4.1.1.3.3. O ‘passo atrás’ e a tirania de sistemas teóricos .......................................... 258 4.1.2. Revisitando a ‘metáfora oceânica’ ................................................................. 259 4.1.2.1. “…ein standig zunehmendes Meer von Alternativen”.................................. 261 4.1.2.1.1. Ocorrência original e elementos essenciais ............................................... 262 4.1.2.1.2. Variações do Contra o Método .................................................................. 264 4.1.3. Síntese da ‘posição básica’ ............................................................................. 269 4.2. A ‘POSIÇÃO AVANÇADA’ DE FEYERABEND ........................................................ 270 4.2.1. Uma metafísica da desordem: antirreducionismo ontológico ....................... 272 4.2.2. Outras imagens da fragmentação................................................................... 275 4.2.2.1. ‘Die Wissenschaft’: a ‘teratologia epistemológica’ de Feyerabend ............ 276 4.2.2.1.1. O ‘monstro multifacetado’ ......................................................................... 277 4.2.2.1.2. O ‘monstro abstrato’ .................................................................................. 277 4.2.2.1.3. O ‘monstro monolítico’.............................................................................. 279 4.2.2.1.4. O ‘monstro mítico’ ..................................................................................... 280 4.2.3. Síntese da ‘posição avançada’ ........................................................................ 283

4.3. CRÍTICAS DE FEYERABEND AO PROGRAMA MONISTA DO CÍRCULO DE VIENA 284 4.3.1. O ‘Movimento para a Unidade da Ciência’ e o enciclopedismo ................... 285 4.3.2. Feyerabend, o Círculo de Viena e Neurath: três leituras .............................. 288 4.3.2.1. A abordagem histórico-biográfica: o “retorno a Viena”............................. 289 4.3.2.2. A abordagem correspondentista: duas epistemologias naturalistas ............ 292 4.3.2.3. A abordagem compatibilista: as “virtudes do pluralismo” ......................... 296 4.3.2.4. Crítica das três leituras ................................................................................ 301 4.3.2.4.1. Os vários olhares de Feyerabend sobre o Círculo de Viena ...................... 301 4.3.2.4.2. O ‘interacionismo’ entre Razão e Prática .................................................. 303 4.3.2.4.3. O ‘barco’ de Neurath no ‘oceano’ de Feyerabend ..................................... 305 4.3.2.4.3.1. Uma unidade orquestrada ....................................................................... 305 4.3.2.4.3.2. A quimera do ‘sistema uniforme das regras’ e o aforismo culturalista .. 309 4.3.2.4.3.3. Ciência sem Harmonia ............................................................................ 313 4.4. EDUCAÇÃO PARA A PLURALIDADE .................................................................... 318 4.4.1. A sedimentação do monismo .......................................................................... 319 4.4.2. A materialização do monismo: manuais científicos ...................................... 320 4.4.3. O “mito do dia”: a unidade da ciência ........................................................... 321 4.5. UMA “FUSÃO FORTUITA”: EMPILHANDO FRAGMENTOS.................................... 324 4.5.1. A utopia da ‘superciência’ .............................................................................. 326 CONCLUSÃO NOTAS PARA UM PLURALISMO HUMANITÁRIO............................................................ 330 BIBLIOGRAFIA...................................................................................................... 339

INTRODUÇÃO “Eu não sou um filósofo”1 “Resista à tentação de classificar o que eu digo empregando um rótulo definido […] Meu caro leitor, é disso que eu quero que você se lembre de tempos em tempos, sobretudo quando a história parecer se tornar tão límpida a ponto de se converter em uma concepção claramente elaborada e estruturada com precisão” (PKF 2010, p. xv).2

O pensador Paul Karl Feyerabend (1924-1994) coleciona vários epítetos associados à sua filosofia: ‘Salvador Dalí da filosofia acadêmica’, ‘niilista gnosiológico’, ‘court jester da filosofia da ciência’, ‘profeta do irracionalismo’, ‘pior inimigo da ciência’, ‘enfant terrible da epistemologia’, dentre outros (HORGAN 1993; SUPPE 1999; MUNÉVAR 2000; SVOZIL 2006; GILLIES 2011). Porém, tais rótulos redutores são insuficientes para abarcar uma produção intelectual devotada a tantos tópicos3 e redigida em formatos tão distintos (PRESTON 1997, p. xi; DISSAKÈ 2001, p. 7).4 Mas o volume material e a diversidade estilística do corpus feyerabendiano não constituem os principais obstáculos à apreensão da consistência teórica das ideias do autor do polêmico Contra o Método (OBERHEIM 2006, pp. 25-42). A rigor, os maiores desafios interpretativos decorrem de declarações nas quais o próprio físico e filósofo austríaco repele, explicitamente, ser um filósofo ou possuir uma filosofia original.5 1

Ver PKF 1993, p. 16; PF, p. 181; MT, p. 178. Trecho de uma carta de Feyerabend para um leitor, encontrada postumamente em 11/10/1999. 3 História das Ciências (p. ex., CM3, caps. VI-XIV; FN, cap. VI; CSL, seç. 5, parte I; PP1, cap. XVII), Epistemologia (p. ex., PP1, cap. XII; PP3, cap. I), Filosofia da Ciência (p. ex., PP2, caps. V, VIII, X; PP3, caps. VI e VII), História do Pensamento Filosófico (p. ex., AR, cap. II, VIII; PP1, cap. XI; PP2, cap. I; CA, cap. II, III, Parte 1), Filosofia da Mente (p. ex., PP1, cap. X), Ética (CA, cap. 9, Parte 2); Filosofia da linguagem (p. ex., PP1, cap. VII, IX; PP2, cap. VII) Filosofia Política (p. ex., STA, cap. VI; CSL, seção 2, 10, parte II; PP3, cap. XI) ou Estética (p. ex., STA, cap. I; CA, cap. IV, Parte 1). 4 Uma estimativa geral da produção de Feyerabend contabiliza cerca de 13 escritos monográficos, 20 coletâneas de textos, 61 artigos em revistas especializadas, 82 estudos em compilações e anais de congressos, 21 verbetes enciclopédicos, 56 resenhas de livros, 53 comentários e discussões, 11 apresentações, prefácios e introduções de livros, 4 biografias, obituários e memoriais, 9 livros editados com outros autores, 14 entrevistas, 15 artigos em publicações populares, 2 participações em programas de rádio, 2 gravações de áudio, 13 volumes de cartas e correspondências, 3 traduções e 4 produções de outras naturezas (como a pequena atuação, em 1947, no filme Der Prozess, do premiado diretor vienense G. W. Pabst, além de editoriais de revistas). Para detalhes ver: PP3, pp. 227-251 e especialmente http://www.collodel.org/feyerabend/ 5 Feyerabend se descreveu como um Denkbeamter – um funcionário público obrigado a ‘pensar’ (PKF 2000, p. 165) – cuja tarefa se resumia a narrar episódios da história da filosofia e de ciência – sem, contudo, jamais haver alguma vez emitido seus próprios pareceres (CM3, p. 352 e TS, pp. 13, 78, 95, 112, 128). Ver PKF 1991, pp. 524-525; PnP, p. 167; PP1, p. ix; e, especialmente, PKF 1995, p. 127; CM3, p. 9; AR, p. 335; PKF 1993, p. 104; ou DC, p. 74. 2

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Todavia, não podemos descuidar do fato de que Feyerabend era um orador qualificado e um escritor extremamente engenhoso6; tampouco de que as páginas feyerabendianas são repletas de passagens literárias, de ironias, sarcasmos, provocações, polêmicas e de argumentos retóricos.7 Ademais, mesmo os testemunhos negativos dele relativos à sua própria obra se revelam dúbios: “minhas observações podem ser interpretadas ao menos de duas maneiras, seriamente ou na brincadeira” (MT, p. 157). Com efeito, ainda se justifica procurar pela coesão das propostas desse influente e controverso pensador contemporâneo.8 Ou, como acertadamente salientou Farrell (2003, 224): “Não devemos deixar que a ausência de uma formulação explícita não nos deixe ver a estrutura implícita na filosofia de Feyerabend”. Neste trabalho, pretendemos edificar uma visão englobante do legado filosófico de Feyerabend. Para tanto, concebemos que o corpus feyerabendiano realiza uma aplicação irrestrita do princípio de proliferação ao âmbito das ideias, ações, formas de vida e cosmovisões. Para unificar os pluralismos teórico, metodológico, cultural e ontológico que reconhecemos nas páginas do autor de Contra o Método cunhamos o conceito de Pluralismo Global. Nesse horizonte, o Pluralismo Global de Feyerabend evidenciaria a centralidade da diversidade de opiniões e de concepções alternativas para o avanço do conhecimento e para a liberdade de pensamento e de ação. Essa nova hermenêutica também permite apreciar a imagem fragmentada e não homogênea da ciência que perpassa as páginas feyerabendianas. Por fim, discutimos o componente moral constitutivo do núcleo do pensamento de Feyerabend, essencial para que valores pluralistas não suplantem limites humanitários. Não almejamos, entretanto, oferecer uma defesa radical da obra em foco. Conforme enfatizou o filósofo Jack J. C. Smart: “Ninguém melhor para defender Feyerabend do que ele mesmo” (NP, p. 339 n. 4). Em

Feyerabend comentou: “[…] escrever tornou-se uma atividade muito agradável – quase como compor uma obra de arte […] Escolho minhas palavras com muito cuidado” (MT, p. 178). Feyerabend chegou a dizer que seus guias estilísticos eram Brecht, Shaw, Alfred Kerr e os antigos humanistas Erasmo e Ulrich von Hutten (CSL, p. 164). 7 “A exemplo de Nestroy e dos dadaístas, evitei [no Contra o Método] maneiras acadêmicas de apresentar uma concepção, preferindo locuções comuns e a linguagem do mundo dos espetáculos e da literatura popular” (MT, p. 152). Em relação ao Contra o Método: “Eu diria que meu livro contém 85% de exposição e argumento, 10% de conjectura e 5% de retórica” (CSL, p. 156; ver também p. 223). Fischer (2006, p. 9) relaciona o contato de Feyerabend com Nestroy por meio da obra de Wittgenstein. Ver também Knoll (2006, p. 56). 8 Uma apreciação geral das contribuições de Feyerabend para o debate contemporâneo (tais como perspectivismo, realismo e filosofia política da ciência) pode ser encontrada em Kidd & Brown (2015). O próprio Feyerabend considera modestamente suas contribuições em CM3, p. 15; MT, p. 159; PKF 1995, p. 119. 6

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particular, buscamos identificar elementos conceituais que permitam compreender a consistência teórica subjacente à produção de Feyerabend. Nesse sentido, a nova hermenêutica que oferecemos diverge inclusive da própria representação do corpus feyerabendiano proposta por ele – a qual, no fundo, compreende o pluralismo apenas como uma “fase” do pensamento de Feyerabend (DC, p. 108; PP1, p. xiii). Para alcançar nosso objetivo, organizamos nossa argumentação desta forma: O capítulo I distingue dois grupos de leituras e leitores de Feyerabend e examina o desenvolvimento dos debates especializados entre os Estudos primários (George Couvalis, John Preston, Robert Farrell e Hoyningen-Huene & Oberheim) e os Estudos secundários (Porfírio Silva, E. Malolo Dissaké, Gonzalo Munévar e Luca Tambolo). Aponta também a convergência dos especialistas em relação ao caráter pluralista da obra de Feyerabend e mostra, por fim, a diferença deles quanto aos tipos de teses pluralistas contidas no corpus feyerabendiano. O capítulo II rejeita duas dicotomias exegéticas associadas à produção de Feyerabend e confronta a leitura bipartida da Visão Padrão e o continuísmo radical da Escola de Hannover. Retoma a discussão sobre a relevância das opiniões políticas de Feyerabend e explora as duas ‘perguntas fundamentais’ do programa de Crítica da Razão Científica de Feyerabend: O que é a ciência? e O que há de tão excelente com a ciência?. Sustenta, ainda, que os leitmotifs desse projeto crítico concernem à recusa dos dogmas da uniformidade (teórica e metodológica) e da superioridade (cognitiva e cultural) da ciência, sobretudo em sociedades democráticas. O capítulo III detalha o percurso acadêmico e profissional de Feyerabend nos anos 1940 e 1950, com ênfase para a Teoria Pragmática da Observação e o Voluntarismo Epistêmico. Em seguida, elabora um panorama do desenvolvimento da filosofia de Feyerabend dos anos 1960 até 1990, discutindo as ideias básicas do pluralismo teórico, pluralismo metodológico, pluralismo cultural e pluralismo ontológico. Finaliza com uma síntese da nova hermenêutica do corpus de Feyerabend como a expansão irrestrita do princípio de proliferação ao nível das ideias, procedimentos, formas de vida e cosmovisões. O capítulo IV evidencia as posições básica e avançada de Feyerabend quanto à noção de desunidade da ciência. Indica como a metáfora oceânica e a figura do 16

monstrum perpassam os textos do filósofo como formas de ilustrar o caráter fragmentado e não homogêneo da prática científica. Posteriormente, discute algumas discordâncias de Feyerabend com o ideal monista de Unidade da Ciência do Círculo de Viena, especificamente a versão de Otto Neurath. Ressalta, de resto, que a recusa da uniformidade do conhecimento em Feyerabend combate primordialmente modelos doutrinais baseados no mito da uniformidade e superioridade da ciência. A Conclusão argumenta que a perspectiva moral de Feyerabend aborda limites humanitários para valores pluralistas como liberdade de pensamento, autonomia de ação, diversidade cultural e abundância de visões de mundo. Alguns esclarecimentos finais sobre a composição/estrutura do texto: a) Material consultado Estudamos diferentes tipos de fontes textuais de Feyerabend: i) primárias; ii) coletâneas de textos; iii) escritos póstumos; vi) entrevistas (publicadas, inéditas ou televisionadas)9 (p. ex., 3.3.2.4.2, 3.3.2.4.3, 3.3.2.4.10); iv) fontes de arquivo (p. ex., 3.1.1.2.1, 3.1.2.1.1 e 3.1.2.1.2); v) textos complementares (3.2.1.1, 3.3.2); e iv) cartas – com Lakatos, Kuhn, Couvalis, Munévar etc. (3.3.4). b) Método analítico Em várias seções da tese (p. ex., 3.2.1, 3.2.2, 3.3.1, 3.3.2, 3.3.3 e 3.3.4), seguimos o método de reconstrução argumentativa dos textos de Feyerabend adotado por Molina (2005). Então, geralmente buscamos i) explicitar o âmbito da questão em debate, ii) salientar pressupostos do problema, iii) identificar as principais posições criticadas pelo autor e iv) apontar as próprias teses de Feyerabend. c) Modelos de pesquisa Farrell (2003) e Oberheim (2003) correspondem aos modelos metodológicos deste estudo, sobretudo quanto i) à divisão das partes da exposição em seções e subseções e ii) ao escrutínio (por vezes comparativo, como 2.3.1.2, 4.1.2.1.2 ou 4.4.3) do material listado em (a) e analisado a partir do método sinalizado em (b). O projeto de edificar

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Duas entrevistas televisionadas com Feyerabend podem ser vistas em: https://www.youtube.com/watch?v=sE1mkIb1nmU e https://www.youtube.com/watch?v=QqlbmfvS4oU

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uma reconstrução geral da filosofia de Paul Feyerabend traz como inspiração a admirável pesquisa de Hoyningen-Huene (1993) sobre a obra de Thomas Kuhn. d) Traduções/citações/referências Reproduzimos as traduções das obras de Feyerabend publicadas em português (ver Bibliografia). Cotejamos esse material com os textos originais e, quando necessário, ajustamos tais traduções com vistas a oferecer uma versão com maior adequação estilística ou conceitualmente mais precisa (ver MT, p. 152; e a nota 302 da Conclusão). As demais traduções de fontes primárias ou secundárias (em inglês, francês, alemão, espanhol e italiano) são de nossa autoria. Para obras de Feyerabend, adotamos um modelo de referência similar ao de Preston (1997, “Note on references”): abreviações para o título de livros (ver ‘Abreviações’ acima) e (PKF/data da publicação) para outros textos de Feyerabend; as paginações de textos, quando não indicadas (sobretudo nas seções de ‘síntese’, como 3.4, 4.1.3 ou 4.2.3), remetem à última citação de página realizada no texto base.

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CAPÍTULO I FEYERABENDIANA Leituras e leitores

“Odeio uniformes, não importa se vestidos por dentro ou por fora” (FAM, p. 146).

Os estudiosos da filosofia de Feyerabend divergem substancialmente entre si (KIDD 2013a, p. 409). O dissenso entre os intérpretes do corpus feyerabendiano concerne a assuntos pontuais, tais como as influências intelectuais e filiações filosóficas do físico e filósofo austríaco (LLOYD 1997; STALEY 1999; JACOBS 2003). Todavia, a definição da unidade programática e teórica daquela obra é outro tema que motiva acaloradas controvérsias entre especialistas (PRESTON 1999a; HOYNINGENHUENE & OBERHEIM 1999, 2000, 2014; OBERHEIM 2006). Tais desacordos persistem, apesar do próprio Feyerabend ter se pronunciado, às vezes de forma explícita, a respeito daquelas questões.10 Assim, mais de uma vez, ele rejeitou qualquer originalidade em sua filosofia – suas “ideias”, como ele mesmo redigiu, não eram “novas”: “encontramo-las em filósofos como Mill […], em cientistas como Boltzmann, Mach, Duhem, Einstein e Bohr e, mais tarde, de uma maneira filosoficamente já bastante dessecada, em Wittgenstein” (AR, p. 335; ver PP2, p. 20; DC, p. 78; CSL, p. 133-151). Ademais, Feyerabend também explanou sobre supostas heranças filosóficas em seu pensamento (em especial, Popper e Wittgenstein). A esse respeito, comentou: “Por acaso, estudei os escritos de Wittgenstein muito mais a fundo do que qualquer coisa tratada pelo inventário popperiano, embora ainda exista quem me considere um apóstata popperiano” (DC, p. 68; ver também TDK, pp. 79-80; CA, p. 123; PRESTON 1997, pp. 24-25, 14-15; FLOYD 2006, pp. 101-110). Por fim, quanto à unidade de sua filosofia, exprimiu – aludindo ao Contra o Método – que sua “‘posição’ filosófica” não passaria de “um esboço” (DC, p. 68; ver AR, pp. 375-378; MUNÉVAR 2006, p.116).

10

Como Hoyningen-Huene & Oberheim (2014, p. 92; 91, 98-99) afirmaram, é bastante recomendável um alto grau de ceticismo em relação às considerações de Feyerabend acerca de seu desenvolvimento intelectual e influências filosóficas. Segundo os estudiosos, elas “não costumam ser dignas de confiança”. Preston (1999, p. 234) e Oberheim (2006, p. 271) reiteraram essa ideia.

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Tais considerações de Feyerabend não emudeceram as disputas em torno do seu corpus. Em certa medida, isso deriva do fato de o austríaco, reconhecidamente, não ser um narrador fiável e zeloso quanto ao seu próprio desenvolvimento intelectual (MT, p. 123; PRESTON 1999, p. 234). Contudo, a diafonia entre leitores não suscitou profundas revisões de revisão da literatura atinentes à obra do austríaco (DISSAKÈ 2001, p. 7). As escassas releituras bibliográficas disponíveis abordam, prioritariamente, desentendimentos relativos a tópicos específicos (TAMBOLO 2007, pp. 19-23; 2007b, pp. 393 n. 12, 405). Então, permanece inédita uma exposição, mesmo que essencialmente descritiva, das mais instrutivas leituras sobre o autor de Contra o Método. Com efeito, é relevante expor um apanhado diacrônico de trabalhos devotados à Feyerabendiana (COUVALIS 2001; KIDD 2011). O elemento de coesão que escolhemos para estruturar esse catálogo (cronológico e conceitual) de leituras e leitores do corpus feyerabendiano consiste na temática do pluralismo em Feyerabend. A escolha se justifica porque, como corretamente asseverou Farrell (2003, p. 133),

o tema mais duradouro, ubíquo e profundo da filosofia de Feyerabend é o pluralismo. As mudanças na filosofia de Feyerabend, ao longo das décadas, são melhor interpretadas como o gradual desenvolvimento das consequências de uma filosofia pluralista: pluralismo é o núcleo duro do programa filosófico feyerabendiano e permeou todos os aspectos da filosofia dele.

Diversos trabalhos (individuais ou coletâneas) discutiram elementos basilares da filosofia de Feyerabend.11 Vários deles reconhecem o pluralismo como um elemento fundamental do pensamento feyerabendiano.12 Contudo, não evidenciaram como, partindo daquele eixo conceitual, poderíamos alcançar uma imagem de conjunto do corpus em questão. Então, mapeamos algumas interpretações do pluralismo de Feyerabend e as dispomos em um panorama histórico.13 Com isso, visamos i)

11

Por exemplo: Tomeo (1990); Munévar (1991); Preston, Munévar & Lamb (2000); Stadler & Fischer (2006); Kidd & Brown (2015). 12 Por exemplo, Lugg (1977); Meynell (1978); Hellman (1979); Broad (1979); Prohens (1984); MaiaNeto (1991); Athanassopoulos (1994); Regner (1996); Lloyd (1996); Tsou (2003); Grebowicz (2005) e Kidd (2011). 13 Para essa escolha, seguimos parcialmente as dicas de John Preston (comunicação privada, em 06/07/12). Em 4/05/2015, ele nos criticou quanto à predominância de gênero em nossa lista, que não inclui intérpretes mulheres (por exemplo, Elizabeth Lloyd, Vera Tripodi ou Juliet Floyd). O movimento Gendered Conference Campaign criticou severamente essa hierarquia do gênero masculino nos estudos feyerabendianos na ocasião da conferência internacional Feyerabend-2012 na Humboldt-University zu

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identificar abordagens e compreensões predominantes sobre a filosofia de Feyerabend; e ii) demarcar uma espécie de mapa conceitual preliminar a partir do qual apresentaremos o Pluralismo Global de Feyerabend. Por fim, salientamos que as leituras e leitores do pluralismo no corpus feyerabendiano resumidos a seguir – algumas reconstruídas a partir de materiais de difícil acesso14 – correspondem a fontes indispensáveis para o entendimento da obra de Feyerabend. De resto, note-se que nosso mapeamento de interpretações não se circunscreve aos estudos “internacionalmente hegemônicos” (HOYNINGEN-HUENE & OBERHEIM 2014, p. 46).

1.1 “Feyerabend diz X”: os Estudos primários O primeiro grupo de intérpretes do pensamento de Feyerabend é composto por: (1.1.1) George Couvalis, (1.1.2) John Preston, (1.1.4) Robert Farrell e (1.1.5) Paul Hoyningen-Huene & Eric Oberheim. De forma geral, tais autores são pioneiros nos estudos sobre o corpus de Feyerabend e, nesse grupo, encontram-se as duas principais tradições interpretativas da obra de Feyerabend: a Visão Padrão e a Escola de Hannover.

1.1.1. George Couvalis e o Pluralismo Restrito Couvalis (1989) é um escrito pioneiro sobre o pensamento de Feyerabend. Esse estudioso concentra sua leitura na produção feyerabendiana das décadas de 1950 e 1960. Assim, desconsidera as teses pluralistas que Feyerabend apresentou a partir da década de 1970:

Ocasionalmente, introduzi argumentos derivados do Contra o Método (1975) ou outros trabalhos tardios, com vistas a esclarecer suas posições iniciais, contudo, isso não quer dizer que eu esteja de pleno acordo com os trabalhos tardios dele. De fato, nada do que

Berlin, Alemanha. Vale dizer que o próprio Feyerabend reconheceu um traço de sexismo em seus escritos (MT, p. 158). Para detalhes dessa discussão, ver: https://feministphilosophers.wordpress.com/2012/07/17/international-feyerabend-conference-14invited-speakers-no-women/ 14 Por exemplo, Couvalis (1989), Munévar (2006) e Tambolo (2007). Agradecemos a Gonzalo Munévar e Luca Tambolo, pelos exemplares de seus respectivos escritos, gentilmente cedidos; e a Porfírio Silva, por nos permitir consultar seu volume pessoal de Couvalis (1989).

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digo pretende ser uma defesa da epistemologia anarquista ou da perspectiva relativista que ele apresenta em A Ciência em uma Sociedade Livre (p. x).

Couvalis afirma que a filosofia de Feyerabend consiste em um ataque ao fundacionismo empirista, isto é, a ideia segundo a qual “sentenças que descrevem os dados de nossa experiência são mais confiáveis do que sentenças não experimentais” (p. vii). Inicialmente, o filósofo teria combatido a existência de uma linguagem observacional teoricamente neutra. Portanto, quanto ao estatuto das proposições científicas, Feyerabend defenderia que “todas as proposições científicas são teóricas” (p. 31, 26-27). A distinção neopositivista entre os níveis observacional e teórico do vocabulário científico não seria de natureza semântica, mas pragmática ou psicológica. A definição do estatuto observacional das sentenças científicas resultaria de um longo treino. Então, o “procedimento padrão da ciência” envolveria “converter (psicologicamente)

sentenças

teóricas

em

(psicologicamente)

sentenças

observacionais” (pp. 22-23). A partir de 1962, a obra feyerabendiana se destinaria a desqualificar a imagem cumulativista do progresso científico. Com efeito, Couvalis mostrou que Feyerabend negaria que “novas leis, as quais substituem as antigas em um domínio particular, explicam tudo o que suas predecessoras explicaram, e possivelmente outras mais” (p. 39). O avanço do conhecimento não ocorreria linearmente mediante a “subsunção da descrição de um caso sob uma lei geral” (p. 47):

A crítica de Feyerabend ao [cumulativismo] repousa, basicamente, no fato de que a ontologia de duas teorias cientificas T1 e T2 é, em alguns casos, muito diferente. Dado que a ontologia das duas teorias é diferente, muitos problemas respondidos pela teoria precedente nem sequer vão ocorrer como problemas na teoria posterior […] Feyerabend diz que a nova teoria pode, com toda a legitimidade, não responder aos problemas respondidos pela antiga teoria. É razoável proceder dessa forma quando a ontologia da precedente se mostra equivocada à luz da posterior. Dado que algumas vezes se mostra progressivo substituir uma ontologia por outra, também é progressivo não responder as questões respondidas pela teoria anterior, na qual aquelas questões pressupõem a ontologia rejeitada da velha teoria (p. 42).

Conforme o comentador, as teses feyerabendiana miravam, essencialmente, os “efeitos danosos” do fundacionismo, tais como a aparição de “instituições autoritárias” (p. 132). A doutrinação científica, centrada no ensino de teorias estabelecidas, inibiria as “habilidades imaginativas” e a “capacidade de pensamento independente”. Assim, 22

perspectivas distintas seriam eliminadas ou consideradas “perigosas ou estúpidas” (p. 133). O fundacionismo restringiria a invenção de teorias alternativas:

Feyerabend deixa claro que seu argumento mais importante contra o fundacionismo não é a crítica ao empirismo fundacionista, mas o argumento segundo o qual as pessoas que pensam possuir um fundamento inabalável para seus pontos de vista se comportam de formas eticamente indesejáveis. Pessoas que buscam por fundamentos, não importa em qual domínio, aspiram converter suas teorias em algo como mitos (p. 132).

Couvalis insiste que Feyerabend defendeu o valor epistêmico de teorias logicamente inconsistentes e ontologicamente incompatíveis com as teorias corroboradas (p. 55). Nessa ótica, a descoberta dos erros factuais das teorias corroboradas demandaria o confronto entre concepções rivais: “com frequência, é impossível dizer se uma [teoria] já superou um item cuja existência refuta uma teoria até que se tenha uma teoria alternativa inconsistente com a primeira teoria a qual prediz a existência desse item” (p. 58). Portanto, a teoria da ciência de Feyerabend recomendaria a proliferação teórica: “A proliferação de teorias é, assim, necessária em alguns casos, para refutações de teorias particulares a serem detectadas” (p. 59). Em outros termos, o núcleo da proposta pluralista feyerabendiana residiria na ideia de que encorajar o desenvolvimento de teorias é um método “bastante útil” (p. 80). O pluralismo teórico ampliaria o conteúdo empírico da ciência, além de testar as teorias corroboradas:

[…] fatos que refutarão uma teoria bem confirmada algumas vezes não podem ser conhecidos através de observação direta, mas unicamente mediante uma teoria rival da qual eles são consequências […] alternativas teóricas a teorias amplamente aceitas e bem confirmadas, com frequência, são úteis e algumas vezes necessárias para mostrar as inadequações daquelas teorias bem confirmadas […] [É] sempre possível criar uma nova teoria alternativa, a qual pode ser usada para indicar que uma teoria confirmada, que foi desafiada por várias teorias alternativas, é inadequada” (p. 81).

Couvalis (1986, 1987) iniciou seus estudos sobre o pensamento de Feyerabend abordando as observações do austríaco acerca das relações entre a filosofia e as artes. Em seguida, Couvalis (1988) se dedicou a defender as objeções feyerabendianas ao monismo teórico. O estudioso reiterou a ideia feyerabendiana de que somente a 23

produção de evidências contrárias através da proliferação de hipóteses rivais seria capaz de refutar teorias científicas corroboradas. Por seu turno, Couvalis (1989) reconheceu essa metodologia do pluralismo teórico. Entretanto, o comentador recusou a “epistemologia anarquista ou a perspectiva relativista” de Feyerabend (p. x). Couvalis sublinhou que a posição relativista feyerabendiana endossaria “um certo tipo de fundacionismo” (pp. 33, 134). Também considerou insustentável o pensamento relativista de Feyerabend segundo o qual “tratar todas as tradições como iguais” é “mais humano”. Para o estudioso, “nem todas as tradições podem ser tratadas como igual” (p. 34). Assim, o relativismo feyerabendiano surge como “idealista” e aceitável “apenas na abstração”. Na prática, não traria benefícios porque admitiria a legitimidade de tradições que efetuam uma “lavagem cerebral” em seus componentes. Então, “o tratamento igual a todas as tradições, com frequência, não é desejável, se pretendemos aumentar a liberdade humana geral”. Couvalis também destacou os inconvenientes éticos do relativismo de Feyerabend: “se Feyerabend está certo acerca da verdade, não há razão alguma para qualquer um de nós examinar cuidadosamente críticas aos nossos pressupostos mais fundamentais, pois está assegurada” (p. 134). O relativismo feyerabendiano legitimaria, inclusive, a tolerância com “pontos de vista insanos ou perigosos”. Por fim, Couvalis assevera que virtudes éticas são incompatíveis com uma perspectiva relativista radical de Feyerabend (p. 135).15

1.1.2. A Visão Padrão: John Preston e o Pluralismo Bipartido Preston (1997) corresponde ao que denominamos Visão Padrão da filosofia de Feyerabend.16 Preston (1997, p. 7) parte de uma divisão no corpus feyerabendiano em duas partes: “Sua [Feyerabend] obra pode ser, sinteticamente, dividida em duas em duas fases, a primeira esboçada do início dos anos 1950 até cerca de 1970, a segunda de 1970 em diante”. A fase inicial da obra de Feyerabend se concentraria na elaboração de um Modelo para Aquisição do Conhecimento e comporta algumas ideias básicas.17 15

Em 3.3.4 reproduzimos uma carta de Feyerabend a Couvalis na qual o tema do relativismo é revisistadocriticamente. 16 Ver Oberheim (2006, p. 210). 17 Primeiro, a adoção de uma concepção ‘científica’ de filosofia. Assim, o trabalho filosófico deveria ser progressivo, informativo e gerar descobertas, não apenas “clarificar significados” (PRESTON 1997, p. 11). Segundo, a tentativa de conciliação das teses de L. Wittgenstein e K. Popper: “a obra inicial [de Feyerabend] pode ser amplamente entendida como uma tentativa de combinar as intuições de Wittgenstein com as de Popper” (PRESTON 1997: 23). Feyerabend herdara do autor das Investigações

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Uma delas seria a demanda de testabilidade e a maximização do conteúdo das teorias (p. 15, 75). Contudo, esse teste não poderia depender de “sentenças observacionais […] independentes de toda teoria” (p. 60). Para solucionar esse impasse, o primeiro Feyerabend endossaria o princípio de revisão: “jamais aceitar qualquer sentença dogmática ou incorrigível no corpus do conhecimento” (p. 50). Assim, a crítica do conhecimento derivaria da proliferação de teorias. Preston explica que, nessa perspectiva, “o progresso científico é desejável; ele é melhor avançado pela proliferação teórica” (pp. 63, 71). Ao mesmo tempo, Feyerabend recomendaria a “retenção de teorias ‘refutadas’” (p. 74). Com efeito, proliferação de alternativas e tenacidade de teorias comporiam o esqueleto de uma epistemologia que “encoraja o progresso científico” (p. 71). Com base nessas teses, salienta que o primeiro Feyerabend tinha a convicção de que “existe um único método científico aceitável”: “a melhor metodologia para a ciência [é] aquela que nos permite criticar nossas teorias de maneira mais severa” (p. 112). Por isso, nos anos 1950 e 1960, Feyerabend atacaria o monismo teorético (p. 75). A recomendação feyerabendiana relativa à tolerância com teorias alternativas caracterizaria o filósofo como “um pluralista teórico” (p. 75). Feyerabend considerava dogmática qualquer metodologia que “regula a apresentação de alternativas” (p. 88). Por isso, o filósofo reconhecia a “função essencial de teorias alternativas” para o avanço do conhecimento (p. 125). A Visão Padrão sustenta que o primeiro Feyerabend teria elaborado um Esquema Generalizado de Refutação. Essa ideia constituiria o Modelo para Aquisição do Conhecimento do autor, fundado no seguinte conjunto de normas (pp. 137-138): i. ii.

iii.

Princípio de Falsificação – Levar refutações a sério; Princípio de Revisão – Não admitir sentenças não revisáveis no corpo do conhecimento. Não considerar qualquer sentença como incorrigível, irrefutável ou a priori; Princípio do Empirismo – Ampliar o conteúdo empírico das teorias existentes;

Filosóficas uma concepção “instrumentalista” da linguagem: “o significado de nossos termos é uma função do contexto (teórico)” (PRESTON 1997, p. 26). Terceiro, a premissa de que “a ciência precisa do realismo para progredir” PRESTON 1997, p. 31). Tal defesa do caráter heurístico do realismo exercia uma função central na teoria popperiana. Preston acrescenta que outras noções popperianas aparecem na ‘fase inicial’ da obra feyerabendiana. Por exemplo, a perspectiva de um modelo normativo de epistemologia seria uma delas (PRESTON 1997, pp.: 13-15). A aceitação do falsificacionismo como solução do problema do conhecimento também merece destaque: “boas teorias científicas não apenas não repetem a evidência observacional sob as quais estão baseadas, porque vão além daquela evidência, mas elas, de fato, contradizem a evidência” (PRESTON 1997, p. 20).

25

iv. v. vi. vii.

Princípio da Testabilidade – Apenas usar teorias testáveis. Propor teorias de modo que elas sejam testáveis e as submeter a tentativas de falsificação; Princípio de Realismo – Desenvolver teorias como tentativas de descrições universais da realidade; Princípio de Proliferação – Inventar e elaborar teorias inconsistentes com os pontos de vista altamente confirmados; Princípio de Tenacidade – Selecionar teorias heurísticas e não abandoná-la diante de inconsistências factuais ou graves dificuldades; Para a Visão Padrão, essa seria a metodologia pluralista do Feyerabend inicial:

Este é o argumento para o uso de ‘modelo de teste pluralista’ de Feyerabend: certos fatos, os quais podem pesar negativamente em uma determinada teoria, apenas podem ser descobertos desenvolvendo outras teorias […] O modelo pluralista de teste demanda que as teorias sejam interpretadas na sua forma mais forte (realisticamente), que sejam fortemente inconsistentes umas com as outras, que a inconsistência não seja apenas nos níveis teóricos mais elevados, e que não abandonemos – ao contrário, desenvolvamos e elaboremos – quaisquer teorias as quais consideramos como sendo refutadas (pp. 126, 138).

Nos anos 1970, o segundo Feyerabend recusaria tal Modelo Pluralista de Teste. O austríaco “havia se tornado um pluralista metodológico” (p. 170). Basicamente, a crítica ao monismo teorético daria lugar a uma crítica ao monismo metodológico. A Visão Padrão explicou essa incompatibilidade entre os dois projetos pluralistas de Feyerabend:

Pluralismo teórico (ou seja, a metodologia pluralista de Feyerabend) não deve ser confundido com o pluralismo metodológico. Comentadores algumas vezes assumem que Feyerabend advogou esse último em sua obra pré-1970, mas isso é um grave engano. O modelo pluralista de teste busca ser uma metodologia única para toda a investigação científica. Ela fomenta a proliferação de teorias, mas não de métodos para avaliar teorias. Somente após o advento do ‘anarquismo epistemológico’ Feyerabend propõe que a ciência não possui um método científico distintivo e que ela não pode ser forçada por filósofos para aceitar um. Quando Feyerabend se torna um pluralista metodológico, ele já tinha oficialmente renegado as fontes que originalmente permitiram-no defender o pluralismo metodológico (PRESTON 1997, p. 139).

A conversão de Feyerabend para o pluralismo metodológico decorreria da constatação do autor quanto à complexidade estrutural e histórica da atividade científica (p. 172). Como resultado, ele teria radicalizado sua “insatisfação com a epistemologia normativa” (p. 178). Resumidamente, o pluralismo metodológico de Feyerabend 26

rejeitaria a tese segundo a qual há “o método científico” (p. 170). Essa guinada apareceria na “tese negativa” segundo a qual “não há algo como o método científico” (p. 171). A imagem da ciência derivada dessa compreensão representaria a ciência como uma “atividade essencialmente anárquica”. Preston (p. 172) sublinha o equívoco de considerar autor de Contra o Método como proponente de “metodologia nova e particularmente mais liberal”. Feyerabend somente mostraria que regras metodológicas seriam “imanentes à pesquisa” e, ademais, o “‘anarquismo’ epistemológico (ou melhor, metodológico)” dele seria “mais humanitário” (p. 171). A recusa do ideal de uma unidade metodológica das ciências seria um corolário do pluralismo metodológico feyerabendiano: “As regras que constituem o método científico não são as mesmas de ciência para ciência” (p. 176). Outra consequência da crítica feyerabendiana do método repercutia na discussão acerca da excelência da ciência, ou seja, um exame dos méritos da ciência e a influência da racionalidade científica na sociedade ocidental. Para o Feyerabend final, uma competição genuína entre tradições epistêmicas jamais teria ocorrido. Assim, a superioridade da ciência não seria inquestionável, nem isenta da contribuição de fatores não científicos (pp. 205, 206). A ausência de uma reflexão crítica sobre “os méritos comparativos da ciência” teria conduzido Feyerabend à percepção de que que “a ciência é o mito de nossos dias” (p. 205). Assim, ele terminaria por adotar um relativismo que difundiu suas ideias “para além da filosofia” (p. 191). O mote da segunda filosofia feyerabendiana apareceria na compreensão segundo a qual “razão é apenas uma tradição entre outras” (p. 197). Por isso, o Estado na Sociedade Livre do autor de Contra o Método deveria “ser supostamente ideologicamente (e, assim, epistemologicamente) neutro” (p. 208).18

1.1.3. O Review Symposia da AAHPSSS: revisionismo da ‘Visão Padrão’ A Visão Padrão passou por uma série de críticas em 1999. Essa pouco conhecida reavaliação coletiva de Preston (1997) apareceu no Review Symposia da AAHPSSS.19 Tal debate extrapola o tema do pluralismo e promove um aprofundamento geral da 18

O complemento dessa análise pode ser encontrado em 2.2.1.1. Sigla de ‘Australasian Association for the History, Philosophy and Social Studies of Science’. Não conhecemos qualquer estudo que aborde o conjunto dessas críticas a Preston (1997) (ver OBERHEIM 2006, pp 22-23). Agradecemos a John Preston por possibilitar nossa consulta à versão completa desse material. 19

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Visão Padrão (1.1.5), além de impulsionar novas apreciações referentes ao corpus feyerabendiano (1.1.4 e 1.3.2.2).

1.1.3.1.Couvalis crítico da Visão Padrão Couvalis (1999, p. 206) reconhece que Preston (1997) foi o “primeiro estudo publicado sobre Feyerabend que busca ser amplo”. Ele reitera que o principal tema da Visão Padrão é o Feyerabend inicial e elogia aquele intérprete por explorar as tensões nas ideias feyerabendianas: “Sua [Preston] falta de reverência com Feyerabend está em consonância com o espírito da filosofia de Feyerabend” (p. 207). No entanto, Couvalis diverge da concepção prestoniana exposta no trecho [1] abaixo:

[1] Finalmente, a visão cientifica mais extrema é aquela segundo a qual a ciência e o senso comum estão em intenso conflito, e que, na medida em que a nossa melhor conjectura em relação à verdade, o senso comum não é nem indispensável nem verdadeiro. […] Portanto, deveríamos compreender o mundo em termos científicos, em vez de em termos do senso comum. O resultado de aceitar uma teoria física é que nossas crenças cotidianas sobre o mundo devem ser totalmente substituídas. É essa posição de Feyerabend, algumas vezes conhecida como ‘super-realismo’. Apesar de ser um materialista convicto, Feyerabend chegou, através do ‘super-realismo’, à conclusão de que não existem objetos materiais tais como concebemos […] Feyerabend julga que a física, interpretada ‘realisticamente’, nos diz que a totalidade do mundo de objetos materiais familiares é um mero ‘fenômeno’, uma ilusão […] Uma … poderosa linha de raciocínio [contra essa tese], derivada do trabalho de Peter Strawson, culmina na afirmação de que nossos conceitos ordinários de objetos materiais exercem uma função insubstituível no nosso esquema conceitual […] Objetos materiais são os melhores candidatos para esse posto de particulares básicos. […] Portanto, nessa visão, linguagens teóricas são parasitárias da linguagem cotidiana; mesmo a linguagem da microfísica deve se apoiar na linguagem dos objetos materiais, e não pode, como Feyerabend vislumbrou, substituí-la. Entidades teóricas podem perfeitamente existir, mas não podem ser particulares básicos (PRESTON 1997, pp. 144-147).

Couvalis (p. 210) assume que o “argumento strawsoniano de Preston tem uma força considerável”. Entretanto, afirma que o argumento strawsoniano não prova o ponto de Preston: “[…] para estabelecer que uma necessidade transcendental explica nossa incapacidade atual”. As teses feyerabendianas quanto àqueles tópicos resultariam de um “minucioso conhecimento da filosofia contemporânea e da história da física” (p. 211). O austríaco considerava que “pressupostos conceitualmente interconectados necessariamente sustentam nossas descrições do mundo”. Essa ideia parece kantiana e 28

seria inconsistente com uma crítica da existência de relações conceituais. Assim, “feyerabendianos modernos” deveriam “resolver o problema se libertando das partes de Feyerabend (se as houver) que se amparam em necessidades transcendentais”. Por isso, seria impraticável “aderir, de forma consistente e plausível, a todas as posições” de Feyerabend (p. 215).

1.1.3.2.Munévar crítico da Visão Padrão Munévar (1999, p. 216) considera Preston (1997) o “mais impressionante e meticuloso comentário sobre a filosofia de Feyerabend”. Ele destaca que a Visão Padrão seria “especialmente bem-sucedida em capturar problemas que filósofos analíticos considerarão significantes quando abordarem a complexa e impressionante concepção de filosofia da ciência de Feyerabend”. No entanto, uma das principais divergências de Munévar com a Visão Padrão remete à exatamente à preocupação prioritária com questões linguísticas. Segundo ele, essa abordagem “é precisamente o que mais atrapalha no entendimento da ideia geral de Feyerabend”. Munévar (p. 217) também julga que as críticas da Visão Padrão ao pluralismo metodológico de Feyerabend, presentes no trecho [2], são improcedentes:

[2] Apenas em razão de sua ascendência popperiana, Feyerabend pensa que ele pode refutar o monismo metodológico demonstrando que regras metodológicas são, com proveito, violadas […] Tendo criticado o ‘racionalismo crítico’, por não perceber que não existem tais regras dedutivas, Feyerabend anuncia que não existem quaisquer regras metodológicas. Essa estratégia é, obviamente, fracassada. Falha em abordar qualquer outra posição ‘racionalista’. Regras indutivas são perfeitamente boas, e podem ser seguidas, podem guiar a ação em direção a um objetivo. As premissas popperianas de Feyerabend tornam enganosamente fácil alcançar sua conclusão ‘anarquista’ (PRESTON 1997, p. 175).

Munévar (p. 217) considera essa leitura uma “enorme ficção”. Preston buscaria discutir a possibilidade de Feyerabend “recusar todas as formas possíveis de monismo metodológico”. Inversamente, Munévar (p. 218) compreende que o austríaco “de fato descartou todas aquelas que podem ser genericamente consideradas empiristas”. O argumento feyerabendiano empregaria episódios paradigmáticos da história da ciência para defender que “cientistas tiveram que violar certas regras metodológicas para alcançar o progresso científico”: 29

Pois bem, qualquer metodologia, para ser corretamente denominada empirista, precisa especificar os meios pelos quais a experiência vai julgar a teoria. Se os ‘fatos’ podem ser derrubados, contudo, todas as metodologias podem ocasionalmente falhar […] O progresso científico, ocasionalmente, exigirá a recusa da ‘base empírica’ e, assim, a violação de todas as regras empiristas dignas desse nome (p. 219).

Outro desacordo de Munévar (1999) com a Visão Padrão diz respeito às passagens [3a] e [3b], a seguir. Elas conteriam premissas interpretativas equivocadas acerca da tese feyerabendiana da incomensurabilidade de teorias:

[3a] Uma discordância pontual tem sido o maior obstáculo para qualquer versão exposição inteligível da tese da incomensurabilidade: ou a inconsistência é inconsistência logica ou não é (PRESTON 1997, p. 105). [3b] Se eu entendo uma linguagem A, então não posso ter o mérito de entender uma outra linguagem, B, até que eu seja capaz de realizar traduções de B em A e vice-versa (PRESTON 1997, p. 188).

[3a] presume que a incomensurabilidade dependeria da inconsistência lógica entre as teorias. Mas Munévar (p. 220) sublinha que a incomensurabilidade, em Feyerabend, surge quando a aceitação de uma teoria “suspende alguns dos princípios universais do conceitos e formação de fatos” de sua rival. Não haveria “nada de vago quanto a isso” e, inclusive, o filósofo teria “ilustrado sua sugestão com um exemplo nítido”. A mudança conceitual presente nos episódios de incomensurabilidade seria de tal natureza que “podemos estar certos em afirmar que os significados dos termos básicos” sofreram uma transformação. Todavia, o estudioso esclarece que isso acarreta dificuldades apenas para filósofos da ciência. Munévar (p. 221) insiste que a incomensurabilidade não passaria de uma “disputa terminológica” sem consequências científicas, algo que Feyerabend “tinha gosto em dizer”. Portanto, permaneceria indefinido o motivo pelo qual Preston “ainda acredita que a questão deveria permanecer relevante para filósofos”. [3b] sugere que a cognoscibilidade de teorias incomensuráveis envolve a tradutibilidade do conteúdo delas. No entanto, Munévar (p. 221) afirma: “o problema da incomensurabilidade não depende de qualquer teoria do significado em particular”. De fato, a incomensurabilidade implica que “uma teoria é substituída por outra”. Mas 30

a compreensão dos conteúdos teóricos poderia ocorrer por imersão. Nesse caso, esclarece Munévar (p. 222), “um cientista vai falar dois idiomas, e por isso pode estar apto a compreender até que ponto elas são rivais”:

uma tradução é uma habilidade distinta, em seus próprios termos, e que indivíduos bilíngues frequentemente entendem perfeitamente algo no seu segundo idioma sem ter muita ideia de como expressá-lo em seu idioma nativo […] Um pouco menos de fixação com a linguagem faria bem a Preston e à filosofia analítica (pp. 222, 225).

1.1.3.3.Hoyningen-Huene & Oberheim críticos da Visão Padrão Hoyningen-Huene & Oberheim (1999, p. 226) consideram Feyerabend um pensador “complexo e multifacetado”. Por isso, qualquer exposição das ideias dele enfrenta “várias dificuldades praticamente intransponíveis”. Eles também salientam que “houve um amplo espectro de reações à obra feyerabendiana, e qualquer livro sobre Feyerabend não poderia agradar a todos”. Para os estudiosos, “uma das muitas dificuldades para explicar as ideias filosóficas de Feyerabend” decorre do fato de o autor mudar frequentemente de opinião. Preston (1997) teria “reduzido essa dificuldade” quando se restringiu Feyerabend inicial. Os “desenvolvimentos posteriores” teriam recebido apenas um “ligeiro tratamento”. Porém, HoyningenHuene & Oberheim consideram que, “mesmo em relação à produção inicial de Feyerabend, pode ser um erro atribuir ao autor qualquer posição particular”. A posição filosófica específica que a Visão Padrão atribuiu à filosofia inicial de Feyerabend pode ser constatada em [4a]:

[4a] Este é o argumento para o uso de ‘modelo de teste pluralista’ de Feyerabend: certos fatos, os quais podem pesar negativamente em uma determinada teoria, apenas podem ser descobertos desenvolvendo-se outras teorias […] O modelo pluralista de teste demanda que as teorias sejam interpretadas na sua forma mais forte (realisticamente), que sejam fortemente inconsistentes umas com as outras, que a inconsistência não seja apenas nos níveis teóricos mais elevados, e que não abandonemos – ao contrário, desenvolvamos e elaboremos – quaisquer teorias as quais consideramos como sendo refutadas (PRESTON 1997, pp. 126, 138).

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Diversamente, Hoyningen-Huene & Oberheim (1999, p. 226) afirmam que a filosofia feyerabendiana adotaria uma “metodologia filosófica pluralista”:

Feyerabend é melhor compreendido como desenvolvendo ideias independentemente da aliança com ismos filosóficos. É inclusive tentador dizer que Feyerabend foi um filósofo ‘anti-ismos’. No entanto, ao invés de buscar articular, elucidar e desenvolver as ideias vagas e intuições que podem ser encontradas ao longo da produção inicial de Feyerabend, Preston identifica principalmente as contradições e tensões nas ideias de Feyerabend, as quais servem como base para uma crítica negativa da obra de Feyerabend. Preston parece mais comprometido em achar fissuras que ele pode atacar do que em apresentar e ajudar a explorar as ideias de Feyerabend.

Os estudiosos pensam que a abordagem de Preston produz erros e conduz a problemas conceituais. Uma confusão gerada pela Visão Padrão envolveria a caracterização insuficiente do realismo de Feyerabend expressa em [4b]:

[4b] A [teoria contextual do significado] apareceu em seus [Feyerabend] primeiros escritos como um princípio inquestionado, porque no seu mais importante artigo ‘An Attempt at a Realistic Interpretation of Experience’ ele argumentou em defesa da tese segundo a qual ‘a interpretação de uma linguagem observacional é determinada pelas teorias que usamos para explicar o que observamos, ela muda assim que aquelas teorias mudam’. Essa ideia, que ele designa por ‘Tese I’, e que explicitamente atribui a Wittgenstein, assim como a Galileu e outros cientistas, é o núcleo da versão de realismo científico de Feyerabend (PRESTON 1997, p. 30).

Hoyningen-Huene & Oberheim (pp. 229-230) dizem que, tradicionalmente, o realismo afirma que “o significado de um termo empírico é fixado pela forma como o mundo é (seus objetos, natureza), não por nossas teorias sobre o mundo”. Contudo, Preston não explicaria que a concepção feyerabendiana “contradiz frontalmente” essa “‘versão’ do realismo científico”. Por sua parte, Hoyningen-Huene & Oberheim sublinham que “o realismo de Feyerabend […] parece muito pouco com o que comumente é concebido por ‘realismo’ em filosofia da ciência”. Para tanto, recorrem à distinção entre o realismo científico e o realismo filosófico. O realismo científico seria uma “estratégia de pesquisa” ou uma “ferramenta heurística”. Relaciona-se, então, com a prática científica e diz respeito às interpretações que “estimulam ou impedem o ‘progresso’”. O realismo filosófico decorreria da noção segundo a qual “o significado dos conceitos empíricos é determinado pelas teorias nas quais eles são baseados”. Nesse 32

sentido, Hoyningen-Huene & Oberheim pensam que esse realismo filosófico feyerabendiano está “mais afinado a uma forma de kantismo, no qual o mundo que experienciamos é conceitualmente descrito pelas teorias que usamos”:

Essa influência kantiana nas ideias filosóficas de Feyerabend não se restringe à semântica e remonta a 1958, quando ela foi claramente inferida por Feyerabend da própria interpretação da tese da complementaridade de Bohr […] Feyerabend prossegue alegando que que certos fatos não podem sequer ser estabelecidos sem a ajuda de certas teorias […] [É] nossa proposta que esse kantismo é, e permanece sendo, um componente central da noção de ‘progresso’ de Feyerabend ao longo do Contra o Método […] Isso deveria ser o bastante para mostrar que ele já definiu uma plataforma por volta de 1958, que posteriormente foi desenvolvida no mínimo nas duas décadas seguintes.

1.1.3.4.Réplicas de Preston aos seus críticos Preston (1999, p. 233) admite que não tratou de “todas as partes da Oeuvre de Feyerabend”. Sua introdução da filosofia de Feyerabend teria se concentrado “no material dos períodos inicial e intermediário” da produção. Assim, admite que a obra final de Feyerabend aguardaria “uma plena avaliação crítica”. Não obstante, o expoente da Visão Padrão responde às críticas apresentadas no Symposia Review da AAHPSSS. De saída, Preston (1999, p. 234) rejeita as críticas de Hoyningen-Huene & Oberheim à sua atribuição da posição filosófica a Feyerabend (1.1.3.3). Ele frisa que a opinião deles estaria impregnada “pelos trabalhos tardios de Feyerabend”. Essa contaminação os levaria aos limites de “uma história Whig” do corpus de Feyerabend. Seria impossível entender o pensamento de Feyerabend sem lhe atribuir algum ismo filosófico:

Ninguém que conheça sua [Feyerabend] obra em profundidade pode acreditar que o Feyerabend tardio foi um guia confiável para suas produções iniciais. Como admitiu a muitos daqueles que o indagaram (eu inclusive), ele pouco se preocupou com sua obra inicial, dado que considerava que se afastou dela. Embora isso tenha um cheiro de auto-mitificação, essa atitude demonstra o desinteresse de Feyerabend em considerar a coerência das diferentes fases de sua obra ou seu próprio ‘desenvolvimento’ (uma expressão que ele desdenhou em sua autobiografia) […] [E]le não tinha, tampouco precisava, de uma posição filosófica. Ainda que existam filósofos que oficialmente evitam a produção de teorias filosóficas, é difícil imaginar o que poderia ser uma filosofia sem uma posição (o que considero significar ‘concepção’ e que pode ser assumida por não mais do que um breve período) […] Ainda que eu possa concordar com a sugestão de que o Feyerabend tardio tentou (com algum sucesso) evitar ‘ismos’ filosóficos, ainda defendo que não é possível alcançar uma compreensão plena de seu trabalho como um todo sem identificar o compromisso inicial de Feyerabend com tais pontos de vista.

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Quanto às observações de Couvalis (1.1.3.1), Preston (p. 235) afirma que ele apela a “verdades conceituais, não a verdades necessárias”. Assevera que “existem razões científicas perfeitamente boas em favor da centralidade das coisas materiais”. Em relação à solução de problemas filosóficos através da transformação dos esquemas conceituais, sustenta que “reconceitualizacões não solucionam problemas filosóficos” (p. 238). Assim, diz que se um problema “é conceitual, então pode apenas ser ignorado, não resolvido por mudanças nos conceitos”. Ademais, Preston (p. 240) não reconhece desacordos entre suas ideias no trecho [2] e as ideias de Munévar (1.1.3.2). Ambos consideram o pluralismo metodológico de Feyerabend “intuitivamente convincente”. Entretanto, não teria defendido que regras indutivas “constituiriam qualquer coisa próxima do que alguns designam como a distintiva racionalidade científica”. Em relação aos problemas suscitados por [3a] e [3b], Preston (p. 235) reitera que, nos anos 1960 e 1970, reflexões sobre significado e linguagem foram centrais para Feyerabend. Acrescenta que as explicações tardias de Feyerabend sobre a incomensurabilidade ainda lhe soavam “(assim como para muitos outros) vagas e problemáticas, dado que todas se baseariam em metáforas” (p. 237). Por fim, Preston (p. 238) retoma o debate sobre o realismo em Feyerabend. Ele afirma que essa ideia corresponde à questão mais interessante levantada no Review Symposia. E adiciona: “Todos concordam que a natureza exata desse realismo é uma questão sobre a qual, certamente, pode haver diferentes interpretações”. O realismo científico feyerabendiano não corresponderia à “versão ortodoxa” da tese realista. A proposta do austríaco seria “uma inversão da visão positivista segundo a qual o significado penetra ‘de baixo para cima’ a partir das proposições de observação até as teorias”. Essa “inversão como um componente central do realismo” corresponderia a “alternativa ao positivismo e ao realismo” (p. 239). Porém, Preston discorda dos seus críticos quanto a se, alguma vez, Feyerabend “adotou o que consideramos como a típica concepção realista de realidade”. Afirma que o super-realismo expresso por Feyerabend, nos anos 1960, permite considerar que o filósofo aceitou que a realidade era um “conjunto de coisas independentes da mente, eventos e processos”. Preston admite não ter certeza “que é a isso que sempre equivaleu o realismo de Feyerabend”. Assim, acolhe a sugestão da herança kantiana em Feyerabend (p. 240). Porém, não se mostra tão confiante como Hoyningen-Huene & Oberheim que a distinção entre os

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tipos de realismos científico e filosófico auxiliaria a esclarecer as concepções prévias de Feyerabend.

1.1.3.5.Teses adicionais da Visão Padrão: relativismo e realismo Todos os críticos da Visão Padrão (expostos nas seções 1.1.3.1, 1.1.3.2 e 1.1.3.3) destacaram que Preston (1997) se limitou a um período restrito do corpus feyerabendiano. Sobre isso, Preston (1999, p. 236) replicou que “não é possível todas as concepções de Feyerabend” em um único trabalho. Destarte, Preston (1997a) e Preston (1997b) complementam e aprofundam a Visão Padrão, especialmente com relação ao relativismo e o realismo de Feyerabend. Preston (1997a, p. 617) mantém a imagem da Visão Padrão segundo a qual o corpus de Feyerabend possui uma “estrutura fragmentada”:

Nas obras tardias, [Feyerabend] defendeu o relativismo na epistemologia, assim como o considerou no âmbito da política, argumentou contra o realismo que em algum momento defendeu e evitou propor qualquer teoria semântica. Sua preocupação com a tolerância e o entendimento interculturais; suas denúncias do agressivo imperialismo ocidental; suas críticas da própria ciência; sua constatação de que ‘objetivamente’ não há motivo para escolher entre as afirmações da física de partículas e da astrologia; assim como seu interesse pela medicina alternativa e por questões ambientais – enfim, tudo isso confirma que Feyerabend se converteu em um dos heróis da contracultura antitecnológica.

Preston (1997a) entende que a obra do Feyerabend final mantém essa “mesma matriz”. Assim, o relativismo permaneceria em destaque nas últimas publicações do austríaco. A esse respeito, frisa que o segundo Feyerabend discutiu, basicamente, a “posição relativista básica” proposta pelo sofista Protágoras (p. 618). 20 Entretanto, Preston (p. 619) observou: “Feyerabend falhou em perceber que o relativismo protagórico é um tipo de relativismo subjetivista e que, como tal, de fato é dialeticamente auto-refutante”. Por sua parte, Preston (1997b, p. 421) reconhece que “causa surpresa” sugerir que Feyerabend “advogou em defesa do realismo científico” antes da publicação do Contra o Método. O comentador reforça que a “versão

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Preston (1995) também expõe e critica do relativismo final de Feyerabend. Para detalhes, ver 2.3.3.3.

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heterodoxa” do realismo científico feyerabendiano “permaneceu relativamente constante ao longo dos seus escritos ‘iniciais’”. Em síntese, o relativismo científico do primeiro Feyerabend adotaria três ingredientes. Primeiro, um ingrediente ontológico: teorias são “tentativas de descrever o mundo”. A ciência não buscaria apenas compreender, mas, sobretudo, “explicar as coisas de um modo profundo”. A esse respeito, Preston (p. 422) destacou que o austríaco jamais adotou noções popperianas, tais como aumento de correspondência ou verossimilhança. Segundo, um ingrediente semântico: “teorias são sentenças universais” compostas por “termos descritivos”. Feyerabend não defenderia uma interpretação unívoca das teorias, contudo, destacaria que elas deveriam ser “interpretadas em seus próprios termos”. O austríaco designara essa perspectiva de interpretação realista das teorias. Terceiro, um forte ingrediente psicológico ou epistemológico. O elemento fundamental dessa ideia aparece encapsulado no que, em 1958, Feyerabend chamou de Tese I. Conforme essa ideia, “o nível ‘observacional’, ou o nível da linguagem ordinária’, é parte do nível teórico”. Então, o estatuto do vocabulário científico deveria ser “julgado pela plausibilidade de suas consequências”. Em outros termos, a distinção entre termos observacionais e teóricos não seria semântica, mas pragmática. Posteriormente, o realismo de Feyerabend passaria por uma guinada significativa. Em seguida, Feyerabend se converteria ao antirrealismo:

Em seus trabalhos posteriores (aqueles publicados na década de 1990), Feyerabend elaborou uma posição antirealista igualmente radical (e igualmente problemática), a qual considera negativamente tanto no realismo de teorias científicas como o realismo de entidades científicas. Julgo adequado afirmar que o tema central nessa obra tardia é o explícito reconhecimento feyerabendiano da ‘desunidade da ciência’, em íntimo contato com o pluralismo ontológico e o antireductionismo

O tópico da desunidade da ciência apareceria como o tema dominante da fase final do pensamento de Feyerabend (ver 4.1). A opinião feyerabendiana insistiria que “não existe algo como a ‘ciência’; e mesmo o termo ‘ciência’ é um rótulo vazio”. Segundo o comentador, o pensamento de Feyerabend defenderia a inexistência de “algo como a ciência” e de “algo como o método científico”. Ela também recusaria existir “algo como a ‘visão científica de mundo’”. Para Feyerabend, a ciência apresentaria uma pluralidade de abordagens e teorias, as quais “resistiram por muito tempo à tão desejada 36

unificação”. O ataque feyerabendiano à unidade da ciência e à visão científica de mundo conduziria tal filosofia ao tema do antirreducionismo. De fato, o comentador mostra que a crítica ao reducionismo consiste em um “tema permanente na filosofia da ciência de Feyerabend”. Mas, em sua fase final, Feyerabend consideraria um desiderato metafísico – e não como um “fato da prática científica” – a pretensão de reduzir proposições de “conhecimentos ‘periféricos’” a outros “‘mais fundamentais’ e, em última instância, à física de partículas elementares”. Portanto, Preston (p. 426) destaca que essa produção final de Feyerabend acenaria para uma nova metafísica. O estudioso julga que a metafisica sócioconstrutivista feyerabendiana abandonaria a ideia realista de uma “realidade independente da mente”. A postura assumida por Feyerabend aceitaria a tese de que “a Realidade é indeterminada, que ela reage diferentemente a diferentes abordagens”. Preston destaca que Feyerabend “não recua” diante das implicações idealistas dessa tese (p. 427) e isso indicaria que o austríaco abandonou “o núcleo ontológico do realismo científico”. Para Feyerabend, os cientistas modernos teriam “substituído objetos naturais por artefatos”. Assim, a ciência moderna usaria “artefatos, e não a natureza-como-ela-é em si mesma”. O ponto central dessa imagem da realidade residiria na premissa de que “a natureza (ou o Ser, como Feyerabend prefere nomear) reage a diferentes investigações de maneiras diversas”. O fenômeno real dependeria de uma interação (ou interferência) entre os procedimentos ou abordagens e o Ser. Nessa leitura, o Feyerabend tardio aceitaria “a possibilidade de que o Ser é mais complexo, mais multifacetado, mais reativo e bem mais maleável do que admitiriam os materialistas contemporâneos”. Cada tradição científica possuiria suas concepções de realidades. Feyerabend preferiria a tradição aristotélica (ou o senso comum aristotélico), porque ela priorizaria “a experiência ao invés das experiências perceptivas”. Preston (p. 429) salienta que “embora [Feyerabend] não deixe absolutamente claro os fundamentos dessas escolhas”, o elemento essencial de sua obra residiria nas “implicações éticas e sociais de cada concepção”. Conforme tal ponto de vista, o realismo consistiria em um “pressuposto filosófico”. Assim, a principal questão, para Feyerabend, envolveria uma apreciação dos efeitos restritivos ou libertadores do mito realista. Subjacente a essa revalorização de concepções alternativas, haveria a premissa de que “diferentes modelos científicos e mitos são bem-sucedidos”. Então, como resume o estudioso, “a conclusão da obra final de Feyerabend, que a ciência contém uma pluralidade de abordagens, é o primeiro 37

argumento dele para essa nova metafisica”. Preston (p. 430) encerra seus comentários adicionais à Visão Padrão discutindo a fonte última do pensamento de Feyerabend: “Sugiro que é uma concepção profundamente voluntarista de vida intelectual que corresponde ao princípio norteador de Feyerabend”. As questões que envolvem tal escolha surgiriam como “o mais duradouro tema em toda a filosofia de Feyerabend”. Na primeira fase da obra de Feyerabend, encontraríamos a reflexão normativa acerca da forma do conhecimento: “a escolha entre realismo e positivismo” dependeria de uma comparação das consequências dessas perspectivas com “nossos ideais epistêmicos”. Isso indica que o realismo inicial de Feyerabend se baseava em uma “epistemologia fortemente normativa”. A filosofia tardia manteria essa preocupação com a escolha, porém, a “extensão é ampliada, dado que, nesse momento, é tomada nas bases de todos nossos ideais”. Consoante essas considerações adicionais da Visão Padrão, descobrimos que

o Feyerabend tardio acredita que a forma e o conteúdo do nosso conhecimento, e assim a própria natureza do próprio ‘ser’, depende de nossas decisões. Ao invés de argumentar a partir dos fatos científicos em direção às políticas sociais, ele explicitamente recomenda que mantenhamos firmes nossos ideais sociais e argumentemos, de trás para frente (digamos assim), em direção à natureza do mundo (pp. 430-431).

1.1.4. Robert Farrell e o Pluralismo Axiológico Farrell (2003) afirma que as noções de proliferação e pluralismo estão “profundamente arraigadas” no pensamento de Feyerabend (p. 131). De tal forma, que seria correto considerar que “ninguém enfatizou o valor do pluralismo tanto quanto Feyerabend” (p. 151). A ocorrência mais remota do pluralismo no corpus feyerabendiano apareceria na defesa do valor de teorias alternativas. O pluralismo teórico serviria para “assegurar a testabilidade de teorias científicas” e ampliar “o conteúdo empírico” das teorias estabelecida (p. 133). Assim, a existência de um “conjunto de teorias inconsistentes” atestaria a própria possibilidade da crítica do conhecimento (p. 152). Como resumiu Farrell: “Nesse período de sua filosofia, Feyerabend considerou o pluralismo como um ingrediente essencial da crítica” (p. 151). Ou ainda: “Proliferação é um método racional porque é o único modo no qual podemos garantir a natureza crítica do debate científico; é racional porque é o único modo no 38

qual podemos garantir a testabilidade crítica das teorias científicas” (p. 191). Contudo, o pluralismo não comporia apenas a metodologia dos testes científicos: “na medida em que o teste e a testabilidade compõem partes da racionalidade, o pluralismo de teorias é, pois, parte da racionalidade” (p. 134). Algumas dessas ideias teriam, de fato, uma origem em “noções popperianas” (p. 146). Mas Feyerabend buscaria uma “aplicação mais ampla” do que a de Popper. Segundo explica Farrell, o autor de Contra o Método considerava que, em certos aspectos, “a filosofia de Popper desencoraja o pluralismo” (p. 132). Feyerabend teria reconhecido que uma das “implicações do pluralismo” consistia no “reconhecimento da tenacidade” (p. 154). Portanto, a crítica do conhecimento não poderia depender apenas da proliferação de novas ideias. Precisaria, ainda, recuperar concepções refutadas e reter concepções factualmente inconsistentes:

o princípio de tenacidade apenas adquire sentido racional quando coligado com o princípio de proliferação: para ter proliferação/pluralismo devemos aceitar a tenacidade, mas o inverso não é verdade, ou seja, não precisamos aceitar a proliferação para ter a tenacidade, precisamos apenas ser dogmáticos e acríticos (p. 191).

Farrell considera que a produção feyerabendiana a partir da década de 1970 não é incompatível com o pluralismo teórico. Então, não haveria uma descontinuidade filosófica entre as ideias anteriores e posteriores ao Contra o Método. “Feyerabend não percebe que o pluralismo teórico implica o pluralismo metodológico” (p. 157), reforça o estudioso. O caráter crítico da produção do conhecimento demandaria apenas uma diversidade de ideias, mas também uma variedade de formas de ação. Assim, o pluralismo metodológico de Feyerabend invalidaria “normas universais propostas” para a atividade científica. Ainda que tenham uma “aplicação legítima em algumas circunstâncias”, a aplicação de tais regras metodológicas deveria ser “certificada na situação e determinada pela situação”. Nesse sentido, apesar de se distanciar do racionalismo crítico em termos metodológicos, Feyerabend “permaneceu um popperiano fiel em um nível metateórico” (p. 156). Primeiro, ambos confluiriam na opinião de que “a meta da ciência consiste no progresso explicativo crítico”. Segundo, concordariam que o “comprometimento com essa meta é, essencialmente, uma decisão ética”. A “diferença crucial” estaria no fato de que “Feyerabend passou a acreditar que o pluralismo é o conceito profundo subjacente à atividade crítica”. O rompimento teria

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ocorrido no instante em que Feyerabend identificou na metodologia popperiana indícios de “luta contra o pluralismo”. Farrell compreende que a noção mais geral de Feyerabend quanto à racionalidade da ciência consiste em uma “síntese de proliferação e tenacidade” (p. 193). Entretanto, esses preceitos seriam “demandas racionais incompatíveis” (p. 209). Isso implicaria acolher uma ideia distinta de racionalidade: “Feyerabend está propondo que consideremos a racionalidade em termos de uma normatividade contextual, axiológica” (p. 161). A imagem que Farrell emprega para ilustrar sua interpretação da obra feyerabendiana é “caminhar na corda bamba” (p. 209): “balancear continuamente demandas racionais incompatíveis”. O Racionalismo buscaria por uma racionalidade baseada em regras. Contudo, Farrell entende que Feyerabend rejeitou esse programa: “Se temos quatro regras separadas de racionalidade, cada uma consistente e algorítimica, as quais combinamos visando produzir uma descrição completa da racionalidade, então o sistema de regras resultante será inconsistente” (p. 205). Por sua vez, Feyerabend teria abraçado uma noção de racionalidade baseada em valores: “Feyerabend apresentou uma imagem da racionalidade melhor entendida em termos de valores” (p. 202). A diferença dessas concepções remeteria à capacidade de ajustamento ao contexto: “Se, por outro lado, interpretamos as prescrições racionais como valores, em vez de regras, então a adaptabilidade e abertura inerente dos valores admite discrepâncias sem produzir contradições” (p. 206). Farrell descreve da seguinte forma o pluralismo axiológico:

Eu sustento que as duas tradições e os dois princípios de Feyerabend, tomados em conjunto, constituem quatro valores para a investigação racional. A noção de uma tradição teórica/abstrata vou designar com o valor da generalidade; é associado com outros conceitos, como simplicidade, generalidade, poder explicativo e consistência. A noção de tradição empírica vou chamar de valor de precisão empírica. O princípio de tenacidade vou descrever como o valor da fecundidade. O princípio de proliferação vou tratar como o valor da testabilidade (p. 203). Enquanto valores, generalidade, testabilidade, precisão empírica e fecundidade são universais e atemporais, mas se buscamos entender e efetuar juízos acerca da racionalidade de tópicos particulares, então temos que imergir no tópico e nos empenhar no que Feyerabend chamou de ‘método antropológico’ (p. 205).

Farrell considera que uma “aplicação geral desses quatro valores” é essencial para entendermos a filosofia feyerabendiana. Essa teoria contextual da racionalidade 40

teria permanecido “implícita nos escritos de Feyerabend até o fim de sua carreira” (p. 196). Portanto, seria correto afirmar que “Feyerabend não muda sua filosofia”. Na ótica feyerabendiana, a racionalidade operaria efetuando um “balanço de valores racionais” (p. 212). Por isso, a racionalidade seria “dinâmica” e envolveria “escolhas”: “As atitudes históricas, culturais, sociais, metafisicas e religiosas das épocas invadem e afetam os processos de tomada de decisão dos agentes históricos: decisões racionais não são tomadas em um vácuo objetivo livre de influências” (p. 206). As escolhas de “agentes racionais” seriam, então, contextuais. Assim, Farrell sublinha que, para Feyerabend, a “ciência é sempre parte de uma vasta forma de vida, uma vasta visão de mundo” (p. 225). Desse modo, tal visão de mundo afetaria “todos os aspectos das vidas dos indivíduos” (p. 230). A crítica de Feyerabend a uma metafísica reducionista derivaria dessa dimensão onipresente das visões de mundo. As “tendências redutivas” de certas concepções científicas enfatizariam “alguns aspectos da existência e as ideias metafisicas que foram exitosas naquelas áreas” (p. 230). Outros aspectos ou ideias seriam descartados e, assim, um tal “uso retórico da ciência” transformaria a ciência em um “instrumento de poder”. Contra esse reducionismo, Feyerabend entenderia que “todos os aspectos da existência são igualmente reais e que nenhuma parte circunscrita da existência é metafisicamente superior a qualquer outra”. Farrell mostra que, para o filósofo, “ideias metafisicas subjacentes à ciência são indubitavelmente bem-sucedidas em seus domínios” (p. 231). Feyerabend insistiria que existem “visões de mundo alternativas, com pressupostos metafísicos alternativos, as quais são bem-sucedidas em seus domínios”. Com efeito, Feyerabend também defenderia um pluralismo em termos de cosmovisões: “Feyerabend acredita que outras visões de mundo não deveriam ser excluídas do debate racional por que contradizem a ciência” (p. 232). Segundo o comentador:

a proliferação de visões de mundo é salutar, moral e racional: se há uma estrutura ampla e sistemática inerente no universo, então a proliferação de visões de mundo nos ajudará a encontrar qual é essa estrutura; de outro lado, se não existe uma estrutura ampla e sistemática inerente no universo, então a proliferação vai nos ajudar a nos livrarmos sistemas de pensamento indesejáveis, fundamentalmente indesejáveis e dogmáticos (p. 236)

41

Portanto, Feyerabend apresentaria uma pluralidade em termos de teorias, métodos e visões de mundo. Ao lado da “multiplicidade de formas de vida reais” teríamos também formas de vida “potenciais” (p. 228). Assim, o pluralismo feyerabendiano não se limitaria à ciência. Farrell destaca que o pluralismo de Feyerabend seria “uma atitude geral em todos os níveis da vida” (p. 131). Por isso, a variedade cultural também estaria contida nas concepções feyerabendianas. É nesse sentido que, para Farrell, o pluralismo de Feyerabend também teria implicações no âmbito da filosofia prática: “Tais ideias parecem estar implícitas na defesa feyerabendiana do pluralismo no que tange ao ajuste do pluralismo com uma atitude humanitária” (p. 215). Assim, a metodologia científica, as políticas científicas e mesmo as próprias teorias científicas poderiam ser criticadas “se elas não se mostram compatível com uma visão de mundo ‘humanitária’” (p. 216). Uma filosofia humanitária assumiria o pluralismo em vários âmbitos:

Feyerabend quer pensadores livres, pessoas expostas a tradições diversas, muitos pontos de vista, de modo que os indivíduos possam tomar decisões relativamente livres, informados e sem preconceitos quanto aos objetivos de suas vidas e projetos (p. 132).

1.1.5. A Escola de Hannover: Hoyningen-Huene & Oberheim e o Pluralismo Filosófico Em 1.1.3.3, apresentamos as críticas de Hoyningen-Huene & Oberheim (1999) à Visão Padrão. Os comentadores ressaltaram o caráter “multifacetado” do pensamento feyerabendiano e as “dificuldades praticamente intransponíveis” relativas ao corpus. Concluíram ser um erro “atribuir a Feyerabend qualquer posição particular”. Para eles, o austríaco adotaria uma metodologia filosófica pluralista, portanto, Feyerabend não se comprometeria com “ismos filosóficos”. Tal leitura de Feyerabend como um pensador que emprega um método filosófico pluralista é um dos alicerces teóricos da Escola de Hannover, vertente dos estudos feyerabendianos cujos expoentes são HoyningenHuene & Oberheim.21

21

Empregamos da denominação Escola de Hannover para designar a leitura conjunta de Paul HoyningenHuene e Eric Oberheim sobre Feyerabend. O rótulo nos parece útil porque há alguns pressupostos básicos compartilhados por ambos estudiosos, dentre os quais: a crítica imanente como método filosófico de Feyerabend e o pluralismo como posição epistemológica de Feyerabend. Hoyningen-Huene (em comunicação pessoal) não levantou qualquer objeção a tal designação. A colaboração entre Hoyningen-

42

1.1.5.1.O Método da Crítica Imanente: o ‘estilo filosófico’ de Feyerabend A Escola de Hannover retomou suas críticas à Visão Padrão em HoyningenHuene

&

Oberheim

(2000).

Ambos

destacaram

obstáculos

nos

estudos

feyerabendianos:

Uma avaliação crítica geral da obra filosófica de Feyerabend é extremamente difícil, por vários motivos. Os escritos dele provocaram uma quantidade enorme de interpretações e reações. Em alguns casos, isso decorreu da tendência de Feyerabend em adotar ideias que, em outros momentos, ele criticou […] Dificuldades surgem também porque Feyerabend nem sempre foi honesto sobre sua própria história intelectual (p. 363).

Hoyningen-Huene & Oberheim (p. 368) discutiram algumas das dificuldades específicas da Visão Padrão. Consideram que problemas com Preston decorrem de “mal-entendidos […] muito comuns”. Esses equívocos seriam induzidos, sobretudo, “pela abordagem e estilo de filosofia” de Feyerabend. Um erro específico de Preston (1997) estaria na caracterização da ‘filosofia científica’ de Feyerabend. Essa ideia constituiria, segundo a Visão Padrão, um dos fundamentos da fase inicial de Feyerabend:

Paul Feyerabend mostrou uma concepção [de filosofia] em um dos seus textos iniciais […] A filosofia não pode ser, ao mesmo tempo, científica e analítica. Se uma disciplina é científica, deve ter um objeto e deve ser progressiva, o que envolverá vir a conhecer mais sobre os objetos que abrangem esse assunto. Mas se admitimos que a filosofia é científica nesse sentido e que ela consiste na análise (da linguagem, por exemplo), nenhuma das proposições dela poderiam expressar descobertas. Isso por causa do ‘paradoxo da análise’, que qualquer análise filosófica correta de um conceito deve ser não informativa e qualquer proposição informativa deve ser incorreta […] A filosofia deve escolher entre filosofia analítica e científica (PRESTON 1997, p. 9).

Huene e Oberheim teve início em 1996 e inclui mais de uma dezena de escritos em conjunto, sobretudo sobre o pensamento de Feyerabend e sobre a tese da incomensurabilidade de teorias. Com efeito, a Escola de Hannover se contrapõe frontalmente à hegemonia da Visão Padrão. Ao mesmo tempo, o rótulo faz referência à Leibniz Universität, em Hannover (Alemanha), instituição na qual Hoyningen-Huene trabalhou de 1997 até 2014, quando se aposentou. Oberheim foi pesquisador visitante do entre 1997 e 2000 no Centro de Filosofia e Ética da Ciência (ZEWW), em Hannover, dirigido por Hoyningen-Huene. Para detalhes, ver Oberheim (2006, pp. vii-viii), Hoyningen-Huene (2014, p. 7) e Hoyningen-Huene & Oberheim (2014, p. 87).

43

Os expoentes da Escola de Hannover discordam que Feyerabend teria defendido essa concepção de filosofia científica. O material de referência para essa discussão é o ensaio “A Note on the Paradox of Analysis” (PKF 1956) (OBERHEIM 2006, p. 271). A estrutura do argumento feyerabendiano nesse texto possui quatro partes: i)

Exposição crítica do paradoxo da análise O Paradoxo da análise: A=B&C, como a expressão correta de A. Logo, A e

B&C são sinônimos. A sinonímia de duas expressões implica a possibilidade de troca dos significados das expressões sem mudanças de significado. Com efeito, ‘A=B&C’ seria sinônimo de ‘A=A’. Mas ‘A=A’ é trivial. Assim, uma filosofia que é puramente analítica está fadada a ser trivial. ii)

Proposta feyerabendiana da solução do paradoxo da análise Proposta de solução do paradoxo: distinguir i) contexto semântico e ii) contexto

pragmático: (i) envolve apenas proposições; (ii) envolve proposições e atitudes. O predicado ‘X é trivial’ se inscreveria na classe (ii). Portanto, ‘X é trivial’ adquire sentido no contexto de ouvintes ou falantes; e o conceito de sinonímia é introduzido como uma relação puramente semântica. Sinonímias não devem ser triviais, pois trivialidade é um conceito pragmático (conclusão 1). iii)

Uma consequência específica dessa discussão Consequência específica: aplicação da distinção dos predicados analítico e

científico à filosofia. A filosofia seria analítica se e somente se concerne a análises do tipo A=B&C. A filosofia seria científica se e somente se é interessante, progressiva e informativa sobre seu objeto. Por isso, a filosofia não poderia ser, ao mesmo tempo, analítica e científica. iv)

Hipótese explicativa da causa de filósofos rejeitarem a solução do paradoxo Hipótese: filósofos não aceitariam a consequência específica (em 3) porque

desejam uma filosofia que seja analítica e científica, ao mesmo tempo. Após essa reconstrução, Hoyningen-Huene & Oberheim (2000, p. 369) investem contra a proposta da Visão Padrão, discutindo o estilo argumentativo de Feyerabend: 44

É importante ficar atento àquilo Feyerabend efetivamente acolhe ou não na elaboração desse argumento. Obviamente, qualquer ataque [ao texto “A Note on the Paradox of Analysis”] deve mirar elementos com os quais Feyerabend se compromete. Contudo, no caso de Feyerabend, é extremamente difícil identificar exatamente aqueles elementos porque ele, com muita frequência, usa críticas imanentes, ou, em outras palavras, argumentos ad hominem. Nesse tipo de argumento, o uso feyerabendiano de algumas distinções ou conceitos não necessariamente indica que ele está comprometido com essa distinção ou conceito, no sentido que ele está obrigado a defende-la caso ela seja atacada. A distinção ou conceito pode ser temporariamente adotada, para efeito do argumento, se é parte do argumento ou posição que ele está atacando. Desse modo, Feyerabend apenas pretende mostrar que há uma inconsistência dentre os vários elementos usados pelos seus aniversários. Isso não compromete Feyerabend com qualquer defesa substancial daqueles elementos. Ele somente tem que mostrar (a) que seus adversários estão efetivamente usando esses elementos e (b) que, reunidos, são inconsistentes ou conduzem a consequências as quais são indesejáveis aos seus adversários. Esse modo de argumento é central para a abordagem e o estilo de filosofia de Feyerabend. Em qualquer contexto, esse modo de argumento minimiza seus próprios pressupostos. Isso também demanda uma cuidadosa leitura dos respectivos textos. Acreditamos que a enorme falta de comprometimento associada a esse tipo de argumento é reflexo da profunda busca, por parte de Feyerabend, tanto por independência profissional como pessoal.

Hoyningen-Huene & Oberheim (pp. 369-370) sublinham que o próprio estilo argumentativo de Feyerabend não permite certificar se ele estaria ou não comprometido com as posições que discute. Segundo eles, “Feyerabend certamente não se compromete, direta ou indiretamente, com uma concepção particular de filosofia que ele considera correta”. No final do mencionado artigo de 1956, lemos: “Penso que seria mais apropriado concluir que a filosofia não pode ser analítica e científica, isto é, interessante e progressiva, sobre um objeto, e informativa, ao mesmo tempo” (PKF 1956, p. 95). Todavia, a Escola de Hannover insiste que essa afirmação consiste em um argumento ad hominem:

Afirmamos que Preston não apreciou adequadamente o estilo de argumento ad hominem de Feyerabend ou as consequências que esse estilo tem no que tange ao exame das ideias de Feyerabend. Em nossa visão, o projeto de Preston é um tanto equivocado. Feyerabend advertiu que essa abordagem de suas ideias inibiria o desenvolvimento de questões com pelas quais ele estava interessado (p. 374).

45

1.1.5.2. A consolidação da Escola de Hannover: o ‘Pluralismo Filosófico’ A Escola de Hannover considera a crítica imanente o elemento estruturante da argumentação feyerabendiana (1.1.5.1). Segundo essa leitura, o argumento ad hominem constituiria uma das bases do estilo de filosofia de Feyerabend. Por conseguinte, como Hoyningen-Huene & Oberheim (1999, p. 226) afirmaram, a metodologia filosófica pluralista de Feyerabend colocaria obstáculos à atribuição de algum partido filosófico ao filósofo.22 Com efeito, as duas principais ideias da Escola de Hannover seriam: i) o estilo filosófico de Feyerabend emprega argumentos ad hominem, ou críticas imanentes visando promover o progresso; e ii) Feyerabend esposou uma concepção pluralista de conhecimento. A fonte mais recomendável para detalhar a compreensão da Escola de Hannover é Oberheim (2006). Oberheim (2006) busca “reconstruir a filosofia de Feyerabend” (p. vii). Assim, afastaria a opinião comum segundo a qual o austríaco “simplesmente não tem uma filosofia completamente coerente” (p. 1). Mais importante, suplantaria a imagem de Feyerabend como um “filósofo antifilosofia”. Segundo a Escola de Hannover, Feyerabend seria herdeiro de três pensadores. Feyerabend teria aprendido com Wittgenstein que os “conceitos são unicamente descrições corretas das estruturas reais do mundo” e que “os conceitos que escolhemos usar para organizar a experiência determinam como experienciamos o mundo” (p. 76). A influência de Popper envolveria a lição falsificacionista segundo a qual “a verificação é sempre pura especulação” (p. 83). Uma última influencia, menos conhecida, consistiria na concepção do físico experimental Félix Ehrenhaft, segundo a qual as observações exercem uma “função limitada” no que diz respeitos ao “teste de teorias”. Oberheim considera que Ehrenhaft “não mostrou apenas que os experimentos são insuficientes para desafiar teorias estabelecidas, mostrou também a função necessária que alternativas teóricas exercem em promover o progresso” (p. 121).

Encontramos essa ideia já em Hoyningen-Huene (1997, p. 9): “Em vários contextos, Feyerabend argumentou por meio da crítica imanente [imanente kritisch]. Isso significa que ele levou as posições de um dado interlocutor em consideração, aceitando por um momento os pressupostos daquela posição, tendo em visto iniciar uma crítica, sem, todavia, adotar necessariamente aqueles pressupostos como seus (ainda que essa estrutura nem sempre seja visível, especialmente em seus trabalhos posteriores). A afinidade de Feyerabend com retórica, piadas, observações irônicas, insultos e outros elementos provocativos com frequência tornaram a estrutura dos argumentos dele obscuros, algumas vezes até deturpando o conteúdo dos mesmos”. 22

46

As “mudanças radicais de perspectiva” (p. 31) de Feyerabend produziram um “amplo espectro de interpretações das ideias de Feyerabend” (p. 25). Alguns outros fatores teriam contribuído para o aparecimento dessas “diversas interpretações e avaliações” (p. 27). Por exemplo, “retórica, polêmica e provocações intencionais” (p. 30) dos textos, bem como a “prosa teatral” do autor tornariam “difícil de perceber quando [Feyerabend] estava está expressando uma convicção séria, e quando estava sendo sarcástico para ganhar uma discussão”. Outro elemento remeteria ao fato de Feyerabend adotar ideias de outros autores “sem identificá-los como suas fontes” (p. 39). Mas, provavelmente, a causa mais relevante consistiria na natureza ad hominem das críticas feyerabendianas: “Um argumento ad hominem é uma ‘crítica imanente’. Tal como vemos, o uso de argumentos ad hominem exerce uma função integral no método filosófico de Feyerabend” (p. 37). Segundo Oberheim, a argumentação ad hominem criou dificuldades e ocasionou consequências importantes: “levou a uma crítica inapropriada a Feyerabend” e motivou uma “consequente interpretação equivocada de como as ideias de Feyerabend se desenvolveram”. Com efeito, o estudioso entende que “uma melhor apreciação” do estilo feyerabendiano “poderia ter evitado” a perpetuação de desentendimentos (p. 34). Oberheim defende que Feyerabend empregava argumentos ad hominem visando críticas construtivas (p. 215). Nesse sentido, a essência de seu pensamento consistiria em “encorajar o tipo de crítica de diferentes pontos de vista” (p. 17). A própria tarefa da filosofia seria “desafiar os pressupostos prevalentes” em certos momentos. Uma maneira adotada por Feyerabend de cumprir esse objetivo foi a estratégia de defender teses conflitantes acerca de uma mesma posição. Como escreveu Oberheim, Feyerabend “adotou pontos de vista conflitantes visando empreender críticas imanentes para promover o progresso – sem adesão a qualquer ismo filosófico além do pluralismo” (p. 277). Por isso, na leitura de Oberheim, “Feyerabend nunca estabeleceu uma posição filosófica consistente, tampouco precisava de uma” (p. 208). A forma adequada de caracterizar o pensamento feyerabendiano seria designá-lo como “pluralista filosófico” (p. 24) ou um “oportunista epistemológico” (p. 114):

Para muitos, a filosofia de Feyerabend aparece largamente incoerente por causa das flagrantes inconsistências que contém […] A obra de Feyerabend é, de fato, repleta de

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inconsistências. Não se pode aderir consistentemente aderir às suas várias posições a um e mesmo tempo. Enquanto isso é geralmente reconhecido com relação às publicações pós-1970 de Feyerabend, isso também vale para suas publicações pré1970. Da mesma maneira que no Contra o Método, não se trata de uma busca por estabelecer uma nova metodologia. Consiste em uma série de críticas que Feyerabend reuniu de suas publicações anteriores (p. 207).

A Escola de Hannover considera que a tese da incomensurabilidade de teorias ocupa “um lugar central na filosofia de Feyerabend” (p. 123). Essa noção seria empregada pretendendo desafiar “formas de conservadorismo conceitual” (p. 179). A premissa compartilhada pela tendência conservadora criticada por Feyerabend seria a tese empirista de que o significado dos termos teóricos deriva “unicamente de sua conexão com a experiência, e que a experiência é um fundamento estável (ou imutável) sobre o qual os significados teóricos podem se basear” (p. 130). A crítica feyerabendiana a essa concepção empirista partiria da ideia de que o progresso científico ocasionalmente demanda uma reinterpretação radical dos termos científicos: “Teorias antigas, e os conceitos usados por elas, não são corrigidos e absorvidos, e legitimados após isso. Eles são rejeitados e substituídos, tendo sido falsificados”. Assim, exigir a permanência dos significados das interpretações seria um obstáculo para o avanço do conhecimento. Porém, Oberheim afirma que a defesa feyerabendiana da incomensurabilidade “mudou à medida em que sua filosofia [Feyerabend] se desenvolveu” (p. 133). Em Feyerabend, a incomensurabilidade teria, ainda, uma função metodológica: “Incomensurabilidade de teorias oferece melhores meios para testar os méritos das teorias existentes do que o simples desenvolvimento de alternativas comensuráveis” (p. 235). Assim, Oberheim mostra que Feyerabend elaborou um modelo de teste pluralista no qual as teorias incomensuráveis eram empregadas com vistas a “promover o pluralismo” (p. 236). O amparo epistemológico dessa metodologia pluralista residiria na convicção segundo a qual “incomensurabilidade de teorias é um meio melhor para aprimorar nossas teorias do que a simples confrontação de uma teoria com os fatos” (p. 237). As alternativas incomensuráveis funcionariam como uma maneira de “forçar pontos de vista estabelecidos a encarar potenciais anomalias” (p. 252). Com efeito, a descoberta de “potenciais instâncias refutadoras” de pontos de vista corroborados exigiria a presença de teorias alternativas (p. 253). Nesse sentido, Feyerabend justificaria a superioridade metodológica do pluralismo (p. 247), afinal, a

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inexistência de alternativas reduziria a possibilidade da crítica do conhecimento (p. 248):

O pluralismo ajuda a promover o progresso. Pluralismo ajuda a promover o progresso porque oferece possibilidades mais fortes e nítidas de criticar os pontos de vista existentes do que meramente testar a teoria contra o que percebemos ser os fatos (p. 252). Feyerabend refinou seu argumento geral a favor do pluralismo em um argumento ‘em princípio’ para o pluralismo. Feyerabend argumentou que, ‘em princípio’, é possível que qualquer uma de nossas melhores teorias tenha instâncias de refutação as quais apenas podem ser estabelecidas como definitivamente refutadoras desenvolvendo alternativas a elas. Consequentemente, um pluralismo que promove a crítica construtiva de diversos pontos de vista é sempre metodologicamente preferível a um monismo no qual uma única teoria é testada contra os fatos implicados. O pluralismo é preferível porque promove o progresso (p. 260).

Na interpretação da Escola de Hannover, o argumento pluralista em favor da testabilidade de teorias não corresponderia à posição de Feyerabend. Seria incoerente supor que as noções de proliferação e tenacidade de teorias se unificariam em uma concepção metodológica unitária: “Esses dois princípios fazem recomendações conflitantes” (p. 212), escreveu Oberheim. E completou: “O princípio de proliferação aconselha cientistas a inventar e elaborar muitas diferentes teorias. Isso conflita diretamente com o princípio de tenacidade, o qual recomenda adotar e aderir a apenas uma teoria”. A forma correta de compreender as recomendações feyerabendianas seria considerá-las como prescrições contextuais: “vão depender das exigências da situação particular, não de alguns princípios metodológicos universais abstratos” (p. 213). Os princípios metodológicos aludidos por Feyerabend seriam argumentações ad hominem de regras metodológicas recomendadas por seus oponentes (p. 215). Feyerabend jamais teria proposto que proliferação e tenacidade fossem “parte de uma única nova posição metodológica” (p. 213). O mesmo raciocínio se aplicaria à questão do realismo em Feyerabend. Oberheim nota que essa temática “provou ser um tópico central das deliberações filosóficas” (p. 180) feyerabendianas. Ele reconhece que, nas primeiras obras, Feyerabend considerou o realismo em termos normativos, ou seja, quanto ao “melhor modo de alcançar a meta da ciência” (p. 188). Oberheim salienta que a admissão da

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existência da realidade externa é condizente com as ideias feyerabendianas. Segundo o estudioso, uma delas, inclusive, defenderia que as “observações são causadas pelo mundo externo” (p. 185). Contudo, seria um equívoco considerar o austríaco um realista científico. A melhor descrição do realismo feyerabendiano seria como uma “posição não realista neokantiana” (p. 192). O embasamento dessa interpretação Feyerabend estaria no fato de que Feyerabend aceitou a noção kantiana segundo a qual “nossas concepções de natureza foram inventadas por nós para organizar nosso ambiente”, destacando, porém, que “as categorias que modelam o que experimentamos como reais são historicamente variáveis. Elas mudam no curso do avanço científico” (p. 193). Assim, a aceitação da existência da realidade externa não comprometeu o filósofo com a tese de que “o avanço científico converge em uma teoria verdadeira” (p. 199). Em vez disso, Feyerabend teria incorporado as lições bohrianas quanto à Natureza revelar seus “segredos a abordagens complementares” (p. 205). Ou, em termos feyerabendianos: “o ‘Ser’ responde diferentemente a diferentes abordagens conceituais”. Portanto, assim como no caso da incomensurabilidade, Feyerabend também não teria assumido uma posição realista:

Feyerabend praticou o pluralismo na filosofia, adotando temporariamente diferentes lados da mesma questão, então não seria surpreendente encontrar o realismo científico tendo em vista empreender uma crítica imanente dele, assim como fez de tantas ideias diferentes (p. 186).

A Escola de Hannover considera que o método pluralista de Feyerabend, baseado na crítica imanente e na argumentação ad hominem, estaria a serviço de uma certa postura epistemológica: “Tal concepção pluralista de conhecimento não se enquadra no desenvolvimento de uma única posição filosófica; em vez disso, é melhor sustentada por um método filosófico pluralista adequado” (p. 284). Essa postura pluralista feyerabendiana explicaria a razão pela qual o filósofo jamais “se vinculou particularmente quaisquer posições específicas” (p. 262). O objetivo filosófico de Feyerabend seria, especificamente, “progresso através da crítica construtiva” (p. 280). Para tanto, ele deveria se portar como um “oportunista atento e desejoso por adotar qualquer tese ou método”. Segundo Oberheim, “Feyerabend explicitamente argumentou em favor do pluralismo na filosofia em nome do progresso” (p. 286). Além 50

disso, Oberheim assevera que Feyerabend concebia o pluralismo como uma forma de combater o dogmatismo e fomentar a tolerância (p. 18). Com efeito, Feyerabend poderia abraçar somente tal concepção pluralista de conhecimento:

O conhecimento não é uma série de teorias auto-consistentes que convergem em direção a uma visão ideal, e o avanço do conhecimento não é uma aproximação gradual à verdade […] Na visão de Feyerabend, a ciência é planejada para desenvolver nossas capacidades mentais através de um processo de fomentar uma pluralidade de visões competindo entre si, o que força uma à outra em uma maior articulação (p. 261).

A proposta interpretativa em questão leva à conclusão de que o pluralismo filosófico foi uma constante na obra de Feyerabend, embora, após a publicação do Contra o Método, essa postura tenha adquirido maior destaque (p. 279). De todo modo, não haveria uma ruptura filosófica no corpus feyerabendiano. Oberheim considera que as

mudanças

no

pensamento

feyerabendiano

representariam

mais

um

“desenvolvimento, extensão e radicalização contínuos do que uma absoluta rejeição” (p. 282). Conforme o comentador, “os argumentos que Feyerabend usou em favor de sua concepção pluralista do conhecimento também permanecem idênticos” (p. 283). A produção anterior ao Contra o Método diferiria apenas quanto à intensidade da retórica e no uso de exemplos históricos: “A natureza básica da filosofia tardia de Feyerabend, o progresso através da crítica independentemente da aliança com ismos, é a mesma que foi em seus textos pré-1970”. Assim, seria equivocado separar as ideias que Feyerabend elaborou antes dos anos 1970 daquelas visíveis no Contra o Método:

Há mais no pluralismo filosófico de Feyerabend do que o fato de ele não ser um dogmático convicto quanto a alguma verdade – vinculado a um único ponto de vista. Feyerabend foi como um camaleão, adaptando-se ao panorama filosófico, afinal experimentou mudanças dramáticas (talvez mesmo revolucionárias) ao longo de quatro décadas. Na medida em que sua carreira progrediu, Feyerabend enfatizou cada vez mais seu método filosófico pluralista. Ele foi mais e mais explícito quanto à sua estratégia de adotar temporariamente pontos de vista filosóficos conflitantes, de usar e desenvolver ideias que são mutuamente inconsistentes tendo em vista a crítica dos pontos de vista existentes. É geralmente aceito que Feyerabend praticou esse método filosófico pluralista depois da publicação de Contra o Método. Embora tenha sido muito menos espalhafatoso a esse respeito, ele também praticou um método filosófico pluralista em suas publicações pré-Contra o Método. O estudo detalhado das considerações filosóficas anteriores a 1970, as quais compõem a maior parte dessas investigações, também apresentam ideias inconsistentes devido ao fato de que Feyerabend adotou temporariamente pontos de vista conflitantes e argumentou em favor dos dois lados da mesma questão. Isso é parte fundamental do método filosófico

51

pluralista, complementado e sancionado por sua concepção pluralista de conhecimento. A principal diferença entre publicações pré- e pós-Contra o Método não reside na mudança na concepção pluralista de conhecimento dele ou no método filosófico pluralista (p. 270).

1.2 “Feyerabend diz X”: Estudos secundários O segundo grupo de intérpretes do pensamento de Feyerabend é composto por: (1.2.1) Porfírio Silva, (1.2.2) Malolo Dissakè, (1.2.3) Gonzalo Munévar e (1.2.4) Luca Tambolo. Conquanto alguns desses autores dialoguem com as propostas dos Estudos primários (1.1), as interpretações do corpus feyerabendiano que eles introduzem sejam teoricamente autônomas e conceitualmente inovadoras.

1.2.1 Porfírio Silva e o Pluralismo Radical Silva (1998) situa o pensamento de Feyerabend no quadro dos questionamentos ao empirismo fundacionista. A crítica feyerabendiana àquele programa epistemológico apareceria na recusa da “possibilidade de uma linguagem observacional livre de contaminação teórica” (p. 141). Assim, a experiência imediata não garantiria a significação de sentenças observacionais (p. 157). Os dados dos sentidos não valeriam como fontes estáveis e teoricamente neutras para fundamentar a ciência (p. 162). Tais considerações culminariam na ideia de que a “observabilidade é um conceito pragmático”. Para Feyerabend, a interpretação das experiências não coincidiria com a observação dos fenômenos (p. 183). A interpretação seria um “ato adicional” referente à relação entre experiências e reações. Por isso, as sentenças observacionais que descrevem observações pressuporiam teorias (p. 184). A posição especial dos enunciados de observação decorreria unicamente das “circunstâncias (psicológicas, fisiológicas, físicas) da sua produção, por se conformarem a certos padrões de comportamento” (p. 185). Enfim, o “ataque cerrado” (p. 202) de Feyerabend ao positivismo conduziria à recusa da existência de fundamentos inabaláveis da ciência: “nenhum enunciado será admitido como insusceptível de correção” (p. 203). Como, para Feyerabend, o estatuto da observação se mostraria falível, então todo o conhecimento factual seria passível de correção.

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Outra contribuição de Feyerabend apareceria no abandono da imagem de que o progresso científico ocorre através do aumento acumulativo do conteúdo factual das teorias (p. 205). Para o filósofo, a visão cumulativista pressuporia o princípio da autonomia factual, isto é, a noção segundo a qual fatos independem de teorias (p. 218). Contra essa ideia, Feyerabend argumenta que a investigação científica não envolve unicamente a comparação de teorias com fatos, mas também o uso de hipóteses ad hoc e o recurso a ciências auxiliares (pp. 219-220). Além disso, mostra que alternativas são necessárias para a avaliação das teorias (p. 228). Elas poderiam tanto revelar fatos novos como explicitar fatos que refutam teorias estabelecidas (pp. 228-230). Assim, o estudioso diz que a crítica de Feyerabend ao cumulativismo se basearia na concepção de que o aumento do conteúdo empírico do conhecimento exige a invenção de alternativas (p. 232). O estímulo ao aparecimento de um “conjunto de teorias inconsistentes” combateria o monismo teórico pressuposto no cumulativismo:

Em lugar de um monismo teórico, que exige que a cada momento seja usado apenas um único conjunto de teorias mutuamente consistentes; que restringe a liberdade de invenção teórica, eliminando hipóteses novas por não satisfazerem certos requisitos formais – Feyerabend defende a adoção de uma metodologia pluralista (p. 232).

Silva afirma que a metodologia pluralista de Feyerabend adota o princípio de proliferação (p. 233): a recomendação relativa à invenção de visões alternativas às teorias corroboradas. A proliferação de teorias proporcionaria meios de crítica que não se restringem aos fatos, portanto, permitiriam “uma melhor compreensão das teorias aceites” (p. 233). Apenas com alternativas inconsistentes a tais teorias seria possível “desenhar testes de teorias aceites”. Por isso, na ótica do filósofo, se o empirismo buscar aumentar o conteúdo empírico da ciência, então seria indispensável a adoção do princípio da proliferação. Diversas hipóteses concorrentes teriam uma função heurística, elas indicariam formas alternativas de “interrogar a natureza” e de direcionar a pesquisa futura. Silva resume a metodologia pluralista de Feyerabend:

Adotando o princípio de proliferação, a unidade metodológica a considerar em questões de teste e conteúdo empírico deve ser todo um conjunto de teorias, com domínios parcialmente sobrepostos, aspirando a mostrar-se factualmente adequadas, mas mutuamente inconsistentes […] A compreensão de uma teoria é mais profunda

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quando considerada como elemento de um conjunto de alternativas, na medida em que se torna mais claro o que é negado por essa teoria. Por isso, o desenvolvimento de teorias alternativas é desejável, não apenas para atacar problemas não resolvidos por teorias admitidas, mas também tratar problemas que hoje damos por resolvidos pelas teorias em uso e independentemente do grau de sucesso que elas pareçam obter. Esta orientação evidencia que o princípio de proliferação identifica uma estratégia ativa para atacar as dificuldades com o chamado ‘conhecimento de base não problemática’ (p. 234).

Contudo, Silva considera que a metodologia pluralista de Feyerabend não recomenda apenas a invenção de alternativas, ou seja, seu “âmbito de aplicação” não se restringe a propor “novas teorias” (p. 236). A metodologia pluralista incluiria, ainda, o princípio de tenacidade: “manter uma teoria” que parece frutífera, mesmo que diante de dificuldades (p. 267). O estudioso destaca que a tenacidade “não é um mero reforço do princípio da proliferação”. A tenacidade impediria que teorias antigas ou refutadas sejam eliminadas. Assim, para Feyerabend, a ciência seria a “justaposição […] de tenacidade e proliferação” (p. 238). Silva escreve que essa perspectiva

corresponde à ideia da presença de duas tradições no trabalho científico: uma tradição mais crítica, filosófica, pluralista; uma tradição mais prática, que procura explorar ao máximo as potencialidades de um dado material sem ser desviada por alternativas ou detidas pelas dificuldades (mesmo que tenha de as ignorar ou eliminar com aproximações ad hoc) (p. 238).

Silva também entende que Feyerabend defendeu que o progresso do conhecimento envolveria “modificações das teorias anteriores”. Tais mudanças teóricas atingiriam “o nível do sentido dos principais termos descritivos” (p. 246). Essa mudança do significado dos termos científicos seria um indício de progresso. Mudanças lexicais indicariam a “restruturação de uma linguagem para que sirva de meio de expressão a uma nova teoria” (p. 247). O comentador explica:

a introdução de teorias melhores vai de par com a introdução de violações dos princípios das teorias que se pretendem substituir – e esse processo muitas vezes implica a variação de sentido dos termos comuns a ambas as teorias […] Se, mais que isso, as teorias forem elas mesmas mutuamente inconsistentes (o que é estimulado pelo princípio de proliferação) e contiverem termos fundamentais que não possam ser ligados por hipóteses empiricamente corretas e com sentido, o sentido de cada termo será diferente numa e noutra teoria […] Diremos, neste caso, que essas teorias são incomensuráveis (pp. 247-248).

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A tese feyerabendiana da incomensurabilidade indicaria um afastamento profundo com relação ao “modelo acumulacionista de interpretação do crescimento do conhecimento” (p. 248). O progresso dependeria essencialmente da substituição da ontologia das teorias (p. 250), não uma acumulação de dados factuais. Então, Silva observa que a metodologia pluralista de Feyerabend estimula a presença de teorias incomensuráveis: a “incomensurabilidade […] resulta num alargamento do princípio de proliferação” (p. 252). Feyerabend valorizaria a invenção de teorias incomensuráveis e de alternativas mutuamente incompatíveis. Deste modo, é possível notar que “a proliferação não apenas admite a incomensurabilidade: a proliferação estimula a incomensurabilidade” (p. 253). Entretanto, essa tese da incomensurabilidade em Feyerabend também exige um realismo hipotético. Para o estudioso, o “realismo hipotético é um realismo epistemológico, heurístico”. Isso significa que ele funciona como fonte de “estratégias de investigação e fornece sugestões para a solução de problemas” (p. 256). Então, o realismo de Feyerabend não seria um realismo ingênuo, porque não assume que “o ‘mundo’ de uma teoria” é verdadeiro. Na visão de Silva, “para Feyerabend, o realismo é em si mesmo uma hipótese”. Após explicitar os “mais relevantes contributos” do pensamento de Feyerabend, Silva aborda o “sentido fundamental” da obra feyerabendiana (p. 295): o anarquismo epistemológico e o relativismo. O primeiro ofereceria uma síntese da filosofia de Feyerabend, enquanto o segundo é caracterizado como um desvio relativo à dimensão política daquele autor. Quanto ao anarquismo de Feyerabend, Silva analisa a interpretação negativista segundo a qual “a investigação científica seria um procedimento completamente anárquico, desprovido de quaisquer regras” (p. 286). Porém, Silva reforça que o vale tudo afirmado por Feyerabend não significa que a ciência não deva ter regras e padrões. Feyerabend aceitaria que “regras também proporcionam sucessos: certas regras e procedimentos realmente produzem resultados e ajudam os cientistas na investigação” (p. 297). O anarquismo rejeitaria unicamente a universalização dos padrões metodológicos (p. 305), não seu valor limitado. Portanto, Feyerabend jamais teria dito que “essas regras deveriam ser universalmente excluídas da prática científica” (p. 298):

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Na perspectiva de Feyerabend, tentar antecipar todas as regras e procedimentos que devam servir para uma prática concreta de investigação equivale a não fazer justiça à riqueza e complexidade desse processo. A investigação tem sua própria dinâmica, de tal modo que pode avançar mesmo na ausência de um conjunto de regras perfeitamente explicitadas e pode ser fonte de procedimentos novos e que anteriormente não tinham sido considerados (p. 298).

A leitura de Silva compreende a obra de Feyerabend como um alargamento do falibilismo. O filósofo não atacaria apenas a imagem de que uma teoria científica seria “definitivamente comprovada como verdadeira”. Ele também recusaria a expectativa de um método científico “uniformemente adequado a todas as circunstâncias da investigação científica” (p. 299). Essa versão radical do falibilismo apareceria claramente na crítica pluralista do método científico. Nesse sentido, o anarquismo de Feyerabend libertaria “a reflexão acerca do método científico de uma dependência forte da

associação

método/algoritmo,

aproximando-a

mais

da

associação

‘método/estratégia’” (p. 203). A pluralidade dos métodos seria, pois, um pressuposto do falibilismo radical de Feyerabend: “o que Feyerabend critica não é o uso de regras de método, mas a pretensão de, universalizando-as, tomá-las como garantia absoluta e fixa de racionalidade e progresso da ciência” (p. 305). O outro tópico analisado por Silva consiste no relativismo de Feyerabend. Silva afirma que, em meados dos anos 1970, “a temática do papel da ciência na sociedade […] emerge como linha central do pensamento de Feyerabend” (p. 308). Essencialmente, o filósofo questionou o “poder cognitivo” da ciência e debateria a ciência enquanto “instrumento de poder”. Para Feyerabend, a “modalidade de interação” do Ocidente com outras formas de vida havia sido a dominação militar e a submissão de outras culturas. Assim, a superioridade da ciência decorreria, sobretudo, da dominação social e política:

A ciência foi incluída no inventário dos instrumentos de dominação: deu importantes contributos para a nossa compreensão do mundo […] Mas isso não se deveu apenas à superioridade da ciência, tendo passado também pela supressão física de tradições rivais; pela negação de uma competição livre entre culturas, impedindo uma efetiva comparação de sua eficácia e de suas realizações; pelo recurso ao poder e à força para submeter culturas ocidentais e não científicas (p. 309).

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Partindo dessas conclusões, Feyerabend teria proposto um projeto de sociedade livre, ideal cuja essência consistiria na tese de permitir a “todas as tradições direitos iguais, igual acesso à possibilidade de educar e igual acesso ao poder” (p. 309). Silva observa que, para o filósofo, entretanto, a “racionalidade é ela própria uma tradição” (p. 310). Portanto, nossa forma de vida não poderia ser considerada a “medida de excelência de todas as tradições”. Feyerabend defenderia a “tolerância como um valor que deve reger a relação entre as culturas”. Essa tolerância, por sua parte, seria “assumida como um relativismo” que deveríamos adotar “como remédio contra a arrogância”. Entretanto, Feyerabend teria abandonado a distinção entre “relativismo político e epistemológico” nos anos 1980. De um lado, ele radicalizará o relativismo político. Isso permitiria uma defesa de que o “valor e o uso” dos “instrumentos que a ciência disponibiliza” deveria ser uma “decisão que cabe aos cidadãos”. Os pareceres de peritos e especialistas não se sobreporiam à “opção democrática dos cidadãos” (p. 312). Silva sublinha que na abordagem democrática os conhecimentos dos peritos “podem ser criticados por tenderem a conduzir a decisões que não tomam em consideração todos os aspectos dos problemas, por serem demasiado especializados para serem convenientes ao interesse dos indivíduos ou da sociedade como um todo” (p. 312). A opinião feyerabendiana seria a de que a questão da utilização dos produtos da ciência dependeria dos “cidadãos afetados por tal decisão”. Portanto, “os peritos não podem […] fugir do controle democrático” (p. 313). Por outro lado, ele tornará mais radical o relativismo epistemológico: nem mesmo a eficácia da ciência suplantaria a “resolução de problemas proporcionados por culturas não científicas”. Isso levaria, inicialmente, à “defesa da impossibilidade radical de comparar ciência e não ciência”. Posteriormente, Feyerabend defenderia que “não existe uma realidade” (p. 314). Outra concepção feyerabendiana seria a noção de que “o mundo é construído pelos humanos” e que “a realidade é essencialmente mutável”:

A proliferação teórica do pluralismo metodológico anteriormente proposto por Feyerabend é agora reduzido a uma prescrição obrigatória: não se acentua que as alternativas são admissíveis e que a sua introdução pode contribuir para o progresso do conhecimento – dá-se por adquirido que elas estão sempre disponíveis e que são melhores do que as suas rivais (p. 316).

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Silva esclarece que Feyerabend empreendeu uma “reconsideração dos temas relativistas” (p. 317). O filósofo preservaria a premissa que há uma interação das teorias cientificas com a realidade. Ele ainda aceitaria que não existe uma “única [realidade] possível”. Contudo, o estudioso mostra que Feyerabend já não aceita que “qualquer rede de teorias seja igualmente válida”. Então, o comentador entende que “o realismo de Feyerabend permanece um realismo hipotético”. Por mais que Feyerabend entendesse que não existe uma “única maneira de abordar o mundo físico” (p. 318), nesse momento ele aceitaria que as ações encontram resistência: “a ‘resistência’ detectada pela ação humana torna razoável considerar a existência de uma realidade pelo menos até certo ponto independente dessa ação” (p. 319). No olhar de Silva, esse “regresso ao realismo” (p. 318) remonta à ideia de que “existe uma realidade e que ela é mais moldável do que é assumido pelos objetivistas” (p. 320). Assim, o “caráter hipotético do realismo feyerabendiano” viria acompanhado por uma “reconsideração do relativismo” (p. 320). Feyerabend defendeu que “mundo (o Ser) não pode ser redutível a uma substância universal, nem a leis universais e imutáveis”. Entretanto, não aceitou que “as asserções são todas igualmente verdadeiras ou igualmente falsas” (p. 322). Silva destaca como essa alteração do relativismo epistêmico feyerabendiano se relaciona com uma rejeição do fundacionalismo (p. 321). O relativismo democrático seria considerado por Feyerabend o reflexo “dos vícios de uma consideração meramente abstrata e simplista” (p. 323). Não obstante, Silva aponta que “Feyerabend continua a defender que [a interação entre culturas] seja regida pela tolerância, mas não por uma tolerância indiscriminada e sem critério, não por uma ‘tolerância’ que leve a um falso respeito por qualquer forma de vida” (p. 323). O trecho abaixo sintetiza a leitura de Silva sobre a filosofia de Feyerabend:

A filosofia da ciência de Paul Feyerabend é captada em seu sentido mais profundo se for encarada como um alargamento do falibilismo: não só as teorias científicas são sempre insusceptíveis de serem comprovadas como verdadeiras, como os próprios métodos da ciência mudam com o tempo e as circunstâncias – de tal modo que, embora seja possível analisa-los a posteriori, na tentativa de reconstruir as razões dos procedimentos adotados em episódios passados, não é possível garantir a priori o sucesso nem a justeza de nenhuma regra metodológica, nem classificar como científica (ou não científica) uma teoria ou um procedimento com base na conformidade (ou não conformidade) a um dado método universal e imutável […] É para o interior dos próprios processos e dinâmicas de investigação científica que se dirige a proposta de Feyerabend, através da defesa de uma metodologia pluralista; da tentativa de demonstrar as vantagens da proliferação de teorias alternativas; da recomendação de

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procedimentos contra-indutivos como estratégia possível para alimentar as abordagens críticas, mesmo das teorias mais amplamente aceites como fiáveis (pp. 325-326).

1.2.2 Malolo Dissakè e o Pluralismo Antifundacionista Dissakè (2001) questiona se o corpus de Feyerabend exibe apenas uma “coleção desagregada” de tópicos ou se há alguma constância subjacente às “múltiplas variações” (p. 5). O comentador reconhece que essa “questão da unidade é extremamente complexa”, especialmente porque o estilo feyerabendiano (o que inclui polêmicas, ironias e provocações) tornaria praticamente “impossível saber o que Feyerabend realmente pensa” (p. 6). Os argumentos “às vezes contraditórios” de Feyerabend levariam à impressão de uma “incoerência perpétua”. As “qualificações englobantes” se mostrariam “bastante redutoras”, tendo em vista que ele produziu uma “obra rica e abundante” (p. 7). Uma trilha interpretativa buscaria uma “arqueologia das posições do filósofo” (p. 12). Em termos biográficos, a formação de base de Feyerabend (centrada na leitura de Bohr, Reichenbach, Einstein, Schroedinger, Heisenberg, Mach, dentre outros) explicaria sua “acusação ad nauseam de que os filósofos” ignoravam a prática científica efetiva. A relação de Feyerabend com as artes influenciaria o fato da filosofia dele encorajar “a criatividade, o pluralismo e o anarquismo” (p. 14). Na mesma linha, a participação de Feyerabend na 2ª Guerra Mundial influenciaria as críticas dele ao “humanismo abstrato”, ao “elitismo, à tirania dos especialistas e dos intelectuais, e mais genericamente ao autoritarismo”:

O pluralismo que ele professa no plano epistemológico parece encontrar seu prolongamento natural na aplicação à diversidade cultural, especialmente em um autor para quem os discursos sobre a ciência nunca estão distantes de envolver posições políticas, dado que elas possuem relações com a vida das pessoas e com a organização da sociedade. Ao relativismo epistemológico, efeito natural da reflexão feyerabendiana, corresponderá também uma versão democrática que traz a demanda de que cada uma das comunidades unidas em um universo social se ocupe de suas próprias relações, o que implica forçosamente uma redefinição do lugar e da função da ciência (p. 16).

Tal investigação arqueológica do corpus também concerne à produção de Feyerabend. Como Dissakè entende, os escritos iniciais “já apresentam a arquitetura do que Feyerabend defenderá anos depois” (p. 17). Temas e premissas dos primeiros anos

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seriam apenas “reimpressas, ampliadas ou atenuadas” posteriormente. O estudioso assevera que “não há, em Feyerabend, um único tema central cuja genealogia não possa ser traçada”. Isso contrastaria com as próprias descrições feyerabendianas acerca de sua própria obra: “[Feyerabend] aparece como bastante coerente, sobretudo analítico, porque procede, efetivamente, de uma fonte principal que constitui, de resto, a base própria de sua unidade” (p. 18). Tal unidade do pensamento de Feyerabend poderia ser achada inclusive “nas fontes do seu pensamento”. A origem a partir da qual Dissakè reconstrói o conjunto da obra de Feyerabend remete à filosofia austríaca: Feyerabend “seria, então, uma encarnação das posições do Círculo de Viena”. Para Dissakè, “a influência desse Círculo é determinante para Feyerabend até o fim” (p. 19):

Desse modo, Feyerabend encontra o tema do pluralismo, que consiste na tese principal do Contra o Método, a tese da desunidade da ciência cujas consequências relativistas constituirão o que designamos como a segunda filosofia de Feyerabend. Assim, podemos destacar que o filósofo reconhece bastante claramente, sobre aspectos particulares, suas ideias como efeitos tardios do que escutou anteriormente, em particular do Círculo de Viena (p. 21).

Para o estudioso, Feyerabend retornou constantemente à mesma base (p. 22). Nesses termos, seria possível reconhecer a unidade dos trabalhos de Feyerabend (p. 24). O filósofo seria uma espécie de “discípulo dissidente” do Círculo de Viena, na medida em que desenvolveu críticas gerais à tradição neopositivista (p. 25):

Em todo caso, o filósofo parece enfrentar, em seu íntimo, a abordagem vienense. A ideia de desunidade da ciência, que atravessará seus trabalhos, remete, nem mais nem menos, ao programa do Círculo de Viena, um tema em relação ao qual seus membros, como sabemos, se debruçaram de maneira incansável e do qual a Encyclopaedia of Unified Sciences é um dos frutos. Então, o perfil feyerabendiano tem uma posição de fundo; ela se caracteriza como uma reserva quanto à atitude geral que consiste em levar a ciência ou o conhecimento aos seus fundamentos, e a partir deles justificar, em nível metateórico, o valor geral desse conhecimento, sua importância ou como ele é constituído. Essa atitude, expressa em Um Conhecimento sem Fundamento, a qual denominamos de antifundacionista, reúne a crítica ao racionalismo e ao empirismo; mas é também esse texto que o instigou a não considerar a ciência como fundamento de nosso corpo político e de nossa sociedade, e a recusar que eles devem recorrer aos cientistas e aos especialistas para legislar quanto a assuntos sociais, deixando o cidadão comum de lado; ademais, é essa atitude que encontramos quando são contestadas as pretensões da filosofia em estabelecer a abordagem científica como o guia da vida (pp. 25-26).

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Feyerabend pretenderia transformar de uma vez a epistemologia tradicional. Para tanto, o autor criticaria a “exigência fundacionista” (caracterizada pelo “desejo de certeza”) tendo em vista elaborar uma “epistemologia ‘razoável’ à qual acompanhe uma verdadeira abordagem democrática da sociedade” (p. 27). A ideologia empirista sustentaria que a experiência seria a autoridade que “garante, justifica, confirma ou infirma” uma teoria verdadeira (p. 28). Essa concepção presumiria que os dados seriam incontornáveis e constituiriam a base factual do conhecimento (p. 29). As teorias seriam confrontadas com os dados empíricos e o valor delas seria determinado pela “conformidade aos fatos, do acordo delas com as observações e as experiências” (p. 32). Em outros termos, o confronto com os fatos seria a “condição de aceitação de uma teoria” (p. 33). Mas, para Feyerabend, haveria uma ligação estreita entre fatos e teorias, de modo que pressupostos teóricos afetariam “nossa definição do mundo e da realidade” (p. 34). Dissakè considera que a posição feyerabendiana afirmaria que “a teoria não apenas exprime ou contamina os fatos, mas os constitui” (p. 35). Não haveria qualquer autonomia teórica dos fatos e, consequentemente, a tentativa de comparar as teorias com os fatos fracassaria: “os fatos são eles mesmos teóricos, a prioridade do fato sobre a teoria simplesmente não se justifica” (p. 36). O desacordo com fatos não seria, então, um critério definitivo para a avaliação de teorias (p. 37). A distinção entre os níveis observacional e teórico do conhecimento científica não se estabeleceria inequivocamente. Para o filósofo, essa distinção seria pragmática: “a teoria semântica da observação parece conduzir a um conhecimento indubitável, traço que aos olhos de Feyerabend, que contesta o falsificacionismo sem o rejeitar por completo, será decisivo contra ela” (p. 39). Segundo Feyerabend, as teorias comporiam a ontologia e uma transformação nessa ontologia transformaria “a significação de todas nossas medições” (p. 43). A proposta feyerabendiana apontaria para uma “renovação da doutrina” empirista (p. 49). O “bom empirismo” planejado pelo filósofo rejeitaria o dogma do empirismo clássico de que a experiência seria unívoca (pp. 50-53). A avaliação do conhecimento demandaria a “concorrência de teorias novas” e o abandono da “sacralização dos fatos e, assim, do conservadorismo que isso implica” (p. 54). Dissaké destaca “é muito difícil de reconstruir a posição feyerabendiana sobre o realismo” (p. 60). Mesmo assim, seria possível reconhecer que “ele não admite” a concepção segundo a qual “o objetivo da ciência é a verdade” (p. 62). Dissakè esclarece

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que, para o autor, a ciência não teria uma meta unatária porque “a ciência não é uma atividade única”:

Como conceber uma meta única para um conjunto de atividades que frequentemente não guarda relações entre si? A meta da ciência depende, sobretudo, dos agentes da ciência e, por conseguinte, dos engajamentos deles, de suas biografias, problemas e moralidade, do círculo de trabalho no qual trabalham, das condições de financiamento da pesquisa, todos esses fatores que exercem efeitos diretos, o tempo todo, sobre os resultados científicos e sobre a representação que temos ou devemos ter dela. Assim, vemos que a meta da ciência deveria se definir a cada vez em nível local, o que elimina automaticamente todo o sentido da questão, uma vez que o que encontraremos localmente será estritamente a meta de tal prática científica definida. De todo modo, para um filósofo para quem […] nossa forma de fazer e de compreender a ciência deve estar ligada à forma como aspiramos viver, a meta da ciência não pode ser a abstração da verdade, o que gera a ilusão de ser universal e se impor universalmente. Se devemos e temos uma meta da ciência onde a epistemologia e a política são tratadas em conjunto, onde a ciência é uma atividade entre outras e não merece tratamento diferenciado, ela deve ser precisamente a mesma que é o fundamento dos fundamentos da teoria moral […], a saber, a vida boa, a felicidade ou a realização plena das capacidades humanas. Também não surpreende que, ao considerar essa meta, Feyerabend tenha questionado justamente a eficácia da ciência para realiza-la (p. 63).

Dissakè entende que as inquietações de Feyerabend quanto ao tema da verdade envolvem uma “prevenção quanto ao dogmatismo e seus excessos” (p. 64). Uma expressão desse dogmatismo seria exclusão de concepções alternativas: “Para um empirista, algo que Feyerabend teria sido por todo o tempo, toda prática que reduz o conteúdo empírico é desastrosa”. Assim, “abordagem positiva da metodologia” elaborada por Feyerabend recomendaria o pluralismo para ampliar o conteúdo empírico (p. 69). A demanda de testabilidade apareceria como o principal objetivo feyerabendiano. Na leitura de Dissakè, os princípios essenciais da concepção de Feyerabend incluiriam a “proliferação, o realismo” e “levar refutações a sério”. A unidade metodológica pensada pelo austríaco “não será aquela que se refere a uma teoria”. Para ele, a metodologia científica refletiria “um conjunto de teorias, realizando esta tripla condicionalidade: não sobreposição, adequação factual e desacordo mútuo” (p. 70). Entretanto, o Contra o Método ilustraria uma “ruptura com esse tipo de interesse”. Com esse livro, Feyerabend contestaria tanto a visão popular da ciência quanto um dogma

científica. O ponto central decorreria do fato de que “a ciência

não é unitária, mas múltipla” (p. 72). Em termos práticos, a ciência incluiria diversos problemas, questões, lugares, financiamentos, grupos de pesquisa etc. Além disso, a ciência se revelaria também historicamente múltipla: “Não existe, pois, um método 62

científico, há, evidentemente, muitos, os quais derivam da própria diversidade de condições em que a ciência é realizada” (p. 73). Essa rejeição feyerabendiana do monismo não conduziria a uma “filosofia do antimétodo” (p. 75) ou a um permissivismo no qual “tudo tem o mesmo valor”. Feyerabend recusaria a concepção de que a ciência consiste em “uma atividade governada por normas racionais” de caráter universal (p. 79). O filósofo consideraria essa visão empobrecedora porque ela comportaria a tendência de “substituir todas as formas de vida por apenas uma tradição abstrata” (p. 80). Ainda que Feyerabend aceitasse que a ciência “obteve resultados” (p 81), ele apresentava uma “justificativa política” para tal crítica: definir a racionalidade levaria à identificação de doutrinas verdadeiras e à “exclusão das falsas”. O filósofo rejeitaria essa utilização da ciência em uma ferramenta do “único valor civilizacional” (p. 85). A racionalidade não deveria se converter em um “instrumento de dominação”, empregada visando “impor às pessoas não ocidentais a vida ocidental”. Com efeito, esse ataque a uma “idealização da razão” não faria de Feyerabend um irracionalista (p. 87). Para o filósofo, “a razão e os procedimentos ditos racionais não cobrem a totalidade do território da investigação e da prática científica, bem como não são uniformemente eficazes” (p. 88). O combate feyerabendiano aos limitantes “cânones da racionalidade” representaria um “combate à nossa tendência ao conservadorismo”. Para que a ciência seja criativa, seus padrões de racionalidade e metodológicos não poderiam ser predefinidos (p. 89). O motivo da obra feyerabendiana ser considerada incoerente refletiria o fato de que “frequentemente Feyerabend fala o idioma de seus adversários sem jamais aderir à posição deles” (p. 93). Para o estudioso, “o oportunismo é, sem dúvidas, a noção mais clara e menos contaminada” para qualificar o pensamento de Feyerabend. A expressão do oportunismo feyerabendiano apareceria no princípio vale tudo do Contra o Método. A ideia básica seria a de que qualquer procedimento “é suscetível de fomentar o caminho da ciência” (p. 95). A ciência incorporaria práticas plurais: “Esse é o oportunismo constitutivo da prática científica real; ele ensina que todos os métodos são benvindos” (p. 96). Dissakè afirma que o pluralismo metodológico feyerabendiano teria sua “contraparte política”: a promoção de uma concepção liberal da ciência (p. 97). Nesse sentido, Dissakè reitera que as críticas de Feyerabend ao racionalismo conduziram-no à questão da diversidade cultural (p. 98). As posições relativistas do filósofo poderiam ser distinguidas em três partes. O relativismo prático afirmaria que 63

“a ciência é uma tradição e comporta tradições” (p. 99). O relativismo democrático envolveria a crítica de Feyerabend ao privilégio dos intelectuais e experts na sociedade. Segundo Feyerabend, isso conduziria a “procedimentos antidemocráticos”: Feyerabend buscaria restringir “o poder dos especialistas” e “restituir ao homem comum, ao cidadão, o direito de decidir as questões que comprometem sua existência” (p. 100). E o relativismo epistêmico, segundo o qual os resultados de certas concepções “são bons para nós porque aderimos” a elas (p. 101). Entretanto, o estudioso assinala que Feyerabend renúncia e abandona esse ponto de vista. De resto, tais mudanças de perspectiva seriam naturais na obra de um filosofo que “professou o pluralismo, a proliferação e a necessidade de permitir a cada ser humano ou comunidade” (p. 103) a possibilidade de mudanças. Dissakè sustenta que, para Feyerabend, “o fundamento da epistemologia é a ética, no coração da qual reside a boa vida e a felicidade do ser humano” (p. 91). Por isso, o austríaco combateria quaisquer epistemologias que fossem “indiferentes aos destinos da vida humana” (p. 92). Essa perspectiva estaria presente na resposta de Feyerabend à “questão das questões da epistemologia: O que é a Ciência?”. O ponto de vista feyerabendiano assinalaria que, de forma geral, “a ciência é um conhecimento sem fundamento” (p. 112). Mas não haveria uma base para a afirmar a homogeneidade da ciência. Segundo explica o estudioso, empregar a própria noção de ‘Ciência’ seria inadequado. Tal concepção da desunidade da ciência apareceria como uma “tese matriz” para Feyerabend (p. 113): “os cientistas diferem também quanto a ideologias ou culturas”. Essa conclusão impediria uma “caracterização geral da atividade científica”. Segundo o modelo da proliferação de Feyerabend, a ciência não corresponderia a “um processo convergente em direção a alguma concepção ideal”. Feyerabend valorizaria ideias “que não são científicas” (p. 115) contra o “monismo de um esquema único” (p. 116). Diferentes pontos de vista embasariam um “pluralismo de um mundo aberto sustentado por diferentes representações”. Assim, as ciências consistiriam em tradições históricas (p. 118): “a explicação da ciência não será simples, mas deverá integrar circunstâncias sociais, acidentes e idiossincrasias pessoais”. O “anti-autoritarismo” de Feyerabend poderia ser visto em sua descrição das ciências como uma “prática sem autoritaridade”. E seu “antidogmatismo” decorreria do “revisionismo absoluto” baseado na “convicção falibilista”. Para Feyerabend, tanto “ideias como experiências são errôneas”, portanto, não existiriam “demandas restritivas 64

[…] absolutas e irrevogáveis”. Na descrição de Dissakè, Feyerabend entenderia que as ciências são “práticas situadas, parciais, não universais” impregnadas por “condições subjetivas, psicológicas ou históricas” (p. 119). Essa concepção contrastaria, no fundo, com uma “imagem inocente das ciências” (p. 121). A visão feyerabendiana insistiria na vinculação entre ciência e vida, na legítima passagem de uma epistemologia pluralista para a ética: “A cultura plural na ciência tem sua contrapartida no plano social” (p. 122). Esse pluralismo social apontaria para o que Dissakè designou como “uma verdadeira democratização”: um controle não elitista e democrático das tecnociências (p. 124). A “segunda laicização” planejada pelo pluralismo do filósofo visaria a separação entre ciência e Estado. Essa crítica ao poder ideológico da tradição racionalista decorreria da convicção segundo a qual “a ciência é uma tradição entre outras”. Com efeito, o tipo de pluralismo pretendido por Feyerabend envolveria uma “crítica do especialista” e uma valorização da figura do “homem comum, do cidadão”. O “papel central da ciência nas sociedades ocidentais” não legitimaria a exclusão de formas de vida não científicas (p. 125). Práticas “à margem ou contrárias” à ciência não deveriam ser eliminadas: o antifundaciosmo de Feyerabend afirmaria, portanto, que “a ciência não cobre todos os domínios da existência humana” (p. 126).

1.2.3 Gonzalo Munévar e o Pluralismo Generalizado Munévar (2006, p. 10) reconhece que a obra de Feyerabend abarca versões alternativas. Essa variedade de pontos de visa seria coerente com o pensamento de um autor que valorizou a diversidade: “de todos os filósofos do mundo, nenhum defendeu o pluralismo e a variedade de opiniões como Feyerabend”. Entretanto, o comentador entende que uma parte dessas interpretações seria insustentável: “poucos filósofos foram tão mal interpretados como o próprio Feyerabend” (p. 116). Na opinião de Munévar, alguns desses enganos decorreriam do fato de Feyerabend mudar frequentemente de ponto de vista: “Feyerabend mudou de opinião sobre vários assuntos ao longo de sua carreira, algumas vezes drasticamente”. Na visão de Munévar, as transformações intelectuais seriam naturais, sobretudo no caso de Feyerabend: “Ele tinha o direito de crescer intelectualmente – como gostava de enfatizar, de provar muitas possibilidades. Isto é o mínimo que deveríamos esperar de um proponente hábil do pluralismo”. Consequentemente, seria inapropriado buscar por uma “teoria sobre a 65

filosofia de Feyerabend”. Conforme essa leitura, a tentativa de definir o conteúdo do pensamento feyerabendiano teria “desagradado muitíssimo” o próprio filósofo:

Feyerabend desgostava das teorias do conhecimento porque concebia que o conhecimento, sendo uma parte complexa da vida humana, estava sempre em processo de mudança, como esperado. Rejeitou o relativismo porque o relativismo era uma teoria do conhecimento. Por isso, não ficaria satisfeito em pensar que sua ‘vida filosófica’ poderia ser ‘fixada’ tão facilmente em um único ensaio, que uma descrição ‘pura’ dela poderia ‘congelar’ tão facilmente o que havia sido fluido e aberto.

Munévar se empenha essencialmente em destacar as principais contribuições de Feyerabend para a filosofia. A primeira e mais importante contribuição feyerabendiana teria sido asseverar que “não há método ou regra que possa capturar o que seja a ciência” (p. 29). A gênese dessa ideia estaria na apreciação histórica da tradição empirista. Nessa tradição, “a experiência é o juiz da teoria” e “uma teoria em conflito com a experiência é inaceitável” (p. 117). Mas, na leitura de Feyerabend, a Revolução Copernicana mostraria a incorreção da “história empirista da ciência”. Galileu teria contrariado a regra metodológica que estabelece a “prioridade da experiência” (p. 32). Contra a suposição empirista, o cientista teria sugerido que o movimento de queda livre possuiria dois componentes: um que percebemos (a queda vertical) e um imperceptível (a inércia circular): “A pedra apenas parece se mover [em linha reta]; o movimento real dela é muito mais complicado” (p. 118). Assim, Galileu teria construído “uma nova base empírica” (p. 119): “O que permitiu a mudança foi, em parte, uma mudança de suposições teóricas. Mais especificamente, Galileu mudou o conceito de movimento”. Portanto, esse exemplo indicaria que “a razão pode mudar o veredicto da experiência”. Isso abriria a possibilidade de validar o uso de sentidos artificiais (como o telescópio) no campo científico: “[Galileu] solucionou o conflito negando o testemunho de seus olhos e se aliando com o sentido que coincidia com Copérnico, o telescópio” (p. 120). Mas a validação dos sentidos artificiais também precisava de um suporte teórico que Galileu não possuía: “Galileu necessitava de teorias de apoio sobre óptica, a natureza da luz e da atmosfera, a interação entre a luz e diversos gazes, sobre o telescópio e sobre a percepção” (pp. 121-122). Assim, o feito de Galileu teria uma dupla importância para Feyerabend. Primeiro, mostrar que é um erro considerar indubitável o “veredicto da experiência” (p. 66

32). Contra o empirismo ingênuo, Feyerabend argumentará que a “percepção visual é um processo complexo”. ‘Ver’ envolve “uma variedade de suposições teóricas” (p. 123). Segundo, indicar que a referida regra metodológica empirista “deve ter exceções” (p. 32). Como Munévar salienta, “se o método requer a prioridade da experiência, o método teria fechado para sempre o caminho a um ponto de vista o qual não se poderia estabelecer sem que se recusasse uma experiência já aceita” (p. 32). Em síntese, Feyerabend diria que a “mais elaborada ideia referente à prática da ciência precisa permitir exceções” (p. 29). O exemplo de Galileu forneceria evidência histórica para a ideia de que “os grandes cientistas não apenas violaram os métodos empiristas, mas que teriam mesmo que violá-los, do contrário não teriam alcançado êxito”. Com efeito, uma adesão irrestrita à epistemologia empirista impediria o desenvolvimento da ciência. Dessa forma, Feyerabend estaria ligado a uma transformação da imagem tradicional da racionalidade científica, afinal, segundo o austríaco, “para progredir, a ciência precisa, ocasionalmente, ir contra o método” (p. 30). Munévar (p. 124) considera que Feyerabend utilizou a história da ciência para “descobrir algumas limitações da crença empirista”. Como resultado, percebeu que para alcançar o êxito científico os pesquisadores “tiveram que violar, ocasionalmente, as prescrições metodológicas” dos empiristas. O estudioso esclarece que a estrutura do argumento feyerabendiano em favor desse anarquismo epistemológico corresponde a uma reductio ad absurdum (p. 126). Nesse caso, ele “não precisa estar comprometido” com as premissas ou conclusões do raciocínio: “Em uma reductio ad absurdum assumese a posição do oponente por causa do argumento e, então, deriva uma conclusão inaceitável para esse oponente” (p. 125). Segundo essa leitura, “se Feyerabend está certo, todos os princípios metodológicos possuem exceções” (p. 129). Uma forma extrema de expor essa tese consistia em afirmar que “a ciência seria governada pela anarquia”. Essas explicações sugerem, entretanto, que o anarquismo presente no Contra o Método não seria uma característica da ciência. Pelo contrário, “a anarquia está, pois, no olho do observador”. Essa constatação é essencial para percebermos que o vale tudo não sugere que “as regras nunca se aplicam”. Como escreve Munévar (p. 137), “se vale tudo, algumas vezes a razão também se aplica”. Nesse sentido, o estudioso assinala que a proposta feyerabendiana buscaria “promover as vantagens do pluralismo na ciência” (p. 130).

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O pluralismo de Feyerabend defenderia a premissa de que a ocorrência de mais crises na ciência levaria a um cenário mais frutífero. Por isso, com vistas a estimular o progresso do conhecimento, seria essencial “a geração continua de alternativas”. Esta seria, então, a segunda contribuição de Feyerabend. Ela estaria ligada à tese de que não “podemos descobrir uma evidência importante contra nossas teorias favoritas a menos que consideremos seriamente teorias alternativas” (p. 33). Então, na ótica de Feyerabend, a existência de pontos de vista incompatíveis é uma ferramenta crítica: “nossa ciência tem, pois, maiores oportunidades de progredir se aceitarmos um pluralismo teórico”. Para ele, o valor das alternativas não depende do grau de certeza que temos com relação às teorias vigentes. O pluralismo não deveria ser estimulado apenas quando as teorias estabelecidas se mostrarem falhas. Na explicação de Munévar, um cientista que rejeita a visão estabelecida e “desenvolve uma teoria diferente faz um favor à ciência” (p. 33). Assim, o pluralismo teórico rejeitaria a tradição epistemológica para a qual a Verdade Única seria o objetivo científico. De um lado, os membros da sociedade não seriam obrigados a “aceitar o ponto de vista oficial” (p. 33). Por outro, a variedade de opiniões apresenta uma dupla vantagem. Primeiro, “se o ponto de vista oficial for falso, trocamos um engano por uma verdade, ao menos parcial”. Segundo, se o conhecimento estabelecido for verdadeiro, então, “a comparação com outros pontos de vista nos permite entendê-lo melhor” (p. 33). Por isso, conforme Munévar, a contribuição de Feyerabend “consiste em estender a filosofia de Mill à ciência”. A base do pluralismo feyerabendiano estaria no princípio de proliferação. A proliferação ajudaria a “desenvolver uma visão de mundo diferente” da aceita e, consequentemente, a “indicar pontos críticos” que dificilmente seriam notados de outra forma (p. 131). A “presença de uma [concepção] rival” possuiria uma importância fundamental: “a maior parte do que aprendemos a respeito de nossos erros é graças a quem está perto de nós, apontando-os”. Porém, o “comprometimento com uma visão de mundo” também seria “imperativa para a ciência” (p. 132). Por isso, ao lado da proliferação, o pluralismo de Feyerabend também defenderia a tenacidade. A ciência também se beneficiaria em ter vários competidores engajados em defender hipóteses que parecerem “particularmente promissoras”: “A mistura correta dos princípios de tenacidade e proliferação amplia as oportunidades de conquista científica do pesquisador” (p. 133). Uma premissa básica de tais propostas pluralistas residiria na tese segundo a qual “o preconceito é, frequentemente, descoberto não por análise, mas 68

por contraste”. Isso significa que “o progresso requer […] maneiras diferentes de ver” (p. 134). Para Feyerabend, os fatos são contaminados por “antigas ideologias”. Por isso, convém “comparar nossa ciência com uma interpretação alternativa do mundo”. Partindo da herança de Mill, o austríaco teria reconhecido que “qualquer ideia, não importa se antiga ou absurda, é capaz de melhorar nosso conhecimento”. A constatação desse pluralismo desqualificaria a imagem da ciência enquanto uma atividade metodologicamente racional e ordenada: “nada pode ser descartado, vale tudo”:

A situação é, então, esta: de acordo com o racionalista, apelido do metodólogo ou epistemólogo sistemático, certos sucessos na história da ciência constituem um progresso. Porém, para que esses progressos ocorram, alguns cientistas devem ser oportunistas o bastante para adotar ‘qualquer procedimento que pareça se adaptar à situação’. Isso significa que inclusive as melhores regras metodológicas devem ser violadas de vez em quando. Mas essa limitação inerente de todas as regras implica que nada pode ser descartado de uma vez por todas. Para um metodólogo, isto equivale a reconhecer que vale tudo. Para ele, desde o ponto de vista metodológico, a anarquia seria ocasionalmente essencial para a ciência (MUNÉVAR 2006, p. 136).

A terceira contribuição de Feyerabend apareceria na afirmação de que outras culturas diferentes da Ocidental precisam ser respeitadas. Essa postura em relação a formas de vida não científicas seria independentemente “da admiração que causam em nós os avanços ocidentais permitidos pela ciência” (p. 34). Para Feyerabend, a diversidade cultural é essencial para “manter o clima de pluralismo vital” para o avanço científico. Além disso, a “falta de respeito” com tradições não científicas poderia “conduzir a uma soberba intelectual” capaz de gerar muitos estragos. Feyerabend identificará nos experts sinais dessa postura arrogante. Eles desprezariam “crenças e costumes tradicionais” e buscariam “impor suas ‘verdades’ abstratas” a todos os grupos. Para Feyerabend, formas de vida não ocidentais permitiram aos seus membros “se adaptarem bem ao ambiente” (p. 25). Como consequência, explica Munévar, “não temos o direito de impor nossa verdade, por mais científica e confirmada que pareça” (p. 36). Então, além de uma crítica à soberba dos intelectuais (p. 39), o objetivo de Feyerabend consistiria na defesa de que “todos os seres humanos e todas as tradições que merecem respeito”. Como o estudioso ressalta, Feyerabend não estaria se opondo à abstração científica (p. 36): “sem simplificações não poderíamos enfrentar os perigos e as enfermidades” (p. 176). As “distorções da experiência” não passariam, pois, de um “pequeno preço” a pagar frente à utilidade das abstrações (p. 174). Os problemas com 69

a abstração surgiriam apenasquando os cientistas e filósofos passam a considerar “como ‘real’ o meio empobrecido que resulta da abstração, em detrimento de muitos aspectos da experiência que enriquecem e que fazem com que nossa vida valha a pena”. Feyerabend afirmaria, portanto, que tal postura reducionista “não possui justificativa científica ou filosófica”. De forma explícita, Munévar ressalta que “o que Feyerabend julga questionável é a pretensão de apresentar os resultados deste procedimento como ‘realidade’” (p. 178). Haveriam “muitos modos diferentes de abstração para simplificar e transformar a abundância (p. 179). Apenas os racionalistas afirmariam que é ilusório o que “a maioria dos seres humanos considera razoável” e se mostra “‘importante para a vida’” (p. 180):

O problema surge quando os filósofos e os cientistas decidem que a ‘realidade’ é o ambiente empobrecido que resulta da abstração, enquanto ignoram os aspectos particulares da experiência, muitos dos quais enriquecem e fornecem valor às nossas vidas (p. 36).

A quarta contribuição apareceria no “naufrágio da filosofia analítica” (p. 40). Essa discussão envolveria, de forma particular, a tese feyerabendiana da incomensurabilidade de teorias (1.1.3.2). Para Feyerabend, o exemplo histórico de Galileu confirmaria a ideia de que a experiência pode mudar (p. 139). Portanto, episódios de mudança científica radical mostrariam que o desenvolvimento ciência não ocorre por meio do acúmulo de dados factuais. Com efeito, a escolha entre teorias rivais não poderia se amparar unicamente nas experiências sensíveis porque elas não são padrões estáveis de medição: “não há um grupo de fatos que podem decidir entre as teorias. Este resultado significa que não há uma medida comum que nos permita atribuir a uma teoria mais pontos do que à outra”. Nesses casos, os termos comuns das teorias concorrentes seriam incompatíveis e, por isso, diversos intérpretes consideraram que a incomensurabilidade conduziria ao “fracasso da comunicação” (p. 140). Mas, segundo Munévar, a tese epistemológica da incomensurabilidade teórica dispensaria “qualquer teoria do significado” (p. 146). Essa tese decorreria de uma “análise da história da ciência, não de singularidades semânticas”. Para o austríaco, teorias semânticas seriam irrelevantes para a questão da seleção de teorias, porque a comparação teórica não dependeria de um “dicionário comum” (p. 143). Decerto, a incomensurabilidade teria

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um “cheiro de ceticismo” (p. 147). Ela indicaria que os componentes do mundo seriam “relativo(s) à nossa visão de mundo”. Mas o estudioso destaca que Feyerabend teria “abandonado esse relativismo extremo” (p. 38). A principal causa disso estaria no reconhecimento de que “o significado, na realidade, é flexível” (p. 191). Fronteiras linguísticas e culturais seriam ambíguas, portanto, inexistem as barreiras incomensuráveis. Como o austríaco passou a asseverar, “qualquer cultura pode evoluir” (p. 39), ou seja, “qualquer cultura pode vir a se tornar qualquer cultura”. Assim, no “final de sua vida”, Feyerabend teria escrito vários trabalhos visando “não cair nas armadilhas do relativismo” (p. 152). Como ele teria notado, “o relativismo se mostra como insatisfatório porque é uma teoria de um processo histórico, o conhecimento” (p. 150). O engano dessa concepção derivaria exatamente da ânsia por circunscrever a “prática da ciência em um sistema apenas” (p. 151). No final de sua produção, Feyerabend defenderia que a realidade seria uma “montagem” (p. 187). O real refletiria um complexo aparato “construído com grande esforço e engenhosidade” (p. 188). Munévar considera que essa metafisica, centrada na noção de um Ser inefável com o qual os humanos interagiriam, também insiste no pluralismo (p. 153). Assim, o pluralismo estaria no cerne (tanto político como epistemológico) do pensamento feyerabendiano (p. 37). Ele apareceria de forma generalizada, envolvendo, inclusive, o “desejo de defender as tradições populares”. Especificamente, o comentador assevera que o pluralismo feyerabendiano adotaria uma “perspectiva mais humanitária”: “O princípio de proliferação e o princípio de tenacidade conduzem a uma maior felicidade humana” (p. 132). Por fim, as “quatro conclusões” assinaladas por Munévar converteriam Feyerabend em um “gigante intelectual” (p. 29). Elas revelariam a complexidade “da natureza da ciência e do impacto dela no resto da experiência humana” (p. 41). Assim, consoante Munévar, as “importantes”, “revolucionárias” e “brilhantes” ideias de Feyerabend o tornariam o “filósofo mais importante do século XX” (p. 27).

1.2.4 Luca Tambolo e o Pluralismo Libertário Tambolo (2007) entende que a “característica mais original” (p. 24) da obra de Feyerabend remete ao “ideal de conhecimento como um oceano de alternativas em constante crescimento”. Essa ideia, segundo o estudioso, exige a adoção de uma forma 71

extrema de pluralismo – o “pluralismo libertário”. O pluralismo, entendido em sua forma extrema, exerce um papel indispensável para assegurar a natureza progressiva das atividades cognitivas humanas”. Tambolo afirma que o falsificacionismo de Popper não esgota esse projeto feyerabendiano. Na verdade, a proposta de Feyerabend seria incompatível com Popper, ainda que o racionalista crítico fosse o ponto de partida do pluralismo de Feyerabend (p. 25): “Embora a filosofia da ciência falsificacionista constitua um ponto importante de comparação das duas fases da produção feyerabendiana, o objetivo final buscado por Feyerabend [é] concretamente realizar o ideal do conhecimento como um oceano de alternativas em constante crescimento”. Assim, Tambolo afirma que Feyerabend assumia a ideia de falibilidade do conhecimento, contudo, isso não impediu o austríaco de romper radicalmente com Popper (p. 144). A ruptura com Popper teria envolvido a “‘liberalização’ progressiva” dos requisitos metodológicos (p. 113). Tambolo explica que Feyerabend abraçou um “princípio de proliferação irrestrita”: “todas as teorias podem ser admitidas no debate científico” (p. 117). A liberdade de pensamento apareceria como uma condição permanente de investigação científica e, para isso, a pluralidade teórica seria indispensável (p. 131). Isso explicaria a recusa feyerabendiana de “qualquer regra para neutralizar os efeitos” da proliferação (p. 137). Para Feyerabend, a proliferação de teorias alternativas consistiria no “prérequisito para o aumento do conteúdo empírico” do conhecimento (p. 122). Com efeito, o pluralismo asseverado por Feyerabend implicaria a tenacidade com relação a teorias refutadas (p. 139) – algo incompatível com as ideias de Popper. Nesse sentido, o comentador defende que a defesa feyerabendiana da “liberdade de pensamento e de discussão” (p. 31) remonta, essencialmente, ao ensaio Sobre a Liberdade, de J. S. Mill. Para Tambolo, os argumentos de Mill fornecem um “bom quadro para a interpretação” de toda a filosofia de Feyerabend (p. 34). A defesa de Mill quanto à liberdade de pensamento e de debate surgiriam como importantes ferramentas para explicitar o “caráter específico do pluralismo libertário” do corpus de Feyerabend (p. 147):

Tendo em vista garantir a controlabilidade de uma dada teoria T, é, portanto, necessário inventar e desenvolver alternativas para T, afinal, apenas em virtude dessas alternativas é possível trazer à vista fatos que podem refutar T, e cuja existência, doutro modo, permaneceria ignorada. A controlabilidade da teoria é, assim, segundo Feyerabend, uma variável que depende das alternativas contrárias (p. 34).

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Segundo Tambolo, entre anos 1950 e 1960, Feyerabend aderiu uma epistemologia normativa. Sob a inspiração de Popper e Kraft, o pensamento dele teria se constituído como uma “reflexão abstrata em pesquisas científicas” (p. 74). O modelo normativo de Feyerabend prescrevia a liberdade de teorização (p. 102): “Feyerabend defende, pois, o argumento de que existe um único conjunto de regras que devem orientar as pesquisas dos cientistas, ou ‘o método científico" (p. 46). Essa unidade metodológica sugere a proliferação de um “conjunto de teorias parcialmente sobrepostas, factualmente adequadas, e mutuamente incompatíveis” (p. 101). O ponto de partida do pluralismo feyerabendiano seria a tese segundo a qual “a observação é integralmente teórica” (p. 101). Ela conduziria à conclusão de que a evidência experimental deveria “estar sujeita à constante reinterpretação, impelida sempre por novas propostas teóricas”. Apenas uma comparação com fatos seria insuficiente para empreender uma crítica do conhecimento (p. 137). Assim, Feyerabend teria proposto um empirismo amparado em preceitos metodológicos pluralistas e voltado para “promover a realização efetiva” da maximização do conteúdo teórico (p. 87). Contudo, Tambolo assume que a dimensão normativa da epistemologia feyerabendiana (p. 49) também buscava oferecer uma “descrição acurada das melhores práticas e exemplos científicos” (p. 43). Logo, a história da ciência funcionaria como ferramenta para demonstrar “casos em que o progresso científico não tenha ocorrido pelas vias” metodológicas tradicionais (pp. 52, 53). O bom empirismo de Feyerabend pretendia reaproximar a epistemologia com o conhecimento histórico da prática científica. Essa perspectiva se apresentaria como uma “solução de continuidade” para promover a aspirada unidade entre ciência e filosofia (p. 75). Para Feyerabend, a epistemologia havia se tornado “aridamente autônoma” (p. 72). Então, o bom empirismo buscou uma “reconciliação original dos argumentos históricos com o estudo da história” (p. 79). Portanto, Feyerabend buscava se distanciar de tradições empiristas concentradas em problemas técnicos e descoladas da prática científica (p. 53). Tambolo observa que, inicialmente, Feyerabend defendeu seu pluralismo “com os argumentos a priori”. Mas considerou que o aumento das críticas empregaria ideias do passado: “um bom empirista precisa cumprir uma série de preceitos metodológicos […] No entanto, a história é relevante [porque] pode se configurar como um repertório de ideias”.

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Tambolo destaca a função da proliferação de teorias como preceito metodológico do pluralismo de Feyerabend. Esse princípio tanto recomenda a introdução de alternativas como evita a eliminação de teorias passadas (p. 138). Nesse sentido, o estudioso observa que “o princípio da proliferação implica o princípio da tenacidade”. Na ótica feyerabendiana, o pluralismo precisa incluir a “teimosia do cientista” em “nunca desistir das dificuldades enfrentadas por uma teoria” (p. 140). Ao mesmo tempo, concepções refutadas não se tornariam “meras curiosidade do passado”. A “imposição de um limite de tempo” para a utilização de um ponto de vista é “inaceitável” (p. 141): “a capacidade crítica” de ideias do passado não desapareceria com o tempo. Assim, os dois preceitos pluralistas coexistiriam no bom empirismo de Feyerabend (p. 139). Além disso, uma das mais expressivas consequências desse pluralismo feyerabendiano seria a ideia de que “é impossível declarar que uma discussão científica finalmente terminou”. A “exposição dialética” (p. 106) de alternativas, visando revelar “os pontos fortes e fracos” de cada teoria, sintetiza a imagem metodológica que Feyerabend designou como bom empirismo. Na segunda etapa do seu pensamento, Feyerabend teria abandonado “muitos dos argumentos” metodológicos adotados anteriormente (p. 80). A reflexão pluralista feyerabendiana, a partir dos anos 1970, reconheceria algumas “limitações inerentes aos métodos e padrões a priori” (p. 131). Por isso, ele não defenderá mais somente uma metodologia favorável à indispensável liberdade para a pluralidade teórica. Tambolo mostra que o austríaco reconheceu que suas ideias precedentes ainda revelavam um certo “fanatismo” com a metodologia (p. 128). O estudioso comenta que há ideias compartilhadas nas diferentes fases do corpus feyerabendiano. Um exemplo ilustrativo seria a “relação indissolúvel entre teorias, observações e significados” (p. 102). Tambolo entende que, nos anos 1970, Feyerabend rejeitou que existe um método científico único válido para guiar as atividades científicas. Tal constatação também estaria dentre as motivações do abandono feyerabendiano do bom empirismo e das abordagens aprioristas (p. 127). Nesse momento, Feyerabend apresentaria uma postura “radicalmente diferente” da expressa nas décadas de 1950 e 1960 (p. 119). A essência da nova proposta pluralista de Feyerabend envolveria, no geral, a noção de que a “complexidade do mundo natural” não se adequaria em “teorias normativas do método”. Isso teria conduzido o filósofo a adotar o anarquismo (p. 120) e enunciar a inutilidade de regras fixas para a realização de pesquisas científicas. Portanto, em torno

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do início da década de 1970, ele negou o dogma monista de que “existe ‘o método científico’” (p. 122). Na leitura de Tambolo, uma “interpretação literal do slogan ‘vale tudo’” (p. 124) captaria a ideia central de Feyerabend: “qualquer método pode promover o progresso do conhecimento científico”. Feyerabend partiu do princípio da proliferação de teorias e, em seguida, chegou no princípio de proliferação irrestrita (p. 117). O cientista não apenas precisa ter liberdade para inventar ou reter teorias, mas também deve ser um “oportunista sem escrúpulos” para “usar métodos completamente irracionais” (p. 125). Então, a realização concreta do pluralismo libertário de Feyerabend exigiria a própria adoção do pluralismo metodológico (p. 142):

À luz da hipótese de leitura da epistemologia de Feyerabend proposta aqui, o principal motivo para o autor abandonar o projeto de articulação de um modelo abstrato para a aquisição de conhecimentos foi o reconhecimento do ideal do conhecimento como um oceano de alternativas em contínuo crescimento: o que impulsionou Feyerabend a rejeitar o bom empirismo foi a necessidade de adequar suas doutrinas metodológicas a esse ideal. No final dos anos sessenta, Feyerabend se convence de que a plena realização do pluralismo teórico exige não apenas a proliferação de teorias, mas também dos métodos de avaliação de teorias. A adopção de normas metodológicas demasiado rígidas, de fato, restringe a liberdade teórica do cientista-filósofo, resultando na eliminação da lista de alternativas concorrentes de uma teoria; dado que isso poderia provocar um prejuízo em nosso patrimônio cognitivo, Feyerabend abandona a concepção da metodológica como uma disciplina normativa e apriorística (p. 130).

Esse afastamento quanto à epistemologia normativa também teria afetado a posição do austríaco relativamente a certas noções específicas. No caso do realismo, Tambolo destaca que a primeira fase realista de Feyerabend foi caracterizada pela premissa segundo a qual a o realismo promove o progresso (p. 148). Entretanto, em nenhum momento, o filósofo jamais teria aceitado que a verdade corresponde ao “ideal regulador do empreendimento científico” (p. 135). Os méritos de uma explicação não implicariam que a ciência apresenta uma “maior proximidade com a verdade” (p. 136). O realismo feyerabendiano não incluiria a noção de que as teorias possuem alguma correspondência com os fatos do mundo (p. 101). Para Tambolo, Feyerabend expressaria, então, um realismo sui generis (p. 150). O filósofo teria assumido o caráter onipresente das teorias nas expectativas, experiências e concepção da realidade (p. 108). Essas noções guardariam, inclusive, um certo “sabor kantiano” no corpus feyerabendiano. Mas o pluralismo não corresponderia apenas a uma “etapa preliminar 75

e transitória” da ciência, em direção a um monismo teórico (p. 137). Assim, comenta que Feyerabend também negou concepção a realista segundo a qual “a Teoria Verdadeira” seria o “ideal regulador da pesquisa científica” (p. 144). O filósofo identificaria a “abundância e a riqueza do mundo” e, com base nisso, criticaria o fato de as “tentativas de dar sentido e ordem” à experiência “têm produzido uma simplificação” da realidade (p. 151). Para Feyerabend, as abordagens abstratas buscariam “‘dominar’ a riqueza do mundo”. Mas, conforme explica Tambolo, as concepções ontológicas do autor de Contra o Método “variam não só entre as diferentes culturas, mas também diacronicamente, dentro de uma mesma cultura”. Com efeito, ele sustentaria que “nenhuma teoria pode expressar a realidade última”. Teríamos “muitos mapas diferentes da realidade” (p. 152). Apesar de o Real “não se prestar igualmente a todas as abordagens”, diferentes tradições conseguiriam modelar a realidade. Diante disso, o estudioso salienta “a centralidade absoluta do pluralismo na reflexão de Feyerabend, que nos convida a tomar uma atitude tolerante e a não desdenhar de lições advindas de outras concepções e tradições. A leitura de Tambolo acerca do corpus feyerabendiano sustenta que o austríaco adotou uma forma extrema de pluralismo. Na perspectiva do pluralismo libertário, nenhuma norma poderia atuar como um “obstáculo na estrada do pluralismo” (p. 118). Portanto, Feyerabend rejeitaria “qualquer forma de conservadorismo e dogmatismo na ciência”. Uma forma de conservadorismo atacada por Feyerabend foi a especialização do conhecimento. Segundo Feyerabend, “o expert (ou o “profissional” ou ‘especialista’) exibe uma atitude de restrição mental que, no longo prazo, pode impedilo de ver o seu trabalho em perspectiva, ou considerá-lo como apenas uma das muitas abordagens possíveis para os problemas”. Inicialmente, o bom empirismo criticou metodologias as quais estabelecem uma “restrição arbitrária do número de alternativas disponíveis aos pesquisadores” (p. 53). Tambolo considera que essa concepção libertária implicaria que “todas alternativas são igualmente úteis” para maximizar o conteúdo das teorias (p.107). Assim, nos anos 1950 e 1960, Feyerabend propôs a proliferação e a tenacidade como preceitos para maximizar o conteúdo do conhecimento (p. 113). O austríaco teria considerado que qualquer restrição teórica levaria ao “risco de tirar da competição ideias as quais ainda não tiveram a oportunidade de atingir seu pleno potencial”. A redução na quantidade de alternativas significaria um “empobrecimento – talvez irreparável – do nosso escopo intelectual”. Mas, após a

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publicação do Contra o Método, Feyerabend teria compreendido que a consecução do pluralismo libertário levaria ao pluralismo metodológico (p. 143). Tambolo descreve a obra de Feyerabend com uma “batalha a favor do pluralismo” (p. 65). O comentador mostra que “o domínio da aplicação” visado pelo pensamento feyerabendiano “coincide com a totalidade da experiência humana” (p. 107). Por isso, jamais Feyerabend abandonou seus “argumentos em defesa da proliferação como modo de progredir o conhecimento” (p. 128). Na leitura em foco, o filósofo apareceria como o pensador que defendeu “com maior vigor a causa do pluralismo teórico” (p. 81). O pluralismo libertário apareceria, enfim, como “o traço distintivo da reflexão de Feyerabend” (p. 145):

De maneira muito resumida, o raciocínio subjacente ao projeto epistemológico de Feyerabend parece se desenrolar neste sentido: (a) o conhecimento humano é essencialmente conjectural, por conseguinte, até mesmo as teorias mais promissoras, cedo ou tarde, revelarão sua inadequação; (b) não existe pontos de contato diretos entre as teorias e o mundo: as alternativas que os pesquisadores são convidados a introduzir no debate científico, digamos, pairam no ar, afinal, não há uma medida objetiva para mensurar a correspondência delas com os “fatos do mundo”; (c) dado que o controle de toda teoria é realizado mediante comparação dela com outras teorias, mesmo os resultados da verificação desse controle são falíveis; assim, seria imprudente abandonar uma teoria partindo do fato de que, em um contexto histórico específico, a maior parte dos cientistas a consideram desinteressante; (d) a comunidade científica não deve, pois, voltar seus esforços para a procura de uma inatingível Teoria Verdadeira, mas para a ‘manutenção da vida’ do maior número de alternativas possível, dado que elas contribuem para a crítica da teoria estabelecida; (e) o único tipo de conhecimento ao qual se pode aspirar se configura como um oceano, em crescimento contínuo, de alternativas (p. 144).

1.3. Quais/quantos pluralismos? A literatura secundária concernente ao pensamento de Feyerabend é extensa e diversificada (PRESTON 2012). Oberheim (2006, p. 30) e Dissakè (2001, p. 6) advertiram que o estilo argumentativo feyerabendiano contribuiu para essa propagação de interpretações. Entretanto, a noção do pluralismo é amplamente reconhecida como nuclear para a inteligibilidade do corpus feyerabendiano. A propósito, Tambolo (2007, p. 65) designou a obra do austríaco como uma verdadeira “batalha a favor do pluralismo”. Partindo dessa premissa, reiterada por Farrell (2003, p. 151) e Munévar (2006, p. 10), apresentamos (nas seções 1.1 e.1.2) algumas leituras influentes do pluralismo de Feyerabend – as quais foram dispostas de maneira a compor um esquema geral de estudos especializados sobre o autor de Contra o Método (1.1.3). 77

Analiticamente, distinguimos entre dois grupos de intérpretes: os Estudos primários (1.1) corresponderam a Couvalis (1989), Preston (1997), Farrell (2003) e Oberheim (2006); os Estudos secundários (1.2), às obras de Silva (1998), Dissakè (2001), Munévar (2006) e Tambolo (2007). Compreendemos que todos esses comentadores situam a obra de Feyerabend em torno daquela noção.23 Couvalis (1989) foi citado por todos os estudiosos mencionados, exceto Munévar (2006). Silva (1998) foi o único intérprete que não se referiu à Visão Padrão, proposta por Preston (1997). A Escola de Hannover (cujos expoentes são HoyningenHuene e Oberheim) foi referida por Farrell (2003) e Tambolo (2007), não aparecendo em Silva (1998), Dissakè (2001) ou Munévar (2006). Por fim, Silva (1998), Dissakè (2001) e Tambolo (2007) não constam dentre as fontes analisadas por qualquer dos estudiosos citados. Constatamos, então, um predomínio dos Estudos primários nas investigações sobre o corpus feyerabendiano. Embora sejam teoricamente autônomos e conceitualmente inovadores, os Estudos secundários não ocupam o primeiro plano das pesquisas sobre o pensamento de Feyerabend. Com efeito, esse predomínio interpretativo das posições de Preston (1997) e Oberheim (2006) tende a se propagar nas discussões recentes atinentes à filosofia de Feyerabend. Logo, a Visão Padrão e a Escola de Hannover despontam como as duas principais tradições interpretativas da filosofia de Feyerabend. O Pluralismo Restrito (1.1.1) considera o pluralismo de Feyerabend exclusivamente no âmbito das teorias. Essa concepção discute as noções de proliferação e tenacidade enquanto ferramentas para a crítica das concepções estabelecidas, contudo, recusa qualquer proposta pluralista que Feyerabend tenha apresentado após a publicação do Contra o Método, em 1975. O Pluralismo Bipartido (1.1.2) endossa essa imagem fragmentada do corpus de Feyerabend. Entretanto, acrescenta que o primeiro Feyerabend assumiu posições epistemológicas inconciliáveis com o Feyerabend tardio.

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Eles reconhecem a importância de outros temas e conceitos, como por exemplo, o realismo: Preston (1997, p. 144; 1997b, p. 421; 1999, p. 238), Hoyningen-Huene & Oberheim (1999, p. 229), Oberheim (2006, p. 186), Silva (1998, pp. 253, 318), Dissakè (2001, pp. 60, 115) e Tambolo (2007, p. 148); o relativismo: Couvalis (1989, p. 134), Preston (1997, p. 191), Silva (1998, p. 308) e Munévar (2006, pp. 38, 152); o anti-reducionismo: Tambolo (2007, p. 151), Munévar (2006 p. 52), Preston (1997a, p. 422), Farrell (2003, p. 230), Silva (1998, p. 320) e Dissakè (2001, p. 80) o kantismo: Preston (1999, p. 211; 240), Hoyningen-Huene & Oberheim (1999, p. 203), Oberheim (2006, p. 192) e Tambolo (2007, p. 108); a desunidade da ciência: Preston (1997, pp. 176; 1997a, p. 422) e Dissakè (2001, pp. 21, 25-26, 66, 72, 113); o anarquismo: Munévar (2006, p. 131, 136), Tambolo (2007, p. 120, 124), Couvalis (1989, p. x), Preston (1997, p. 171), Silva (1998, pp. 287, 295m 305) e Dissakè (2001, p. 95).

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Especificamente quanto ao pluralismo, a Visão Padrão sustenta que, nos anos 1950 e 1960, o austríaco adotou um modelo normativo baseado no pluralismo de teorias. Após a publicação do Contra o Método, Feyerabend substituiu tal modelo unitário de aquisição do conhecimento (baseado em preceitos como testabilidade, revisionismo, proliferação ou tenacidade) por um pluralismo metodológico. Em contraste a essa difundida imagem bipartida do pluralismo de Feyerabend, o Pluralismo Filosófico da Escola de Hannover (1.1.4) defendeu que as diferentes concepções feyerabendianas não seriam inconciliáveis. Hoyningen-Huene & Oberheim sustentaram que as posições do autor de Contra o Método consistem em etapas de um método filosófico pluralista. Conforme tal opinião, Feyerabend efetuou uma crítica imanente (ou uma argumentação ad hominem) de premissas endossadas por seus oponentes e, por isso, não se comprometeu com ismos filosóficos. Portanto, o desenvolvimento intelectual de Feyerabend não experimentou qualquer ruptura teórica, apenas graduais radicalizações estilísticas. Todavia, nossa catalogação das leituras e leitores de Feyerabend não reforça a tendência geral de conceber a disposição e a estrutura pluralista do corpus de Feyerabend estritamente segundo as propostas da Visão Padrão e da Escola de Hannover. Portanto, ainda no conjunto dos Estudos primários, o Pluralismo Axiológico (1.1.4) afirma uma continuidade filosófica no pensamento de Feyerabend. Essa leitura mostrou que o pluralismo de teorias implica o pluralismo de métodos. Ainda nessa análise, a parte final do corpus feyerabendiano evidenciou uma defesa do pluralismo de formas de vida e de ontologias. Portanto, a perspectiva de Feyerabend acerca da dinâmica e da “racionalidade na corda bamba” assumiu um pluralismo de valores epistêmicos (generalidade, testabilidade, precisão empírica e fecundidade). Em seguida, o anarquismo feyerabendiano partiu para uma crítica da universalização de regras e padrões metodológicos. Nesse sentido, a obra de Feyerabend envolveu um alargamento do falibilismo, ou seja, uma crítica não apenas do monismo de teorias, mas também do monismo do método. O resultado desse processo foi a recusa da ciência enquanto forma de dominação de culturas não científicas, perspectiva que defende a tolerância com tradições adaptadas a diferentes concepções de realidade. O Pluralismo Antifundacionista (1.2.2) considera que a consistência do corpus de Feyerabend decorreu de um contraste com as teses do Círculo de Viena. A unidade metodológica de Feyerabend incluiu teorias sobrepostas, mutuamente inconsistentes e factualmente adequadas. Posteriormente, Feyerabend 79

reconheceu que a diversidade metodológica derivou da própria multiplicidade de condições materiais da pesquisa científica. Com efeito, a desunidade ideológica da ciência levou Feyerabend a propor uma fundamentação ética da epistemologia. Assim, o filósofo rejeitou a ciência enquanto fundamento político e social e, por sua vez, asseverou uma contrapartida democrática para a pluralidade teórica, metodológica e ideológica da ciência. O Pluralismo Generalizado (1.2.3) entende que as mudanças de posição no pensamento de Feyerabend evidenciam o próprio pluralismo feyerabendiano. Por conseguinte, não convém elaborar uma teoria estática sobre a dinâmica do pensamento filosófico feyerabendiano. Então, convém estritamente em indicar as contribuições de Feyerabend para as reflexões filosóficas. Primeiro, a proposta de uma imagem da racionalidade científica desapegada do dogma da unidade metodológica. Segundo, a afirmação de que a pluralidade de teorias alternativas evidenciaria preconceitos históricos e explicitaria novos conteúdos cognitivos. Terceiro, a defesa da diversidade cultural e do respeito a tradições não ocidentais. A tolerância com a pluralidade de formas de vida envolve um combate à predominância do poder ideológico dos experts e de abordagens racionalistas para fenômenos naturais e sociais. Quarto, o reconhecimento da irrelevância de considerações semânticas no âmbito das reflexões epistemológicas. Por fim, o Pluralismo Libertário (1.2.4) compreende o ideal epistemológico de Feyerabend como um crescente oceano de alternativas. Para levar esse projeto a cabo, o filósofo efetuou uma liberação progressiva do pluralismo na ciência. Inicialmente, o bom empirismo de Feyerabend recomendou a livre invenção de hipóteses alternativas às concepções estabelecidas, bem como a manutenção incondicional de pontos de vista abandonados. Em seguida, porém, o autor rejeitou esse monismo metodológico, centrado no pluralismo teórico. A partir do Contra o Método, Feyerabend defendeu a inutilidade de regras estáticas para a dinâmica científica. Portanto, o princípio de proliferação irrestrita se estendeu ao nível das metodologias. Segundo essa leitura, as tentativas de limitar as maneiras de abordar a abundância do mundo simplificam a realidade e eliminam concepções culturais alternativas. Então, o pluralismo extremado de Feyerabend legitimou mapas da realidade presentes em diferentes culturas. A Visão Padrão e a Escola de Hannover projetam uma imagem do corpus de Feyerabend centrada, prioritariamente, no pluralismo teórico e no pluralismo metodológico. Assim, os expoentes do Estudos primários caracterizam o pensamento 80

do filósofo como voltado, em particular, para a proliferação de hipóteses alternativas e para o ataque ao monismo metodológico. Em contraste, as leituras de Silva (1998), Dissakè (2001), Farrell (2001), Munévar (2006) e Tambolo (2007) aludem a outros elementos pluralistas na obra de Feyerabend. Além do pluralismo teórico e do pluralismo metodológico, eles mencionam o pluralismo cultural e o pluralismo ontológico.24 Portanto, além de discutir a proliferação de teorias rivais e o oportunismo em termos de metodologia, o austríaco defenderia também a diversidade de formas de vida (culturas ou tradições) e a variedade de ontologias (abordagens metafisicas ou cosmovisões). De fato, as explanações alternativas à Visão Padrão e à Escola de Hannover não preparam um exame englobante das considerações de Feyerabend no que tange àquelas demais propostas pluralistas. Entretanto, a predominância das leituras de Preston (1997) e Oberheim (2006) reduz a percepção do enfoque pluralista de Feyerabend aos domínios teóricos e metodológicos. Por nossa parte, então, consideramos que discussões pormenorizadas acerca do pluralismo feyerabendiano devem incluir: o pluralismo teórico, o pluralismo metodológico, o pluralismo cultural e o pluralismo ontológico. Para tanto, parece conveniente recorrer a concepções interpretativas não hegemônicas no conjunto da Feyerabendiana. Portanto, as pesquisas sobre a filosofia de Feyerabend se beneficiariam de uma proliferação de suas próprias leituras e leitores, ao passo que a prevalência das propostas da Visão Padrão e da Escola de Hannover encurtam nosso horizonte conceitual e metodológico.

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Dois trabalhos precursores sobre as teses pluralistas de Feyerabend são: Accommodating diversity: Feyerabend, science and philosophy, de 2002, onde Carina Fourie discute o pluralismo cultural; e Pluralism and the ‘Problem of Reality’ in the Later Philosophy of Paul Feyerabend (2010), onde Ian James Kidd discute o pluralismo ontológico. Mais recentemente, esse último tema foi explorado por Brown (2015) e Tambolo (2014).

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CAPÍTULO II ‘CRÍTICA DA RAZÃO CIENTÍFICA’ Leitmotifs da filosofia de Feyerabend “Meu ‘desenvolvimento espiritual’ sempre depende de episódios teatrais, jamais – graças a Behemoth – de argumentos” (FAM, p. 272).

Na introdução aos dois primeiros volumes dos seus Philosophical Papers, Feyerabend redigiu: “O leitor notará que alguns artigos defendem ideias que são atacadas em outros. Isso reflete minha crença (que parece ter sido endossada por Protágoras) de que podemos encontrar bons argumentos para lados contrários de uma mesma posição” (PP1, p. xiv; PP2, p. xii). A busca pela equipolência de perspectivas opostas foi prematuramente entendida como uma herança cética do núcleo da filosofia feyerabendiana (MAIA-NETO 1991; ATHANASOPOULOS 1994; KNOLL 2006, p. 50; ver 3.3.2.3). Entretanto, o próprio Feyerabend tentou atenuar essa suposta filiação: ele não considerava que “todas as opiniões seriam igualmente boas ou igualmente ruins”, tampouco evitava “efetuar tais juízos” (FAM, p. 114).25 A busca por “bons argumentos para lados contrários” também acarretou a propagação de interpretações do corpus feyerabendiano (OBERHEIM 2006, p. 270). Sintetizamos no Capítulo I as linhas gerais de algumas leituras de referência do pensamento de Feyerabend (1.1 e 1.2). Mostramos, ainda, que a Visão Padrão e a Escola de Hannover despontam como as duas mais influentes tradições interpretativas da obra feyerabendiana (1.3). Também ressaltamos que as críticas de Couvalis (1999), Munévar (1999) e Hoyningen-Huene & Oberheim (1999) ao trabalho de Preston (1997), impressas no Symposia Review de 1999, iniciaram uma importante reorientação nos estudos que compõem a Feyerabendiana (1.1.3). No geral, elas acenam para a recusa da hegemonia interpretativa da Visão Padrão (1.1.2). Além de promover transformações na própria

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Outros detalhes da leitura de Feyerabend como um cético em Farrell (2003, pp. 56 n.12, 70, 20, 213), Oberheim (2005, p. 371) e Heit (2009, p. 95).

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Visão Padrão (1.1.3.5), a publicação da AAHPSSS expandiu os horizontes acerca do corpus feyerabendiano (1.1.3.4). A principal concepção antagonista à proposta de Preston (1997) corresponde à Escola de Hannover. Ambas abordagens se inscrevem no grupo dos Estudos primários (1.1) e caracterizaram o pensamento de Feyerabend, respectivamente, como um Pluralismo Bipartido (1.1.2) e um Pluralismo Filosófico (1.1.5). Diante disso, o Capítulo II objetiva discutir dois dogmas exegéticos nos estudos feyerabendianos: i) a dicotomia epistemológica (pluralismo teórico/pluralismo metodológico) e ii) a dicotomia temática (filosofia da ciência/filosofia política). A permanência deles obscurece a percepção dos pontos de consistência na obra associados aos leitmotifs da filosofia de Feyerabend, a saber: a estrutura/natureza e o mérito/excelência da ciência (PP1, p. xiv; DISSAKÈ 1999, p. 52). Como aspiramos demonstrar, especialmente em 2.3.2.3, a coerência programática do pluralismo de Feyerabend procede de um projeto crítico relativo à crença racionalista na uniformidade (teórica e metodológica) e na superioridade (cognitiva e social) da ciência. Como veremos, nossa chave de leitura do corpus de Feyerabend diverge substancialmente das hegemônicas visões da Visão Padrão e da Escola de Hannover.

2.1 – A Primeira Dicotomia A Visão Padrão (1.1.2 e 1.1.3.5) sustenta que o desenvolvimento intelectual de Feyerabend experimentou uma descontinuidade epistemológica radical. A publicação do Contra o Método marcaria a divisão da obra feyerabendiana em duas fases distintas, conforme a leitura prestoniana. Nas décadas de 1950 e 1960, teríamos uma epistemologia normativa fundada no pluralismo teórico; a partir dos anos 1970, uma abordagem descritiva da atividade científica baseada na crítica do monismo metodológico:

Sua [Feyerabend] obra pode ser, sinteticamente, dividida em duas fases, a primeira esboçada do início dos anos 1950 até cerca de 1970, a segunda de 1970 em diante. (PRESTON 1997, p. 7) Pluralismo teórico (ou seja, a metodologia pluralista de Feyerabend) não deve ser confundida com o pluralismo metodológico. Comentadores algumas vezes assumem que Feyerabend advogou esse último em sua obra pré-1970, mas isso é um grave

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engano. O modelo pluralista de teste busca ser uma metodologia única para toda a investigação científica. Ela fomenta a proliferação de teorias, mas não de métodos para avaliar teorias. Somente após o advento do ‘anarquismo epistemológico’ Feyerabend propõe que a ciência não possui um método científico distintivo e que ela não pode ser forçada por filósofos para aceitar um. Quando Feyerabend se torna um pluralista metodológico, ela já tinha oficialmente renegado as fontes que originalmente permitiram-no defender o pluralismo metodológico. (PRESTON 1997, p. 139)

Essa primeira dicotomia consta em vários trabalhos sobre o pensamento de Feyerabend.26 Como os trechos supracitados frisam, ela se ampara em quatro premissas: P1: A obra de Feyerabend se divide em “duas fases”; P2a) A ‘primeira fase’ da obra de Feyerabend se estende “do início dos anos 1950 até cerca de 1970”; P2b) A ‘segunda fase’ da obra de Feyerabend se estende “de 1970 em diante”. P3a) O pluralismo teórico corresponde à produção feyerabendiana “pré-1970”; P3b) O pluralismo metodológico de Feyerabend deriva do “advento do ‘anarquismo epistemológico’”. P4: O pluralismo metodológico de Feyerabend se configura depois que o filósofo “oficialmente renegou” o pluralismo teórico.

Na seção 2.1.1, veremos três críticas à bipartição do corpus de Feyerabend. Na seção 2.1.2, discutiremos dificuldades da principal proposta alternativa à interpretação de Preston (1997). Tentaremos, em seguida, apontar limitações específicas da proposta de leitura Escola de Hannover (2.l.3).

2.1.1. Três críticas iniciais à ‘primeira dicotomia’ Dissakè (1999) apresenta uma primeira crítica à bipartição do corpus feyerabendiano. O teórico do Pluralismo Antifundacionista (1.2.2) insistiu que 26

Corresponde a um padrão lakatosiano demarcar, com algarismos subscritos ao nome de Feyerabend (por exemplo: Feyerabend1 ou PKF1), as etapas do pensamento feyerabendiano (ver PKF/FAM, p. 220; p. 193, n. 88). Diederich (1991) adota uma versão radical dessa divisão do pensamento de Feyerabend em duas etapas. Ele afirma que o PKF1 corresponde a um pensador fascinado com a ciência e comprometido com o ideal da liberdade, ao passo que o PKF 2 teria se convertido em um “crítico social” do conhecimento na medida em que incluiu a própria ciência no alvo de suas contestações. Nessa visão, a partir de 1975, Feyerabend teria passado por uma progressiva “desilusão” com o ethos científico. O desapontamento dele refletiria a constatação da degradação da vocação racional da ciência. Originalmente uma atividade cognitiva e culturalmente emancipadora, a ciência gradualmente se converteu em business tecnológico-capitalista. Por isso, as teses do Contra o Método e posteriores seriam uma espécie de epistemologia romântica decepcionada com a atividade científica.

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Feyerabend seria um “herdeiro infiel do Círculo de Viena” (p. 53). Assim, a unidade da filosofia do austríaco apareceria no antifundacionismo e no antidogmatismo, em termos epistemológicos. Segundo o estudioso, Feyerabend “permanecerá fiel” àquelas noções “do início ao fim” de sua carreira (pp. 52, 43). Essas considerações foram refinadas em Dissakè (2001). Ele definiu que a Visão Padrão adota a “hipótese dos dois filósofos” (p. 8). Essa concepção, originada por Couvalis (1989) mas consagrada por Preston (1997), definiria que as duas fases do pensamento de Feyerabend seriam incompatíveis. A guinada de Feyerabend envolveria o abandono de debates epistemológicos e, consequentemente, uma aproximação com temas ligados ao relativismo e à relação da ciência com a sociedade (DISSAKÈ 2001, p. 9). Conforme a descrição da Visão Padrão: “Não há uma tese acerca da unidade da filosofia feyerabendiana, mas encontramos a coerência, ou mesmo a totalidade, daqueles dois conjuntos reconstituídos”. Contudo, o comentador rejeita tal representação do corpus feyerabendiano. Dissakè (2001, p. 10) sublinhou que a aceitação daquela “ruptura profunda” implicaria a impossibilidade de empregar teses do Feyerabend inicial para elucidar opiniões do Feyerabend final. Portanto, o problema central da bipartição radical do corpus de Feyerabend residiria exatamente “no fato de usar o Contra o Método para esclarecer os trabalhos que precedem o livro”. O estudioso considera que isso aponta para uma “relação irrecusável entre os primeiros e os últimos trabalhos” de Feyerabend. Portanto, ainda que implicitamente, autores como Couvalis (1989) e Preston (1997) admitiriam uma “linha indissolúvel” entre as obras anteriores e posteriores ao Contra o Método. Desse modo, “é a própria hipótese dos dois filósofos que será necessário abandonar”. Farrell (2003) elabora uma segunda crítica à bipartição do corpus feyerabendiano. Para tanto, o proponente do Pluralismo Axiológico recupera algumas das teses complementares à Visão Padrão, que sintetizamos em 1.1.3.5. A principal passagem da Visão Padrão selecionada como objeto de crítica é esta:

Sugiro que a concepção de vida intelectual fortemente voluntarista de Feyerabend é o que está no comando. A ‘escolha’ que Feyerabend insiste, entre a natureza como descrita pelos cientistas e a natureza como descrita por artesãos não cientistas, é apenas um exemplo do que considero ser o tema mais presente na filosofia feyerabendiana. Em sua epistemologia normativa inicial, a forma do nosso conhecimento cabe a nós, e a escolha entre realismo e positivismo deve ser feita comparando cada uma das consequências importantes de cada uma daquelas concepções com os nossos ideais

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epistêmicos. Sob a influência de Popper e Viktor Kraft, Feyerabend incialmente assumiu como a tarefa do filósofo determinar (ao invés de descobrir) regras ‘metodológicas' as quais produziriam uma boa ciência. Tal Feyerabend não era, propriamente, um filósofo ‘histórico’ da ciência: o realismo inicial dele estava fundamentado na sua epistemologia fortemente normativa. Antes da rejeição dessa concepção (em torno dos anos finais da década de 1960), Feyerabend não era, absolutamente, um anarquista epistemológico. De fato, ele não estava comprometido com a correção descritiva, mas com a correção normativa de uma única metodologia científica: seu próprio ‘modelo pluralista’. Na filosofia tardia de Feyerabend, apesar da rejeição da epistemologia normativa, persiste a escolha concedida pelo filósofo. De fato, a amplitude dela aumentou, dado que agora é feita nas bases de todos os nossos ideais. O Feyerabend tardio acredita que a forma e o conteúdo do nosso conhecimento, e, assim, a natureza do próprio ‘Ser’, depende de nossas decisões. Ao invés de argumentar a partir dos fatos científicos no sentido das políticas sociais, ele explicitamente recomenda que mantenhamos firmes os nossos ideais sociais e argumentemos, (digamos assim) de trás para frente, no sentido da natureza do mundo. (PRESTON 1997b, pp. 430-431)

Este trecho reforça a leitura básica da Visão Padrão (1.1.2) e reitera que a “epistemologia inicial” de Feyerabend seria normativa. Enquanto ainda pretendia determinar regras metodológicas para a boa ciência, o austríaco não corresponderia a um filósofo histórico da ciência. Contudo, Feyerabend teria rejeitado o próprio modelo pluralista na segunda metade dos anos 1960. O Feyerabend tardio adotaria o anarquismo epistemológico e se comprometeria com a correção descritiva de suas ideias. Na caracterização ofertada por Farrell (2003, p. 129), a Visão Padrão anuncia “uma descontinuidade radical entre as versões inicial e tardia da filosofia de Feyerabend”. Contudo, esse segundo comentador elabora uma alternativa àquela perspectiva. A interpretação continuísta de Farrell salienta que o “tema mais importante” do pensamento feyerabendiano reside na noção de proliferação: “pode-se projetar uma trajetória constante quando vemos a obra de Feyerabend em termos de proliferação”. Assim, anuncia que “a proliferação e o pluralismo estão profundamente arraigados no pensamento intelectual de Feyerabend”. O pluralismo teórico não expressaria uma proposta do Feyerabend inicial que teria sido completamente eliminada com o pluralismo metodológico do segundo Feyerabend’, dos anos 1970 em diante. Para o estudioso, a contradição entre as obras pré- e pós-Contra o Método não existiria. A defesa da diversidade de métodos complementaria a recomendação em favor da proliferação de hipóteses alternativas:

[…] embora Feyerabend não perceba que o pluralismo teórico implica o pluralismo metodológico, a implicação é válida por dois motivos. Primeiro, em contradição com Preston, para assegurar o pluralismo teórico, e ao mesmo tempo preservar a natureza

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crítica da ciência, devemos sustentar prescrições metodológicas conflitantes: devemos ser pluralistas metodológicos. Segundo, para testar a metodologia de Popper, e de acordo com a noção geral de crítica como justaposição contra alternativas, devemos adotar metodologias alternativas: devemos ser pluralistas metodológicos. Vemos, assim, como a filosofia de Feyerabend se tornou profundamente impregnada pelo pluralismo. (FARRELL 2003, p. 157)

Dissakè (2001, p. 5) sustentou que o antifundacionsmo foi uma constante no pensamento de Feyerabend. Evidenciou também uma inconsistência nos fundamentos da “hipótese dos dois filósofos”. Farrell (2003, p. 3) insistiu que o austríaco defendeu sistematicamente o pluralismo: a proliferação de teorias implicaria a proliferação de métodos. Então, essas duas leituras do corpus feyerabendiano recusaram de forma consistente a ideia da descontinuidade filosófica do pensamento de Feyerabend. Porém, o impacto dessas abordagens continuístas não foi tão expressivo quanto a oposição levantada pela Escola de Hannover à leitura Preston (1997, 1997a, 1997b, 1999).27 Oberheim (2006, p. 22) admite que a filosofia de Feyerabend evidencia uma mudança expressiva no contexto do Contra o Método (1.1.5.2). A alteração envolveria dois aspectos: i) um crescente ataque à superioridade da ciência e ii) a consequente inclusão de reflexões ético-políticas no cerne das reflexões epistemológicas:

Esse período marca uma transição fundamental em sua perspectiva filosófica. Até o início dos anos 1970, Feyerabend sempre assumiu a superioridade das ciências empíricas na produção o conhecimento sobre outras formas de vida. Mas, então, ele passou a questionar: o que há de tão bom na ciência? Como podemos saber que as ciências melhoram nossas vidas, se jamais demos chance para empreender uma comparação objetiva entre o que nos é oferecido e outras formas de vida? As publicações dele assumem um crescente caráter político, deixando para trás as mais frequentes considerações técnicas e abstratas do início de sua carreira.

Entretanto, as conclusões que a Escola de Hannover extrai desses elementos contrastam com as da Visão Padrão:

Preston tenta colocar em conjunto muitas das diversas visões muitas de Feyerabend sobre diferentes tópicos em uma única estrutura metodológica. Isso será designado

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Como indicamos em 1.3, os estudos sobre Feyerabend, após a publicação de Dissakè (1999, 2001), não incorporaram a lição do pluralismo antifundacionista. As contribuições do pluralismo axiológico de Farrell (2003) foram, apenas relativamente, melhor assimiladas por alguns estudiosos.

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‘abordagem unificacionista’ das publicações de Feyerabend. Pretendemos com esse rótulo capturar dois pontos relacionados: primeiro, ela se baseia em ideias expressas em publicações de diferentes tópicos em anos diferentes para construir um modelo único de aquisição do conhecimento: uma nova posição filosófica. E, segundo, essa nova posição supostamente unifica as ideias de Feyerabend acerca de vários tópicos, tais como realismo, significado e mente. (OBERHEIM 2006, p. 208)

A Escola de Hannover considera que a Visão Padrão se equivocou quanto às estratégicas argumentativas de Feyerabend: “Feyerabend não argumenta a partir de um único ponto de vista coerente. Ele foi um pluralista filosófico” (OBERHEIM 2006, p. 24). Consoante essa leitura de Hoyningen-Huene & Oberheim, o austríaco empregaria o argumento ad hominem como ferramenta retórica. Para progredir o conhecimento, o promotor da crítica imanente assumiria, provisoriamente, as premissas dos seus oponentes. Então, seria um erro considerar a adoção feyerabendiana desses “pontos de vista conflitantes” uma adesão “a qualquer ismo filosófico além do pluralismo” (p. 277). A consistência filosófica de Feyerabend apareceria na própria atitude epistemológica oportunista. Por isso, o corpus feyerabendiano não refletiria o percurso de um “epistemólogo sistemático”: “Feyerabend nunca estabeleceu uma posição filosófica consistente, tampouco precisava de uma” (p. 208). Subjacente às guinadas teóricas do autor de Contra o Método, residiria um programa filosófico pluralista. O pluralismo filosófico de Feyerabend teria como objetivo impedir que “a ciência e a filosofia” se tornassem “dogmas” (p. 284). A “concepção pluralista de conhecimento” assumida por Feyerabend também afastaria “o desenvolvimento de uma única posição filosófica”, como pretendido pela Visão Padrão. As diferentes posições defendidas pelo austríaco refletiriam o “desenvolvimento, extensão e radicalização contínuos” de ideias prévias, e não uma recusa total, como pretende a Visão Padrão (p. 282):

Feyerabend foi como um camaleão, adaptando-se ao panorama filosófico, afinal experimentou mudanças dramáticas (talvez mesmo revolucionárias) ao longo de quatro décadas. Na medida em que sua carreira progrediu, Feyerabend enfatizou cada vez mais seu método filosófico pluralista […] A principal diferença entre publicações prée pós-Contra o Método não reside na mudança na concepção pluralista de conhecimento dele ou no método filosófico pluralista. (p. 270)

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2.1.2. Obstáculos iniciais da Escola de Hannover A Escola de Hannover entende que as mudanças na filosofia de Feyerabend expressam o aprofundamento gradual da aplicação do método filosófico pluralista. Então, Oberheim (2006, p. 218) concebe que essa ideia do pluralismo filosófico de Feyerabend “fundamenta o tipo de interpretação gradual das ideias de Feyerabend”. Como o comentador afirma: “Esse tipo de argumento ad hominem é central para a abordagem e o estilo de filosofia de Feyerabend. O argumento ad hominem seria o fundamento do método filosófico pluralista de Feyerabend e ele o teria empregado com vistas a amparar sua concepção pluralista de conhecimento” (p. 226). Em suma, a abordagem gradualista de Oberheim defende duas ideias: A. Existe um padrão argumentativo nos escritos feyerabendianos, caracterizado pelo uso do argumento ad hominem; e B. Existe um padrão exegético para compreendermos os escritos feyerabendiano, caracterizado pela análise da crítica imanente. Com relação ao padrão argumentativo de Feyerabend [(A)], a Escola de Hannover insiste que os textos de Feyerabend seguem três etapas definidas: i) “definem o alvo que irão atacar”; ii) elaboram uma crítica “à concepção do oponente de uma forma ad hominem”; e iii) apresentam algumas “sugestões positivas à luz dessas críticas” (p. 218). Em seguida, Hoyningen-Huene & Oberheim apontam o padrão metodológico para identificarmos as críticas imanentes de Feyerabend [(B)]: “devemos colocar a passagem em seu contexto próprio e, assim, verificar cuidadosamente os detalhes” (p. 211). Nos tópicos a seguir, indicaremos limitações metodológicas (2.1.2.1) e textuais (2.1.2.2) de [(A)] e [(B)] – referentes ao padrão argumentativo e ao padrão exegético de Feyerabend – expostos pela Escola de Hannover.

2.1.2.1.Obstáculos metodológicos da abordagem gradualista Os pressupostos exegéticos da Escola de Hannover enfrentam dificuldades metodológicas. De um lado, eles sugerem uma unidade metodológica para o estudo da obra feyerabendiana. Contudo, como o próprio Feyerabend defendeu, “a pesquisa bemsucedida não obedece a padrões gerais; depende, em um momento, de certo truque e, em outro, de outro” (CM3, p. 19). Nesse sentido, a Escola de Hannover não aplica a lição do oportunismo metodológico que ela mesma, obstinadamente, elogiou enquanto

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contribuição essencial do pensamento pluralista de Feyerabend: “Feyerabend foi um oportunista epistemológico e um pluralista filosófico” (OBERHEIM 2006, p. 104; 218, 277, 280).28 Por outro lado, o método exegético elaborado pela Escola de Hannover não pode ser universalizado. O próprio Oberheim observou que “as mais importantes publicações de Feyerabend são principalmente críticas construtivas das concepções de terceiros, não desenvolvimentos de certas posições (ou ‘artigos de posição’)” (p. 215). Nesse sentido, Feyerabend teria empregado argumentos ad hominem, sobretudo, em suas “mais importantes publicações” (p. 218). Mas essa afirmação i) não prova que Feyerabend executou críticas imanentes em todos os seus escritos29 ii) não especifica quais seriam as “mais importantes publicações” de Feyerabend. De nossa parte, entendemos que tal hierarquia é contextual e reflete as intenções interpretativas dos leitores do corpus feyerabendiano.30 A “introdução crítica” de Preston (1997, p. vi) buscava deslindar a “filosofia do conhecimento de Feyerabend”, logo, discutiu a “epistemologia da ciência inicial” do austríaco a partir de materiais publicados nas décadas de 1950 e 1960 (p. 12). Farrell (2003, p. 1) almejou explorar a filosofia tardia de Feyerabend, logo, debruçou-se nas produções do filósofo pós-1970 (p. 4). Apesar de fecundo em suas metas específicas, o programa exegético da Escola de Hannover não consiste no modelo exegético privilegiado dos estudos feyerabendianos.

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Oberheim (2006, p. viii) se reconhece como um adepto do pluralismo. Também observa que o pluralismo não concerne apenas às ciências, mas também ao pensamento filosófico (Hoyningen-Huene & Oberheim 2014, p. 95). Assim, nossa crítica se baseia na impressão de que a Escola de Hannover deveria admitir e recomendar explicitamente o pluralismo também no âmbito dos estudos acerca do corpus feyerabendiano. 29 Tem-se, especificamente, um argumento quantitativo e um argumento factual contra essa tese da Escola de Hannover. O primeiro concerne à constatação do volume e da diversidade (temática e estilística) do corpus de Feyerabend, como detalhado por Dissakè (2001, p. 7) e Oberheim (2011, p. xi). Assim, assinalamos a pequena probabilidade de que toda a produção de Feyerabend consista na realização de críticas imanentes. O segundo concerne ao fato de que diversos escritos do filósofo não executam argumentações ad hominem como o cerne da exposição. Por exemplo: “Galileu e a tirania da Verdade” (1985), “Algumas observações sobre a teoria da matemática e do continuum de Aristóteles” (1983), “Discussion at the Conference on Correspondence Rules” (1970), “Galileo’s Observations” (1980) ou as contribuições de Feyerabend para The Encyclopedia of Philosophy (publicadas em 1967), dentre outros. 30 A tentativa de uma definição precisa das “mais importantes publicações” do corpus levaria a situações extremas e, sobretudo, inócuas filosoficamente. Por exemplo, não poderia incluir: o A Ciência em uma Sociedade Livre, sob pena de ignorar o fato de que o próprio Feyerabend rejeitou essa obra (CA, p. 14); ou teria que eleger uma das seis versões do Contra o Método (OBERHEIM & HEIT 2013, p. 16); ou teria que justificar metodologicamente a presumida relevância de escritos póstumos, como A Conquista da Abundância ou The Tyranny of Science; ou, ainda, deveria rejeitar investigações fundamentadas em cartas, textos originais ou documentos inéditos (que constituem as bases dos excelentes estudos, ainda não pulicados, “Was Feyerabend a Popperian” e “A Note on Kuhn and Feyerabend at Berkeley”, de Matteo Collodel).

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2.1.2.2.Obstáculos textuais da abordagem gradualista A concepção gradualista da Escola de Hannover também mostra dificuldades quando confrontada com as reconstruções do itinerário intelectual empreendidas pelo próprio Feyerabend (PnP: 127-146; CSL: 133-151; CM3: 337-357; AR1: 93-101).31 De forma geral, convém distinguir dois tipos de transformações descritas por Feyerabend: (A) formativas (nos anos 1940) e (B) fundamentais (após 1960). As três primeiras são pouco conhecidas e concernem (A1) à relação entre arte e ideologia, (A2) à fecundidade do realismo e (A3) à relação entre teoria e experimento. Por seu turno, os estudiosos da obra de Feyerabend mencionam, com maior frequência, as causas das três guinadas restantes: (B1) a crítica da epistemologia abstrata (encontro com C. F. von Weizsäcker); (B2) a questão da ascensão do intelectualismo ocidental (a revolução em Berkeley); e (B3) a crítica humanitarista do racionalismo (contato com Grazia Borrini) (HOYNINGEN-HUENE 2000, pp. 5-6; PRESTON 2012). Vejamos brevemente esses seis episódios, reproduzindo passagens nas quais Feyerabend descreve como eles transformaram profundamente suas concepções filosóficas. (A) Transformações formativas As transformações formativas remontam aos anos 1940. Nesse período, Feyerabend ainda frequentava o Weimar Institut zur Methodologischen Erneuerung des Deutschen Theaters (1946), o Institut für Österreichische Geschichtforschung (19471948) ou Österreichische College (1948-1949) (MT, pp. 72-82; ver 3.1.1 e 3.1.2). (A1) Relação entre arte e ideologia Em torno de 1946, Feyerabend participava, junto ao instituto de artes cênicas de Weimar, de debates sobre a relação entre teatro e o cenário cultural após a Segunda Guerra (ver 3.1.1.2.1). Naquele momento, o jovem austríaco aderiu às ideologias do cineasta russo Serguei Eisenstein, para quem artistas deveriam ser formadores de opinião. Contudo, Feyerabend recusou esse ponto de vista: “O dramaturgo (e seu

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A fonte primária mais completa (embora não a mais detalhada) dessas reconstruções intelectuais (e não simples relatos autobiográfico) de Feyerabend apareceu, originalmente, na contribuição do austríaco para a coletânea Versuchungen: Aufsätze zur Philosophie Paul Feyerabend, editada por H. P. Dürr (1980-81) (ver MUNÉVAR 1991, p. xx). Em seguida, ela foi reimpressa (com pequenas alterações) nas páginas conclusivas de Adeus à Razão (AR1, p. 93 n. 56). Para as considerações a seguir, tomamos como base o capítulo XX de CM3 (1993). Ele inclui todas as informações presentes em CSL, pp. 133-151 (1978) (que, por sua vez, foi precedido por PnP, pp. 127-146 (em 1977) e CM2, cap. XXI).

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colega, o professor) não deve antecipar a decisão do público (dos alunos) ou substituíla por uma decisão sua se o público no final for incapaz de fazê-lo. Em circunstância alguma ele deve tentar ser uma ‘força moral’” (CSL, p. 134). (A2) A fecundidade do realismo No final dos anos 1940, Feyerabend se mostrava “entusiasmado” com o positivismo (3.1.1.1). Naquele período, sua “ocupação favorita” consistia em usar “a Ciência para ridicularizar” outros ramos do conhecimento (ver 3.1.1.1). Porém, o pensador marxista Walter Hollitscher mostrou ao jovem Feyerabend que a “adesão a regras estritas” era insuficiente para explicar a relação entre o realismo e “a pesquisa científica e com a ação cotidiana”. Como resultado, Feyerabend teria experienciado uma “conversão realista”:

O realismo estava tão intimamente relacionado com fatos, procedimentos e princípios que eu valorizava e que ele tinha contribuído para criar, enquanto o Positivismo simplesmente descrevia os resultados de uma maneira um tanto complicada depois de terem sido descobertos: o Realismo tinha frutos, o Positivismo não. Isso pelo menos é como falo hoje em dia, muito tempo depois de minha conversão realista (CSL, pp. 139141).

(A3) A relação entre teoria e experimento Enquanto ainda era um dos “defensores da pureza da Física”, o jovem Feyerabend assumia a validade incontestável de teorias estabelecidas (como o eletromagnetismo, a relatividade ou a mecânica newtoniana). Entretanto, experimentos físicos realizados por Félix Ehrenhaft, em torno de 1948, transformaram fundamentalmente aquelas crenças positivistas. As lições de Ehrenhaft fizeram o filósofo reconhecer que “a relação entre teoria e experimento era muito mais complexa do que é mostrado nos livros didáticos”. “Há poucos casos paradigmáticos em que a teoria pode ser aplicada sem ajustes importantes”, ele completou, “mas ocasionalmente o resto deve ser tratado por meio de aproximações um tanto duvidosas e premissas auxiliares” (CSL, pp. 136-139; ver OBERHEIM 2006, cap. IV). (B) Transformações fundamentais

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As duas primeiras transformações fundamentais ocorreram em meados da década de 1960. Os encontros com o físico alemão, em Hamburgo, aconteceram quando Feyerabend lecionava na Freie Universität Berlim (MT, pp. 139-140).32 Nessa mesma época, o filósofo também lecionava na Universidade da Califórnia, Berkeley (MT, pp. 135, 174). A propósito, escreveu: “Deparei com a revolução estudantil em Berkeley, Londres e Berlim” (p. 127). A “terceira influência” remonta ao seminário, do ano de 1983, que Feyerabend ministrou em uma “célebre universidade” (DC, pp. 11, 62, 63). (B1) Crítica da epistemologia abstrata A influência de C. F. von Weizsäcker em Feyerabend determinou a fundamentação do argumento do Contra o Método (ver 3.3.2.3). Por volta de 1965, o físico alemão convidou Feyerabend para uma conferência, em Hamburgo. Feyerabend discutiu a necessidade de teorias alternativas para testar o conteúdo das teorias corroboradas, tendo como exemplo a interpretação de Copenhague da mecânica quântica (PKF 1962a; PP1, cap. XVI; BORRINI 2012, p. 70). Posteriormente, o austríaco relatou que von Weizsäcker abordou o tópico com uma argumentação repleta de minúcias históricas e dados experimentais. Essa experiência teria mostrado a centralidade de debater questões epistemológicas destrinchando casos concretos e episódios individuais. Feyerabend percebeu a discrepância entre uma abordagem epistemológica abstrata e normativa e uma pesquisa acerca da prática efetiva e contextual da ciência:

Von Weizsäcker mostrou como a mecânica quântica surgiu de pesquisa concreta, ao passo que eu reclamava, por razões metodológicas gerais, que alternativas importantes haviam sido omitidas. Os argumentos que davam apoio à minha reclamação eram bastante bons […] mas ficou subitamente claro para mim que, impostos sem consideração das circunstâncias, eles eram um estorvo em vez de um auxílio: uma pessoa tentando resolver um problema, seja na ciência, seja em outro campo, deve ter liberdade completa e não pode ser restringida por nenhuma exigência ou norma, não importa quão plausíveis possam parecer ao lógico ou ao filósofo que as concebeu na privacidade de seu gabinete. Normas e exigências devem ser verificadas mediante pesquisa, e não pelo recurso a teorias da racionalidade […] Assim, o professor Von Weizsäcker teve a principal responsabilidade em minha mudança para o ‘anarquismo’ – embora não tivesse ficado muito satisfeito quando eu lhe disse isso em 1977 (CM3, pp. 350-351).33

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Ao longo de sua carreira Feyerabend lecionou tanto nos Estados Unidos como na Europa. No decorrer de quase quarenta anos, ele assumiu cargos em Berkeley, Yale, Minneapolis, Londres, Berlim, Zurique, Auckland, Kassel e Brighton. Ver Hoyningen-Huene (2014a, p. 53). 33 Detalhes em MT, p. 149 e PKF 2012, pp. 69-71.

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(B2) A questão da ascensão do intelectualismo ocidental Nos anos 1960, movimentos políticos e estudantis tomaram as universidades europeias, latinas e norte-americanas.34 Nos Estados Unidos, o Free Speech Movement defendia a liberdade de expressão e os militantes Black Power buscavam a participação dos negros nas instituições e a inclusão de grupos excluídos nos estabelecimentos de ensino. Feyerabend lecionava na Universidade da Califórnia e “convidava os participantes a colocarem suas próprias ideias: uma novidade em termos de prática acadêmica normal” (MT, p. 129-130). Assim, o austríaco tomou contato com a literatura filosófica revolucionária – em particular, Cohn-Bendit, Lênin, Mao-Tsé e John Stuart Mill.35 As novas políticas educacionais também ampliaram direitos civis de membros originários de culturas e etnias não ocidentais: “Via-se cada vez mais negros em minhas aulas (num percentual bem maior do que no campus hoje) e eu estava sempre confuso. Deveria continuar alimentando-os com os manjares intelectuais que eram parte da cultura branca?”. Essas transformações político-culturais conduziram Feyerabend a questionar o caráter imperialista de suas aulas. Elas definitivamente moldaram o relativismo cultural e a crítica feyerabendiana à superioridade (moral, cognitiva, tecnológica etc.) do racionalismo (ver 3.3.3). Portanto, a revolução em Berkeley ocasionou uma segunda virada filosófica no corpus de Feyerabend:

De 1958 a 1990, fui professor de Filosofia na Universidade da Califórnia em Berkeley. Minha função era executar as políticas educacionais do estado da Califórnia, o que significa que eu tinha de ensinar às pessoas aquilo que um pequeno grupo de 34

Mudanças nas políticas estudantis norte-americanas desencadearam manifestações contracultura, antielitistas e avessas ao autoritarismo da administração universitária. Em 1964, a Universidade de Berkeley sediou a primeira mobilização estudantil de grandes proporções em favor do direito de realizar manifestações políticas no campus. Em decorrência, houve prisão de alunos e violentas respostas policiais para desocupar os prédios universitários. Os líderes do movimento estudantil foram suspensos da instituição e, em resposta, deflagrou-se uma greve estudantil. A administração recuou nas decisões e ações políticas foram aceitas no campus a partir de então. Diante desses acontecimentos, Feyerabend manteve seus cursos fora do campus mesmo em tempos de greve (no alojamento estudantil e em igrejas próximas à Universidade). Essa atitude desencadeou aclamações (encabeçadas pelo filósofo John Searle) de demissão de Feyerabend. Outras informações a respeito em MT, pp. 126-133 e FAM, pp. 382-393. Sluga (2006) oferece um excelente estudo sobre os impactos dessas mudanças culturais no pensamento de Feyerabend. 35 Feyerabend incorporou as ideias de Mao-Tsé, incluídas em On Contradiction (1937) e “Oppose Stereotyped Party Writing” (1942); de Lênin, em Left-Wing Communism – an Infantile Disorder (1920), de Cohn-Bendit, em Obsolete Communism: The Left-Wing Alternative (1968); e, sobretudo, John Stuart Mill, em Sobre a Liberdade (1859). Excetuando a influência de Mill em Feyerabend (ver Capítulo III), as contribuições dos demais pensadores nas ideias feyerabendianas permanecem indeterminadas. Para iniciar essa investigação, ver: CM3, pp. 9 n.1, 10, 10 n.4-5, 107 n. 1, 258; CSL, pp. 140, 159, 160, 162, 165, 201; e FAM, pp. 152, 153, 154 n. 45, 199, 295, 388; 210, 218.

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intelectuais brancos havia decidido que é conhecimento […] Por volta de 1964, mexicanos, negros e índios entraram na universidade em consequência de novas políticas educacionais. E lá estavam eles sentados, em parte curiosos, em parte distantes, em parte simplesmente confusos, esperando por obter alguma ‘educação’ […] Com efeito, dei-me conta de que os intrincados argumentos e as maravilhosas histórias que eu tinha até agora contado a um público mais ou menos sofisticado bem poderiam ser sonhos, reflexos das pretensões de um pequeno grupo que tinha tido êxito em escravizar todos os demais com suas ideias. Quem era eu para dizer a essas pessoas o que e como pensar? Eu não conhecia seus problemas, embora soubesse que tinham muitos. Não estava familiarizado com seus interesses, seus sentimentos e seus receios, embora soubesse que estavam ávidos para aprender […] Eles queriam saber, queriam aprender, queriam entender o estranho mundo ao seu redor – não mereciam eles uma nutrição melhor? Seus ancestrais tinham desenvolvido culturas próprias, linguagens pitorescas, perspectivas harmoniosas da relação entre pessoas, e entre as pessoas e a natureza, cujos remanescentes são uma crítica viva das tendências de separação, análise e egocentricidade inerentes ao pensamento ocidental. Essas culturas tiveram importantes conquistas no que é, atualmente, denominado sociologia, psicologia, medicina; elas expressam ideais de vida e possibilidades de existência humana. Contudo, nunca foram examinadas com o respeito que merecem, exceto por um pequeno número de pessoas; foram ridicularizadas e substituídas, como se isso fosse algo natural […] Experiências como essa me convenceram de que procedimentos intelectuais que abordam um problema por meio de conceitos estão no caminho errado e passei a interessar-me pelas razões do tremendo poder que esse erro agora tem sobre as mentes. (CM3, pp. 352-353)

(B3) Crítica humanitarista do racionalismo Nas reconstruções intelectuais redigidas em fins da década 1980, Feyerabend adicionou uma “terceira experiência” crucial em seu abandono do racionalismo.36 Como o filósofo expôs, o contato (intelectual e pessoal) com a física, ambientalista e humanitarista italiana Grazia Borrini também exerceu uma “tremenda influência” no pensamento de Feyerabend.37 O filósofo reconheceu que as concepções de ambos se tornaram “bastante semelhantes”, sobretudo quanto à ideia de que a redução da “miséria humana” não requer de uma “mistura filosófica” (MT, p. 191). Eles convergiam na convicção de que problemas humanos (fome, doenças, miséria, escassez de recursos naturais, destruição de ecossistemas, disputas territoriais etc.) deveriam “ser resolvidos sem estratégias globais nem com base em programas desenvolvidos em escritórios, mas

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Ver AR, pp. 376-378; esse material difere da versão homônima impressa em AR1, p. 93-101. Feyerabend e Grazia Borrini se conheceram em 1983, quando, após concluir o curso de Física, ela migrou para a Califórnia, para estudar Saúde Pública. Em Berkeley, ela acompanhou os seminários de Feyerabend, como vemos em DC, pp. 62-63. O casamento deles aconteceu somente em torno de 1989, quando ela passou a assinar Grazia Borrini-Feyerabend. Para detalhes, ver especialmente MT, pp. 181185, 191. 37

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caso por caso, sempre permanecendo em estreito contato com os problemas, desejos e opiniões das populações locais”.38

Agora vem a terceira experiência em meu caminho – meu encontro com Grazia Borrini, uma lutadora suave, mas determinada, pela paz e pela autoconfiança. […] Mas, enquanto eu ainda estava usando abstrações (tais como a ideia de ‘sociedade livre’) para chegar a um ponto de vista mais amplo e mais humano, suas ideias eram parte das ‘tradições históricas’ (para reincidir em minha maneira constipada de falar). Eu realmente sabia acerca dessas tradições e tinha escrito sobre elas mesmo antes de conhecer Grazia, mas foi necessário um encontro concreto para me fazer perceber o que aquilo implicava. Grazia também me deu livros e trabalhos escritos por estudiosos importantes, que tratavam dos problemas de (inter)câmbio cultural e econômico. Isso foi realmente um achado. Primeiro, eu agora tinha exemplos muito melhores dos limites da abordagem científica que os que tinha usado habitualmente (astrologia, magia negra, um pouco de medicina). Segundo, eu percebi que os meus esforços não tinham sido em vão e que era preciso apenas uma ligeira mudança de atitude para tornalos eficientes, tanto aos meus próprios olhos como quanto aos olhos de outras pessoas. (AR, pp. 377-378)39

Dissakè (2001), Farrell (2003) e Oberheim (2006) criticam a bipartição do corpus feyerabendiano (2.1.1). Mas o ataque mais vigoroso à Visão Padrão foi elaborado pela Escola de Hannover, para a qual não haveria qualquer incompatibilidade entre a produção de Feyerabend antes e depois do Contra o Método. Hoyningen-Huene & Oberheim defendem uma gradual e contínua radicalização do desenvolvimento filosófico de Feyerabend. Dessa forma, a Escola de Hannover rebateria a interpretação baseada na noção de uma transição fundamental do pluralismo teórico para o pluralismo metodológico. Enquanto a Visão Padrão defende a “tese de uma ruptura fundamental”, a Escola de Hannover investe nas “continuidades da filosofia de Feyerabend” subjacentes às trocas teóricas de Feyerabend (OBERHEIM & HEIT 2013, p. 21 n. 7):

Se tem entendido, ocasionalmente, como uma ruptura fundamental e uma guinada para o irracionalismo a mudança de sentido que Feyerabend claramente considera quando analisa retrospectivamente seu pensamento. Foi o próprio Feyerabend que deixou a impressão de que esse passo em direção a uma relativização é, sobretudo, a consequência de sua experiência em Berkeley […] Mas […] se vê claramente que o 38

Feyerabend citou o detalhado estudo de Borrini (1987) sobre as relações entre desenvolvimento científico-tecnológico e questões de saúde pública (AR, p. 10 n.3). Ele também se referiu a trabalhos dela em CM3, p. 248 n. 20; ver também ver TS, p. 29 (trecho ausente em AA, pp.58-64). 39 Quando Feyerabend redigiu essa passagem, ele ainda não havia casado com Grazia Borrini. Assim, na “Introdução” de Adeus à Razão, ele se refere a ela como: “Minha amiga linda, bondosa e muito paciente” (AR, p. 26). Essa influência se mostra de maneira explícita nas respostas finais das entrevistas que, na primavera e verão de 1984, Feyerabend concedeu a Borrini (2012, pp. 93-95).

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filósofo não apenas fornece razões para seu ceticismo, mas também que essas razões devem ser entendidas como uma ampliação consequente, como uma radicalização de sua filosofia anterior. (p. 22)

Em 2.1.2.1, citamos dois obstáculos metodológicos da Escola de Hannover. Em 2.1.2.2, algumas dificuldades textuais da leitura continuísta do corpus feyerabendiano. A Escola de Hannover mencionou que “o próprio Feyerabend deixou a impressão” de que a experiência em Berkeley teria ocasionado uma “ruptura fundamental” em seu pensamento (OBERHEIM & HEIT 2013, p. 21). Entretanto, esse é um retrato parcial e incorreto das reconstruções intelectuais de Feyerabend. Mais especificamente, ocorreram dois tipos básicos de transformações no pensamento do filósofo: as formativas (A) e as fundamentais (B). Em cada conjunto, explicitamos três eventos decisivos na reconfiguração do pensamento de Feyerabend – e, então, no que diz respeito ao segundo tipo, destacamos que não houve apenas uma guinada (a experiência em Berkeley). Reproduzimos extensas passagens – em (A1), (A2), (A3), (B1), (B2) e (B3) – nas quais Feyerabend descreve suas conversões intelectuais.40 Assim, concluímos que a compreensão gradualista da Escola de Hannover enfrenta outros obstáculos: i) não qualificar os tipos ou momentos das guinadas teóricas de Feyerabend; ii) não abordar o conjunto das transformações intelectuais de Feyerabend; e iii) não explicar, de forma convincente, os inquestionáveis elementos textuais os quais atestam as profundas variações filosóficas no corpus de Feyerabend.41 Em contraposição a

Em outra ocasião, Feyerabend diz ter ficado “impressionado” com o impacto desses eventos sob as “opiniões que [ele] defendia” (MT, p. 149). Com precisão, Tambolo (2007, p. 128) alerta quanto aos riscos de entendermos tais relatos de Feyerabend em termos de uma inescrutável “experiência mística”. Aliás, vale citar que o próprio Feyerabend empregou metáforas dessa natureza para descrever o desenvolvimento de suas opiniões: “eu vejo uma série de milagres onde tu vês uma progressão absolutamente ordenada de um pensamento a outro ou de uma ação a outra” (DM, p. 90). Contudo, nossa reconstrução das mudanças formativas e fundamentais (2.1.2.2), esquematizadas em (A1), (A2), (A3), (B1), (B2) e (B3), não seguem nessa direção. Destacamos, essencialmente, que existem indícios textuais recorrentes de guinadas epistemológicas no itinerário intelectual de Feyerabend. Não afirmamos, entretanto, que tais mudanças são ‘conversões’ genuínas ou ‘milagres’. 41 Hoyningen-Huene & Oberheim (2014, p. 92) consideram que “as explicações do próprio Feyerabend também não costumam ser dignas de confiança”. Mas essa desqualificação ad hominem das reconstruções intelectuais de Feyerabend proposta pela Escola de Hannover comporta dois problemas. Primeiro, ela é uma premissa interpretativa a priori, portanto, viola as orientações exegéticas fornecidas pela própria Escola de Hannover, a saber: i) efetuar um “escrutínio minucioso dos textos originais de Feyerabend” (OBERHEIM 2006, p. vii); e ii) “colocar a passagem em seu contexto próprio e então investigar cuidadosamente os detalhes” (OBERHEIM 2006, p. 211). Segundo, impede de recorrer àquele material para defender quaisquer teses relativas ao corpus. Porém, Hoyningen-Huene & Oberheim (2014, p. 97 n. 42) recorreram às várias reconstruções intelectuais feitas pelo próprio Feyerabend para sustentar, por exemplo, que a ‘teoria pluralista do conhecimento’ de Feyerabend decorreu das lições experimentais de Félix Ehrenhaft (ver CM3, pp. 341-343; MT, pp. 74-76; OBERHEIM 2006, Cap. IV). 40

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Oberheim (2006), as passagens em questão manifestam, explicitamente, as razões pelas quais, a partir de meados da década de 1960, o autor de Contra o Método rejeitou, de forma inédita em sua produção, a relevância de abordagens epistemológicas normativas e a priori, bem como questionou o status cognitivo e social da tradição racionalista ocidental. Antes disso, segundo as próprias palavras de Feyerabend, ele sequer havia apreendido “a superficialidade e as presunções de uma filosofia que queria interferir em uma prática bem formada” (AR, p. 377). Portanto, a representação gradualista do corpus feyerabendiano, introduzida pela Escola de Hannover como uma alternativa à imagem bipartida defendida pela Visão Padrão, não está isenta de dificuldades.

2.1.3. Críticas adicionais à Escola de Hannover O estudo do corpus feyerabendiano revela que o pensamento de Feyerabend experimentou profundas reorientações teóricas (2.1.2.2). A Escola de Hannover interpreta tais mudanças como radicalizações graduais e contínuas de concepções prévias (2.1.2). Essa leitura procura por estruturas teóricas implícitas àquelas aparentes descontinuidades filosóficas (1.1.5). Como Hoyningen-Huene & Oberheim (2014, p. 88) anunciaram, eles buscam por “elementos conceituais unificadores do pensamento de Feyerabend”. Nesse horizonte, atribuem ao autor de Contra o Método uma teoria pluralista do conhecimento (p. 95). De forma esquemática, a epistemologia pluralista que a Escola de Hannover identifica em Feyerabend ocorreria no plano do conhecimento científico e no plano metateórico. No plano do conhecimento científico, o pluralismo feyerabendiano “reivindica a necessidade do pluralismo nas ciências, no sentido da elaboração de alternativas às teorias já estabelecidas”. No plano metateórico, “exige o pluralismo enquanto promotor de abordagens filosóficas variadas, com relação a um único e mesmo domínio de fenômenos”. Como vemos, a Escola de Hannover considera que a defesa feyerabendiana do pluralismo remonta à premissa de que “o pluralismo seria epistemicamente mais vantajoso” do que o “dogmático enrijecimento científico e filosófico”. O pluralismo teórico surgiria a partir da ideia segundo a qual a testabilidade das teorias “não se restringe estritamente à sua confrontação direta com dados factuais” (pp. 96-97). O método adequado para testar teorias seria o embate envolvendo teorias alternativas. Para o austríaco, a disputa teórica seria um “imperativo”. Então, “o embate entre alternativas desponta como um teste genuíno à 98

teoria posta em questão”. A crítica do conhecimento exigiria a adoção de alternativas como pano de fundo. Assim, teorias alternativas são desejáveis e mesmo necessárias. Para os autores, “o apelo de Feyerabend acerca da ‘proliferação de teorias’ decorre dessas noções”. O pluralismo filosófico seria resultado da constatação do “caráter especulativo das teses filosóficas”. A “carência de um fundamento conclusivo” das ideias filosóficas conduziria o filósofo à recomendação de “jamais descartar concepções marginais”. Assim, “a filosofia deveria ser um empreendimento que, em razão disso, caracteriza-se metodologicamente pela maior abertura possível”. A Escola de Hannover considera que a teoria pluralista do conhecimento (científico e filosófico) corresponderia à concepção epistemológica de Feyerabend: “caracterizamos a filosofia de Feyerabend como uma teoria pluralista do conhecimento, não obstante as inúmeras transformações que ela experimentou” (p. 88). As considerações de Hoyningen-Huene & Oberheim (2014) mostram que a interpretação da Escola de Hannover comporta duas teses basilares: T1 – Feyerabend possui uma concepção (pluralista) de filosofia. T2 – Feyerabend possui uma teoria (pluralista) do conhecimento.

2.1.3.1. A ‘concepção de filosofia’ feyerabendiana A primeira tese da Escola de Hannover afirma que Feyerabend possui uma concepção (pluralista) de filosofia. Essa tese diverge de alguns importantes aspectos do pensamento de Feyerabend. Primeiro, o filósofo elaborou diversas críticas radicais ao valor da filosofia: “Ela não é útil às ciências, deturpa os seus processos, enfrenta problemas que só foram levantados por causa de uma aproximação equívoca, engana seriamente as pessoas e esbanja milhões de dinheiro público” (DM, p. 80-81). Segundo, o autor rejeitou inteiramente ser considerado um ‘filósofo’ (PF, p. 181; DC, p. 66). Terceiro, e mais importante, o corpus de Feyerabend não explicita qualquer definição unitária ou definitiva quanto à tarefa da filosofia. Uma ligeira análise das duas citações abaixo pode ser útil:

Parece-me que a tarefa da filosofia, ou de qualquer atividade interessada não em retardar, mas em avançar o conhecimento, consiste em encorajar o desenvolvimento desses novos modos de abordagem, de participar do desenvolvimento deles, em vez de

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perder tempo mostrando, o que é em tudo óbvio, que eles são diferentes do status quo. (PP1, p. 175). O que precisamos é de uma filosofia que não apenas comente, a partir de fora, mas que participe do processo da ciência. Não pode haver qualquer linha divisória entre a ciência e a filosofia. Nem deveríamos nos contentar com um aumento da eficiência, do conteúdo de verdade, do conteúdo empírico ou seja lá o que for. Todas essas coisas valem pouco quando comparadas com uma vida feliz e bem equilibrada. Precisamos de uma filosofia que dê ao ser humano o poder e a motivação para tornar a ciência mais civilizada, ao invés de permitir uma ciência supereficiente, superverdadeira, mas que, por seu turno, rebaixam o ser humano. Uma tal filosofia deve mostrar e examinar todas as consequências de uma forma de vida particular, inclusive aquelas que não podem ser formuladas em palavras (PP3, p. 198).

O primeiro trecho foi redigido em 1963. Nele, o austríaco afirma que a filosofia deveria colaborar para avançar o conhecimento através do desenvolvimento de abordagens alternativas ao status quo. O texto visava “defender o materialismo de um certo ataque” (PP1, p. 161). Buscava também “colocar a filosofia em seu devido lugar”. Feyerabend sublinha que filósofos atacam “tentativas de elaborar imagens coerentes do mundo”. Essa postura acarretaria o abandono de alternativas antes que mostrem seus méritos. Por sua parte, Feyerabend assevera que proponentes de alternativas “não devem temer essas dificuldades”. Eles deveriam “olhar para além das objeções” filosóficas e “reconhecer a irrelevância” do conservadorismo filosófico. Após isso, poderiam se dedicar à “tarefa mais recompensadora” de avançar as alternativas, examinar “no detalhe” a “fecundidade” delas e “elaborar novas ideias”. Então, o autor considerou a ideia de que a tarefa da filosofia consiste em “encorajar tais desenvolvimentos do abstrato ao concreto, contribuir para a invenção de novas ideias” – no contexto de um ataque ao conservadorismo filosófico. O segundo trecho foi redigido em 1975. Nele, Feyerabend considera que a filosofia deveria contribuir para a atividade científica, de modo que a separação entre ambas desaparecesse. Para ele, a “revolução científica dos séculos dezesseis e dezessete” não sofria dos efeitos da especialização (PP3, p. 196). Naquele “tempo heroico”, ainda havia uma “mistura de ideias filosóficas, matemáticas, físicas e psicológicas”. No entanto, essa postura crítica acabou substituída “por uma mentalidade mais conservadora”. O crescente conservadorismo na filosofia acarretou um “novo conformismo” (p. 197): a filosofia se interessou por explicar a ciência. Os “problemas dos cientistas” teriam sido substituídos pela “simplicidade da abordagem dos filósofos”: “Elas [as ciências] serão atrasadas tanto por causa da inocente simplicidade da abordagem dos filósofos como em razão

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da equivocada ânsia por precisão”. Além disso, a passagem em questão mostra que a filosofia deveria refletir sobre as implicações éticas de concepções científicas. Então, Feyerabend sustentou que o remédio para a separação entre ciência e filosofia da ciência é a unificação dessas atividades – no contexto de um ataque ao conservadorismo filosófico. Feyerabend questionou o valor da filosofia e recusou ser considerado um filósofo. Também não assentiu a uma concepção unitária e fixa (mesmo que pluralista) de filosofia, como defende a T1 da Escola de Hannover. Em nossa ótica, as concepções de filosofia evidenciadas no corpus feyerabendiano emergiram como crítica imanente de concepções dominantes. A esse respeito, Oberheim (2006, p. 17) afirmou: “Feyerabend defendeu o pluralismo para encorajar o tipo de crítica de pontos de vista diferentes a qual conduz ao aprimoramento”. Contudo, não consideramos que Feyerabend se comprometeu com tal concepção pluralista de filosofia, baseada na noção de que o pluralismo conduz ao progresso.42 Em especial, porque Feyerabend i) apontou limites para o próprio pluralismo43 e ii) não afirmou que o pluralismo encerra a única forma de promover o progresso.44 Conforme entendemos, a Escola de Hannover chega àquela tese através de uma atribuição indevida que segue alguns passos implícitos. Primeiro, Hoyningen-Huene & Oberheim identificam o preceito pluralista segundo o qual o confronto crítico entre alternativas conduz ao desenvolvimento do saber.45 Segundo, assumem esse preceito pluralista como um princípio da sua própria filosofia: “Foi Paul Hoyningen-Huene, não Paul Feyerabend, quem pela primeira vez me [Oberheim] ensinou os méritos de uma abordagem pluralista em filosofia, visando o progresso através da crítica construtiva” (OBERHEIM 2006, p. viii). Terceiro, projetam como a concepção de filosofia de Feyerabend uma concepção metodológica

No início dos anos 1980, o autor afirmou que a ideia de crítica “é encontrada em quase todas as civilizações” (PP1, p. ix). Assim, ela ocuparia uma “função importante na história da ciência, da filosofia e da civilização”. 43 Tanto quanto pudemos identificar, a Escola de Hannover não discute essa crítica de Feyerabend à trivialização do pluralismo que Feyerabend aponta em MT, p. 179. Vamos explorar essa questão do limite humanitário das teses pluralistas na Conclusão deste trabalho. 44 “E minha tese é a de que o anarquismo contribui para que se obtenha progresso em qualquer dos sentidos que se escolha atribuir ao termo” (CM3, p. 42). E, por sua parte, o anarquismo admite que “regras e padrões” são importantes (p. 310). O anarquismo exposto no Contra o Método não exclui a possibilidade de, ocasionalmente, “dar maior peso à razão” (p. 36 n. 2). Assim, o anarquismo epistemológico inclui o pluralismo, mas não coincide com ele; por isso, o anarquismo também inclui o monismo, não o excluindo absolutamente. 45 Feyerabend defendeu essa ideia em vários textos, como mostram Hoyningen-Huene & Oberheim (2014, p. 93 n. 24). 42

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pluralista de filosofia (que o autor de Contra o Método expôs em alguns textos) a qual a Escola de Hannover concebe como epistemicamente superior. Isso não significa que a concepção pluralista de filosofia seja falsa – apenas explicita que Feyerabend não a defendeu, de forma constante e sem ressalvas, em toda sua produção filosófica.

2.1.3.2.A ‘teoria do conhecimento’ feyerabendiana A segunda tese da Escola de Hannover afirma que Feyerabend possui uma teoria do (pluralista) conhecimento (2.1.3). Em situações muito pontuais, Feyerabend almejou elaborar uma nova teoria do saber (NP, p. 347). Por exemplo, em um documento datado de 1977, o autor requisitava à universidade de Berkeley a subvenção para um ano de pesquisa. Na seção ‘Plano de longo prazo’ dessa solicitação de um ano sabático46, Feyerabend escreveu:

Resultado: nem o conteúdo, nem o método, nem as regras da razão nos permitem distinguir entre ciência e não ciência. Toda separação é um fenômeno local, ela acontece sob certas circunstâncias, entre certas partes da ciência e certas partes da não ciência, e não ser utilizada para inferir uma diferença essencial entre as coisas separadas. Plano de longa duração Meu plano de longa duração consiste em construir uma teoria do conhecimento que considere essa situação. Ela diferirá das teorias do conhecimento usuais em dois aspectos. (1) Será uma teoria tanto das ciências quanto das artes (humanidades). Em vez de ver a ciência e as artes como dois domínios diferentes que obedecem a princípios diferentes, apresentará ambos como partes diferentes de uma e mesma atividade, do mesmo modo que a física e a biologia são vistas como partes de uma e mesma atividade: a ciência. (2) Não conterá quaisquer regras abstratas. Todas as regras, inclusive as da lógica, serão conectadas a um contexto bem determinado e apresentará uma descrição histórica do contexto e do uso correspondente das regras. O exemplo histórico e a analogia, e não a lógica ou qualquer metodologia abstrata, decidem como um problema particular será solucionado […] A teoria do conhecimento que tenho em mente consistirá de três partes: (i) história, (ii) heurística e (iii) teoria do humano e as ciências afins. (NP, pp. 347-348; FN, pp. 302-303)

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O documento é denominado exatamente Antrag auf ein Forschungsjahr, 1977 (ver NP, pp. 340-355).

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O documento acima consiste em uma solicitação institucional de subvenção para pesquisas em bibliotecas e institutos em Londres, Viena, Cambridge/Inglaterra e Cambridge/Massachusetts (NP, p. 354). O austríaco planejava construir uma teoria do conhecimento na qual a demarcação entre as áreas seria um “um fenômeno local”. Áreas como ciência e arte consistiriam em “partes diferentes de uma e mesma atividade”. A proposta feyerabendiana também determina que as regras abstratas deveriam ser “conectadas a um contexto”. Quando redigiu tal solicitação, ele programou desenvolver uma epistemologia distinta das usuais. Essas pretensões convergiam com a proposta contida no subtítulo do ensaio “Against Method” (PKF 1970), qual seja: “an Anarchistic Theory of Knowledge” (FAM, pp. 181 n. 71, 192, 220, 292). De forma geral, o projeto feyerabendiano visava uma epistemologia avessa à admissão de regras a priori como guia da pesquisa científica. Retoricamente, afirmava o anarquismo como um “excelente remédio para a epistemologia e para a filosofia da ciência” (CM, p. 17). Então, na primeira edição do livro Contra o Método, em 1975, a proposta de uma teoria anárquica do conhecimento ainda constava no subtítulo da obra: “Esboço de uma teoria anárquica* da teoria do conhecimento”. A nota “*” ao subtítulo dizia: “Comentários acerca da acepção em que se toma, aqui, o termo ‘anarquismo’, acham-se em nota 12 da Introdução e no próprio texto, capítulo XVI, trecho correspondente às notas 18 e seguintes”. No entanto, o próprio Feyerabend descreveu essa concepção epistemológica como um “esboço”:

A – A culpa é sua! (Tira um livro do embrulho). Veja isto: Contra o Método – Esboço de uma Teoria Anárquica do Conhecimento – este é o livro que o tornou famoso […] A – Bem, certamente é estranho; uma nota de pé de página no título; e justamente depois da palavra ‘anárquica’. […] B – Então o próprio título – Teoria Anárquica do Conhecimento – não lhe dá o que pensar? A – O que está querendo dizer? B – O que lhe sugere o termo ‘anarquismo’? A – Bem, uma espécie de desordem… B – …precisamente. E teoria? A – Compreendo onde quer chegar. B – Agora volte algumas páginas, aqui, à página 7, nas linhas 8 e 9, o que está escrito? A – Está escrito: ‘É uma carta longa e sobretudo pessoal…’ – ‘carta’ em letra cursiva.

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B – Uma carta, uma comunicação pessoal, não um tratado, nem um livro de texto. Uma carta escrita ironicamente. A – Quer dizer que o livro todo é um esboço? B – Não, falo sério – mas não muito sério – sobre um montão de coisas, porém eu as resumo na forma de uma ‘posição’ filosófica, aquela, sim, que é um esboço. (DC, pp. 67-68)

O subtítulo da primeira versão do Contra o Método foi excluído nas reedições da obra, em 1988 e 1993 (HACKING 2010, p. xiii). Isso sugere que, aos poucos, Feyerabend se afastou daquele programa epistemológico. Em A Ciência em uma Sociedade Livre, de 1978, ele mesmo atacou o propósito remediador anarquismo epistemológico: “áreas como a Filosofia da Ciência […] não devem ser reformadas; pelo contrário, devemos permitir que morram de morte natural” (CSL, p. 151). Mais nitidamente, também em 1978, publicou um texto no qual recusava explicitamente qualquer concepção epistemológica própria. O desconhecido texto “Kleines Gespräch über große Worte” reconstrói o debate ocorrido em 18 de janeiro daquele ano na Gesamthochschule de Kassel.47 Moderado pelo filósofo alemão Wolfdietrich SchmiedKowarzik, a discussão original retomava o ensaio “Unterwegs zu einer dadaistischen Erkenntnistheorie”, de 1977.48 Schmied-Kowarzik afirmou que Feyerabend “adota parte substancial da concepção de conhecimento e de ciência de seus adversários” (PnP, p. 147). Em seguida, o debatedor sublinhou que o austríaco “não desenvolveu uma teoria do conhecimento própria”. Assim, concluiu que as críticas feyerabendianas “não descem ao fundo das questões; na verdade, essa crítica radical da ciência e do conhecimento brilha por sua ausência”. A curiosa resposta de Feyerabend a tais considerações, reproduzida no longo trecho a seguir, mostra que ele abandonou o projeto de elaborar uma nova concepção do conhecimento. A apresentação de uma “nova filosofia abstrata” repetiria o “velho sonho dos intelectuais”:

“Breve conversa sobre termos esnobes”, originalmente publicado em Unter dem Pflaster liegt der Strand, 5 (1978), Hans Peter Duerr (ed.), Karin Kramer: Berlin 1978, pp. 123-39. Esse texto não aparece na lista bibliográfica dos principais trabalhos da Escola de Hannover (OBERHEIM 2006). 48 “A caminho de uma teoria dadaísta do conhecimento”, originalmente impresso em Unter dem Pflaster liegt der Strand, Vol. 4 (1977), Hans Peter Duerr (ed.), Karin Kramer Verlag: Berlin 1977, pp. 9-88. Ver PnP: IV. Diversas seções desse escrito apareceram posteriormente na Parte II de CSL. Especificamente: as seções 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 10 e 13 de PnP: IV correspondem, respectivamente, às seções 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 11. As seções 9 e 11 de PnP, cap. IV são não foram incorporadas ao livro de 1978, enquanto a seção 12 de PnP, cap. IV antecipam a discussão em CSL: II (Parte 3). 47

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Pois bem, de fato, a última coisa que eu desejaria desenvolver é uma nova concepção, como você [Schmied-Kowarzik] denomina, do conhecimento, ou seja, uma nova filosofia abstrata. É verdade que me envolvo com tudo quanto é tipo de ideias, mas isso é, digamos, um assunto privado. O que escrevo, o que digo aos outros, aquilo com o que aborreço meus amigos não é uma ‘concepção do conhecimento’, mas uma coletânea de evidências, aforismos, alusões que iluminam certas situações e que podem ajudar o leitor ou o ouvinte a refletir acerca de seus problemas. O conteúdo de minhas observações é sempre o mesmo: não aos seguidores dos cientistas, não aos seguidores dos intelectuais, sejam marxistas ou católicos de direita; todos eles buscam seus próprios interesses, todos intentam atingir um poder espiritual e material sobre os humanos, o que os faz se comportar como se estivessem acima de tudo, quando, na realidade, sabem pouquíssimo – e este pouco que sabem se baseia em uma espécie de religião de busca da verdade ou da eficiência a qual é muito discutível. O que tenho em mente quando faço essas observações? Não tenho em mente os intelectuais, mas os homens que têm ou tiveram suas próprias tradições, tradições que dotaram as vidas deles de conteúdo e identidade e as quais, em nossos dias, são ridicularizadas e afastadas como se fossem simplesmente opiniões dispensáveis, às quais se nega racionalidade, poder cognitivo, profundidade, ou seja, tudo isso que está tão em moda atualmente […] Assim, chego ao segundo ponto. O senhor Schmied-Kowarzik descobriu certas similaridades entre os argumentos de meus adversários, os cientistas e os racionalistas, e os meus próprios argumentos. Isso é correto. Mas a semelhança não ocorre por que eu tenha adotado componentes da ideologia dos meus adversários e acredite nelas, mas, precisamente, porque assumo estes componentes para os utilizar contra eles mesmos; usando-os, desejo golpear a ideologia de onde eles derivam. O mesmo ocorre com o ‘radicalismo’ de minhas ideias, me é absolutamente indiferente ser ou não um ‘radical’. Contudo, se o que se trata é de pregar uma etiqueta nas pessoas, então devo dizer que é o senhor, Schmied-Kowarzik, que ficou para trás. Você está entregue, pois, ao velho sonho dos intelectuais: é preciso haver uma ‘concepção’, um ‘sistema’; ao passo que o que me importa é criar as condições para que se possa viver e florescer todas as concepções, todos os sistemas, todas as tradições” (PnP: 148-149).

O trecho acima evidencia uma explícita oposição à T2 da Escola de Hannover. Então, nossa discordância quanto à atribuição de uma teoria pluralista do conhecimento a Feyerabend converge com a opinião de Munévar (2006, p. 116), para quem é indevido estruturar uma “teoria sobre a filosofia de Feyerabend” (1.2.3). Ele relembra que “Feyerabend desgostava das teorias do conhecimento porque concebia o conhecimento” como um “processo de mudança”. Como tal, a dinâmica filosófica dele não poderia ser fixada por meio de uma concepção epistemológica unitária – ainda que por meio da noção vaga do pluralismo filosófico, como propõe a Escola de Hannover.49

49

Apresentamos a Gonzalo Munévar nossa crítica à Escola de Hannover (comunicação privada, em 18/09/2011). Mencionamos que a leitura de Hoyningen-Huene & Oberheim atribuíra uma teoria do conhecimento a um pensador que, diversas vezes, rejeitou esse tipo de pretensão epistemológica. O estudioso observou que tal ponderação seria “provavelmente verdadeira” e que deveria constar no presente estudo. Do mesmo modo, comentamos com George Couvalis que Oberheim (2006) corresponde a um estudo denso, embora com problemas textuais e metodológicos. Na ocasião, designamos a leitura do pluralismo filosófico de Feyerabend de ‘concepção guarda-chuva’. A observação de Couvalis (comunicação privada em 17/10/13) foi favorável à nossa discordância com a Escola de Hannover. O estudioso reforçou que a ideia do ‘pluralismo filosófico’ de Feyerabend “é ampla demais para ser útil”. De fato, assumir que Feyerabend foi um pluralista filosófico ou um “camaleão” (como Oberheim 2006,

105

2.2. A Segunda Dicotomia A primeira dicotomia exegética do corpus feyerabendiano concerne à bipartição da filosofia de Feyerabend em antes e depois do Contra o Método. A Visão Padrão estabelece que o pluralismo teórico (dos anos 1950 e 1960) seria inconciliável com o pluralismo metodológico (a partir da década de 1970). Contra essa opinião, Dissakè (2001), Farrell (2003) e Oberheim (2006) defenderam uma continuidade entre as ideias feyerabendiana pré- e pós-Contra o Método. A Escola de Hannover contrapôs àquela perspectiva uma concepção gradualista segundo a qual a obra do austríaco revelaria uma crescente e contínua radicalização de concepções epistemológicas. Apesar das dificuldades intrínsecas à perspectiva de Hoyningen-Huene & Oberheim (2.1.3.1 e 2.3.1.2), a Escola de Hannover desponta como a principal antagonista da Visão Padrão. Assim, a primeira dicotomia (ou a dicotomia epistemológica pluralismo teórico/pluralismo metodológico) já não desponta como predominante nos estudos sobre Feyerabend. Mas a superação do dogma referente à bipartição do corpus de Feyerabend não desfaz a separação entre a filosofia da ciência e a filosofia política de Feyerabend. Logo, apesar das profundas divergências entre a Visão Padrão e a Escola de Hannover quanto à dicotomia epistemológica, essas duas principais tradições interpretativas convergem no que tange à segunda dicotomia:

[A]: A filosofia política de Feyerabend, elaboração do que ocupa uma grande parte de seus resultados posteriores ao Contra o Método, experimentou um duplo destino. De um lado, se tornou o foco de considerável interesse entre pensadores de contracultura da New Age e do movimento ambientalista. Por outro lado, recebeu pouca atenção por parte da comunidade filosófica acadêmica, provavelmente em razão da percepção de uma falha de fazer justiça aos argumentos de referência relevantes. Os comentadores filosóficos tendem a concordar que a teoria política dele não foi bem formulada. [...] Nesta ocasião, tudo o que posso fazer é indicar algumas das questões mais visíveis e problemas que circundam suas opiniões. (PRESTON 1997, p. 207) [B] Parece haver um consenso de que as contribuições de Feyerabend para a filosofia política foram bem menos importantes do que suas contribuições para a epistemologia e a filosofia da ciência e suas publicações dos anos 1980 tiveram bem menos impacto do que seus trabalhos iniciais. (OBERHEIM 2006, p. 22)

p. 270) habilita enquadrar qualquer ideia feyerabendiana como condizente ao pluralismo filosófico, portanto, essa noção não auxilia a compreender mudanças ou incompatibilidades no corpus feyerabendiano. Contudo, nem Munévar nem Couvalis apresentaram, eles mesmos, criticas similares às nossas à Escola de Hannover.

106

O trecho [A] condensa a posição da Visão Padrão. Ela é composta por cinco ideias: A1 – Feyerabend possui uma “filosofia política”. A2 – A filosofia política de Feyerabend engloba “resultados posteriores ao Contra o Método”. A3 – A “comunidade filosófica acadêmica” não estudou a filosofia política de Feyerabend. A4 – Feyerabend falha em debater “argumentos de referência” da filosofia política. A5 – Filósofos políticos concordam que “a teoria política” de Feyerabend “não foi bem formulada”.

O trecho [B] condensa a posição da Escola de Hannover. Ela é composta por três ideias: B1 – Existe um “consenso geral” sobre as “contribuições de Feyerabend para a ciência política”. B2 – Esse “consenso geral” entende que as principais contribuições de Feyerabend não foram para a “filosofia política”. B3 – Os trabalhos de Feyerabend pós-1980 “tiveram bem menos impacto” do que os “trabalhos iniciais” dele.

Partindo dos trechos [A] e [B], descobrimos que a dicotomia disciplinar (filosofia da ciência/filosofia política) do corpus feyerabendiano foi endossada pela Visão Padrão e pela Escola de Hannover. Ela envolve as seguintes ideias:50 I – Feyerabend possui uma filosofia política (A1 e B1); II – A filosofia da ciência e a filosofia política de Feyerabend correspondem a dois domínios separados; III – A filosofia política de Feyerabend é: III.a) limitada e equivocada (A3 e A4) III.b) filosoficamente pouco relevante (B2 e B3).

Agora vamos debater as origens e premissas da segunda dicotomia. Mostraremos que a estipulação da dicotomia disciplinar deriva de um falacioso Argumentum ab auctoritate (2.1.1) e apontamos as linhas gerais das tradicionais opiniões sobre a filosofia política de Feyerabend (2.2.1.1.1 e 2.2.1.1.2). Em seguida, analisamos de estudos secundários e de fontes primárias não consideradas pela Visão Padrão (2.2.1.1.3 e 2.2.2.2). Sintetizamos o pensamento político feyerabendiano nos anos 1970, enumerando dez ideias básicas dos anos 1970 (2.2.1.2.1); e indicamos a

50

A marcação cronológica indicada pela Visão Padrão e pela Escola de Hannover para o surgimento da filosofia política de Feyerabend é compatível (A5 e B3, respectivamente), mas essa informação é irrelevante para a investigação em curso.

107

proposta de ação política democrática avançada por ele nos anos 1980, como resposta à questão do status da ciência na sociedade (2.2.1.2.2). Com isso, pretendemos sugerir que: i) o pensamento político de Feyerabend não corresponde a uma teoria política (contra a ideia I); ii) que as reflexões epistemológicas e políticas de Feyerabend convergem teoricamente (contra a ideia II); e iii) que a suposta filosofia política de Feyerabend é consistente, ampla (contra a ideia III.a) e contém propostas interessantes (contra a ideia III.b).51 Concluímos defendendo a recusa do dogma da segunda dicotomia do corpus feyerabendiano.

2.2.1. Argumentum ab auctoritate Oberheim (2006, p. 22) afirmou: “Para uma excelente discussão da filosofia política de Feyerabend, ver o capítulo 12 de Preston (1997)”. Contudo, as ideias políticas de Feyerabend não correspondem ao tema central da obra de referência da Visão Padrão: “Este livro se debruça primariamente sobre a filosofia do conhecimento de Feyerabend” (Preston 1997, p. xi). Preston (1997) não oferece mais do que um apanhado de opiniões de outros intérpretes sobre a filosofia política de Feyerabend:

A filosofia política de Feyerabend, elaboração do que ocupa uma grande parte de seus resultados posteriores ao Contra o Método, experimentou um duplo destino. De um lado, se tornou o foco de considerável interesse entre pensadores de contracultura da New Age e do movimento ambientalista. Por outro lado, recebeu pouca atenção por parte da comunidade filosófica acadêmica, provavelmente em razão da percepção de uma falha de fazer jus aos argumentos de referência relevantes. Os comentadores filosóficos tendem a concordar que a teoria política dele não foi bem formulada. [...] Nesta ocasião, tudo o que posso realizar é indicar algumas das questões mais visíveis e problemas que circundam suas opiniões. (PRESTON 1997, p. 207)

Preston (1997) não representa uma “excelente discussão da filosofia política” e, assim, a segunda dicotomia parece derivar de um falacioso Argumentum ab auctoritate. Também não basta sugerir que a descrição da Visão Padrão sobre o tema somente indica “algumas das questões mais visíveis e problemas que circundam” as opiniões

51

Recomendamos, a propósito, o trabalho de Brown (2013).

108

feyerabendiana. É preciso evidenciar a superficialidade da interpretação de prestoniana (2.2.1.1) e de suas fontes secundárias (2.2.1.2).

2.2.1.1.A Visão Padrão sobre a filosofia política de Feyerabend A passagem a seguir consta na parte final do trecho [A], citado acima (2.1): “Nesta ocasião, tudo o que posso realizar é indicar algumas das questões mais visíveis e problemas que circundam suas opiniões” (PRESTON 1997, p. 207). Na sequência, o comentador nos remete outros estudos, os quais complementariam sua discussão da filosofia política de Feyerabend: “Para outros problemas, ver Koertge [1980], Yates [1984], [1985], Alford [1985], Siegel [1989] e Gjertsen [1982]” (PRESTON 1997, p. 222 n. 14). Esperamos mostrar em 2.2.1.1.1 que essas fontes complementares, no entanto, não apresentam uma leitura relevante das ideias de Feyerabend.

2.2.1.1.1. A ‘fonte primária’ da Visão Padrão Preston (1997) destina apenas três páginas de sua obra à filosofia política de Feyerabend.52 A Visão Padrão expõe estritamente o relativismo democrático trabalhado por Feyerabend em A Ciência em uma Sociedade Livre.53 O estudioso aponta que, segundo a ideia feyerabendiana, “ao decidir como avaliar as tradições, instituições e propostas que o circundam, o cidadão usará os padrões da tradição à qual pertence” (p. 207). Ele considera essa ideia trivial, caso sugira que cidadãos decidem baseados nas tradições às quais pertencem. Também seria falsa, caso afirme que um cidadão pode decidir adotando padrões de outras tradições. Assim, o relativismo democrático não acarretaria qualquer implicação ética. Preston também considera um erro Feyerabend não determinar se o relativismo de valores consistiria em uma concepção metaética ou uma prescrição quanto à vida em comunidade. Ainda opinião prestoniana também

52

A única seção sobre o tema em Preston (2012) não acrescenta informações novas. Preston lembra que A Ciência em uma Sociedade Livre (1978) foi preparado como um apêndice ao Contra o Método (1975). Ele mostra que, em 1978, Feyerabend buscou aprimorar seus argumentos anteriores acerca das implicações culturais e éticas do anarquismo epistemológico. Essa tentativa levou o filósofo a criticar o privilegio da ciência na sociedade e valorizar tradições não ocidentais. Por fim, Preston sublinha que o reconhecimento dos limites da ciência implica a separação do Estado e da ciência como uma redução da influência dos experts e intelectuais nas decisões que impactam na vida pública. 53 Ver CSL, pp. 95-113, 120-133; CM1, cap. XVIII; PP3, caps. V, X e XI. Ver 2.2.2.2 adiante.

109

discorda da proposta de direitos iguais a tradições, e não para indivíduos. Então, a Visão Padrão determina que Estado ideologicamente neutro defendido em A Ciência em uma Sociedade Livre seria um Estado liberal: “a filosofia política à qual ele [Feyerabend] se sentiu mais atraído, e para a qual ele reservou os elogios mais extravagantes, foi o liberalismo do Sobre a Liberdade, de John Stuart Mill” (p. 208). Feyerabend defenderia uma leitura libertária de Mill e a base da filosofia política de feyerabendiana estaria na tese segundo a qual “o Estado, se deve existir, deveria ser uma estrutura de proteção provendo apenas os serviços públicos essenciais que não surgiriam sob o regime do livre comércio”. Como a ciência não estaria, para o austríaco, dentre os “serviços públicos essenciais”, o Estado não deveria se ocupar de questões científicas: “a ciência deveria ser separada do Estado”. A Visão Padrão considera que a filosofia política de Feyerabend também assumiria um modelo social democrata. Mas Preston frisa que esse modelo “não se reconcilia bem com tendências libertárias” de Feyerabend. A “autonomia cultural” afirmada no relativismo democrático também incorporaria uma “ideologia, ao invés de ser um simples facilitador” (p. 209). O projeto político em vista se comprometeria, ainda, com uma ideologia democrata. Contudo, Preston ressalta que “Feyerabend possui apenas esboços de respostas” para tais considerações. Segundo o comentador, o relativismo democrático de Feyerabend “parece ser impotente quanto a evitar as óbvias inconsistências das formais mais superficiais de relativismo dos valores”.

2.2.1.1.2. As ‘fontes secundárias’ da Visão Padrão A Visão Padrão

recomenda alguns

poucos

e insuficientes textos

complementares à compreensão da filosofia política de Feyerabend (2.1.1.1). Mais especificamente, constatamos que Koertge (1980) e Siegel (1989) são resenhas de obras de Feyerabend, logo, não investigações detalhadas a respeito do tema. Gjertsen (1982) traz um estudo genérico sobre filosofia da ciência em geral, não uma pesquisa devotada ao pensamento político do austríaco. Então, essas três referências não contribuem para

110

o entendimento da teoria política da Feyerabend.54 As outras indicações da Visão Padrão são Yates (1984; 1985) e Alford (1985a). Yates (1984) afirma que a Feyerabend “aduz consequências políticas do seu ‘anarquismo epistemológico’” (p. 137). O fruto dessas reflexões seria o relativismo democrático de A Ciência em uma Sociedade Livre:

Ele [Feyerabend] procedeu tentando dissolver o problema da demarcação, mostrando que tradições não científicas, de forma reiterada, levaram a avanços científicos; a implicação disso é que nada na ciência de nossos dias é sacrossanto e que a ciência é uma instituição na sociedade ocidental. Assim, na visão de Feyerabend, a ciência não é um fenômeno com uma metodologia anistórica, mas, pelo contrário, uma das muitas formas possíveis de ver o mundo – uma forma que foi institucionalizada no Ocidente baseada na crença de que ela possui um método especial de conduzir à Verdade […] Assim, Feyerabend conclui que chegou a hora de separar o estado e a ciência, de forma similar à separação entre estado e religião. Feyerabend designa por relativismo democrático o tipo de sociedade que consideraria a ciência uma tradição entre muitas, permitindo a todas as tradições acesso igual a facilidades e centros de poder.

No relativismo democrático de Feyerabend, a avaliação das tradições dependeria de “câmara de cidadãos”. Tais concílios democráticos deveriam impedir que “a Ciência ou qualquer outra instituição” usufruísse de “privilégios especiais” (p. 138). As tradições seriam tratadas como iguais, logo, “a Ciência não será ignorada”. Tal “solução para o problema da função da ciência em uma sociedade livre” recorreria à existência de câmara de cidadãos em uma sociedade democrática. Yates sublinha que, no entanto, o austríaco superestimou a quantidade de cidadãos que anseiam por tal independência de tradições. A possibilidade mais plausível seria a de que eles não

54

Koertge (1980) é uma resenha do livro A Ciência em uma Sociedade Livre a qual dedica pouco mais de uma página ao tema ‘Ciência em uma Sociedade Livre’. Koertge (1980, p. 389) entende que aquele livro amplia as idéias de Feyerabend sobre “a área da filosofia política”. O essencial da visão política feyerabendiana seria esta tese: “Em uma democracia, todas as tradições ou formas de vida devem ser aceitas, desde de que não violem seriamente outras pessoas”. Assim, o predomínio do racionalismo científico na cultura Ocidental corresponderia a uma “ameaça à democracia”. A resenha destaca que, para o filosofo, o Racionalismo seria “apenas uma ideologia dentre várias”, por isso não poderia ocupar um lugar de destaque nas “nossas instituições, especialmente nas escolas”. Então, os privilégios dos especialistas, cientistas e intelectuais deveriam ser revogados e o poder deveria “voltar para as mãos das pessoas” (que estariam livres para consultar o especialista, se desejarem). Quanto à participação dos cidadãos nas decisões cientificas, Koertge destaca como as tomadas de decisão são institucionalmente tomadas. Ela admite que o “modelo do júri pode ser interessante de emular”, no entanto sublinha que “um julgamento possui diversas características as quais são [...] não-Feyerabendianas”: a reclusão dos jurados, regras restritas para a admissão de evidências, a busca por argumentos racionais etc. Por fim, Koertge reconhece que a sugestão de Feyerabend, relativa à adoção do “sistema de júri” para o “aprimoramento da democracia”, é atraente (p. 390).

111

estivessem “psicologicamente aptos para viver no tipo de sociedade que Feyerabend propõe”. Segundo o estudioso, as pessoas precisam “aceitar alguma tradição”. O “calcanhar de Aquiles” (p. 139) da concepção feyerabendiana estaria em atribuir à câmara de cidadãos o papel de estrutura de proteção básica da democracia. Afinal, tais concílios poderiam sucumbir frente às tradições “mais convincentes, com mais adeptos, mais ricas etc.”. Além disso, a evidência da história sugere que um Estado livre de tradição seria “extremamente improvável”. Ele conclui afirmando que “a sociedade livre de Feyerabend, o relativismo democrático, é, em princípio, impraticável”. Yates considera que Feyerabend “caiu na velha armadilha dos intelectuais”, qual seja: “projetar uma utopia social no papel”. Afirma também que o relativismo democrático, além de impraticável, não seria desejável. Ele diz que, segundo Feyerabend, a “unidade básica da sociedade são as tradições, não os indivíduos” (p. 140). Através de uma educação geral indivíduos buscariam eleger os padrões pelos quais conduziriam suas vidas. Contudo, “para ser isenta de tradições, a educação geral precisaria do mesmo tipo de estrutura de proteção que a sociedade como um todo, e o mesmo argumento se aplica”. Na sociedade ideal de Feyerabend, a resolução de conflitos recorreria à “câmara dos cidadãos”. Mas “não há motivo para acreditar que esses, centros de poder, permaneceriam isentos de tradições”: o “mais provável” é que os concílios democráticos adotem padrões e valores (p. 141). A estrutura de proteção da sociedade democrática feyerabendiana seria subvertida: “Assim, longe de ser uma resposta satisfatória para o papel da ciência na sociedade, o relativismo democrático de Feyerabend é politicamente ingênuo e, por isso, perigoso”. Alford (1985a) não considera que a “resposta mais efetiva a Feyerabend” consista em apontar que aquele ideal social “seria virtualmente impossível de cumprir” (p. 113). Portanto, a crítica de Yates (1984) seria “vulnerável a uma estratégia retórica que Feyerabend usou muito”. Alford diz: “Yates está provavelmente certo. Contudo, seus argumentos relativos à impossibilidade do ‘relativismo democrático’” (p. 114) também falhariam ao não serem “amparadas por qualquer evidência”. Assim, Alford busca por uma objeção mais fundamental:

Não demonstro que o sistema de Feyerabend é indesejável. Mostro que Feyerabend não apresentou argumentos decisivos dos motivos pelos quais ele seria desejável. Essa é uma objeção mais fundamental, creio, do que aquela segundo a qual Feyerabend não

112

demonstrou que seu sistema é possível. Feyerabend pode ser considerado, dado sua teoria política, um teórico utópico nos mesmos termos que Sir Thomas More e Francis Bacon. Uma proposta tradicional da teoria utópica foi revelar deficiências de uma sociedade real, comparando-a com um ideal ficcional. Uma crítica utópica pode fazer isso muito bem, mesmo que a possibilidade dela não seja demonstrada. Contudo, tais críticas utópicas perdem completamente o sentido se a própria desejabilidade desse ideal é colocada em questão (p. 115).

Alford entende que Feyerabend expõe quatro razões em favor da “desejabilidade do ‘relativismo democrático’”: i. ii. iii. iv.

As pessoas têm o direito de viver como desejam. Sociedades pluralistas julgam melhor do que sociedades baseadas em uma única tradição. Os erros dos cientistas e os desacordos entre experts deveriam ser solucionados por concílios de cidadãos leigos. Sociedades pluralistas são mais humanas e mais promotoras do crescimento individual.

Para o comentador, tais justificativas não estabeleceriam a desejabilidade do relativismo democrático. Segundo ele: (i) representaria, partindo de uma tese relativista, uma questionável defesa da tolerância, afinal, “a intolerância mútua também é uma implicação” do relativismo; (ii) indicaria uma questionável extensão de uma tese epistemológica para uma tese política, afinal, argumentos epistemológicos são “politicamente indeterminados”; (iii) consistiria em uma derivação equivocada, afinal, “o fato de que especialistas erram com frequência não implica que comitês formados por leigos deveriam decidir”; e (iv) seria um uso limitado do argumento de Stuart Mill, afinal, argumentos humanitários em defesa do relativismo democrático “não ocupam grande espaço na obra de Feyerabend” (pp. 116-117). Então, Alford entende que “o principal defeito na posição de Feyerabend” deriva da limitação dessas bases da filosofia política feyerabendiana, e “não da impossibilidade prática dos arranjos institucionais” dela. Yates (1995) diz que a “questão da ‘plausibilidade’” (p. 450) pode ser mantida independentemente da crítica de Alford (1995a) à desejabilidade do relativismo democrático: “o pensamento utópico tanto foi como pode ser empregado visando oferecer mais do que uma simples crítica do estado de coisas existentes” (p. 451). Como a utopia de Feyerabend seria “mais do que uma tentativa iluminar” problemas da sociedade atual, ele “mantém a questão da ‘plausibilidade’”. Segundo afirma, “Feyerabend falhou em mostrar que o relativismo democrático é um programa político 113

plausível”. Porém, demonstrar a impossibilidade efetiva do ideal de Feyerabend seria “em si mesmo impossível” (p. 452). Isso implicaria encetar pesquisas empíricas as quais “dificilmente alguém tem tempo ou disposição para conduzir”.

2.2.1.1.3. A ‘teoria social’ de Feyerabend em nova ótica As fontes secundárias (2.1.1) da Visão Padrão discutem, basicamente, três tópicos relacionados às opiniões políticas de Feyerabend: a plausibilidade, a desejabilidade e a fundamentação do relativismo democrático (2.1.1.1.2). Yates (1994) considerou

as

ideias

políticas

de

Feyerabend

“utópicas”,

“indesejáveis”,

“insustentáveis” e “perigosas”. Depois, Yates (1995, p. 452) elaborou uma réplica insatisfatória para a questão da plausibilidade do relativismo democrático: “o ônus da prova está com Feyerabend, que deve apresentar argumentos convincentes de que sua teoria política poderia ser a base para uma sociedade real”. Por sua parte, Alford (1985a, p. 113) defendeu que premissas feyerabendiana não justificavam a desejabilidade do programa político em questão: “Feyerabend não demonstra por que o ‘relativismo democrático’ seria desejável”. Essas opiniões, em certa medida divergentes, amparam a leitura superficial de Preston (1997, pp. 207) segundo a qual as teses políticas de Feyerabend seriam triviais, falsas e comprometidas com uma ideologia democrática (2.1.1.1.1). Mas a Visão Padrão negligencia o pormenorizado estudo de Alford (1985b), o qual não apenas recupera as ideias de Alford (1985a) como também discute contribuições positivas de Feyerabend para aquele domínio. Além disso, Kidd (2013, 2015) desenvolve uma leitura favorável às ideias políticas de Feyerabend não circunscrita àquele livro de 1978. Alford (1985b) analisa as ideias de Feyerabend no campo de filosofia moral (p. 205). Essencialmente, elas envolveriam a relação entre o relativismo moral e cognitivo. O estudioso diz que “as conexões válidas entre o relativismo epistemológico e a teoria política de Feyerabend são sutis e tênues, mas de forma alguma inexistentes”. Então, um tema presente no “núcleo da teoria política de Feyerabend” seria a “separação entre estado e ciência”. Contudo, esse tema não teria recebido “muita atenção por parte dos teóricos da política”. O foco central do projeto em debate seria remover cientistas e outros especialistas de “posições privilegiadas de poder” (p. 206). Feyerabend atacaria sobretudo o “privilégio injustificado da ciência” em favor de uma sociedade livre, na 114

qual cientistas deveriam “competir por financiamento público com bruxos e coisas do tipo”. O estudioso nota que a resposta de Feyerabend para a questão da coexistência de tradições conflitantes na sociedade demandaria a existência de “comitês de cidadãos, ao invés de especialistas”. Tal reconhecimento da possibilidade de decisões coletivas referentes a questões de natureza epistemológica reconheceria uma certa “‘frouxidão no sistema e um ‘espaço livre’ para a reforma” na política (p. 207). Além disso, duas razões estariam por trás da rejeição das propostas de Feyerabend: i) o fato de que as “mudanças revolucionárias” pensadas por ele guardam uma relação “apenas indireta com instituições políticas e econômicas” e ii) o fato de que ela é “amplamente apresentada” como “uma série de apartes” à epistemologia do autor (p. 209):

Em si mesmo, esse atributo da apresentação não deveria levar alguém a ignorar a teoria política dele, se ele tem algo de valioso a dizer. Entretanto, essa própria atitude de apresentação contribui para a impressão de que Feyerabend ‘deriva’ sua teoria política de sua epistemologia.

Alford observa que o “alvo institucional” do pensamento de Feyerabend é a ciência moderna e as tradições abstratas (p. 211). Na leitura do filósofo, o surgimento dessa forma de pensar teria acarretado uma “redução do conteúdo e da riqueza” da experiência: “Tradições abstratas sacrificam a riqueza de tradições históricas genuínas por uma generalidade fantasiosa”. Tais tradições seriam os “piores tiranos” porque eliminam a pluralidade de alternativas, cujo principal valor consiste, exatamente, em apresentar outras perspectivas. O comentador ressalta que essas ideias políticas, entretanto, não foram “submetida a muitas críticas” (p. 213). Na verdade, teriam sido “ignoradas” ou “desqualificadas como ridículas”: “Críticas que abordaram a teoria política de Feyerabend foram, com frequência, extremas”. Apesar disso, ele aponta quatro “críticas moderadas” que poderiam ser levantadas à concepção do austríaco: i. ii. iii. iv.

Nas sociedades industriais modernas, tradições minoritárias não teriam chance de ser plenamente praticadas. A concepção feyerabendiana reforça ideais burgueses de liberdade. Feyerabend reifica abstrações, tais como forças históricas ou limitações estruturais. Feyerabend é um idealista político cujas ideias concernem apenas a “intelectuais urbanos” os quais já experimentam liberdade econômica.

115

Alford sustenta que “a teoria política de Feyerabend é mais geral do que essas críticas” (p. 214). Conforme o estudioso, a grande dificuldade do relativismo democrático feyerabendiano está no fato de que “considerações epistemológicas em favor do relativismo não são uma base adequada para uma teoria política da tolerância”. O conteúdo dessa objeção a Feyerabend já consta em Alford (1985a) e foi detalhada em 2.1.1.1.2. No geral, Alford (1985b) afirma que a proliferação consiste em uma “boa epistemologia, mas é politicamente relevante apenas para aqueles que já compartilham um certo tipo de racionalismo”. O pluralismo de Feyerabend remontaria à filosofia de Mill e aceitaria que “a proliferação pode levar à verdade”. No entanto, o comentador assevera que o austríaco teria ignorado que Mill “valorizou em primeiro lugar e principalmente” o pluralismo como uma solução para o problema da vida (p. 219).55 Assim, lemos que, “embora [Feyerabend] admire Mill”, as “considerações humanitárias” não “exercem um papel central” na argumentação do filósofo (p. 220). O “programa político” de Feyerabend se basearia em três premissas: i) o relativismo (metafísico e ético), avesso a “ensinar aos outros como viver”; ii) a ideia de que o “totalitarismo conceitual” é uma ameaça à liberdade; e iii) a noção de que tradições históricas são “mais ricas e mais refinadas” do que as generalizações dos intelectuais. “Pode-se ver aqui’, afirma Alford, “que uma conexão entre a filosofia da ciência de Feyerabend e sua teoria política não é tão problemática” (p. 221). Mas as dificuldades assinaladas levariam a questionar “se há algo de valor na teoria política de Feyerabend”. Na ótica do comentador, “o valioso não é seu argumento em favor do ‘relativismo democrático’, mas a identificação radical de um problema profundo: a tirania da razão abstrata”. A abordagem de Feyerabend prescindiria de uma “visão de mundo social e política ampla” (p. 222). A “ingenuidade política” estaria na base da “consistência” da obra Feyerabend: “Ele combate a tirania das tradições abstratas defendendo a autonomia de tradições particulares, não se opõe à tradição que ele ataca uma outra tradição abstrata”. Enfim, Alford considera que Feyerabend explicitou um problema importante e ofereceu uma resposta consistente para ele:

Feyerabend sugere que onde ele oferece uma solução geral para o problema da tirania das tradições abstratas, isso deveria equivaler, em si mesmo, a impor tradições abstratas (conceitos) sobre as pessoas (por exemplo, ‘anarquismo’, ‘democracia liberal’, 55

Ver a Conclusão deste trabalho para constatar a incorreção dessa leitura Alford (1985b).

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‘relativismo democrático’). Uma solução geral seria, em si mesmo, parte do problema. Portanto, o slogan dele: ‘iniciativa dos cidadãos, e não a epistemologia (ou a teoria social; teoria política tais como o marxismo ou o liberalismo), criam a liberdade (p. 220).

Alford (1985b, p. 211) introduz um novo olhar sobre as ideias políticas de Feyerabend, especialmente quanto ao vínculo entre as reflexões epistemológicas e políticas: “A distinção de Feyerabend entre tradições abstratas e históricas, e a preferência dele por essa última, é o vínculo real entre sua epistemologia e sua teoria social”. Mais recentemente, Kidd (2015)56 avançou nessa revalorização do pensamento político de Feyerabend. O estudioso investiga as “várias ideias e propostas políticas de Feyerabend” e o modo como elas “se relacionam com debates contemporâneos”. O estudioso reconhece que esse tema é “geralmente considerado de forma insuficiente” e entendido como possuindo “menos valor e refinamento do que as contribuições de Feyerabend para a história e filosofia da ciência”. Elas evidenciariam, segundo os críticos, a “imaturidade, ou mesmo a irresponsabilidade” do austríaco uma vez que suas ideias não evidenciariam “nada de sensato para apresentar em termos de filosofia política”. Ao contrário, Kidd observa que ideias políticas foram “centrais nos interesses filosóficos de Feyerabend”: “Uma ideia como ‘sociedade livre’ pode ser problemática, mas parece expressar ou refletir certos interesses e preocupações profundos que foram importantes para Feyerabend”. A “variedade de temas politicamente carregados” nos escritos tardios de Feyerabend (como a questão da diversidade cultural) incluiria “tópicos filosóficos relativos à metodologia científica”. Nessa leitura, “existem bons motivos para supor que um estudo sobre o pensamento político de Feyerabend nos ajudará a adquirir uma compreensão mais precisa sobre temas centrais de sua obra como um todo, ainda que tais ideias, em si mesmas, falham quando consideradas”. Kidd aborda o pensamento político de Feyerabend partindo do conceito de sociedade livre. Característico da obra feyerabendiana a partir do final dos anos 1970 até a década de 1980, esse ideal representaria o essencial da filosofia política de Feyerabend. O ideal feyerabendiano teria duas motivações básicas: i) a suspeita do 56

Kidd (2013) já indica as linhas gerais dessa revalorização do pensamento político de Feyerabend, contudo, prioriza as relações entre ciência e educação. Kidd (2015) também aborda essa relação, no entanto, engloba uma discussão mais detalhada do pensamento político de Feyerabend. Agradecemos ao autor pela gentil disponibilização desse artigo, ainda inédito, a ser publicado em Kidd, I. & Brown, M. (eds.) (2015) Reappraising Feyerabend (edição especial dos Studies in History and Philosophy of Science).

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crescente caráter tirânico da ciência moderna, a qual “usufrui de privilégios epistêmicos”; e ii) acontecimentos culturais dos anos 1960 e 1970, um período histórico “que foi liberal e pluralista”. Essas motivações originais moldariam o anseio de Feyerabend por uma sociedade na qual todas as tradições teriam direitos iguais e não se submeteriam a um único ponto de vista. A sociedade livre de Feyerabend seria “uma sociedade que acomoda uma rica pluralidade de tradições culturais e cognitivas, incluindo muitas daquelas que os habitantes das sociedades modernas considerariam metafísica e epistemologicamente absurdas”. Dois princípios explicariam essas ideias. Primeiro, o Princípio da Hegemonia reflete a percepção de que a “predominância ou entrincheiramento” de qualquer tradição “constitui necessariamente uma hegemonia política e epistemicamente restritiva”. Segundo, o Princípio da Libertação sustenta que a “liberdade política e epistêmica demanda a presença de uma pluralidade de alternativas e tradições igualmente consideradas”. Para Kidd, o autor estabeleceria uma aproximação entre os pares hegemonia/monismo e libertação/pluralidade: “Esses dois princípios convergem na convicção de Feyerabend de que nas sociedades modernas as ciências se tornaram a tal ponto ‘hegemônicas’ que exigem nossa ‘libertação’”. Kidd aponta quatro “problemas estreitamente relacionados” com o conceito de sociedade livre de Feyerabend: i. ii. iii. iv.

A noção de hegemonia de uma única tradição é uma “generalização grosseira” sem lastro histórico ou sociológico. A predominância de uma tradição não significa necessariamente uma hegemonia. Sociedades comprometidas com uma única tradição hegemônica, se existirem, são exceções, não a regra. A “exposição à diversidade” levaria “incapacitaria nossa capacidade de tomar decisões e de deliberação”, e não à libertação.

Kidd destaca que “a ideia de sociedade livre lentamente desapareceu dos escritos de Feyerabend ao longo dos anos 1980 e 1990”. Não apenas Feyerabend se mostraria “insatisfeito” com algumas de suas teses no A Ciência em uma Sociedade Livre. Mesmo poucos especialistas teriam considerado “plausíveis” a ideia de sociedade livre ou a proposta de separação entre ciência e estado. As discussões dos estudiosos quanto a esses assuntos seriam “normalmente curtas”. “Contudo”, ele explica, “mesmo que as ideias específicas e as propostas [de Feyerabend] sejam inexpressivas, uma análise crítica delas pode ajudar a identificar certos interesses temáticos que perpassam o pensamento político de Feyerabend”. Nesse sentido, 118

existiriam três tópicos que “recorrem e encontram expressão diversa no pensamento político de Feyerabend”: i) hegemonia, ii) libertação e iii) a autoridade cognitiva da ciência. Portanto, o “pensamento político de Feyerabend” se mostraria “melhor articulado e compreendido” partindo de uma “confluência desses três temas”. A contextualização dessas concepções a partir do problema do conhecimento e da educação em uma sociedade livre permitiria uma reconstrução “coerente” do pensamento político feyerabendiano. O episódio formativo das ideias sociais de Feyerabend remontaria à experiência em Berkeley (2.1.2.2). Essa experiência teve um “impacto profundo” no pensamento do austríaco: “Feyerabend dramaticamente reconheceu a si mesmo como um agente da hegemonia, ao invés de um defensor do esclarecimento”. Dois elementos teriam conduzido o filósofo a tal conclusão: i) o reconhecimento de que o “sistema educacional” explicitava uma parte “restrita e não representativa da pluralidade de culturas e tradições humanas” e ii) a percepção de que o currículo universitário “excluía alternativas de forma prejudicial e presunçosa”. Esses elementos contrastariam com a “convicção epistemológica” do “bom pluralista”, a saber: que “nossos juízos” devem derivar de um “compromisso crítico com alternativas bem desenvolvidas”. O núcleo da proposta de Feyerabend incluiria, assim, a tese de que a liberdade política e epistêmica exige um pluralismo. Com relação aos temas da hegemonia e da libertação, Kidd comenta que o filósofo não se opôs ao “ensino das conquistas e perspectivas” ocidentais,

conquanto

tenha

afirmado

que

tradições

não

ocidentais

são

“necessariamente relevantes”: “O convite de Feyerabend é por uma apreciação e pesquisa cuidadosa e sem preconceitos da diversidade de conquistas e perspectivas de culturas do mundo”. Um aspecto central das ideias feyerabendianas acerca da educação incluiria a “convicção de que o educador não deveria reiterar ou reforçar crenças e convicções dominantes”. Pelo contrário, o objetivo do ensino deveria ser desafiar criticamente as noções estabelecidas:

A experiência de Berkeley foi constitutiva no desenvolvimento da concepção de educação em Feyerabend, focada em libertar os estudantes da adoção acrítica e desinformada de crenças e convicções dominantes, apresentando-lhes a diversidade das ‘possibilidades da existência humana’ oferecida pelas histórias das culturas.

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A proposta central da teoria política de Feyerabend apontaria a necessidade de que os cidadãos deveriam alcançar um “julgamento crítico informado” quanto ao valor da ciência. Para impedir uma tirania hegemônica da ciência através de mitos adotados irrefletidamente, eles precisariam ser instruídos quanto aos limites cognitivos e sociais daquela tradição. Como Kidd escreveu: “a ciência não é intrinsecamente tirânica, mas pode se tornar uma tirania se os cidadãos e os especialistas de culturas científicas falham em manter a vigilância crítica”. O estudioso evidencia simpatia por tais ideias. Ele nota que as ideias feyerabendianas acerca da educação científica “refletem um ideal de ‘responsabilidade epistêmica’ que referenda os temas da liberação, da hegemônica e da autoridade da ciência”. Mesmo assim, assinala que a proposta em foco faria duas “afirmações problemáticas”: i) a ciência é uma tradição entre muitas outras tradições e ii) a escolha das tradições é um processo arbitrário. A primeira afirmação mostraria que “a educação deve libertar os estudantes do comprometimento acrítico com as ciências, apresentando-lhes como elas são”. Eles deveriam notar que culturas não ocidentais possuem “excelentes motivos” para “levar a sério” as concepções delas (ver PnP, p. 152). Tradições não ocidentais conseguiriam atribuir “sentido e inteligibilidade” para a vida dos seus adeptos. A segunda afirmação envolveria uma “noção epistêmica” acerca das atribuições de privilégios para “autoridades e tradições”. Então, na visão de Feyerabend, uma tradição não alcançaria um “lugar privilegiado” de forma arbitrária somente se ela fosse “estabelecida através da deliberação crítica e da decisão”. O responsabilismo epistêmico em Feyerabend diria que “nossas crenças e convicções devem resultar de um processo de investigação cuidadosamente informado e criticamente vigoroso – ao invés de uma adoção dogmática de crenças predominantes”. Portanto, contra a ideia IIIb em 2.2, o ideal da filosofia política de Feyerabend surgiria como “razoável e plausível”. Ele proporia, basicamente, uma sociedade livre na qual a adoção de tradições se fundamentasse em uma “compreensão historicamente informada e filosoficamente robusta”. A atribuição de autoridade a pontos de vistas não decorreria de uma “seleção arbitrária ou de jogos de poder”. Em outros termos, o austríaco não atacaria a ciência, ainda que criticasse convicções epistemológicas que não derivassem de um “processo de deliberação e de tomada de decisão”. Por fim, Kidd defende que o principal objetivo da filosofia política de Feyerabend consistiria em fomentar a “autonomia intelectual individual”. A autoridade cognitiva e cultural da tradição científica deveria ser, assim, avaliada através de uma “deliberação crítica informada”. Um “processo responsável de deliberação crítica” implicaria uma libertação da 120

hegemonia da ciência e uma postura “epistemicamente responsável” diante da autoridade cultural e cognitiva de uma “tradição historicamente contingente”: a ciência.

2.2.1.2.Panorama das ideias políticas de Feyerabend As passagens de Preston (1997, p. 207) citadas em 2.2.1.1 confirmam que a Visão Padrão apenas “indica algumas das questões mais visíveis” e aponta “problemas que a circundam” a filosofia política de Feyerabend. A seção 2.2.1.1.2 apontou que parte das fontes secundárias da Visão Padrão são irrelevantes; e 2.2.1.3.1 que elas são teoricamente insuficientes. A fonte primária e as fontes secundárias da Visão Padrão discutem, primordialmente, a teoria social feyerabendiana impressa no A Ciência em uma Sociedade Livre. Mas Kidd (2015) mostrou que as ideias políticas de Feyerabend mudaram com o desenvolvimento de sua filosofia.57 Isso sugere que uma apreciação do pensamento político de Feyerabend não pode se restringir às noções do A Ciência em uma Sociedade Livre, como vemos em Preston (1997), Yates (1984, 1985) ou Alford (1985a). Destarte, a leitura de Preston (1997) não reflete uma “excelente discussão da filosofia política de Feyerabend”, como o Argumentum ab auctoritate mencionado em 2.1.1 sugere.

2.2.1.2.1. “…uma reunião de pessoas maduras”58 Um texto importante para o pensamento político de Feyerabend é “Die Wissenschaften in einer freien Gesellschaft”, de 197459, posteriormente desmembrado i) no capítulo XVIII da primeira edição do Contra o Método (1975) – excluído das reedições da obra em 1988 e 1993 – e ii) em seções específicas da Parte II de A Ciência A propósito, convém lembrar que o austríaco renunciou a certas ideias do livro de 1978: “Na última década de sua vida, por exemplo, Paul [Feyerabend] não estava absolutamente satisfeito com A Ciência em uma Sociedade Livre, que não queria ver reeditado” (CA, p. 14). Feyerabend parece ter rejeitado, essencialmente, ideias políticas de A Ciência em uma Sociedade Livre. As propostas relevantes do livro foram incorporadas às edições posteriores de Contra o Método (CM, p. 9). Assim, o capítulo XVII de Contra o Método preserva a análise feyerabendiana, presente no livro de 1978, sobre as relações entre teoria e prática e a caracterização do racionalismo como uma tradição histórica (CSL, pp. 23-40). 58 No original: “eine Versammlung reifer Menschen”, expressão que sintetiza parte do ideal político de Feyerabend descrito no livro Erkenntnis für freie Menschen, de 1979. 59 Em português: “A Ciência em uma Sociedade Livre”, originalmente publicado em Wissenschaftskrise und Wissenschaftskritik. Philosophie Aktuell, Band 1. Walther Ch. Zimmerli (Hg.). Schwabe and Co.: Basel, Stuttgart, 107-19. Nenhum dos estudiosos do pensamento de Feyerabend identifica esse texto como um ponto de partida das teses políticas de Feyerabend. 57

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em uma Sociedade Livre, de 1978.60 Outro trabalho essencial é “How to Defend Society against Science”, de 1975. Com base neles, listamos e especificamos algumas noções que alicerçam [1 a 4] e constituem [5 a 10] as opiniões políticas de Feyerabend, sobretudo na década de 1970: 1) 2) 3) 4)

A ciência é uma tradição/ideologia histórica. A ciência não é uma forma de pensamento essencialmente libertadora. O método científico não estabelece a autoridade cognitiva e cultural da ciência. Os resultados científicos não estabelecem a autoridade cognitiva e cultural da ciência. 5) Em uma sociedade livre não há hegemonia de uma única tradição/ideologia. 6) Em uma sociedade livre experts não definem questões de interesse público. 7) A implementação de políticas públicas baseadas em ideias científicas precisa ser deliberada democraticamente por comitês de cidadãos. 8) Leigos podem e devem participar de discussões. 9) O Estado deve ser separado da Ciência. 10) Uma educação geral deve emancipar os indivíduos em relação a ideologias Feyerabend concebe a ciência como uma tradição histórica e considera que a opinião comum a respeito dessa tradição comporta traços de ideologias (PP3, pp. 181, 190). Essencialmente, a perspectiva racionalista construiu uma imagem da ciência como a “visão de mundo superior” baseado na crença de que ela alcança êxito em razão da aplicação de um método fixo e universal de pesquisa (WRAW, p. 351; CM1, p. 455). Esse “conto de fadas” explicaria o “tratamento privilegiado” da ciência na sociedade moderna. Ademais, as prerrogativas da ciência também estariam associadas à crença do caráter libertador da ciência (CSL, p. 94). O autor reconhece que, no passado, a ciência foi um “instrumento de libertação. Mas disso não se segue que a ciência está obrigada a permanecer assim” (PP3, p. 182). “A ciência se tornou tão opressiva quanto as ideologias que uma vez combateu”, ele concluiu. Quanto à premissa do monismo metodológico da ciência, ele argumentou que cientistas não solucionam problemas usando uma “varinha metodológica” (WRAW, p. 353): “não existe ‘nenhum método’; não há um procedimento único, ou conjuntos de regras, que esteja presente em todas as pesquisas e garanta que é ‘científico’ e, portanto, confiável” (CSL, p. 122; ver também CM1, p. 449). A segunda premissa racionalista assevera que a autoridade cognitiva e

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Especificamente: as seções I e II desse texto aparecem, com pequenas alterações, no capítulo XVIII do Contra o Método (1975). As seções III-VI aparecem, com pequenas alterações, na Parte II de A Ciência em uma Sociedade Livre (1975). As diferenças básicas envolvem trechos da seção III do texto alemão, além da inclusão posterior, em 1978, de notas explicativas (como, por exemplo, CSL, p. 121 n. 24). Feyerabend reimprimiu esse texto em WRAW (cap. XIV).

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cultural da ciência deriva dos êxitos da ciência. Esse argumento do sucesso científico assume que: i) as ciências efetivamente são mais progressivas do que concepções alternativas; ii) os resultados da ciência não são apenas expressivos, como não existem alternativas; e iii) os sucessos da ciência independem de quaisquer ideias não científicas (WRAW, p. 356; CSL, p. 125; ver 3.3.3.3 e 3.3.4.4). Inicialmente, o filósofo considera que “formas de vida diferentes da ciência” desapareceram por “pressões ideológicas” (PP3, p. 186) ou por “pressões políticas, institucionais e até militares” (CSL, p. 127). Portanto, (i) e (ii) não poderiam ser consideradas factuais. Ademais, salienta como êxitos científicos contaram com “ajuda exterior” (PP3, p. 186). Contra (iii), escreveu: “a ciência se vê enriquecida por métodos não científicos e resultados não científicos, enquanto processos frequentemente vistos como partes essenciais da ciência foram abandonados ou contornados” (CM1, p. 461). No Contra o Método, Feyerabend também recusou a ideia do sucesso da ciência ao sublinhar que “a ciência nem sempre é bem-sucedida” (CM1, p. 462). Assim, os resultados da ciência não seriam incontestáveis ou comparativamente superiores a outras abordagens, além de sofrerem influência de noções não científicas (pressupostos metafísicos, conceitos antigos, convicções ideológicas etc.). Portanto, Feyerabend rebateu as premissas racionalistas básicas empregadas com vistas a sustentar os privilégios da tradição científica: “hoje a Ciência prevalece não em virtude de seus méritos comparativos, mas porque o show foi armado ao seu favor” (CSL, p. 126). As considerações epistemológicas de Feyerabend o levaram a questionar o status privilegiado da ciência na sociedade moderna. A crítica dele ao poder intelectual e cultural do racionalismo teria suscitado o “longamente esquecido” problema do mérito da ciência: “a ciência se impôs a seus oponentes, não os convenceu. A ciência dominou pela força, não através de argumentos” (CM1, p. 450):

A lição é clara: não há um único argumento o qual poderia ser empregado com vistas a sustentar o lugar privilegiado que a ciência experimenta atualmente em nossa sociedade. A ciência produziu muitas coisas, contudo, outras ideologias também o fizeram. A ciência procede sistematicamente em alguns casos, contudo, outras ideologias também o fazem […] e, ademais, não existem regras prevalentes que sejam adotadas em todas as circunstâncias; não existe ‘metodologia científica’ que possa sem empregada para separar a ciência do resto. A ciência é somente uma das muitas ideologias que impulsionam a sociedade e deveria ser tratada de forma correspondente (PP3, p. 187).

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O reconhecimento da hegemonia ideológica da ciência na cultura ocidental levou Feyerabend a idealizar uma sociedade livre na qual pontos de vista alternativas não seriam suprimidos (CM1, p. 453): “uma sociedade livre é uma sociedade em que todas as tradições têm direitos iguais e igual acesso aos centros de poder” (CSL, p. 131). No Estado laico pretendido pelo filósofo, a ideologia dos experts, cientistas e intelectuais não definiria questões de interesse público. Ela seria apreciada em debates abertos, investigando-se as motivações e as consequências dela, e seria submetida à votação democrática (WRAW, p. 356; CM1, pp. 456). Por isso, em uma sociedade livre, o “jogo da ciência” não estaria alheio ao mecanismo político de “apresentaçãodiscussão-voto” (CM1, p. 458). Isso impediria que propagandas e o exercício do poder (por parte de ideologias hegemônicas) suprimissem tradições alternativas. No modelo político planejado pelo filósofo, uma “estrutura básica de proteção” evitaria a predominância de uma única ideologia (CSL, pp. 104-106). Instituições e ideologias seriam examinadas por comitês de cidadãos informados e eleitos democraticamente (WRAW, p. 364): “a última palavra não será dos especialistas, mas das pessoas diretamente envolvidas” (CSL, p. 121). A posição feyerabendiana rejeita a solução elitista para a questão referente aos parâmetros que orientam decisões em sociedades ideologicamente neutras (PP3, 218-219; CSL, p 125). Ele compreende que uma sociedade guiada por experts restringiria a “liberdade de decisão” dos cidadãos (CM1, p. 459). Com tais ideias, Feyerabend defende uma participação efetiva dos cidadãos, particularmente os leigos, nas discussões científicas, sobretudo quando essas impactam na sociedade (WRAW, p. 356).61

A ciência pode influenciar a sociedade, mas apenas até onde se admite que a política ou outra pressão de grupo qualquer pode influenciar a sociedade. Cientistas podem ser consultados acerca de projetos importantes, mas o julgamento final deve ser deixado aos corpos consultivos eleitos democraticamente. Esses órgãos serão compostos, principalmente, por leigos (PP3, p. 187).

Resta comentar, ainda, dois outros pilares da teoria política de Feyerabend. A proposta da separação formal entre Estado e Ciência reflete a compreensão do austríaco

Em 1975, Feyerabend escreveu: “Os cientistas participarão, é claro, de decisões governamentais. Mas não lhes será dada autoridade dominante. Será o voto de todos os interessados que decidirá as questões fundamentais” (CM1, p. 465). 61

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segundo a qual a hegemonia da perspectiva científica (especialmente no âmbito educacional) restringe a liberdade dos cidadãos, em particular no que tange ao contato e à adoção de tradições não ocidentais (PP3, pp. 182, 187). O comprometimento do Estado com uma ideologia específica violaria o princípio democrático de que todas as tradições podem se desenvolver “lado a lado livremente” (CSL, p. 132). “A separação entre Estado e Igreja deve, portanto, ser complementada pela separação entre Estado e ciência” (CM1, p. 454), encerra o autor. Mas a libertação da sociedade relativamente à ideologia racionalista não poderia ser realizada mediante “um único ato político”. Assim, Feyerabend assevera também que apenas uma educação geral efetivamente libertaria os indivíduos dos dogmas ideológicos.62 A genuína emancipação seria adquirida “por meio de contatos frequentes com pontos de vistas diferentes” (CSL, p. 133). “Iniciativas cidadãs” implicariam uma “erosão lenta da autoridade da Ciência e de outras instituições autoritárias”. No mais, o amadurecimento dos cidadãos resultaria de uma transformação profunda nos próprios processos de educação. Na sociedade de Feyerabend, instituições de ensino não privilegiariam uma ideologia especial. Estabelecimentos educacionais não poderiam impor a forma de vida racionalista (CM1, p. 454), afinal, “tradições não são boas nem más – apenas são” (CSL, p. 101). Tais noções ético-políticas se tornam mais nítidas quando reconhecemos que “a finalidade da educação consiste em preparar os jovens para a vida” (PP3, p. 188). Uma sociedade ideologicamente neutra deveria buscar preparar seus membros para “decidir por si próprio e de viver de acordo com as crenças sociais que tenha por mais aceitáveis” (CM1, p. 454). Um cidadão maduro, na concepção de Feyerabend, é uma pessoa que “aprendeu a tomar decisões e que decidiu em favor daquilo que mais lhe convém” (CM1, p. 465). Evidentemente, tal proposta de uma educação geral não implica a exclusão da ciência ou a eliminação da figura dos cientistas, embora sustente que experts não ocuparão uma “autoridade dominante” (ver 4.4). A inclinação dos indivíduos em direção à ciência ocorreria como efeito de uma “escolha livre”, não pela instrução baseada na “ideologia da ciência” (PP3, p. 189). Como vemos, as ideias políticas que Feyerabend elaborou nos anos 1970 envolvem, essencialmente, a sugestão de uma participação cidadã devidamente informada e responsável nas decisões de interesse público que envolvem a ciência. Na sociedade livre de Feyerabend, comitês

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Sluga (2006) compreende a tese liberal da educação geral em Feyerabend como reflexo de um projeto pedagógico humboldtiano orientado para a supressão de barreiras entre as pessoas e o conhecimento.

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compostos por cidadãos informados examinariam as ideias dos experts e, mediante processo democrático, deliberariam acerca delas:

Uma democracia é um conjunto de pessoas maduras e não uma coleção de ovelhas guiadas por um pequeno grupo de sabe-tudo. A maturidade não é encontrada largada pelas ruas, ela precisa ser aprendida. E não é aprendida nas escolas [...] ela é adquirida por meio da participação ativa em decisões que ainda precisam ser tomadas. A maturidade é mais importante do que o conhecimento especializado e deve ser buscada mesmo que essa procura interfira nas charadas dos cientistas. Afinal, temos de decidir como é que as formas especiais de conhecimento devem ser aplicadas, até que ponto podem ser confiáveis, qual é a sua relação com a totalidade da existência humana e, portanto, com outras formas de conhecimento. Os cientistas, é claro, presumem que não há nada melhor do que a Ciência. Os cidadãos de uma democracia podem se satisfazer com essa fé piedosa. A participação de leigos nas decisões fundamentais é, portanto, exigida, mesmo que isso possa reduzir o índice de sucesso das decisões.

2.2.1.2.2. “Iniciativa cidadã, não filosofia (ou teoria política, ou epistemologia etecetera etecetera!)”63 As ideias políticas de Feyerabend nos anos 1970 defenderam, dentre outras coisas, a participação ativa de comissões cidadãs nas deliberações concernentes à ciência (WRAW, p. 364). A participação cidadã corresponderia à “melhor e à única escola para os cidadãos livres” (CSL, p. 133). Ele também insistiu na proposta de uma educação ideologicamente neutra como forma de fomentar a autonomia intelectual dos membros da sociedade livre. “A libertação é o melhor caminho para o desenvolvimento livre e, assim, para a felicidade” (PP3, p. 191), o filósofo frisou. No debate ocorrido na Gesamthochschule de Kassel, ainda em 1978, ele reiterou que uma sociedade livre não adotaria “uma ideologia fundamental, mas unicamente uma estrutura de apoio básica” (PnP, p. 149). Ressaltou, ainda, que a maturidade política advém da ativa “participação em decisões importantes” (p. 159). Então, a tese do A Ciência em uma Sociedade Livre segundo a qual decisões importantes não podem ser deixadas nas mãos de especialistas foi mantida: “Não se pode deixar que os especialistas atuem completamente sozinhos; é preciso os controlar [...] os cidadãos, os quais ao exercer o controle vão descobrindo os erros dos especialistas” (pp. 159-160). Feyerabend insistiu que os cidadãos deveriam se responsabilizar por efetuar um “exame mais profundo” das opiniões dos experts,

Do original: “Bürgerinitiativen statt Erkenntnistheorie – oder politische Theorie, oder Wissenschaftstheorie etcetera etcetera”, slogan retirado de Erkenntnis für freie Menschen (Frankfurt: Suhrkamp, 1980) que ilustra um traço fundamental das ideias política de Feyerabend (EFM, p. 212). 63

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afinal, a “última palavra” seria das “pessoas diretamente envolvidas” com os impactos sociais das ideias científicas (CSL, pp. 120-121). A partir de então, a noção de que a solução de “problemas concretos” demanda “propostas concretas” assumiu relevo nas ideias políticas de Feyerabend (PnP, p. 154). Apesar negligenciada pelos comentadores do corpus de Feyerabend64, ela se mostra teoricamente central: “concepções políticas devem surgir dessas propostas concretas, não ao contrário”. A compreensão do primado da práxis no âmbito das questões sociais é fundamental que Feyerabend rejeite uma abordagem normativa quanto a questões políticas: “não tenho a menor intenção de prescrever [normas para a construção da sociedade]”. O austríaco considera nociva a “arrogância dos intelectuais” contida na pretensão de impor soluções “de cima para baixo” (pp. 161-162). A prescrição das ideias dos especialistas e cientistas reforçaria a “imaturidade intelectual” dos cidadãos. A partir dos anos 1980, as reflexões feyerabendianas quanto às consequências políticas da ruína do racionalismo discutirão, sobretudo, dois tópicos: i) a esterilidade de discussões humanistas frente a problemas concretos e ii) a participação cidadã nas decisões científicas.65 Duas fontes bibliográficas – praticamente inexploradas nos estudos sobre a obra de Feyerabend – podem ajudar a esclarecê-los. O manifesto feyerabendiano “Não fale! Organize-se”66 foi publicado em 1982, como resposta ao convite do jornal Telos para um volume especial devotado ao tema ‘Ecologia, Filosofia e Política’. O filósofo firmou que “estéreis discussões acadêmicas” não deveriam estorvar o “importante movimento” ecológico, envolvido com sérios problemas ambientais (PnP, p. 181).

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Ele insistiu que “problemas urgentes requerem uma

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Esse tema não foi explorado por Yates (1984, 1985), Alford (1985a, 1985b), Preston (1997) ou Selinger (2003). Suspeitamos que essa ausência reflete o fato de que os comentadores estudam a filosofia política de Feyerabend partindo, estritamente, do livro de 1978. 65 Feyerabend aludiu a esses tópicos na “Introdução à Edição Chinesa” do Contra o Método: “Nos casos em que os trabalhos dos cientistas afetam o público, este até teria a obrigação de participar: primeiro, porque é parte interessada (muitas decisões científicas afetam a vida pública); segundo, porque a participação é a melhor educação científica que o público pode obter – uma democratização completa da ciência (o que inclui a proteção de minorias, como os cientistas) não está em conflito com a ciência […] Meu objetivo principal motivo para escrever este livro foi humanitário, não intelectual. Eu queria dar apoio às pessoas, não ‘fazer avançar o conhecimento’. Pelo mundo todo, as pessoas desenvolveram maneiras de sobreviver em ambientes em parte perigosos, em parte agradáveis” (CM3, pp. 21-22). 66 Do original: “Redet nicht herum – organisiert Euch”, publicado em Unter dem Pflaster liegt der Strand, 10 (1982), Hans Peter Duerr (ed.), Karin Kramer: Berlin 1982, pp. 169-174. 67 Isso deveria ser o bastante para suspender as tentativas de atribuir ao pensamento de Feyerabend função de ideólogo ou guia filosófico do movimento ambientalista, como sugerem Naess (1991) e Hörz (1991).

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solução” – e, como tal, reflexões decorrentes de teorias da ciência não cumpririam a função da genuína ação política. Feyerabend observa que a ação política envolve “transformar mentes e situações no mundo” (p. 184). Em seguida, define dois tipos de ação política: a totalitária e a democrática. A primeira “busca influenciar os homens sem lhes dar qualquer possibilidade de refletir sobre ela. É uma via de mão única” (p. 181). A segunda ocorre quando “todos os que são afetados pela ação podem tomar parte dela. Os cidadãos já não são objetos passivos do processo” (p. 184). O filósofo também considera que a ação política pode ser abstrata ou pessoal. Uma “não se dirige a homens reais”, ao passo que a outra “se ocupa de amigos e não de ‘entidades abstratas’” (p. 185). Nesse cenário, o filósofo observa que a ação política abstrata comporta elementos totalitários, afinal, reduz seres humanos reais a noções tais como “homem racional”. Ela também é elitista porque sugere que “apenas um número muito especial de pessoas tem a formação e o conhecimento necessário” para entender a ciência. Com efeito, o tipo de teoria política que Feyerabend anunciou nos anos 1980 defende uma abordagem democrática pessoal:

o movimento deve ser democrático, e não totalitário. É preciso estabelecer vínculos determinados com o indivíduo, mas com o indivíduo tal como ele é em sua vida cotidiana, e não como aparece em uma teoria abstrata […] As ações democráticas surgidas de pequenos grupos não apenas são mais humanas do que os movimentos de massa, mas, além disso, apresentam consideráveis vantagens políticas. Afinal, os problemas são conhecidos, se vive com eles, e, portanto, não é necessário criar problemas artificiais com inimigos desconhecidos (pp. 186-187).

A entrevista “Feyerabend segundo Feyerabend”68, concedida a Grazia Borrini na primavera/verão de 1984, aprofunda essa ideia de uma abordagem política não abstrata. O filósofo entende que a democratização da ciência deveria estimular a participação organizada e direta dos cidadãos em decisões atinentes a problemas concretos e locais. A maturidade e a autonomia intelectual dos leigos frente à ciência decorreriam do fomento a deliberações populares esclarecidas e consentidas, não da imposição autoritária de soluções abstratas derivadas de experts e intelectuais. Reproduzimos abaixo uma parte do diálogo no qual tais ideias surgem:

68

Do original: “Feyerabend racconta Feyerabend”, publicada na Scienza-Esperienza, 22: 15-22, 1985.

128

Grazia Borrini – Mas, então, se existem muitas descrições diferentes e muitas maneiras diferentes de ver a realidade, qual é o papel da ciência na sociedade, e quem decide a esse respeito? Paul Feyerabend – As decisões quanto à ciência devem ser tomadas de forma democrática, por todos os membros da sociedade, e não, como acontece atualmente, por maquinações teóricas específicas de grupos de especialistas. Esses especialistas empregam modelos abstratos que não abarcam os seres humanos em sua própria subjetividade e existência, mas caricaturas de seres humanos, coisas como ‘o trabalhador’, o ‘homo economicus’, o ‘artista’, o ‘cientista’ e assim por diante. A solução dos problemas não é deixada às pessoas que lá vivem e sofrem, e cuja sensibilidade foi desenvolvida pelo contato cotidiano como os problemas, mas aos ‘especialistas’ […] Democratização da ciência significa que a conexão entre as teorias e os seres humanos não é estabelecida de modo tortuoso por outras teorias que contenham caricaturas teóricas dos próprios seres humanos, mas, inversamente, através da ação direta dessas teorias. O treinamento e a aplicação de teorias devem ser guiados pelo voto ou pelo consentimento do povo. […] A participação nesse tipo de atividade produz cidadãos mais informados acerca da ‘natureza da ciência’ do que qualquer análise filosófica, e, adicionalmente, permite-lhes atingir a maturidade necessária para viver em um contexto social complexo. Em suma, não há soluções abstratas, mas apenas soluções concretas para problemas específicos de uma nação, uma cidade, uma aldeia” (PKF 2012, pp. 93-94).

Nos anos 1980, as ideias políticas de Feyerabend recuperaram alguns temas característicos de A Ciência em uma Sociedade Livre, como a separação entre Estado e ciência (AR, p. 364). Mas, gradualmente, noções gerais como relativismo democrático deixam de constar no primeiro plano das páginas do austríaco (2.2.1.1.3 e 3.3.3.3). O autor passa a sustentar que “a política, se compreendida corretamente, é fundamentalmente ‘subjetiva’”. A tese central por trás dessa sentença remonta à noção segundo a qual “é impossível desenvolver esquemas teóricos ‘objetivos’ para ela”. O filósofo mantém a ideia de que as propostas dos experts “devem passar pelo filtro das tradições”, mas as sugestões dele – descritas pela Visão Padrão como uma filosofia política (2.1.1.1.1) – não asseveram uma “nova ordem social que deve ser imposta às pessoas hoje com a ajuda da educação”. Tanto na resposta à convocação do periódico Telos como no diálogo com Grazia Borrini, o autor de Contra o Método insistiu que a democratização da ciência demandaria a participação cidadã em debates públicos: “Essas questões dizem respeitos a todos nós – e todos nós devemos participar de sua solução” (AR, p. 465). Portanto, enquanto comentadores se limitam às publicações dos anos 1970 e ao relativismo democrático, dois traços das posteriores opiniões políticas feyerabendianas permanecem pouco explorados: i) a centralidade da participação democrática em questões relativas à influência da ciência na sociedade moderna e ii) a 129

inadequação de tributar a Feyerabend uma filosofia política (abstrata e normativa) acerca da relação entre ciência e sociedade. Para concluir, recorremos à passagem a seguir (ignorada pelos vários comentadores discutidos ao longo de 2.2.1). Ela explicita que o pensamento político de Feyerabend está voltado para a ideia de participação cidadã responsável (democrática, instruída e consentida) e, definitivamente, não refletiria a uma teoria social ou filosofia política (como afirma a premissa I, em 2.2):

Meus comentários vagos e apenas esboçados sobre o Estado, a ética, a educação e os negócios da ciência que fiz em [Contra o Método e A Ciência em uma Sociedade Livre] devem ser examinados pelas pessoas para quem eles foram dirigidos. Eles são opiniões subjetivas, e não diretrizes objetivas; devem ser testados por outras disciplinas, não por critérios ‘objetivos’, e recebem poder político só depois de todos os envolvidos os terem considerado: o consenso daqueles a quem me dirijo, e não meus argumentos, é que finalmente decide a questão.

2.3. Duas “perguntas fundamentais” da filosofia de Feyerabend As críticas de Dissakè (2001), Farrell (2003) ou Oberheim (2006) à primeira dicotomia sugerem uma superação da tradicional imagem bipartida do corpus feyerabendiano (2.1). Então, podemos considerar que há uma consistência entre as propostas pluralistas de Feyerabend precedentes e posteriores à publicação do Contra o Método. Mas isso não implica um comprometimento com a concepção continuísta e gradualista da Escola de Hannover (2.1.2). Elementos textuais e metodológicos mostram descontinuidades no desenvolvimento intelectual do austríaco (2.1.2.1 e 2.1.2.2). A crítica da segunda dicotomia aponta que a fissura das ideias epistemológicas e políticas de Feyerabend é superficial. Nesse horizonte, questionamos a autoridade de Preston (1997) a esse respeito: as fontes primárias e secundarias da Visão Padrão não corroboram as premissas I, II e III.a e III.b da segunda dicotomia (2.2).69 Elas são textualmente insuficientes e, além disso, as fontes secundárias da Visão Padrão são incompletas. Por sua parte, Alford (1985b) e Kidd (2015) reavivam a relevância do pensamento político feyerabendiano. Mostram uma conexão estreita entre as reflexões do austríaco a respeito da autoridade cognitiva e social da ciência e noções epistemológicas (como a recusa da hegemonia dos padrões racionalistas). Finalmente,

69

As premissas em 2.2 afirmam que Feyerabend possui uma filosofia política teoricamente limitada, filosoficamente equivocada, conceitualmente pouco relevante e dissociada da ‘epistemologia’ do autor.

130

apontamos como, nos anos 1980, Feyerabend enfatizou a relação entre democratização do conhecimento e emancipação intelectual dos cidadãos através da participação de leigos em decisões concernentes aos impactos sociais da ciência. Com base nas críticas às duas dicotomias exegéticas do corpus feyerabendiano, apresentamos os dois pressupostos interpretativos básicos dos quais partiremos para interpretar o conjunto do corpus de Feyerabend:

I.

As teses pluralistas nos trabalhos pré- e pós-Contra o Método não são teoricamente inconciliáveis (embora não sejam conceitualmente contínuas).

II.

As teses pluralistas acerca da estrutura/método/natureza cognitiva da ciência e do mérito/valor/excelência social da ciência são mutuamente conciliáveis em termos filosóficos.

2.3.1. O ‘projeto crítico’ feyerabendiano As reflexões de Feyerabend quanto à estrutura e excelência da ciência oferecem uma pista para investigarmos a consistência filosófica das teses pluralistas do autor. Nesse sentido, divergimos: i) da Visão Padrão, pois consideramos haver uma coerência teórica no corpus feyerabendiano pré- e pós-Contra o Método; e ii) da Escola de Hannover, pois consideramos que a coesão programática do pensamento de Feyerabend envolve as ideias políticas do austríaco. Aproximamo-nos, em particular, das leituras de Dissakè (2001) e Farrell (2003) (1.1.4 e 1.2.2), para quem as ideias epistemológicas de Feyerabend englobam considerações ético-políticas. Para introduzir nossa concepção, partimos do capítulo XVI da primeira edição do Contra o Método, em 1975.70 Esse material oferece um excelente enquadramento propedêutico da confluência das concepções de Feyerabend atinentes à natureza e status do conhecimento científico (2.3.1.1 e 2.3.1.2), tópicos estruturantes do projeto de filosofia pluralista que ele mesmo denominou de Crítica da Razão Científica (2.3.1.3).

70

Para detalhes, ver Silva 1998, pp. 97-119; Farrell 2003, pp. 44-70; ou Regner 1994.

131

2.3.1.1.

Constituição do ‘projeto crítico’ feyerabendiano

O autor de Contra o Método reconheceu que Lakatos revelou a enorme distância existente a imagem racionalista da ciência tradicional e a prática científica efetiva. Para Lakatos, a “tentativa de reformar as ciências” segundo os padrões ortodoxos poderia prejudicar, ou mesmo destruir, as ciências (CM1, p. 287). Ele aceitaria, portanto, que padrões metodológicos não deveriam aprisionar o exame de novas ideias e que padrões poderiam ser criticados. “Procede examiná-los, aprimorá-los, substituí-los por melhores padrões. O exame não é abstrato, mas faz uso de dados históricos”, comenta Feyerabend. Assim, ambos autores concordavam que novas ideias, embora apresentassem falhas, poderiam ser aperfeiçoadas. A unidade metodológica do programa lakatosiano residiria em “um programa de pesquisa” (p. 288). Por isso, consoante a leitura de Feyerabend, a análise histórica dos programas de pesquisas apenas forneceriam juízos sobre o estágio histórico (progressivo, estagnado ou degenerescente) dos programas de pesquisa: “Asseverações dessa ordem são fundamentais na metodologia que Lakatos deseja defender. Descrevem a situação em que um cientista se encontra. Não lhe dizem como agir”. Nessa ótica, cientistas poderiam adotar quaisquer posturas frente aos programas de pesquisa. Em outros termos: “não se pode racionalmente criticar um cientista que se apega a um programa em degenerescência e não há meio racional de mostrar que são desarrazoadas suas ações” (p. 289). Feyerabend diz que o modelo lakatosiano sinalizaria para a “necessidade de padrões mais liberais” em termos metodológicos. Feyerabend reconhece que a metodologia de Lakatos “não orienta diretamente as ações do cientista” (p. 290). Contudo, frisa que, implicitamente, a abordagem dos programas de pesquisa “oferece padrões que auxiliam o cientista na avaliação histórica em que ele toma decisões”. A retórica de Lakatos não seria prescritiva; mas a atitude lakatosiana frente à “‘liberdade’ de pesquisa” seria (p. 290): “Imre Lakatos”, resume Feyerabend, “deseja que a ciência […] se conforme a certos padrões fixos, quer fazêla ‘racional’” (p. 300). Aparentemente, os padrões da metodologia de Lakatos “não emitem ordens abstratas”, no entanto, mostram meios pelos quais as “decisões” dos cientistas ocorreriam “com certa regularidade” (p. 301). Esses modos de orientar os pesquisadores seriam “pressões psicológicas ou sociológicas”, e forneceriam padrões que funcionariam como “diretrizes coletivas […] sem reduzir o liberalismo”:

132

Tomados em si mesmos, os padrões mostram-se incapazes de proibir o mais ultrajante dos comportamentos. Tomados em conjunto com a espécie de conservadorismo descrita, exercem influência sutil, mas firme, sobre o cientista. E é precisamente assim que Lakatos deseja vê-los utilizados (p. 302).

Feyerabend e Lakatos concebiam que os fatos históricos auxiliavam na crítica de metodologias (p. 306). Entretanto, Lakatos indicaria critérios metodológicos para balizar a avaliação de teorias, a saber: i) as opiniões básicas da elite científica e ii) os “juízos básicos de valor” quanto aos resultados científicos. Contra o critério (i), Feyerabend afirmou que “os juízos básicos de valor não são tão uniformes” (p. 307). Afirmou, ainda, que “a ciência se desmembra em numerosas disciplinas, cada qual delas podendo assumir diferente atitude frente a uma teoria dada e as disciplinas singulares se abrem, por sua vez, em escolas”. A própria uniformidade de opinião desapareceria “durante as revoluções, quando todos os princípios são postos em causa e todos os métodos são violados”. Ainda quanto a (i), Feyerabend acrescentou que o consenso entre cientistas apenas raramente é justificado de forma razoável: “a maioria dos cientistas aceita confiantemente os juízos de valor, sem examiná-los, mas simplesmente curvando-se à autoridade dos colegas especialistas” (p. 308). Então, o autor de Contra o Método discorda radicalmente da existência de juízos científicos uniformes, duráveis ou inquestionáveis, e também defende que elite científica não adotaria racionalmente os padrões da disciplina. Por conseguinte, Lakatos reforçaria uma ideologia racionalista disfarçada sob a retórica de um modelo liberal (p. 309): “Lakatos não difere, em verdade, dos epistemologistas tradicionais; muito ao contrário, a eles oferece novo e poderoso instrumento de propaganda”. Contra o critério (ii), Feyerabend argumentou que a superioridade dos “resultados científicos” seria pressuposta:

As ‘reconstruções racionais’ dão por bom o ‘saber científico geral’, não demonstram que ele seja melhor que o ‘saber fundamental’ de feiticeiros e bruxos. Ninguém demonstrou que a ciência (dos ‘dois últimos séculos’) alcança resultados que se conformam a seu próprio ‘saber’, ao passo que outros domínios deixam de apresentar resultados desse gênero. Demonstrado foi, por estudos antropológicos mais recentes, que todos os tipos de ideologia e de instituições conexas produzem, e têm produzido, resultados que se conformam com seus padrões e resultados que não se conformam com seus padrões (pp. 310-311).

133

No capítulo XV da primeira edição do Contra o Método, Feyerabend afirmou que a metodologia lakatosiana aponta para uma “nova ideologia profissional” (p. 315). Um estudo mais atento da abordagem dos programas de pesquisa revelaria falhas importantes nessa proposta: “Arbitrariamente [Lakatos] escolhe a ciência como critério de método e conhecimento, sem haver examinado os méritos de outras ideologias profissionais” (p. 319). Contudo, como Hacking (2010, p. viii) ressaltou, o citado capítulo XVI de Contra o Método foi eliminado das reedições do livro, em 1988 e 1993: “Ele foi apagado e em 1988 o sumário analítico do capítulo foi reduzido a uma mera nota de rodapé do capítulo precedente”. Esse apontamento é relevante de ser considerado. Na segunda edição do Contra o Método, o capítulo XV discute a distinção entre os contextos da descoberta e da justificação, e combate a concepção epistemológica de Popper.71 No geral, Feyerabend entende que o racionalismo “não passa de uma coleção de palavras de ordem que se podem adaptar em qualquer situação” (CM2, p. 199). E conclui o novo capítulo XV reforçando a ideia básica do Contra o Método: “Não há uma única regra que permaneça válida em todas as circunstâncias nem qualquer instância para a qual possamos apelar a todo momento” (CM2, p. 208). Nesse contexto, o capítulo XVI da edição de 1975 foi reduzido à seguinte nota de rodapé:

Nem mesmo a engenhosa metodologia de Lakatos escapa a esse juízo. Lakatos parece liberal porque proíbe muito pouco e parece racional porque, apesar de tudo, continua a proibir alguma coisa. Mas a única coisa que proíbe é descrever um ‘programa de investigação em degenerescência’, ou seja, um programa de investigação desprovido de novas previsões e embaraçado por arranjos ad hoc, como progressivo. Não proíbe seu uso. O que significa que seus critérios permitem a um criminoso cometer quantos crimes queira conquanto que nunca minta a esse respeito. Ver mais pormenores nos meus Philosophical Papers, Vol. II, capítulo 10 (CM2, p. 208 n. 11).

2.3.1.2.

Diretrizes gerais do ‘projeto crítico’ feyerabendiano

O texto indicado na nota supracitada é “The Methodology of Scientific Research Programmes”. Ele foi originalmente publicado em 1976 com o título “On the Critique of Scientific Reason” (PKF 1976). Embora o capítulo XVI do Contra o Método de 1975 não conste nas reedições da obra, em 1988 e 1993, Feyerabend recomendou aquele

71

Ver o capítulo XIV da edição de 1975.

134

texto como fonte das mencionadas críticas a Lakatos (PP2, p. 202 n. 1). De fato, o artigo de 1976 exibe o mesmo conteúdo do escrito de 1975: i) recusa a uniformidade nos padrões científicos e ii) revela que a superioridade cognitiva dos resultados científicos é presumida sem o confronto com os resultados de concepções alternativas. Para aprofundar essa perspectiva, Feyerabend estrutura “duas perguntas fundamentais”:

Existem duas questões as quais surgem no curso de qualquer crítica da razão científica. São tais: (a) O que é a ciência – como ela procede, quais são os resultados dela, como os procedimentos, padrões e resultados diferem dos de outras atividades? (b) O que há de tão excelente com a ciência – o que torna as ciências preferíveis a outras formas de vida, as quais empregam padrões diferentes e, consequentemente, obtém tipos diferentes de resultado? O que torna a ciência moderna preferível à ciência aristotélica ou à ideologia dos Azande? (PKF 1976, p. 110; PP2, p. 203).

Feyerabend discute três modos de abordar a questão O que é a ciência? i)

Através do método antropológico

[…] examina o comportamento e a ideologia de uma tribo interessante e peculiar […] (PKF 1976, p. 111; PP2, p. 204).

ii)

Através da lógica da ciência […] podemos considerar demandas ideais e examinar as consequências delas. Tal procedimento é apenas superficialmente conectado com a prática (científica) efetiva e pode ser inteiramente separada dela (PKF 1976, p. 111; PP2, p. 204).

iii)

Através da verificação do acordo entre padrões/metas e objetivos

Considerando os padrões e as metas de uma certa forma de vida podemos indagar se a prática concorda com os padrões e de conduzem à meta (PKF 1976, p. 112; PP2, p. 204).

Sobre a questão (b), primeiro impugna a tendência de responder à questão O que há de tão excelente com a ciência? tendo por princípio de padrões científicos: “Estamos examinando esses padrões, estamos os comparando com outros padrões, ao 135

invés de os assumir como base de nossos julgamentos” (PKF 1976, p. 110; PPP2, p. 202). Em segundo lugar, explicita que a resposta à questão referente à excelência é presumida: “Na história do pensamento, as respostas à questão (b) são, com frequência, tidas como garantidas. (PKF 1976, 110; PP2, p. 204).72 Quanto à pergunta (a), Feyerabend entende que os elementos essenciais da ciência, referentes à estrutura/método/natureza cognitiva dela, não podem ser conhecidos a priori:

Precisamos do método antropológico para descobrir se as reconstruções [lógicas] aprimoram a ciência ou se a transforma em um enfeite inútil, conquanto perfeito, de livros de lógica. O procedimento do antropólogo tem precedência sobre o procedimento do logico (PKF 1976, p. 111; PP2, p. 204).

Quanto à pergunta (b), Feyerabend afirma que o mérito/valor/excelência social da ciência não pode ser pressuposto:

Vemos, pois, que a questão (b) permanece sem resposta. Evidentemente, é assumido que a ciência é amplamente melhor do que qualquer outro programa de pesquisa de escopo e generalidade comparável. Contudo, não encontramos uma única razão em defesa desse pressuposto (PKF 1976, p. 114; PP2, p. 206).

O autor de Contra o Método recomenda uma “atitude crítica” relativamente à definição da estrutura (teórica e metodológica) e da excelência (cognitiva e cultural) da ciência. Feyerabend define as diretrizes gerais de um projeto epistemológico que ele mesmo designou como Crítica da Razão Científica (PKF 1976, p. 112; PP2, p. 204).73 A fundamentação do projeto crítico feyerabendiano, como vimos em 2.3.1.1, envolve inicialmente uma recusa da teoria da ciência lakatosiana. No aludido texto de 1976,

72

Como vemos, as duas perguntas fundamentais de Feyerabend concernem, fundamentalmente, aos dois grupos temáticos apontados em 2.3. 73 Segundo Kidd (2015): “O termo ‘crítica’ [usado por Feyerabend] deveria ser entendido no sentido do projeto crítico kantiano de recusar afirmações extravagantes realizadas em favor da ciência – científica ou qualquer outra – que indicou que ela estava sendo levada para além dos seus próprios limites”.

136

assim como no Contra o Método de 1975, duas influentes suposições racionalistas (sobretudo as alinhadas à concepção de Lakatos)74 são rejeitadas: (i)

Suposição de Uniformidade Axiológica da Ciência (SUAC)

(ii)

Suposição de Sucesso da Ciência (SSC) A SUAC considera que existe um acordo epistêmico quanto a valores básicos

adotados pelo “senso comum científico”. Esses valores “aceitos pela maioria dos cientistas” indicariam padrões de crítica metodológica empregados para avaliar programas de pesquisa. Contra essa ideia, Feyerabend sustentou a fragmentação dos “valores de julgamento” presentes na ciência. Afirmou também que processos revolucionários dissolvem quaisquer unidades axiológicas: “nenhum princípio permanece intocado, nenhum método inviolado” (PKF 1976, p. 115; PP2, p. 208). O austríaco reiterou que “julgamentos de valores básicos apenas raramente são efetuados por bons motivos” (PKF 1976, p. 115; PP2, p. 209). A comunidade científica não examinaria os valores epistêmicos estabelecidos, mas “se curvaria à autoridade” dos pesquisadores consagrados. A SUAC não passaria, enfim, de um “evento raro”. Mesmo os valores básicos do senso comum científico precisariam ser justificados: “As ‘reconstruções racionais’ tomam a ‘sabedoria científica’ como certa; elas não mostram que é melhor do que a ‘sabedoria básica’ de bruxas e feiticeiros” (PKF 1976, p. 118; PP2, p. 211). A SSC responde de positivamente à questão referente à excelência da ciência. Entretanto, o filósofo considera que “ninguém mostrou que apenas a ciência […] possui resultados”. Inspirado em estudos antropológicos, ele afirmou que “todas as ideologias e instituições associadas produzem, e têm produzido, resultados os quais se conformam aos padrões delas e outros resultados que não se conformam com os padrões delas”. Nesse sentido, as metodologias racionalistas não argumentariam no sentido de provar a SSC: elas “presumem essa superioridade e buscam usá-la como uma base para os padrões que empregam” (PKF 1976, p. 119; PP2, p. 213). Além disso, padrões científicos seriam aplicados por força da ideologia racionalista, não porque receberam alguma justificativa objetiva ou racional. Para sustentar tal leitura, o austríaco salienta que o modelo metodológico liberal de Lakatos permitiria “reter teorias refutadas” ou “incompatíveis com observações estabelecidas e experiências” (PKF 1976, p. 119; PP2, 74

Feyerabend parece tem em mente, especialmente, J. Worrall, J. Agassi, E. Zahar e Alan Musgrave.

137

p. 212). Então, seria legítimo abandonar, substituir ou reter teorias “em estágio avançado de degeneração” (PKF 1976, p. 121; PP2, p. 214). Para ele, a posição lakatosiana “não orienta [o cientista] a como proceder”. Por conseguinte, o racionalista não poderia “racionalmente criticar” ou “mostrar de forma racional” a inadequação de aderir a um programa de pesquisa estagnado ou em degenerescência. Portanto, a “vantagem intrínseca do ‘progresso’” não teria sido estabelecida (PKF 1976, p. 122; PP2, p. 215). Uma última crítica feyerabendiana à SSC concerne à própria história da ciência. O austríaco aponta que mudanças científicas fundamentais suspenderiam não apenas a universalidade de padrões metodológicos, mas também a objetividade das avaliações (PKF 1976, pp. 129-130; PP2, pp. 223-224).75 Em 1976, Feyerabend discutiu os temas da natureza e do valor da ciência partindo das questões (a) e (b), as quais concernem, respectivamente, à estrutura e à excelência da ciência. O autor reformulou as críticas à teoria lakatosiana, projetadas no Contra o Método de 1975, no sentido de edificar um projeto crítico da racionalidade científica. A apreciação feyerabendiana sustentou que a adesão racionalista a padrões ou resultados científicos seria “arbitrária, ou subjetiva ou irracional” (PKF 1976, p. 134; PP2, p. 228). O comprometimento racionalista com a ciência i) não seria racionalmente justificado, ii) partiria de uma imagem idealizada (isto é, uniforme) da ciência, iii) não provaria a superioridade cognitiva da ciência e iv) elegeria subjetivamente a ciência. Feyerabend observa que existem “parâmetros diferentes” admitidos pelos cientistas filiados a uma tradição estabelecida e que “considerações externas” influenciam na refutação, substituição ou manutenção de um ponto de vista (PKF 1976, p. 136; PP2, p. 230): “No primeiro caso, temos uma pluralidade de padrões, no segundo, uma pluralidade de motivos”. “A ciência”, finaliza o filósofo, “não pode existir sem tal pluralidade”.

Usando um exemplo caro a Lakatos, Feyerabend sentenciou: “[…] a revolução iniciada pela hipótese de Copérnico foi muito mais dramática do que uma transição, segundo a metodologia dos programas de pesquisa, de um programa de pesquisa para outro. Ela trouxe novos parâmetros e, assim, constituiu uma verdadeira mudança de paradigma, no sentido de Kuhn” (PKF 1976, p. 131; PP2, p. 224). 75

138

2.3.1.3.

Desdobramentos do ‘projeto crítico’ feyerabendiano

A filosofia crítica feyerabendiana ambiciona analisar a racionalidade da crença na estrutura e status da ciência na sociedade moderna. Trata-se, pois, de um projeto filosoficamente consistente e incompatível com a admissão do dogma das duas dicotomias exegéticas do corpus feyerabendiano: a Crítica da Razão Científica conecta as obras dos anos 1950 e 1960 com as obras da década de 1970 em diante e congrega as considerações epistemológicas e políticas de Feyerabend. Entendemos que o programa crítico de Feyerabend, cujas formulações iniciais remontam à primeira metade dos anos 1970, adquiriu forma explícita em 1976. Nesse momento, Feyerabend formulou as duas perguntas fundamentais de sua filosofia, quais sejam: O que é a Ciência? e O que há de tão excelente com a ciência? A partir disso, o autor combateu a SUAC e a SSC asseverando i) que não existe uniformidade de padrões científicos e ii) que abordagens alternativas à ciência também são exitosas. Mas tais reflexões acerca do método e do mérito da ciência não se restringem à produção feyerabendiana dos anos 1970. Os questionamentos básicos do projeto crítico de Feyerabend aparecem em várias obras posteriores ao Contra o Método.76 O projeto crítico de Feyerabend envolveu, inicialmente, um ataque à teoria da ciência de Lakatos, como o capítulo XVI da primeira edição do Contra o Método evidencia (2.3.1.1). Em seguida, ampliou aquelas reflexões no sentido de desqualificar suposições epistemológicas de abordagens metodológicas racionalistas (2.3.1.2). Contudo, a partir de 1976, as referências diretas a Lakatos ou aos racionalistas se diluem no corpus feyerabendiano.77 A crítica à uniformidade e hegemonia do conhecimento científico se torna autônoma em relação às limitações específicas do modelo metodológico dos programas de pesquisa. Como tal, Feyerabend concentrou suas

76

Explicitadas em 1976, as duas perguntas fundamentais mencionadas foram reproduzidas, de forma praticamente idêntica à original, em escritos de 1977, 1978, 1882, 1988, 1993 e 1994. Ver PnP, p. 57; CM2, p. 323; CM3, p. 320; CSL, p. 91; e STA, p. 145. As diferenças entre as versões das “duas perguntas fundamentais” são pontuais. Todos trazem as indagações básicas sobre a definição e o valor da ciência, mudando apenas as considerações secundárias à questão principal. Assim, em 1976, Feyerabend escreveu: “O que torna a ciência moderna preferível à ciência aristotélica ou à ideologia dos Azande?” (PKF 1976, p. 110). Essa sentença foi substituída, em 1978, por essa: “O que faz que a Ciência moderna seja preferível à Ciência dos aristotélicos ou à Cosmologia dos Hopi?” (CSL, p. 91). Nas edições de 1988 e 1993 do Contra o Método, Feyerabend acrescentou uma terceira pergunta às duas mencionadas: “Como devemos usar as ciências, e quem decide a questão?” (CM2, p. 323; CM3, p. 320). A principal mudança na forma das “duas perguntas” aparece em CA, p. 200, contudo, mantêm o núcleo do projeto crítico de Feyerabend. 77 Feyerabend se referirá a eles de forma velada, como os “propagandistas da ciência” (PnP, p. 61).

139

análises na questão da diversidade estrutural da ciência e no tema da supremacia do pensamento ocidental.78 Pouco antes de lançar A Ciência em uma Sociedade Livre, anotou que “não há apenas uma resposta” para a questão acerca dos padrões, procedimentos e resultados específicos da ciência:

Em teoria da ciência, cada escola oferece uma opinião acerca do que é a ciência e como ela procede. Não nos afastamos da verdade quando dizemos que a essência da ciência permanece na obscuridade […] Em nossos dias, mostrou-se que nossa ciência é muito mais complexa do que muitos dos lógicos imaginam, que a desordem da ciência é algo mais do que um fenômeno superficial e que somente em razão dessa complexidade e incoerência parcial a ciência funciona, progride e faz descobertas (PnP, p. 58).

Feyerabend também rejeitou o pressuposto da superioridade inerente da ciência. No livro de 1978, ele reiterou que “a excelência da ciência é presumida, ninguém argumenta a seu favor” (CSL, p. 92). O risco desse dogma remete ao fato de que a ciência “passou a ser um artigo de fé para quase todo mundo”. Ela comporia o próprio “tecido básico da democracia”, afinal, o Estado e a ciência “trabalham rigorosamente juntos” na sociedade moderna. A base daquele dogma incorpora a expectativa de que a ciência contribui para a “libertação mental e social” (p. 94). Contudo, para o autor, é incorreto associar a ciência a uma “força libertadora” (2.2.2.2): “Não há nada da Ciência ou em qualquer ideologia que as faça inerentemente libertadoras”. Pois bem, a crítica de Feyerabend assinala que a hegemonia da ciência representa uma ameaça à diversidade concepções alternativas, à liberdade individual, à autonomia intelectual e à própria democracia.79 Portanto, estamos diante de reflexão densa e consistente sobre a natureza fragmentária da ciência e o status privilegiado dessa tradição em sociedade plurais e democráticas. Destarte, tópicos epistemológicos e políticos, no interior da Crítica da Razão Científica, compõem os pilares da filosofia feyerabendiana. Nesse horizonte, os pressupostos interpretativos I e II que apresentamos em 2.3 evidenciam a coesão filosófica do autor de Contra o Método. As teses de Feyerabend atinentes à 78

Tal modificação no escopo do projeto de Feyerabend já se mostra em 1977. Por exemplo, ver a seção I o texto “Unterwegs zu einer dadaistischen Erkenntnistheorie”, originalmente publicado em Unter dem Pflaster liegt der Strand, Vol. 4 (1977), Hans Peter Duerr (ed.), Karin Kramer Verlag: Berlin 1977, pp. 9-88. 79 “Finalmente, a maneira pela qual aceitamos ou rejeitamos ideias científicas é radicalmente diferente dos procedimentos decisórios democráticos. Aceitamos leis e fatos científicos, ensinamo-los em nossas escolas, fazemos deles a base de decisões políticas importantes, mas sem antes tê-los examinado e sem tê-los submetido a um voto” (CSL, p. 93).

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estrutura fragmentária da ciência e à diversidade de visões de mundo iluminam, pois, os leitmotifs constitutivos do pensamento pluralista de Feyerabend.80 Portanto, distintamente da Visão Padrão e da Escola de Hannover, afirmamos que uma compreensão efetivamente englobante do conjunto da filosofia em tela não pode dispensar as discussões de Feyerabend acerca do status, valor e excelência do conhecimento científico.

80

Uma tentativa prévia de definir os leitmotifs da filosofia de Feyerabend foi elaborada por Reaven (2000). O comentador apresenta um entendimento que articula aspectos biográficos de Feyerabend com as ideias do filósofo acerca da ciência e seus impactos na sociedade. Nessa leitura, os “principais temas” do pensamento de Feyerabend seriam: “coragem, credulidade humana, viver cum brio e amorosidade”. Coragem para atacar a intolerância intelectual, enfrentar dores físicas ou suportar o ostracismo acadêmico; credulidade humana para reconhecer que pessoas professam diversas convicções (científicas ou não) e para propor que somente o confronto com visões alternativas combateria o dogmatismo das crenças; viver cum brio para experimentar vivacidade no trabalho, nas relações pessoais, nos sofrimentos, nas paixões e nos interesses estéticos ou intelectuais; e, por fim, amorosidade “para dar e receber amor” (p. 25). Com efeito, Reaven introduz uma “apreciação metafórica de alguns dos leitmotifs de Feyerabend” (p. 21).

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CAPÍTULO III PLURALISMO GLOBAL Uma nova hermenêutica do corpus de Feyerabend “Você já deve ter percebido que não desenvolvo minhas ideias de uma maneira muito sistemática. Bem, estamos vivendo em um mundo caótico e inserir um sistema nesse mundo significa inserir uma ilusão” (TS, p. 54).

Em 21 de fevereiro de 1971, Feyerabend remeteu uma carta a Lakatos na qual afirmava que todos os filósofos deveriam adotar uma “ideologia” e uma “figura paterna” (FAM, p. 239). Nesse contexto, exaltou a obra de John Stuart Mill, sobretudo o “imortal ensaio” Sobre a Liberdade (PP3, p. 184; CM1, p. 71; PP1, p xi).81 É verdade que o autor de Contra o Método elogiou vários autores (dentre seus “heróis” estariam Aristófanes, Nestroy ou Voltaire) (PF, p. 182) – entretanto, o enaltecimento das ideias de Mill no conjunto do corpus feyerabendiano (especialmente a partir dos anos 1960) mostra-se onipresente (MT, p. 130).82 O tópico central dessa influência intelectual envolve, inquestionavelmente, os argumentos da “epistemologia libertária” (AR, p. 335; CM3, p. 69) de Mill em favor da proliferação e dos benefícios do pluralismo para o desenvolvimento das sociedades e para o incremento dos talentos e aptidões individuais:83

Segundo Mill, as pessoas se desenvolvem melhor em sociedades pluralistas as quais contém muitas ideias, tradições, formas de vida. Essas sociedades também são mais adequadas para o desenvolvimento do conhecimento (PP3, p. 213).

81

Feyerabend também comenta como a Lógica de Mill legitima a especulação como método de pesquisa (PP3, p. 212). Ele analisa as diferenças entre ambas as obras (p. 213). Sobre o uso geral de Feyerabend das ideias de Mill, ver Sluga (2006). 82 Há pelo menos uma discordância a ser destacada: “Aprendi muito com Mill, mas, de todo modo, ainda restam grandes diferenças. Em primeiro lugar, Mill diz que sua ‘concepção’ só é válida para homens maduros, o que significa, para ele, homens que passaram por uma educação intelectual, isto é, por uma educação no sentido de Mill. Em relação a isso sou contra. Se os homens se tornaram adultos – seja como for –, então é preciso lhes dar ouvidos” (PnP, p. 158). 83 Feyerabend declara ter redigido “uma série de ensaios inspirados em Mill…” (DC, p. 74). Ao mesmo tempo, discute o relato de Mill da transformação gradual de ideias revolucionárias em obstáculos ao pensamento (CM3, cap. III; ver também 4.1.1.3.1).

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O austríaco assinala que, nos termos do Sobre a Liberdade, a pluralidade de ideias e formas de vida seria preferível à uniformidade de opiniões, fundamentando sua análise em quatro argumentos: i.

O argumento da falibilidade do conhecimento.

ii.

O argumento da complementação da verdade por confronto.

iii.

O argumento da irracionalidade da verdade incontestável.

iv.

O argumento da compreensão do sentido pelo contraste. Consoante a descrição feyerabendiana:84

Primeiro, porque uma concepção a qual se pode ter motivos para rejeitar pode, não obstante, ser verdadeira. ‘Recusar isso consiste em aceitar nossa própria infalibilidade’. Segundo, porque uma concepção problemática ‘pode ter – e muito frequentemente tem – uma parcela de verdade; e dado que a opinião geral ou predominante sobre qualquer tema nunca (ou raramente) traz toda a verdade, é somente por meio da colisão de opiniões adversas que o restante da verdade possui alguma chance de ser suprida. Terceiro, mesmo um ponto de vista que seja totalmente verdadeiro, mas não contestado, ‘será… mantido como um preconceito, com pouco entendimento ou notação dos fundamentos racionais deles’. E, quarto, o significado dele não será entendido, de forma que sua admissão não passe de ‘uma simples confissão formal’ a menos que um contraste com outras opiniões revele o sentido do significado deles (PP1, p. 139).

Feyerabend parece tributar sua aproximação com a tradição pluralista ao pensamento de Mill e não ao racionalismo crítico de Popper: “E depois Mill, em Sobre a Liberdade, ensinou-me que as diversas concepções de mundo não devem estar necessariamente lado a lado, mas podem estar empenhadas em melhorar o clima geral da consciência” (DC, p. 73).85 Não obstante, há uma importante singularidade na filosofia feyerabendiana: o pluralismo como resposta àqueles tópicos fundamentais do programa de Crítica da Razão Científica, a saber: i) a natureza/estrutura (teórica e metodológica) da ciência e ii) o mérito/valor (cognitivo e cultural) da ciência

84

Trecho reproduzido a partir da introdução à Parte II do PP1, cap. VIII, contudo, originalmente esse material remonta à seção 3 do artigo “Against Method”, de 1970 (PKF 1970, pp. 27-33), com ênfase na questão do pluralismo no âmbito da metodologia científica. 85 A versão feyerabendiana da metáfora oceânica para descrever o processo de desenvolvimento do conhecimento (detalhada em 4.1.2 adiante) parece, então, recuperar a lição pluralista de Mill.

143

(2.3.1.2).86 Assim, nossa forma de compreender a consistência teórica dos escritos do austríaco difere bastante das leituras ofertadas pela Visão Padrão e pela Escola de Hannover. Especificamente, buscamos englobar em um mesmo conjunto quatro tipos específicos de teses pluralistas contidos na obra do austríaco: pluralismo teórico (3.3.1), pluralismo metodológico (3.3.2), pluralismo cultural (3.3.3) e o pluralismo ontológico (3.3.4). Assim, a nova hermenêutica do corpus feyerabendiano como um Pluralismo Global que oferecemos unifica aquele conjunto de teses pluralistas a partir da premissa do desdobramento gradual e irrestrito da noção de proliferação no nível das ideias, das ações, das formas de vida e das cosmovisões (3.4). Contudo, antes de mostrar o panorama e a síntese do Pluralismo Global de Feyerabend, elaboramos uma disposição detalhada do desenvolvimento da formação acadêmica (3.1.1) e da carreira profissional do filósofo (3.1.2); e, também, ressaltamos as duas noções basilares da gênese e consolidação do pensamento pluralista feyerabendiano: a Teoria Pragmática da Observação e o Voluntarismo Epistêmico (3.2.1 e 3.2.2).

3.1. Esboço de biografia intelectual: Feyerabend (anos 1940-1950) “A filosofia veio por puro acaso”, declarou Feyerabend (MT, p. 37). Como tal, o pensamento do autor de Contra o Método foi precedido por diversos encontros (pessoais, intelectuais, institucionais etc.) acidentais (CM3, p. 337; CSL, pp. 133-151). Em 3.1.1, abordamos o início e estabilização da formação acadêmica (1938-1948); e, em 3.1.2, da carreira filosófica e profissional (1949-1959) do austríaco. Nessas duas décadas, Feyerabend esboçou as primeiras ideias, estabeleceu os primeiros contatos, formulou as primeiras noções e publicou os escritos iniciais que constituirão as bases de sua filosofia pluralista.

86

Estamos de acordo com a opinião comum dos leitores da obra de Feyerabend, discutida no Capítulo I deste trabalho (George Couvalis, John Preston, Robert Farrell, Paul Hoyningen-Huene, Eric Oberheim, Porfírio Silva, Malolo Dissakè, Gonzalo Munévar e Luca Tambolo), segundo a qual a obra feyerabendiana revela uma defesa do pluralismo. Mas sugerimos que uma forma de compreender a filosofia pluralista de Feyerabend consiste em pensá-la como um esforço geral de responder às questões O que é a Ciência? e O que há de tão excelente com a Ciência?

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3.1.1. Início e estabilização da formação acadêmica (1938-1948) O início e a estabilização da formação acadêmica de Feyerabend remontam às seguintes fases: 3.1.1.1, origens austríacas (1938-1942); 3.1.1.2, período formativo (1946-1947); e 3.1.1.3, estágios de socialização (1948).

3.1.1.1.Origens austríacas (1938-1942) Feyerabend cursou a escola secundária na Staatliche Oberschule für Jungen, em Viena.87 “Eu era um ‘Vorzugsschüler’88, ele disse, “um estudante que excedia uma determinada média” (MT, p. 32). Na Áustria dos anos 1930, a estrutura curricular do ensino médio (Realgymnasium) enfatizava o ensino de letras clássicas, idiomas modernos e disciplinas científicas. Por isso, na juventude, Feyerabend estudou artes e ciências, indistintamente, incluindo: teoria da perturbação, canto coral, astronomia teórica, ópera, pintura, teoria musical e observação celeste. Influenciado pelo professor de física e astrônomo Oswald Thomas, também explorou: o Lehrbuch der Experimentalphysik (1875), de Adolph Wüllner; os volumes do Atomphysik (1940), de Karl Bechert e Christian Gerthsen; além das obras de Konrad Knopp (teoria das funções), Ernst Mach (mecânica e termodinâmica) e Hugo Dingler (em especial os Fundamentos da Geometria, de 1911/1933).89 As leituras colegiais incluíram: i) textos literários (Conan Doyle, Alexandre Dumas, Julio Verne e Karl May), ii) peças de teatro (Goethe, Shakespeare e Ibsen) e, incidentalmente, iii) textos de filosofia (Platão, Descartes ou Ludwig Buechner).90 O interesse de Feyerabend pelas artes cênicas e canto lírico foi estimulado, ainda, pelo convívio com importantes maestros (Leo

87

Colégio Estadual de Ensino Secundário para Rapazes, localizado no distrito de Mödling, zona industrial ao sul de Viena. 88 Literalmente, um ‘aluno predileto’. Ver detalhes em MT, pp. 31-35. Documentos inéditos contendo testemunhos sobre o período escolar de Feyerabend se encontram sob o código PF 9-3-26 dos Arquivos Filosóficos de Feyerabend, na Universidade de Konstanz, Alemanha. 89 Feyerabend (MT, p. 40) escreveu: “Dingler impressionou-me por sua clareza, confiança e pela maneira com a qual construía ciência com base em decisões”. Referências sobre as influências de Mach podem ser encontradas, por exemplo, em PP1, pp. 11-13; MT, p. 40; PP2, Cap. VI; CSL, pp. 245-256; AR, Cap. VII; ver também Oeser (2006, p. 45). 90 “Eu comprava a maioria de minhas brochuras de segunda mão e ia também a feiras públicas em que toneladas de livros podiam ser compradas por alguns centavos”, escreveu o autor. “Eles vinham em pacotes; você tinha que comprar um pacote inteiro ou nada. Eu selecionava pacotes ricos em peças ou romances, mas podia evitar um ocasional Platão, Descartes ou Buechner (o materialista, não o poeta)” (MT, p. 37).

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Lehhner, Johann Langer e Adolf Vogel) e cantores (Georg Deggl, Geog Monthy, Alfred Werger, Hans Hotter e Willy Schnenkeis) (MT, pp. 40-43; CM3, p. 337, n. 1).

3.1.1.2.Período formativo (1946-1947) Em 1938, quatro anos após a anexação da Áustria pelo Terceiro Reich, Feyerabend foi recrutado para o serviço militar alemão (Arbeitsdienst) e enviado para treinamento no extremo norte da Europa. Ao completar a maioridade, voluntariou-se para se juntar à escola dos oficiais (Wehrmacht)91, tendo cumprido a formação militar na Iugoslávia. Entre 1942 e 1944, em razão dos desempenhos em combate, o austríaco graduou da patente de soldado às insígnias de cabo, sargento e tenente. Foi alvejado três vezes em um confronto no front russo, pouco antes da rendição alemã.92 Após se recuperar dos ferimentos de combate, em 1946, Feyerabend obteve um financiamento para frequentar a academia musical Weimar Institut zur Methodogischen Erneuerung des Deutschen Theaters.93 A bolsa de estudos reavivou os interesses artísticos dele: canto, cenografia, harmonia musical, piano, história do teatro e a idiomas estrangeiros (italiano). Feyerabend assistiu “peças clássicas” e “peças novas” que elogiavam a “resistência na Alemanha nazista” (CM3, p. 338). No entanto, os “discursos ideológicos” dessas produções eram “indistinguíveis das antigas peças nazistas”. Baseado nisso, o jovem austríaco compreendeu que “todo movimento tem tanto patifes quanto pessoas nobres”. Inicialmente, aceitou que a dramaturgia devia empreender uma “propaganda impiedosa a favor da ‘causa certa’”, porém, algum tempo depois elaborou a ideia de que “a escolha deve ser deixada ao público”: “Em nenhuma circunstância deve ele [o dramaturgo] tentar ser uma ‘força moral’” (p. 339). Nesse tempo, também conheceu as obras de Thomas Mann e Kierkegaard (ver PnP, p. 99); e assistiu ensaios “Como muitas pessoas da minha geração acabei por me ver envolvido na Segunda Guerra Mundial. Esse fato teve pouca influência sobre meu pensamento, na medida em que em afetou, tratou-se ao tempo de um incômodo e não de um problema moral” (CM2, p. 343, n. 1). Em sua autobiografia, reiterou: “Durante o período nazista, prestei pouca atenção à discussão geral sobre os judeus, comunismo, a ameaça bolchevique; não aceitei aqui, tampouco me opus; as palavras iam e vinham, aparentemente sem efeito” (MT, p. 61). 92 Um dos disparos atingiu sua coluna – os outros foram na mão e no rosto – e esse ferimento lhe reduziu a mobilidade (ele precisava do auxílio de uma bengala para caminhar) e o submeteu a intermitentes episódios de dor (MT, pp. 59-60). Alguns críticos da obra de Feyerabend, como Agassi (1991) ou Hattiangadi (2001), argumentam que posições político-filosóficas (tolerância, relativismo etc.) defendidas por ele apoiariam a ideologia nazista. Para mais detalhes sobre essa discussão, ver MT, p. 61, 64, 190; AR. pp. 371-373, DC, p. 98, CM3, p. 336 n. 1. 93 Instituto Weimar para a Renovação Metodológica do Teatro Alemão, prolongamento do Deutsches Theater Moskau, dirigido por Maxim Vallentim (CM3, p. 337). 91

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e peças teatrais no Nationaltheater.94 Em 1947, deixou Weimar e, com permissão da comissão de ética da Universidade de Viena, ingressou no Institut für österreichische Geschichtforschung, dirigido pelo historiador e diplomata Leo Santifaller.95 Aulas enfadonhas sobre ascensão de impérios e políticas monárquicas frustraram as expectativas do estudante. Depois, transferiu-se para o Instituto de Física, onde acompanhou cursos ministrados por: Johann Radon (análise de tensores), Edmund Hlavka (álgebra), Nikolaus Hofreiter (equações diferenciais), Theodor Sexl (física nuclear) e Adalbert Prey (astronomia esférica).96

3.1.1.2.1. Spollium – Trechos da carta inédita de Feyerabend, redigida em agosto de 1947, para o Dr. Weikert, editor da revista Der Student.97

‘Arte Moderna’ Em tempos de caos, de extrema pobreza, de desesperança e de incerteza, a arte se converte em um remédio para, outra vez, despertar a alegria no mundo e no presente; para alcançar, outra vez, a confiança na sabedoria da criação, no sentido da vida. Contudo, é necessária uma arte que se oriente para a alma, para a mente e o sentimento – ou, no mínimo, para a Forma do Mundo, da qual participamos […] Mas precisamos dar conforto, amor e alegria de viver às pessoas que sofrem. Só uma arte assim penetra no povo. Por isso, em tempos difíceis, uma arte afirmativa é uma substância vital – a negação da vida pode trilhar os caminhos que está posto há 30 anos (desde 1918). […] – Não se pode pensar sobre a arte – apenas a vivenciamos com olhos, ouvidos, alma. Aquele que é colocado diante dela se eleva, satisfaz e transfigura. Mas a arte não poder ser analisada teoricamente, como ocorre, por exemplo, com a ciência. […]

94

Projetado por Gottfried Semper e Karl von Hasenauer, sob encomenda do Imperador Joseph II, o Teatro Nacional (o Burgtheater, ‘Teatro Imperial’) foi construído entre 1874 e 1888. 95 Instituto Austríaco de Pesquisa Histórica ligado à Universidade de Viena. “Depois de um ano em Weimar, quis acrescentar as ciências e as humanidades às artes e ao teatro […] Posteriormente, acrescentei física e astronomia e, assim, finalmente retornei aos assuntos que tinha decidido estudar antes das interrupções da Segunda Guerra Mundial” (CM3, p. 339). E ainda: “Meu plano original era estudar física, matemática, astronomia e continuar com meu canto. Ao invés disso, escolhi história […] a história me fará compreender o que aconteceu” (MT, p. 72). 96 Karl Przibram (física laboratorial), Felix Ehrenhaft (física experimental) e Hans Thirring (mecânica, termodinâmica e óptica) foram os físicos que exerceram mais influência na formação intelectual de Feyerabend. Ver especialmente CA, pp. 217-219; MT, pp. 73-76; CM3, pp. 341-344. Feyerabend referese nominalmente aos demais somente em MT, pp. 38-40. Após consultar os documentos do Arquivo Feyerabend, Kuby (2010a) acrescenta os nomes de dois outros professores de Feyerabend no Instituto de Física na Universidade de Viena: dos astrônomos Adalbert Prey e Kasimir Graff. 97 Documento completo em Kuby (2010b, p. 188), que também traz outros arquivos inéditos da mesma época. Em 1947, Feyerabend se envolveu em vários debates sobre a ‘função da arte’ no pós-guerra (ver CM3, p. 338).

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3.1.1.3. Estágio de socialização (1948) Em 1945, os irmãos Fritz e Otto Molden (em parceria com outros combatentes da resistência austríaca) fundaram o Österreichisches College. Os eventos interdisciplinares e internacionais do Colégio Austríaco ocorriam em Alpbach, uma aldeia próxima a Brixlegg, no estado do Tirol, oeste da Áustria. Os eventos de veraneio se dividiam em seminários diurnos (em salas ou locações externas), conferências plenárias e simpósios à tarde e apresentações artísticas noturnas. Em 1948, Feyerabend aceitou a oferta da amiga Maria Blach, que trabalhava como secretária do Fórum Alpbach, para estenografar (em troca de hospedagem e transporte) as principais discussões daquela edição do evento. “Foi o passo mais decisivo que dei em minha vida”, ele declarou (MT, p. 79). Em agosto daquele ano, Feyerabend conheceu Popper: “Eu conhecera Popper em Alpbach, em 1948. Admirava seu jeito desembaraçado, seu atrevimento, até sua atitude desrespeitosa com relação aos filósofos alemães que davam peso aos anais do evento” (CM3, p. 348; MT, p. 79). O estudante considerou a exposição de Popper “estimulante” e, ao término das conferências, fez alguns comentários; em seguida, recebeu um convite de Popper para um passeio vespertino. À noite o “mero estudante e iniciante” foi conduzido a um “encontro reservado” com intelectuais (dentre os quais, o biólogo Ludwig von Bertalanffy, o sacerdote jesuíta Karl Rahner e o economista F. A. von Hayek).98 Então, é correto considerar que o European Forum Alpbach impactou profundamente no desenvolvimento intelectual do autor. Foi nesse momento que ele se inseriu na “rede internacional de filósofos e cientistas” (STADLER 2006, p. x; ver também 4.3.2.1).

Os encontros tiveram (e ainda têm) lugar em Alpbach, um pequeno povoado de montanha, no Tirol. Ali encontrei excelentes estudiosos, artistas, políticos e devo minha carreira acadêmica ao amigável auxílio de alguns deles. Também comecei a suspeitar que o que conta em um debate público não são argumentos, mas certas maneiras de alguém apresentar sua própria posição (CM3, p. 340).

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Outras figuras que, dali em diante, Feyerabend conheceu através da Sociedade do Colégio Austríaco foram: o comunista Hans Grümm, o físico experimental Félix Ehrenhaft e os filósofos Hans Albert, Rudolf Carnap, Herbert Feigl, Phillipp Frank, Alf Ross, dentre outros. Para detalhes da influência de Ehrenhaft sobre Feyerabend, ver Oberheim (2006, cap. IV).

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Os encontros internacionais do Österreichisches College ocorriam no verão. Os seminários regulares acompanhavam o calendário acadêmico da Universidade. Nesse contexto de renascimento cultural e intelectual pós-guerra (Segunda República da Áustria), formou-se um grupo de discussão voltado para questões ligadas à filosofia natural. Os “estudantes de ciências e engenharia” nutriam interesse por questões ligadas aos “fundamentos da ciência e em problemas filosóficos mais amplos” (CM3, p. 339; MT, p. 82). Como componente e “líder estudantil” dessa agremiação, Feyerabend debateu com o medievalista católico alemão Alois Dempf99, o Monsignor Otto Mauer100, o esteta Karl Roretz101 e o filósofo Eric Heintel.102 A convicção básica compartilhada pelos estudantes insistia que: “a ciência é a base do conhecimento, a ciência é empírica, empreendimentos não empíricos são ou lógicos ou sem sentido” (MT, p. 77).103 O empirista lógico Viktor Kraft104 acolheu a iniciativa dos estudantes: “Este foi o início do Círculo Kraft, uma versão estudantil do Círculo de Viena” (p. 83). As reuniões do Círculo Kraft aconteciam quinzenalmente em uma sala situada na Kolingasse e envolveram “polêmicas solitárias” iniciais105 e encontros com visitantes

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Autor de Selbstkritik der Philosophie und Vergleichende Philosophiegeschichie im Grundriss (1947), dentre outros, obra que buscava uma ‘filosofia da filosofia’ para integralizar a crítica da razão humana. Diz Feyerabend: “Estávamos impressionados com Aloys Dempf, um orador tonitruante e notável acadêmico na área de filosofia medieval” (MT, p. 77). 100 Importante figura religiosa responsável for propor uma reconfiguração arquitetônica (teologicamente orientada) da Igreja. Um texto de referência para sua ‘teologia da arte’ é “Theologie der bildenden Kunst” (1941), onde a arte é designada como um “sacramento profético”. Diz Feyerabend: “Todas as terçasfeiras às sete horas da manhã eu comparecia a um seminário teológico atrás da Igreja de São Pedro para convencer o padre Otto Mauer da futilidade de seus esforços. Acreditar em Deus era uma coisa, eu dizia. Mas tentar provar Sua existência era uma empreitada destinada ao fracasso – a ideia de um Ser divino simplesmente não tinha fundamento científico” (MT, p. 77). Ver a descrição também em Fischer (2006). 101 Roretz se tornou Privatdozent na Universidade de Viena em 1922. Ensinou história da filosofia moderna até 1938. A tomada da Áustria pelos nazistas o afastou do cargo, para o qual retornou em 1945, no qual permaneceu até se aposentar, em 1951. Em 1906, apresentou a tese de doutorado intitulada “The Problem of Empathy in Modern Aesthetics”, e publicou estudos sobre a crítica do juízo de Kant. Diz Feyerabend: “Roretz parecia um sujeito correto, e com ele eu discutia os Prolegômenos de Kant” (MT, p. 77). 102 Feyerabend diz: “Ainda me lembro do professor Heintel advertindo-me com os braços erguidos: ‘Senhor Feyerabend, ou o senhor cala a boca, ou sai da sala de aula” (CM3, p. 339). 103 Feyerabend também debateu com o sociólogo August Knoll (teoria social do catolicismo) e o jurista e crítico teatral Hans Weigel. 104 Feyerabend diz: “Kraft tinha sido membro do Círculo de Viena. Como Thirring, foi afastado quando a Áustria tornou-se parte da Alemanha. Era um professor não muito inspirado, mas um pensador astuto e meticuloso […] Ele conhecia a maioria de nós pelo seu seminário e manifestou o desejo de ter uma sistematização mais estável” (MT, p. 82). 105 “Começamos com a teoria da relatividade”, Feyerabend recorda, “e investigamos detalhadamente os méritos do ponto de vista original de Lorentz” (PKF 1966, p. 4). Ou ainda: “Discutíamos então teorias científicas específicas; por exemplo, tivemos cinco reuniões sobre interpretações não einsteinianas das transformações de Lorentz. Nosso tópico principal era o problema da existência de um mundo exterior” (MT, p. 83).

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ilustres.106 De forma geral, a estrutura do Kraft-Kreis era composta por três tipos de participantes: i. ii.

iii.

Membros regulares – Bela Juhos, Walter Hollitscher, Ernst Topitsch. Estudantes – Jhonny Sagan (matemática), Heinrich Eichhorn (astronomia), Goldeberger de Buda (engenharia), Peter Schiske (física) e Erich Jantsch (astronomia). Visitantes convidados – Elisabeth Anscombe, Emil J. Walter, Georg Henrik von Wrigth, Edgar Tranekjaer-Ramussen e Ludwig Wittgenstein.107

Discutíamos então teorias científicas específicas; por exemplo, tivemos cinco reuniões sobre interpretações não einsteinianas das transformações de Lorentz. Nosso tópico principal era o problema da existência do mundo exterior. Vejo hoje que cometemos dois equívocos. Assumimos que discutir uma instituição significava discutir sua produção escrita. Mais especialmente assumimos que a ciência era um sistema de enunciados. Hoje isto parece uma ideia ligeiramente ridícula e o Círculo de Viena é responsabilizado por ela (MT, p. 83).

3.1.2. Início e estabilização da carreira profissional (1949-1959) O início e estabilização da carreira profissional de Feyerabend englobam as seguintes fases: 3.1.2.1, iniciação científico-filosófica (1949-1951); 3.1.1.2, atividades de pós-doutoramento (1952-1954); e, 3.1.2.3, anos de profissionalização (1955-1959).

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Por exemplo: Walter Hollitscher defendeu a importância de adotar um realismo quanto ao mundo exterior. Elizabeth Anscombe (1919-2001) analisou aspectos filosóficos relacionados à contribuição do estudo do desenvolvimento da psicologia infantil para o debate em torno do realismo (CM3, pp. 340, 244-245; PKF 1966, p. 4). A leitura conjunta do texto “Hipóteses Existenciais” (1950), de Herbert Feigl, suscitou o debate sobre referência inobservável de termos teóricos. “Este artigo”, Feyerabend disse, “ao lado das próprias contribuições de Kraft e com as ideias que Popper tinha nos explicado por ocasião de sua visita à Alpbach Summer University nos verões de 1948 e 1949 dirimiram muito nossas dúvidas sobre o realismo”. Outra visita ilustre foi Wittegsntein, que Feyerabend descreveu assim: “Chegou a hora. Kraft estava lá, os físicos estavam lá, os engenheiros estavam lá, os filósofos estavam lá – mas nada de Wittgenstein […] Wittgenstein chegou uma hora atrasado. “Seu rosto parece uma maçã seca”, pensei e continuei a falar. Wittgenstein sentou-se, ouviu por alguns minutos, e então interrompeu: “Pare, assim não vai!”. Ele discutiu detalhadamente o que se vê quando se olha por um microscópio – são estas coisas que interessam, ele parecia dizer, não considerações abstratas sobre as relações de “enunciados básicos” com teorias. Lembro da maneira exata como ele pronunciou a palavra ‘Mikroskop’. Houve interrupções, questões insolentes. Wittgenstein não se perturbou. Ele certamente preferia nossa atitude desrespeitosa à admiração servil que encontrava em outros lugares” (MT, p. 83). “[Q]uando [Wittgenstein] se foi, ainda não sabíamos se existia ou não um mundo externo, ou, se existia, quais eram os argumentos a seu favor” (PKF 1966, p. 4). 107 Na leitura de Stadler (2006), essa lista de membros, estudantes e visitantes permitiria considerar o Círculo Kraft uma espécie de ‘Terceiro Círculo de Viena’. Ver adiante em 4.3.2.1.

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3.1.2.1.Iniciação científico-filosófica (1949-1951) As reuniões do Círculo Kraft tiveram início em 1949 e, com algumas interrupções, duraram até 1952 (ou 1953) (CM3, p. 340). Para tanto, Feyerabend estudou os primeiros exemplares do periódico neopositivista Erkenntnis.108 As anotações preparatórias dessas leituras e reuniões conduziram ao esboço da tese Zur Theorie der Basissätze (1951): “Praticamente toda a minha tese foi apresentada e analisada nesses encontros, e alguns de meus primeiros artigos são resultado direto desses debates”.109 A tese de 1951 buscou examinar o significado de enunciados observacionais (p. 286).110 Feyerabend parte da suposição empirista de que enunciados descrevem ‘o que é dado’ e pretende identificar o que seria esse ‘dado’. A primeira possibilidade seria uma pesquisa fenomenológica. Mas o autor notou que a percepção envolve objetos, propriedades de objetos, relações de objetos. Assim, não percebemos ‘o dado’: “Fenomenologicamente, o que é dado consiste das mesmas coisas que também podem existir inobservadas – não é uma nova espécie de objeto” (p. 286). A primeira possibilidade é descartada porque “o dado não pode ser isolado por observação”. A segunda possibilidade seria uma pesquisa lógica. Isolar logicamente ‘o dado’ permitiria uma verificação precisa. Mas essa operação lógica com os enunciados levaria a um cenário que impossibilitaria correções posteriores. Essa seria uma “decisão irrazoável”: “enunciados não-testáveis não podem servir de base para a ciência”. Diante disso, conclui-se que o significado de enunciados observacionais depende das “teorias mais avançadas” utilizadas para descrever a “natureza dos objetos”. Pois bem, o projeto de tese original de Feyerabend abarcava solucionar um problema da eletrodinâmica (MT, p. 93). Entretanto, o austríaco mudou de planos e aprofundou as anotações realizadas para as reuniões do Círculo Kraft. Propôs essa mudança temática a Thirring e Kraft: “Eles me conheciam bem o suficiente para me aprovar sem uma só pergunta”,

Isso sugere que Feyerabend analisou escritos como: “Psychologie in physikalischer Sprache” (vol. I, 1930/31) e “Über Protokollsätze” (vol. III, 1932/33), de Carnap; “Kritische Bemerkungen zur Wissenschaftstheorie des Physikalismus” (vol. IV, 1934), de Bela Juhos; “Protokollsätze” (vol. III, 1932/33), “Radikaler Physiskalismus und, Wirkliche Welt” (vol. II, 1934), de Neurath; ou “Über das Fundament der Erkenntnis” (vol. III, 1943), de M. Schilick. Ver Stadler (2001, pp. 589-593). 109 “Viena, 1951 – escrita depois de dois anos de extensa discussão no Círculo Kraft e orientada pelo professor Viktor Kraft, da Universidade de Viena” (CM3, p. 286 n. 10). 110 Alguns desses “primeiros artigos” de Feyerabend relacionados às discussões no Círculo Kraft são: “Neuere Probleme der philosophischen Logik” (1952), “Bemerkungen zu Interpretation and Preciseness” (1953), “Physik und Ontologie” (1954), “Carnaps Theorie der Interpretation theoretischer Systeme” (1955), “Eine Bemerkung zum Neumannschen Beweis” (1956). 108

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escreveu. O físico experimental George Stetter111 e o psicólogo Friedrich Kainz112 também compuseram a banca avaliadora da tese Zur Theorie der Basissätze.113 Ao longo dos dois anos destinados à estruturação e escritura da tese Zur Theorie der Basissätze (1949 e 1951), Feyerabend viajou para a o norte da Europa, financiado pelo Österreichisches College (ver 3.1.2.1.1). Na Suécia, hospedou-se em Estocolmo, onde acompanhou as lectures de história da filosofia de Anders Wedberg e palestras do físico teórico Oskar Klein; e, em Uppsala, apresentou as linhas gerais da tese para um auditório composto, dentre outros, pelo lógico Sören Halldén e os filósofos Konrad Marc-Wogau e Ingmar Henenius. Na Dinamarca, conversou longamente com o linguista Louis Hjelmslev sobre o livro Fundamentos da teoria da linguagem; colaborou também com psicólogo Tranekjaer-Ramussen114 e conheceu o filósofo Jørgen Jørgensen. 115 Em uma dessas viagens, assistiu uma conferência pública e um seminário de Niels Bohr, em Askov:

Ele [Bohr] falava sobre a descoberta de que a raiz quadrada de dois não pode ser um número inteiro nem uma fração. Para ele, isso parecia um evento importante, ao qual voltava repetidamente. A seu ver, o evento levava a uma extensão do conceito de número que retinha certas propriedades dos inteiros e frações e mudava outras. Hankel, citado por Bohr, denominava a ideia por trás de tal transição de princípio de permanência das regras de cálculo. A transição da mecânica clássica para a mecânica quântica, dizia Bohr, foi levada a cabo precisamente de acordo com este princípio. Até aí pude entender. O resto estava além do meu alcance. Quando o seminário terminou, aproximei-me de Bohr e pedi uns detalhes. ‘Você não entendeu?’, exclamou Bohr. ‘É realmente uma pena. Nunca me expressei tão claramente antes’ (MT, p. 86).

Diz Feyerabend: “Stetter, o físico experimental, pediu-me elucidações sobre detalhes de experimentos que eu não conhecia e divaguei sobre teorias que ele não gostava” (MT, p. 93). 112 Diz Feyerabend: “Kainz, o examinador de fora, me pedira para levar ao exame três livros: a Ética de Nicolai Hartmann, sua própria Estética e a História da Filosofia de Falckenberg. Este último alternava longas passagens de texto com informação adicional mais recôndita impressa em tipos menores. Estudei bem essa última e usei-a nas respostas. Kainz achou que eu me saíra especialmente bem e me poupou do resto. No decorrer do exame descobri que Kainz adorava falar. Então, quando passamos para seu próprio livro (que eu havia lido muito por cima), levantei algumas dúvidas. Fiz a coisa certa. Kainz falou quase o tempo todo. ‘Este foi um exame excelente’, disse ele quando o secretário interrompeu, e deu-me a nota máxima” (MT, p. 93). 113 Segundo a descrição de Sladler (2006, p. xiv): “Os exames finais em questões de filosofia e psicologia com os examinadores Viktor Kraft, Friedrich Kainz e Hubert Rohracher receberam ‘menção honrosa’, e o exame de uma hora sobre física também foi considerado ‘excepcional’ por Hans Thirring e E. Schmid”. Nas descrições fornecidas por Feyerabend, contudo, os nomes do psicólogo Hubert Rohracher e de E. Schmid não são citados. 114 Ver “Perspectoid Distances”, Acta Psychologica, XI, 1955. 115 Autor, dentre outros, de Filosofiske Forelæsninger, Vol. 1–2, København: Levin and Munksgaard 1935/1939. 111

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3.1.2.1.1. Spollium 116 – Curriculum vitae de Feyerabend, depositado no departamento da Universidade de Viena como anexo da solicitação de defesa da tese de doutorado Zur Theorie der Basissätze, em 1951.

Eu, Paul Feyerabend, nasci em Viena, no dia 13 de janeiro de 1924, onde frequentei as escolas primária e secundária. Meu interesse em filosofia se baseou no meu interesse nas ciências naturais. Os livros que li incluíam obras de Duhem, Mach e Dingler. 1942-1945: serviço militar, seguido de um ano no hospital militar; um ano de estudos na Universidade de Música de Weimar. Em seguida, retornei a Viena: 1 semestre de História e História da Arte, 6 semestres de Astronomia, Física e Matemática, antes de transferir definitivamente para Filosofia. Nesse contexto, foram muito úteis as discussões realizadas em um pequeno grupo dirigido pelo Prof. Kraft, no estilo do Círculo de Viena, que abordava primordialmente questões ligadas à teoria da ciência [Probleme der Wissenschaftstheorie]. Assim, sob a inspiração de Karl Popper (Escola de Economia de Londres), interessei-me pela questão com a qual lidei na minha dissertação. A partir de 1948, tive a oportunidade de participar de discussões das quais me beneficiei bastante para a versão final da dissertação. Tirei grande proveito das discussões com o Prof. Walter Hollitscher (Berlim) – se não propriamente dos argumentos dele, ao menos de seu incentivo para que eu averiguasse melhor minhas ideias filosóficas, para, então, corrigi-las a fundo (do positivismo machiano para a posição que adotei na dissertação). Também me beneficiei de minhas discussões com a Sra. Anscombe (Cambridge) acerca dos problemas das IF [Investigações Filosóficas, de Wittgenstein]. Naquele tempo, ela me mostrou diversas formulações as quais me pareceram completamente incompreensíveis e que me acompanharam por muito tempo de uma forma confusa (bem como várias formulações que retirei de uma discussão com L. Wittgenstein, que participou em uma reunião noturna do Círculo Kraft). Tempos depois, encontrei formas de entender essas ideias – menos por reflexão do que por um processo de desenvolvimento inconsciente. Elas são expostas na minha dissertação. Atualmente, parecem-me a interpretação correta daquelas formulações (o que não deve significar que essa interpretação é historicamente correta). Pude discutir as ideias básicas de uma versão preliminar dessas formulações em uma conferência apresentada à sociedade filosófica em Uppsala (Suécia) e em um pequeno grupo em Copenhague, com o Prof. Marc-Wogau e com o Prof. Joergensen (com esse último também tive conversas privadas). Devo muito a ambas discussões. O Prof. Kraft chamou minha atenção para algumas confusões indesejáveis em uma versão preliminar da dissertação, bem como para várias ambiguidades. Tenho também uma grande dívida com o Prof. Tranekjaer-Rasmussen (Copenhague), por alguns aspectos relevantes relacionados à posição básica. Ele permitiu que eu lesse dois manuscritos seus, ainda inéditos, os quais trataram do que aludiu em uma palestra em Alpbach, em 1948 (que também é mencionada várias vezes). Anseio que, em breve, eu possa descobrir uma teoria do conhecimento físico baseada nesse estudo preliminar (ainda incompleto). Paul Feyerabend.

116

Pesquisas a respeito dos documentos em 3.1.2.1.2 e 3.1.2.1.2 depositados na Universidade de Viena foram realizadas por Stadler (2006, pp. xi-xiv).

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3.1.2.1.2. Spollium – Arquivo de defesa de tese n. 18.107 (Universidade de Viena) – parecer final de membros da banca avaliadora da tese Zur Theorie der Basissätze, de Feyerabend. A dissertação mostra um extraordinário talento. Isso já se reflete no currículo vitae, o qual não se encaixa nos padrões normais. O tema da dissertação é o papel das sentenças observacionais na verificação das ciências empíricas [Rolle der Wahrnehmungsaussagen bei der Verifikation in den empirischer Wissenschaften], tema debatido pelo empirismo moderno. Contudo, os estudos da dissertação excedem bastante a tarefa fundamental a que se propõe, buscando, a partir disso, definir o objeto das ciências físicas e não físicas, em particular a psicologia, e com isso solucionar a oposição entre fenomenalismo e fisicalismo. É fundamental o ponto de vista desse trabalho para distinguir com clareza aspectos das sentenças observacionais [Wahrnehmungsaussagen]: de um lado, a caracterização das sentenças observacionais como algo derivado de um núcleo factual imediatamente dado, e, por outro, sua função de verificação. Quanto à primeira, a função da percepção consiste em provocar uma certa sentença; em exercer unicamente a função de estímulo. Assim, o conteúdo proposicional [Aussage-Inhalt] pode ser compreendido através da experiência [Erleben]. Mas uma sentença observacional não pode ser logicamente diferenciada de outra, portanto, ela não comporta qualquer validade absolutamente dada, como a teoria da ‘Konstatierung’ [‘Confirmação’] supõe. Como qualquer outra sentença científica, ela precisa ser comprovada. Esse procedimento de comprovação é detalhadamente analisado, e apresentada uma teoria de observação confiável própria. Portanto, o autor objeta, mediante uma crítica detalhada, a intuição dominante de que sentenças observacionais constituem o fundamento lógico do conhecimento empírico. Ele aponta, como condição indispensável, que o fundamento para o uso de sentenças observacionais é sempre estabelecido por uma Teoria; apenas no contexto de uma Teoria as sentenças observacionais assumem uma função lógica específica. Basicamente, os frutos desse estudo merecem reconhecimento pelos seguintes motivos: são inéditos e, efetivamente, de valor duradouro. As reflexões se encontram em um nível extremamente elevado, e – sobretudo na parte final da dissertação – evidenciam perspicácia lógica, e com frequência eles são desenvolvidos logicamente. O autor é extremamente fluente na literatura anglo-saxã e escandinava relevante. De resto, também se refere a passagens originais de filósofos clássicos. Dada a grande quantidade de questões discutidas, a apresentação se mostra intricada, e demanda tantos pressupostos que nem sempre é fácil de entender as ideias. Com efeito, o estudo se sobressai em relação à média das dissertações e, assim sendo, merece ser classificado como excelente. Viena, 12 de junho de 1951. V. Kraft e F. Kainz

154

3.1.2.2.Atividades de pós-doutoramento (1952-1954) Feyerabend continuou viajando após a conclusão da tese de 1951. 117 Em 1952, obteve uma bolsa do British Council para estudar com Wittgenstein, em Cambridge: “Wittgenstein morreu e tive que escolher outro supervisor. Escolhi Popper” (MT, p. 93). Assim, depois de intensos contatos intelectuais no norte da Europa, viajou para a Inglaterra. Os acordos firmados com o novo orientador envolveram analisar a interpretação da mecânica quântica de David Bohm 118 e acompanhar o curso e o seminário na London School Economics. 119 Contudo, nesse período, Feyerabend também leu detalhadamente as Investigações Filosóficas de Wittgenstein. “Durante o resto de minha permanência em Londres, concentrei -me em dois tópicos: teoria quântica (von Neumann e Bohm) e Wittgenstein” (p. 100), ele escreveu. O contato inicial com a obra de Wittgenstein foi mediado pela pensadora britânica Elisabeth Anscombe, que Feyerabend conhecera em um dos encontros da Sociedade Austríaca: “Ela me deu manuscritos dos escritos mais recentes de Wittgenstein e discutiu-os comigo. As discussões duraram por meses […]” (CM3, p. 347). Primeiro, ele considerou “extraordinariamente excitante” a leitura da fotocópia das Observações sobre os fundamentos da matemática. Depois, elaborou uma resenha das Investigações Filosóficas: “Reescrevi o texto, transformei-o num tratado […] Eu sabia que Wittgenstein não pretendia apresentar uma teoria (do conhecimento, ou da linguagem) e procurei expressamente não formular uma teoria eu mesmo” (MT, 101). Tal resenha-ensaio foi publicada no periódico Philosophical Review (1955) 120 e “fazia o texto falar como uma teoria”. O livro wittgensteiniano surgia como expressão de uma “nova teoria (instrumentalista, nominalista, ou seja, lá como se queira denominar) do significado” (PP2, p. 125).121

117

O documento reproduzido em 3.1.2.1.1 (B.II) indica que data de defesa da tese é 12 de junho de 1951. A ficha catalográfica da tese depositada na Universidade de Viena traz como data de depósito do arquivo 21 de dezembro de 1951. Para consultar a ficha catalográfica da tese de Feyerabend, basta acessar: http://www.univie.ac.at/ubwdb/data/nkn/m001/z024/h020/d0231979.gif 118 Em 1960, Feyerabend publicou o texto “Professor Bohm’s Philosophy of Nature” (ver PP1, cap. XIV). 119 Feyerabend oferece uma descrição detalhada desses estudos com Popper em MT, p. 96-97. 120 Em 1954, Feyerabend publicou um estudo preliminar (em duas partes) na Wissenschaft und Weltbild Monatsschrift für alle Gebiete der Forschung (v. 7, n. 5-8), bem como uma introdução ao pensamento wittgensteiniano na Merkur: Deutsche Zeitschrift für europäisches Denken (v. 8, n. 11). 121 Para maiores detalhes, ver a nota 4 do Cap. IV adiante e a seção 1.1.2 de Abrahão (2009).

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Hoje eu diria que Wittgenstein reduziu severamente a independência da especulação teórica. Tendo descoberto uma teoria, o orgulhoso inventor geralmente crê ter descoberto um atalho para a natureza, a sociedade, a existência humana. Umas poucas palavras, umas poucas fórmulas – e o segredo é revelado. Mas tente aplicar as palavras ou as fórmulas a algum evento concreto […] e o teórico dirá que se trata de casos subjetivos, não da ‘realidade’, ou fará uso de hipóteses ad hoc […] (MT, p. 101).

Em 1953, a bolsa de estudos londrina foi suspensa. Popper propôs a Feyerabend que se tornasse seu assistente: “Declinei a oferta, apesar do fato de que estava sem dinheiro” (CM3, p. 349). Ele retornou a Viena122 e se envolveu com outros projetos: a tradução para o inglês de A Sociedade Aberta e seus Inimigos, de Popper123; a redação de artigos enciclopédicos sobre metodologia científica e filosofia da natureza124; e um estudo (solicitado pela Library of Congress) a respeito da vida acadêmica austríaca no pós-guerra.125 Nesse tempo, o já emérito docente Viktor Kraft havia convidado o promissor filósofo Arthur Pap para ocupar um posto de professor visitante na Universidade de Viena. Pap ansiava reviver em solo vienense a exilada tradição analítica e procurava por um assistente: “Concordamos rapidamente sobre as condições”, lembrou Feyerabend, “e eu consegui um meio de subsistência para ao menos mais um ano” (MT, p. 106). Feyerabend estenografava as aulas de Pap e copiava o material (que, em 1954/55, foi publicado como o Analytischer Erkenntnistheorie. Kritische Übersicht über die neueste Entwicklung in den USA und England). Porém,

“Por aquela época, Popper escreveu que meu cargo de assistente tinha sido aprovado. Era uma honra e, ademais, parecia encerrar minhas dificuldades financeiras; contudo, senti-me bem inquieto. Não consegui atinar com a causa disto; tudo o que sabia era que queria ficar em Viena. Depois de alguma hesitação, recusei o convite” (MT, p. 106). 123 “Traduzir Popper foi fácil […] Não estando ainda familiarizado com as sutilezas da língua inglesa, e preferindo a paráfrase à tradução, desviei-me do original e Popper não ficou muito contente com o resultado” (MT, p. 105). 124 “Li quase toda a literatura relevante para os artigos da enciclopédia e escrevi um excelente texto com ensaios bibliográficos detalhados. Os editores fizeram cortes consideráveis e omitiram toda a bibliografia” (MT, p. 105). Alguns desses textos enciclopédicos são: (1) “Naturphilosophie”, In: Philosophie, Alwin Diemer and Ivo Frenzel (eds), Das Fischer Lexikon: Enzyklopädie des Wissens, Bd. 11, Fischer Bücherei: Frankfurt am Main 1958, pp. 203-227; (2) “Méthodologie”, In: Les Grands Courants de la Pensée Mondiale Contemporaine, IIe Partie: Les Tendences principales, Vol. II, M. F. Sciacca (ed.), Marzorati: Milan 1961, pp. 871-899; ou (3) “Philosophie de la nature”, In: Les Grands Courants de la Pensée Mondiale Contemporaine, IIe Partie: Les Tendences Principales, Vol. II, M. F. Sciacca (ed.), Marzorati: Milan 1961, pp. 901-927. 125 “Humanities in Austria: A Report on Postwar Developments”, Library of Congress Reference Department: Washington 1955. Publicado também em alemão: Die Geisteswissenschaften in Österreich, Verdrängter Humanismus – verzögerte Aufklärung, Bd. VI, Auf der Suche nach authentischem Philosophieren – Philosophie in Österreich 1951–2000, Knoll Reinhold and Benedikt Michael (eds), facultas.wuv: Vienna 2010. Segundo Feyerabend: “O estudo austríaco implicou um certo trabalho de biblioteca; além disso, visitei institutos universitários, organizações privadas e falei com professores, assistentes, políticos, psicanalistas, jornalistas etc., etc.” (MT, p. 105). 122

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essas atividades de pós-doutoramento, sobretudo em 1953 e 1954, eram provisórias: “Assim, eu estava bem ocupado – mas sem perspectivas de o que fazer a longo prazo […] Também escrevi artigos para diversas revistas, um dos quais muito bom” (MT, p. 107).126

3.1.2.3. Processo de profissionalização (1955-1959) Em 1955, Feyerabend tentou trabalhar em Oxford e na Austrália. Não foi aceito, afinal, não passava de um professor inexperiente sem uma produção bibliográfica expressiva.127 Por isso, as recomendações de Popper e Schroedinger parecem ter sido decisivas para a admissão dele na reputada Universidade de Bristol (MT, p. 107; CM3, p. 349). “Assim começou o que é tecnicamente conhecido como minha carreira” (MT, p. 106), escreveu. Naquele ano, em meio a um agravamento no seu estado de saúde128, Feyerabend se comprometeu em lecionar um curso sobre mecânica quântica e presidir (com Alfred Landé) um seminário em Alpbach. “O curso de mecânica quântica foi um desastre” (p. 115), reconheceu, “eu estava muito preso a especificidades”. O seminário do Colégio Austríaco foi exitoso: discutiu o livro Foundations of Quantum Theory: A Study in Continuity and Symmetry, que Landé publicara em 1955129; e os matriculados nos cursos dos historiadores da ciência Giorgio de Santillana130 e Hans E. Schimank131, e no seminário do próprio E. Schroedinger, migraram para assistir as lições feyerabendianas. Em 1957, Feyerabend participou de um evento no Colston Research Symposium, de Bristol, discutindo o problema da medição quântica e a teoria de von Neumann.132 O filósofo britânico Michael Scriven representava o Minnesota Center for 126

Embora Feyerabend não especifique qual a referência, dessa época se destacam os seguintes textos: “Physik und Ontologie” e “Determinismus und Quantenmechanik”, ambos de 1954. 127 Basicamente, Feyerabend havia publicado cinco artigos (em alemão) e 10 resenhas de livros. 128 “Durante cerca de um ano tomei sedativos diariamente e passei o tempo todo, dia e noite, dormindo, a não ser para dar aula e tomar lições de canto. Eu estava realmente ‘matando o tempo’. […] Eu sentia dores frequentes – como resultado dos ferimentos que recebera na guerra. A dor se insinuava em mim, estabelecia uma cabeça de ponte, expandia-se e durava horas, às vezes dias. Eu tomava analgésicos, primeiro a dose regular, depois o dobro da dose, então até cinco vezes a dose; eu ficava doente – mas a dor permanecia” (MT, pp. 113-114). 129 Feyerabend resenhou esse livro no volume 7, número 28, da The British Journal for the Philosophy of Science, de 1957. 130 Autor, dentre outros, de Crime of Galileo. London: Heinemann (1958) e The Origins of Scientific Thought: from Anaximander to Proclus, 600 BC to 300 AD (1961). 131 Autor, dentre outros, de Physik und Chemie im 19. Jahrhundert: ihre Ausgangspunkte, Fortschritte und Ziele (1970). 132 Um primeiro trabalho a respeito da teoria de von Neumann é o artigo “Eine Bemerkung zum Neumannschen Beweis”, publicado na Zeitschrift für Physik de 1956. Em 1957, Feyerabend elaborou

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Philosophy of Science (MCPS) no evento e convidou Feyerabend para uma visita ao centro de pesquisas fundado, em 1953, por Herbert Feigl. Essa viagem ao College of Liberal Artes, em Minneapolis, representa o início da internacionalização da carreira transatlântica do autor de Contra o Método. A primeira participação de Feyerabend no Minnesota Center abordou o tema técnico da função do princípio ergódico em termodinâmica (MT, p. 116). Na ocasião, entrou em contato com pensadores como Carl Hempel, Ernst Nagel, Wilfrid Sellars, Hilary Putnam, Adolf Grünbaum, Grover Maxwell e William Rozeboom. Ele já conhecera o diretor do MCPS em 1954, por intermédio de Pap (ver PKF 1966, p. 3). Tornaram-se amigos e, a partir de então, debateram longamente acerca de questões filosóficas centrais (MT, pp. 124-125). Em 1958, Feyerabend se apresentou duas vezes em encontros da Aristotelian Society, em Londres e em Southampton.133 Nesse mesmo ano, recebeu o convite da Universidade da Califórnia para um período como professor visitante. A aventura americana de Feyerabend se oficializou em 1959, com a proposta de um contrato permanente em Berkeley. Assim, entre 1955 e 1958, adquiriu experiência profissional e publicou alguns trabalhos iniciais (sobretudo em inglês):134 i)

“Review of Ludwig Wittgenstein, Philosophical Investigations” (1955)

Havia o meu monstrengo wittgensteiniano. Eu não o escrevera para publicação, apenas para esclarecer minha mente; mas Anscombe o havia entregue a uma conceituada revista filosófica, ele foi aceito e impressionou algumas pessoas (MT, p. 123).

ii)

“Eine Bemerkung zum Neumannschen Bewei” (1956)

iii)

“On the Quantum-Theory of Measurement” (1957)

essas reflexões no artigo “Zur Quantentheorie der Messung”, que apareceu na Zeitschrift für Physik. Esse texto consistiu no material que Feyerabend apresentou no Colston Research Symposium, o qual foi traduzido para o inglês e incluído nas atas do Observation and Interpretation: A Symposium of Philosophers and Physicists, Proceedings of the Ninth Symposium of the Colston Research Society. O artigo “On the Quantum-Theory of Measurement”, de 1957, pode ser encontrado em PP1, cap. XIII. 133 Tudo leva a crer que a primeira apresentação, em março, remonta ao texto “An Attempt at a Realistic Interpretation of Experience”, publicado no número 58 dos Proceedings of the Aristotelian Society, de 1957/1958. Quanto à segunda, no verão, é certo que se trata de “Complementarity”, tendo McKay como segundo conferencista, e publicada no volume 32 dos Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary, de 1958. 134 Sluga (2006) relembra que o ponto mais alto da popularidade de Feyerabend ocorreu no início dos anos 1970, quando já lecionava em Berkeley.

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Havia também trabalho de uma área completamente diferente: um ensaio sobre a prova e outro sobre a teoria da mensuração de von Neumann. Nenhum dos dois era muito original ou particularmente profundo – mas foram lidos e comentados.

iv)

“An Attempt at a Realistic Interpretation of Experience” (1958)

v)

(com D. M. McKay) “Complementarity” (1958)

Os ensaios que eu escrevera para a Aristotelian Society eram diferentes, em estilo e conteúdo. Um era a versão condensada da minha tese, que por sua vez era uma versão condensada das discussões no Círculo Kraft. No outro, eu usava o truque que já usara com Wittgenstein em Niels Bohr – um pensador difícil e muito mais fugidio.

vi)

“A Note on the Paradox of Analysis” (1956)

vii)

“Die analytische Philosophie und das Paradox der Analyse” (1957)

Finalmente, havia uma curta nota, em inglês, sobre o assim chamado paradoxo da análise. Estando agora familiarizado com os procedimentos acadêmicos quanto mais você rabisca, melhor – escrevi uma versão alemã e a enviei à Kantstudien. A versão alemã diz exatamente o mesmo que a versão inglesa, mas com as partes do argumento trocadas entre si. Um filósofo, esqueci quem, leu ambos os ensaios e comentou meu ‘desenvolvimento’. Eu tinha agora dois ensaios e um desenvolvimento.

Essas publicações foram definidoras para a reputação de Feyerabend junto à comunidade filosófica internacional. Ele aceitou o cargo permanente em Berkeley (e recusou uma oferta da Cornell University); e também o financiamento da National Science Foundation (e recusou uma bolsa da Fundação Fullbright) (PP1, p. xiv). Em 1959, antes mesmo de se efetivar na Universidade da Califórnia, recebeu uma licença de Berkeley para passar um semestre colaborando (como pesquisador visitante) com o Minnesota Center.135 “Retornei ao Centro com frequência, às vezes por um semestre,

135

Nesse ano, Feyerabend publicou apenas uma resenha do livro The Direction of Time (1956), de Hans Reichenbach. Todavia, os vários resultados desse período de atividades junto ao MCPS constam nos anais da Seção L (History and Philosophy of Science) do encontro promovido pela AAAS (American Association for the Advancement of Science) de 27 a 30 de dezembro de 1959. Assim, no volume Current Issues in the Philosophy of Science: Symposia of Scientists and Philosophers, Feyerabend contribuiu: i)

159

outras ocasiões por uma semana ou mesmo um dia, quando a caminho da Costa Leste ou da Europa” (MT, p. 126), disse o autor.

3.1.3. De Viena a Berkeley De forma geral, as duas primeiras décadas do desenvolvimento intelectual de Feyerabend podem ser compreendidas a partir de dois momentos principais: (3.1.1) início e estabilização da formação acadêmica (1938-1948) e (3.1.2) início e estabilização da carreira filosófica e profissional (1949-1959). Os anos de 1938 a 1948 são constituídos por três fases: (3.1.1.1) as origens austríacas (1938-1942); (3.1.1.2) o período formativo (1946-1947); e (3.1.1.3) os estágios de socialização (1948). Os anos 1949 a 1959 são constituídos por três fases: 3.1.2.1, iniciação científico-filosófica (1949-1951); 3.1.1.2, atividades de pós-doutoramento (1952-1954); e, 3.1.2.3, processo de profissionalização (1955-1959). Entre 1938 e 1942, Feyerabend se dedicou às artes cênicas, canto, literatura e estudou obras científicas. Após combater na 2ª Guerra Mundial no exército alemão, retomou suas inclinações artísticas em Weimar, em 1946. A migração para a Universidade de Viena, em 1947, contou com cursos de História e, posteriormente, Física, Matemática e Astronomia. Em 1948, participou do encontro do Colégio Austríaco e encontrou renomados expoentes científicos e filosóficos. Em seguida, tornou-se o “líder estudantil” do Círculo Kraft. Além de entrar em contato com visitantes ilustres durante as reuniões do grupo, entre 1949 e 1950, debruçou-se sobre as teses básicas do Empirismo Lógico. Em 1951, baseado nas anotações oriundas do Círculo Kraft, submeteu a tese Zur Theorie der Basissätze. A posição elaborada afirmava que o significado dos enunciados observacionais dependia das teorias mais avançadas empregadas para descrever a natureza dos objetos. Durante o doutorado, estabeleceu vínculos no extremo norte da Europa; e depois ele viajou para a Londres, onde estudou com Popper. Em 1952, além de pesquisas questões relacionadas à mecânica quântica, analisou os manuscritos das Investigações Filosóficas de Wittgenstein. Em 1953, com o término da bolsa de estudos na Inglaterra, retornou a Viena e se envolveu com projetos de tradução e redação de verbetes enciclopédicos, com o texto “Niels Bohr’s Interpretation of the Quantum Theory”, ii) com a resposta à crítica de Hanson e iii) com comentários a textos de Hanson, Sellars, Grünbaum, Barker e Hill.

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até se tornar assistente de Pap, em 1954. O processo de profissionalização de Feyerabend iniciou no ano seguinte, com o emprego em Bristol. Então, o início da carreira de Feyerabend esteve estreitamente ligado a cursos, seminários e conferências relacionados ao quantum. Após uma palestra sobre o tópico, em 1957, o filósofo recebeu um convite para visitar o Minnesota Center for Philosophy of Science, em Minneapolis. Em 1958, já nos Estados Unidos, tornou-se professor convidado na Universidade da Califórnia, instituição na qual assumiu um posto permanente em 1959. A gênese da produção filosófica de Feyerabend remonta à época em que ele colaborou com Österreichisches College. Esse início comporta uma série de notas, artigos ou ensaios – publicados entre 1948 e 1954 – redigidos em alemão (e não reeditados ou republicados pelo autor)136, os quais recuperam, sobretudo, as discussões do período de iniciação filosófico-científica no Círculo Kraft.137 Isso sinaliza que, de suas origens austríacas (em 1938) até as atividades de pós-doutoramento (em 1954), as ideias de Feyerabend se restringiam à comunidade germanofônica e, mais importante, estavam associadas às discussões do Círculo Kraft. Entretanto, o processo de profissionalização de Feyerabend, entre 1955 a 1959, representa mais do que um momento de mudanças geográficas (entre Bristol e Londres, entre Minneapolis e Califórnia). A internacionalização das ideias feyerabendianas ocorre também no âmbito dos veículos editoriais nos quais ele circulará seus textos (alguns já redigidos em

136

Feyerabend editou pelo menos cinco compilações de seus textos: Der wissenschaftstheoretische Realismus und die Autorität der Wissenschaften: Ausgewählte Schriften (1978), Erkenntnis für Freie Menschen (1979), Realism, Rationalism and Scientific Method (1981), Problems of Empiricism (1981) e Wissenschaft als Kunst (1984). 137 A saber: “Der Begriff der Verständlichkeit in der modernen Physik” (1948), Zur Theorie der Basissätze (1951), “Neuere Probleme der philosophischen Logik” (1952), “Bemerkungen zu Interpretation and Preciseness” (1953), “Physik und Ontologie” (1954), “Determinismus und Quantenmechanik” (1954) e as duas partes do ensaio “Wittgenstein und die Philosophie” (1954). O único texto traduzido para o inglês foi o estudo sobre Wittgenstein, entretanto, a preparação da tradução ficou a cargo de Anscombe (MT, p. 101). Há, ainda, uma dezena de resenhas de livros de lógica, história da ciência e epistemologia. Em 1952, Feyerabend resenhou: Outline of a Formalist Philosophy of Mathematics, de Heskell B. Curry; An Essay in Modal Logic, de Georg H. von Wright; The Propositional Logic of Boethius, de Karl Dürr; Sentences Undecidable in Formalized Arithmetic: An Exposition of the Theory of Kurt Gödel, de Andrzej Mostowski; e The Elements of Mathematical Logic, Paul C. Rosenbloom. Em 1954: A Century of Science, Herbert Dingle, editado por Hutchinson; Truth and Consequence in Medieval Logic, editado por Ernest A. Moody; Constructive Formalism: Essays on the Foundations of Mathematics, de Reuben Louis Goodstein; Einführung in die symbolische Logik mit besonderer Berücksichtigung ihrer Anwendungen, de Rudolf Carnap; e Logic for Mathematicians, de John Barkley Rosser.

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inglês).138 Mas, inquestionavelmente, as estreitas relações desses escritos com temáticas herdeiras do período do Círculo Kraft permanecem. O exemplo mais instrutivo disso consiste no artigo “An Attempt at a Realistic Interpretation of Experience”, de 1958 (ver 3.2.1). Como o autor afirmou diversas vezes, esse ensaio condensava as propostas apresentadas na tese de 1951, a qual, por sua vez, condensava as anotações feyerabendianas para o Círculo Kraft (ver 3.1.2.1 e 3.1.2.1.1). Com feito, as transições institucionais e profissionais de Feyerabend – entre Weimar, Alpbach, Estocolmo, Londres, Bristol, Minneapolis ou Califórnia – não representam um desligamento temático com relação a debates característicos da filosofia austríaca. A ruptura feyerabendiana com tópicos associados à tradição epistemológica do Empirismo Lógico será gradual, bem como será (ainda mais) gradual a elaboração da filosofia pluralista presente nas páginas do autor de Contra o Método.

3.2. Crítica do Fundacionismo Ao longo do período formativo (3.1.1.2), e durante parte do estágio de socialização (3.1.1.3), Feyerabend se mostrou “absolutamente seguro” quanto ao dogma cientificista (MT, p. 77). Ele asseverava o caráter empírico da ciência e rejeitava o estatuto cognitivo de empreendimentos carentes de suporte factual. O trecho abaixo explicita essa mentalidade de “positivista raivoso” (WRAW, p. 26) típica dos primeiros anos do desenvolvimento intelectual do austríaco:139

Pode ocorrer que tenha havido algo que se assemelhava a uma ‘posição filosófica’ de estudante e do início de minha carreira. Então, eu sustentava que não existia outro conhecimento exceto o conhecimento científico e que todo o resto é uma bobagem (DC, p. 68).

As discussões no Círculo Kraft ocasionaram uma guinada no pensamento de Feyerabend. O estudo dos primeiros volumes do periódico Erkenntnis o levaram a

138

Os textos de Feyerabend passaram a aparecer em reputados periódicos, tais como Philosophical Studies, Kant-Studien, The British Journal for the Philosophy of Science ou Proceedings of the Aristotelian Society. 139

Para detalhes, ver Fischer (2006).

162

criticar aquela postura fundacionista.140 A tese Zur Theorie der Basissätze, dedicada à questão do significado de enunciados observacionais, confirma a transformação que mencionamos. Assim, naqueles anos de pós-doutoramento e de profissionalização (3.1.2.2 e 3.1.2.3), ele já não defenderá uma epistemologia vinculada ao Empirismo Lógico. Entre 1952 e 1959, Feyerabend se distanciará ainda mais daquelas ideias que caracterizaram sua “‘posição’ filosófica de estudante”. O artigo “An Attempt at a Realistic Interpretation of Experience” (1958) sintetiza as principais ideias por trás daquela mudança (3.2.1); e o ensaio “The problem of the existence of theoretical entities” (1960) ilustra um desligamento do corpus de Feyerabend com relação a problemas estritamente associados ao Círculo de Viena (3.2.2). Portanto, o ‘texto síntese’ de 1958 e o ‘texto de transição’ de 1960 resumem tópicos marcantes das fases preliminares do desenvolvimento intelectual de Feyerabend os quais são necessários à compreensão da produção feyerabendiana pós-1960.

3.2.1. A assimetria entre observação e teoria O ‘texto síntese’ de 1958 discute o que Feyerabend designa por “interpretação positivista” da ciência. Essa perspectiva assevera que a tarefa das teorias científicas consiste em i) ampliar e organizar a experiência e ii) sistematizar os dados empíricos (PP1, p. 17). Contra essa proposta, Feyerabend analisou noção de observabilidade a partir das condições que uma linguagem deveria satisfazer para ser uma linguagem observacional (p. 18). Haveriam quatro condições pragmáticas (psicológicas, sociológicas) as quais estipulam o tipo de relação entre o comportamento (verbal ou sensório) de uma classe de observadores (C) e um conjunto de situações (observadas) físicas (S). São elas: Condição de decidibilidade – para cada sentença atômica a (de uma classe A) da linguagem em questão é preciso que exista uma situação s (a situação apropriada) diante da qual qualquer observador C experimente uma série de “estados e operações” (série-C) as quais levem à aceitação ou à rejeição de a por parte de C.

Destacadamente o volume III, de 1932/33, no qual encontramos os textos “Über Protokollsätze”, de Carnap, e “Protokollsätze”, de Neurath, os quais constituem fontes primárias para o debate em torno do estatuto das sentenças observacionais da ciência. 140

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Condição de decidibilidade rápida – em uma situação apropriada s a série-C associada a sentenças atômicas (associação descrita por F) deveria ocorrer rapidamente. Condição de decibilidade unânime – se uma a é aceita ou rejeitada por algum C, então, a deverá ser aceita ou rejeitada por (praticamente) todo C. Condição de relevância – a dependência (causal) entre a decisão de aceitar ou rejeitar a e a situação s (descrita por R), ao invés do estado interno de C. Nas palavras de Feyerabend:

Resumindo as quatro condições pragmáticas estabelecidas acima, podemos dizer que, estabelecidas as três classes, A, C e S, a classe A será denominada sentenças observacionais (usadas por observadores C em situações S) apenas se, dada uma S, todo C for capaz de chegar a uma decisão rápida, unânime e relevante com relação àquela A para a qual a S escolhida é apropriada. As propriedades pragmáticas de uma dada linguagem observacional, então, serão completamente caracterizadas pelo conjunto {C, A, S, F, R}. Qualquer conjunto desses será denominado característica. A característica de uma linguagem observacional determina completamente o ‘uso’ de cada uma de suas sentenças atômicas (PP1, p. 18).

Em 1958, Feyerabend chegou à conclusão de que “observabilidade é um conceito pragmático” (p. 19). Uma observação envolveria a identificação de uma situação s gerar ou não uma reação específica em um organismo O. Como tal, o conjunto {C, A, S, F, R} refletiria as características da relação entre sentenças e observadores para que a sentença seja considerada uma sentença observacional. Não definiria, porém, as condições para a interpretação do conteúdo da sentença. Portanto, o significado das sentenças observacionais seria um “ato adicional” à observação, uma vez que não seria logicamente determinado pela situação observacional: “O que a situação determina (causalmente) é a aceitação ou rejeição de uma sentença, isto é, um evento físico”. Para a posição positivista, o significado da experiência seria independente “do status do nosso conhecimento teórico” (p. 20). A tese positivista da independência teórica da experiência, por seu turno, levaria a duas teorias empregadas para interpretar sentenças observacionais. O Princípio do Significado Pragmático afirma: “a interpretação de uma linguagem observacional é determinada única e completamente por suas características”. Contra isso, Feyerabend observou que uma reação comportamental consistente com uma situação s “não nos permite inferir (logicamente) o que aquelas reações significam”. Logo, o “comportamento não determina as interpretações” (p. 24). Por seu turno, o Princípio do Significado 164

Fenomenológico afirma: “a interpretação de um termo observacional é determinada pelo que é ‘dado’ (ou ‘imediatamente dado’) imediatamente antes da aceitação ou rejeição de qualquer sentença observacional que contém aquele termo” (p. 22). Contra isso, Feyerabend questiona a validade lógica noção de adequação fenomenológica de um fenômeno P com uma sentença S. Primeiro, estabelece que a adequação fenomenológica entre P e S não é um fenômeno: “no momento da enunciação de S essa relação [entre P e S] não pode ser imediatamente dada do mesmo modo que P é imediatamente dado” (p. 25). Feito isso, opera uma reductio ad absurdum do Princípio do Significado Fenomenológico, isto é: o observador O enuncia S porque considera que S se ajusta a P, contudo, essa operação de adequação fenomenológica F envolveria S, P e um terceiro fenômeno (P’) correspondente a F; mas a identificação de P’ como a F de P e S envolveria, ainda, um fenômeno adicional S’ associado ao efeito de que P’ corresponde à F entre S’ e P’; mas a identificação de P” como a F de P’ e S’ envolveria, ainda, um fenômeno adicional S” associado ao efeito de que P” corresponde à F entre S’ e P’; e assim por diante. “Então, o observador terá que realizar infinitamente muitos atos de introspecção antes de ser capaz de enunciar uma sentença observacional” (p. 26), confluiu Feyerabend: “A relação de adequação fenomenológica não é parte da experiência de O”. Nesses termos, Feyerabend recusou as teorias do significado usualmente utilizadas no intuito de interpretar as sentenças observacionais. Ele afirmou que nem o ‘uso’ de sentenças observacionais, nem os fenômenos que acompanham a interpretação deles em situações observacionais podem determinar a interpretação deles” (p. 29). Feyerabend entende que a interpretação de sentenças observacionais não precisa admitir a tese da estabilidade: “os dados da nossa experiência […] não dependem do estatuto do nosso conhecimento teórico” (p. 20). Para ele, o significado de uma linguagem L pode variar se teorias diferentes das originalmente usadas forem adotadas (p. 30). Essa nova interpretação de L seria afetada por “mudanças na ‘superestrutura’ teórica” empregada para interpretar L:

Com base na discussão precedente, podemos agora, provisoriamente, avançar nossa tese I: a interpretação de uma linguagem observacional é determinada pelas teorias

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que usamos para explicar o que observamos e muda assim que aquelas teorias mudam (p. 31).141

A tese I confronta a tese da estabilidade ao argumentar que o significado das sentenças observacionais dependente de teorias. Feyerabend frisou que linguagens observacionais L são efetivamente reinterpretadas pelos cientistas que encaram uma nova teoria a qual tem consequências em L (p. 33). Entretanto, a tese I não provaria a incorreção da epistemologia positivista. Para isso, torna-se necessária uma crítica dos ideais epistemológicos pressupostos nessa concepção (p. 34). Uma das consequências da suposição da estabilidade da experiência seria a crença na unicidade das percepções, a qual, por sua vez, excluiria a busca por concepções alternativas. Mas a tese I se recusa a eliminar alternativas ou a preservar ideias estabelecidas. Então, o antagonismo de Feyerabend com a interpretação positivista envolveu sobretudo as demandas e consequências epistêmicas daquela visão sobre o conhecimento (p. 35). Sinteticamente, ele compreende a tese da estabilidade positivista como conduzindo i) a uma ontologia vazia de conteúdo empírico e ii) à restrição da invenção de concepções alternativas à estabelecida. Por sua parte, a posição realista não restringiria ao estatuto das teorias à função de ampliar, organizar e sistematizar os dados empíricos: “a posição realista não admite qualquer sentença dogmática ou incorrigível no domínio do conhecimento”, ele escreveu. “Então, ademais, nosso conhecimento acerca do que é observado não é considerado como inalterável”. Vemos, pois, que o ‘texto síntese’ de 1958 considera a posição realista (cujas vantagens não seriam propriamente factuais) como mais apta a fomentar o progresso da ciência.

3.2.1.1. O Nachtrag de 1977 (Excertos) Em 1977, Feyerabend redigiu uma nota suplementar para a reimpressão, em alemão, do ‘artigo síntese’ de 1958. O Nachtrag de 1977 foi acrescentado ao Capítulo 141

Feyerabend revisitou a tese I em diversas situações, como em 3.2.1.1 abaixo, nos anos 1970. Em 1980, ele sublinhou que ela poderia ser entendida como um a tese filosófica relacionada à influência de teorias nas percepções ou como uma tese histórica relativa ao uso que os cientistas fazem dos termos teóricos: “cientistas geralmente usam teorias para reestruturar tanto questões abstratas quanto fenômenos, e nenhuma parte do fenômeno é excluída da possibilidade de ser reconstruída dessa forma” (PP1, p. x). Nos anos 1990, contudo, ele rejeitou a versão filosófica da tese I. Ele afirmou que “o significado não está localizado em lugar nenhum. Ele não guia nossas ações (pensamentos, observações), mas emerge no curso delas e pode estabilizar-se a algum ponto em que a suposição de uma localização começa a fazer sentido” (MT, p. 126; ver também 1991, pp. 524-525).

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I da coletânea Der wissenschaftstheoretische Realismus und die Autorität der Wissenschaften, publicada em 1978. O documento reconstrói os primeiros passos do percurso intelectual do autor142 e apresenta considerações autocríticas relativas à gênese e desenvolvimento do texto em questão. Como veremos, Feyerabend compreende a tese I como uma recusa da teoria empirista dos dados dos sentidos e reforça que debates epistemológicos não podem ser solucionados apenas por meio de dados empíricos:143

O artigo foi escrito em 1957 e debatido, em março de 1958, durante uma das reuniões regulares da Aristotelian Society, em Londres, presidida pelo Professor A. J. Ayer. A discussão foi acalorada. J. O. Wilson (à época conferencista na London School of Economics), Joseph Agassi (assistente de Popper) e John Watkins estavam presentes. Ayer ergueu as mãos, simulando desespero, e exclamou: “Vocês, popperianos, não vão me intimidar” – afinal, ele salientou, popperianos rechaçam sua filosofia dos dados dos sentidos.144 Embora guarde essa ocasião vivamente na memória, até bem pouco tempo eu havia me esquecido por completo do conteúdo do ensaio; e me deu dor de cabeça a surpresa que tive ao ver a tentativa de resolução de problemas que seriam descobertos posteriormente. Esse texto é parte do meu período Teutônico; e foi escrito de forma rebuscada e pedante. […] A tese I consiste em uma resposta à teoria do conhecimento dos dados dos sentidos proposta pelo Empirismo Lógico. Conforme tal concepção, os termos se distinguem entre conceitos observacionais [Beobachtungsbegriffe] e termos teóricos [theoretische Begriffe]. Conceitos observacionais não seriam problemáticos, ao passo que termos teóricos demandariam explicações adicionais. Eles seriam explicados mediante conexão com os termos observacionais. Uma posição precedente identificou os conceitos observacionais com os dados dos sentidos – e os termos teóricos seriam explicitamente definidos nessas bases. O problema reside no fato de que os dados dos sentidos não são intersubjetivos; e mesmo conceitos ordinários exprimem uma relação muito mais flexível com observações do que a definição explícita admite. Isso conduz a um duplo desenvolvimento: de pressupostos atinentes aos conceitos observacionais e de pressupostos atinentes à natureza da relação entre conceitos observacionais e termos teóricos. Havia um consenso, na década de 1950, em reconhecer elementos básicos da linguagem cotidiana como linguagem observacional, e sistemas de interpretação (Hempel), que continham tanto termos empíricos quanto teóricos e que não se deixavam resolver em proposições singulares com um único termo teórico a cada vez, haviam substituído as definições prévias. Além disso, admitia-se que o significado emanava do domínio observacional que perpassa os termos teóricos (a ‘impregnação ascendente do significado’), donde termos teóricos deixam de ter significado se não forem associados a conceitos observacionais. A própria exigência inicial daquela teoria pareceu-me questionável. Conceitos observacionais não são necessariamente melhor compreendidos do que termos teóricos, afinal, também precisam ser aprendidos. […] Esta seção [7 do texto de 1958] é, atualmente para mim, um ótimo exemplo da arrogância racionalista. Na verdade, ainda sustento a afirmação de que uma decisão entre positivismo e realismo não pode ser operada simplesmente por referência a certos fatos. Também admito que ambas posições trazem ideias desarticuladas acerca da natureza de nosso conhecimento. Contudo, as demandas não 142

Com efeito, trata-se de uma protoversão das seções 1, 2, 5 e 6 de CSL, seção 11, Parte II e CM3, cap. XX. 143 O documento comenta e pontua as seções do texto de 1958. O texto integral em WRAW, pp. 24-33. 144 Episódio revisitado em PKF 1991, p. 524.

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podem ser reduzidas a uma fórmula simples; elas mudam com a dinâmica da pesquisa. O atomismo de nossos dias é bastante distinto do atomismo de Demócrito – por que com o realismo haveria de ser diferente? As exigências filosóficas de desenvolvimentos realistas ou instrumentalistas não são isentas de consequências importantes para a pesquisa. Um problema específico da física pode ser solucionado a partir de bases que contradizem o realismo. O que fazer, então? Manter a pesquisa ou se apegar a exigências filosóficas? Raramente os realistas científicos consideram tais indagações. Problemas como esses não surgem na concepção realista da pesquisa científica. Cientistas filosoficamente orientados os encontravam com frequência e, assim, se viam forçados a desenvolver uma forma mais dialética de filosofia. Niels Bohr é um exemplo (para a discussão do método de Bohr, ver meu texto “On a Recent Critique of Complementarity”, Philosophy of Science 1968/69 – em duas partes). Niels Bohr também mostrou como certas teorias devem sua existência e êxito à violação de princípios filosóficos abstratos (incluindo princípios da lógica) e a razão pela qual a insistência nesses princípios teria conduzido a pesquisa a um impasse. A existência de tais teorias pode ser diretamente usada na crítica de princípios impeditivos. Em outras palavras: o fato da física ser realista não é um argumento em favor do realismo. A evidência de que uma parte determinada da física teria sido muito pior sem o realismo – isso é um argumento, supondo que se tenha selecionado a física (e não a metafísica) como meio de conhecimento do nosso mundo. Por fim, chamo a atenção para a natureza retórica da maior parte dos argumentos desta seção [7]. O positivismo é recusado porque leva ao subjetivismo, à estabilidade, à limitação da função argumentativa da linguagem, à coincidência entre percepção e objeto. Com efeito, é admitido – e não investigado – que o subjetivismo e a estabilidade são ruins e por aí vai. O subjetivismo e a estabilidade são ruins; entretanto, o objetivismo e o progresso também são. Por que? Não recebemos qualquer resposta. Nem ao menos elaboramos uma crítica daquelas ideias científicas que mostram as limitações do realismo filosófico e da explícita procura filosófica pela ‘objetividade’. Assim, o argumento ainda parece interessante na medida em que apela para os preconceitos do leitor. Quase todos os argumentos epistemológicos – e os argumentos dos racionalistas críticos, em particular – trazem essa propriedade. Essa também é a razão pela qual eles não conseguem nos satisfazer.

3.2.2. Crítica da uniformidade e neutralidade da experiência Uma das consequências mais importantes da tese I de 1958 consiste na formulação explícita do caráter pragmático da distinção entre termos teóricos e observacionais:

A distinção entre termos observacionais e termos teóricos é uma distinção pragmática (psicológica) que não tem nada a ver com o estatuto lógico dos dois tipos de termos. Pelo contrário, a tese I implica que os termos de uma teoria e os termos de uma linguagem observacional empregada para testes daquela teoria suscitam os mesmos problemas lógicos (ontológicos). Não existe um ‘problema das entidades teóricas’ específico […] (PP1, p. 32).

O ‘texto de transição’ de 1960 aprofunda essa tese feyerabendiana. Inicialmente, discute a ideia segundo a qual objetos seriam diretamente observáveis em 168

razão da transição rápida (e teoricamente livre) da percepção para o objeto e suas propriedades (PP3, p. 16). A percepção deles dispensaria tanto instrumentos de medição como interpretações teóricas dos resultados das medições. Nesse sentido, Feyerabend apresenta a Primeira Explicação (E1) da distinção entre termos teóricos e observacionais:

Existem as coisas às quais os conceitos teóricos correspondem (por exemplo, existem campos elétricos, além de cadeiras e mesas) ou os conceitos teóricos não devem ser concebidos como conceitos que se referem a objetos existentes? (PP3, p. 16).

Portanto, E1 presume que: I. II.

O “valor de verdade” de conceitos observacionais pode ser determinado “rapidamente” e “apenas nas bases da observação”. O “valor de verdade” de conceitos teóricos pode ser determinado por meio de “teorias” e de “observações”. Como tal, E1 afirma: a. A distinção entre o problema da existência das entidades teóricas e o problema da existência de forma geral (p. 17), segundo a qual: i. ii.

“a existência de objetos observáveis não é problemática” “a existência de entidades teóricas apenas se coloca porque entidades teóricas não podem ser observadas”

b. A existência de entidades inobserváveis, segundo a qual: i. ii.

“existem entidades teóricas” “nem tudo é observável”

Contra E1.b, Feyerabend aponta que o uso do predicado ‘observável’ refletiria a padronização de procedimentos de teste. Assim, seria uma simples questão de tempo para que algo “se torne diretamente observável” (p. 19). Entidades identificadas como teóricas (no passado ou atualmente) se tornaram ou podem se tornar observáveis. Com base nisso, conclui-se que, potencialmente, “todos os termos descritivos da ciência (ou, de forma mais geral, todos os conceitos empíricos) são conceitos observacionais”. Nesse momento, o filósofo discute três objeções a essa refutação da E1.b: Obj.1. – As expressões ‘observação’ e ‘experimento’ geralmente trazem sentidos que são “artificiais”; Obj.2. – A simples sensação “não exerce qualquer papel” nas inferências referentes às experiências; e Obj.3. – O “fato psicológico” de que indivíduos não realizam inferências conscientemente enquanto observam é 169

“irrelevante” para justificar afirmações que envolvem “toda uma série de explicações teóricas” (p. 21). Em resposta à Obj.1, Feyerabend aponta que ela apenas evidenciaria que ordinariamente os “problemas da observação não são tratados de forma sistemática”; à Obj.2, aponta a distinção entre “dois estágios diferentes do aprendizado”, a percepção e a inferência; e adiciona que “a distância entre a percepção e o objeto será gradualmente reduzida” até que fenomenologicamente não exista diferença entre “o objeto e o que se supõe existir”; à Obj.3, aponta que “a verdade das teorias usadas” para justificar as afirmações “nunca pode ser garantida de forma conclusiva”: “a existência das entidades parcialmente observadas e parcialmente inferidas jamais pode ser conclusivamente estabelecida”. A Segunda Explicação (E2) da distinção entre termos teóricos e observacionais diz que um conceito observacional seria construído de forma que [(A)] “uma sentença singular que contém apenas esse conceito”: i. ii. iii.

é compreendida “imediatamente” não requer “qualquer reflexão” “não exige justificação adicional” além da observação

Feyerabend descreve E2 como supondo o caráter infalível (ou não hipotético) das sentenças observacionais. A nova formulação do problema diz: “[…] existem as coisas às quais os conceitos teóricos correspondem ou esses conceitos não devem ser concebidos como conceitos que se referem a coisas existentes?”. E2 também possui duas premissas (p. 17): a. Premissa da inobservabilidade de objetos teóricos, segundo a qual: i. ii.

“a existência de objetos observáveis não é problemática” “a existência de objetos teóricos só é questionável porque eles não são observáveis”

b. Premissa da existência de entidades inobserváveis, segundo a qual: i. ii.

“existem entidades teóricas” “nem tudo é observável”

O autor recusa a validade dessa visão baseado na ideia de que “todos os conceitos são conceitos teóricos” (no sentido E2). Mesmo conceitos ordinários como ‘mesa’ i) demandariam o aprendizado de “um instrumento extremamente complexo: o olho”; ii) dependeriam “da natureza do meio”; e iii) refletiriam o “estado do observador” para a “justificação da asserção” (p. 22). Logo, a determinação do valor de

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verdade de qualquer sentença referente a um objeto exigiria “tanto teorias como a percepção”. Assim, surgem duas respostas a E1 e a E2: Resposta a E1: “não existem conceitos especiais, portanto, não existe um problema correspondente”. Resposta a E2: “todo conceito é problemático, afinal, todo conceito é teórico”. Feyerabend discute também a tese dos ‘dados dos sentidos’. Segundo ela: “[…] existem conceitos que preenchem exatamente o critério de observabilidade no segundo sentido [E2], ainda que a palavra ‘justificação’ seja tomada em sentido estrito”. Os pressupostos fundamentais dessa concepção seriam (p. 23): i. ii. iii. iv.

“Existem sentenças empíricas”. A verdade das sentenças empíricas é inquestionável “sob certas circunstancias”. Sentenças empíricas “devem ser consideradas absolutamente verdadeiras” nessas circunstancias especificas. As sentenças empíricas se referem a objetos dos “dados dos sentidos”. Feyerabend critica a suposição de incontestabilidade da teoria dos ‘dados dos

sentidos’ em três frentes: Crítica I: Sentenças acerca de sensações são dubitáveis. Feyerabend nega a tese de que “toda asserção sobre sensações está isenta de dúvidas”. Nenhuma sensação teria um caráter absoluto, mas apenas relacional com o pano de fundo de outras sensações. Mesmo sensações extremamente fortes seriam dubitáveis: “se sensações são uma questão de contraste, então a questão do aparecimento delas depende da intensidade do pano de fundo” (p. 25). Duas objeções poderiam ser levantadas à Crítica I de Feyerabend à teoria dos ‘dados dos sentidos’: Obj.1 – Há um “problema de descrição” nos casos que envolvem “sensações extremas”. Mas para Feyerabend a formulação de uma “descrição correta” dos fenômenos soluciona o problema relativo à verdade das sentenças, mesmo aquelas “mais problemáticas”. Contra essa Obj.1, Feyerabend diferencia o sentido lógico e o psicológico da inexistência de dúvidas acerca de uma sentença. A certeza lógica envolve a concepção segundo a qual a natureza de uma sentença é “completamente independente” dos estados subjetivos; a certeza psicológica reflete o estado de convencimento quanto à correção das sensações. No entanto, para o austríaco, a confiança nas descrições baseadas em sentenças sobre sensações “resulta do treino”. 171

Nessa ótica, a certeza decorreria da “longa instrução”. Assim, a existência de dados dos sentidos refletiria uma “regulação do comportamento” (p. 27). Obj.2 – O que se aplica a “sensações atípicas” não vale para “sensações típicas”. Feyerabend afirma, no entanto, que o “poder lógico de convencimento” e a “plausibilidade intuitiva” acerca de “sensações inequívocas” decorrem da exposição a um “número expressivo de casos” (p. 27). Então, a admissão de dados dos sentidos não seria efeito de “razões lógicas”: “pode-se criar dados dos sentidos através do tratamento adequado, assim como podese fazê-los desaparecer” (p. 28). Feyerabend insiste que a certeza (mesmo em “casos atípicos”) consiste em uma “questão de treino e de instrução regular”. Isso significa que os dados dos sentidos não seriam a “base do conhecimento teórico”, afinal, eles mesmos “são o resultado de nossa crença na existência de certas entidades teóricas” (p. 29). Crítica II: i) Inferências de verdade absoluta em sentenças aparentemente certas são improcedentes; ii) a suposição da indubitabilidade de sentenças observacionais envolve a limitação em imaginar alternativas; e iii) as alternativas são excluídas por convenções. Feyerabend defende que o estabelecimento do caráter incontestável das sentenças de dados dos sentidos exigiria uma certeza de ordem subjetiva, além de uma convenção acerca do caráter indubitável das descrições das sensações: “decisões e convenções exercem um papel importante” em questões relativas à certeza das descrições (p. 31). A certeza quanto ao estatuto das sensações decorreria de certas decisões relacionadas à suspensão de pesquisas adicionais e da busca por alternativas (p. 32). Nas palavras feyerabendianas: “a certeza que experimentamos na vida cotidiana com referência um resultado particular é um fenômeno puramente subjetivo e apenas conduz à certeza lógica se introduzimos as convenções apropriadas”. Uma forma de descrever essa conclusão consiste em entender a indubitabilidade das sensações como um “mito lógico” (p. 34). Crítica III: Convenções conduzem a uma linguagem ideal artificial que i) contém sentenças observacionais no sentido de E2; e ii) é incapaz de valer para efeitos de comunicação ou para a formulação de teorias científicas (p. 24).

Falando de forma estrita, nossa recusa do dado dos sentidos não se baseia na refutação da tese da do caráter absoluto [das sentenças acerca de sensações], mas, em vez disso, na decisão de não empregar sentenças dos dados dos sentidos em razão de propriedades desconfortáveis delas (p. 24).

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Portanto, nossa eliminação dos dados dos sentidos é baseada tanta em uma decisão, isto é, a decisão de apenas usar tais meios para descrever o que permite uma experimentação sistemática e uma comunicação intersubjetiva, como no conhecimento de que uma linguagem dos dados dos sentidos não preenche esse critério. O reconhecimento de nossa decisão se tornou possível pelo fato empírico de que nossa vida interna, bem como a vida interna dos demais, possui regularidades, que existem similaridades, em suma, que aqueles instrumentos de medição que podemos designar como ‘seres humanos’ reagem de forma regulada ao seu ambiente. Assim, a decisão tomada não consiste em um ideal inalcançável (pp. 38-39).

Feyerabend criticou as teses E1 e E2, discutindo dois sentidos específicos do termo ‘observável’. As formulações I e II indicam, respectivamente, que uma sentença observacional: i) surgiria sem grandes elaborações ou ii) poderia ser verificada “nas bases dos dados” (p. 39). Contra a formulação I de E1, ele replicou: “toda sentença é, potencialmente, uma sentença observacional”; e, contra a formulação II de E2: que “toda sentença deve ser considerada uma sentença teórica”. A Terceira Explicação (E3) sugere que os significados das sentenças observacionais são teoricamente independentes (ver 3.2.1 acima). Assim, uma sentença observacional i) além de ter a função de decidir entre teorias rivais ii) não pode comportar significados que dependam do significado dos termos descritivos de qualquer teoria. Em resposta, Feyerabend comenta que o fato do significado de uma sentença observacional ser independente de teorias não prova que o significado dela seja independe de qualquer teoria. O autor compreende que, na verdade, E3 presume uma premissa relacionada ao postulado da homogeneidade da experiência. Segundo esse postulado, todas as teorias poderiam ser testadas contra uma mesma experiência. A contestação do autor a essa ideia sublinha que o tipo de sistema categorial estável implícito em E3 é passível de falhas e vulnerável a refutações (p. 41), uma vez que supõe uma linguagem observacional fictícia, ou seja, isenta de elementos teóricos, sempre adequada e inquestionável. Nesse sentido, ele defende a posição segundo a qual a ciência não deveria acolher sentenças não revisáveis: “Deve-se notar que essa rejeição também está baseada na decisão metodológica de incorporar apenas sentenças refutáveis na ciência” (p. 42). Como tal, Feyerabend entende que a crítica a E3 envolve, fundamentalmente, uma decisão referente eleição da linguagem ordinária como base de E3. Primeiro, a estabilidade da linguagem ordinária não prova que ela não possa mudar (p. 43). A estabilidade da linguagem ordinária poderia revelar, na verdade, um cenário de “preguiça, ignorância ou dogmatismo”. Segundo, nosso autor relembra que mudanças científicas revolucionárias trouxeram significados novos para termos antigos. Portanto, a aparente 173

estabilidade da linguagem ordinária seria insuficiente para determinar questões acerca de sua verdade. Nesse sentido, ele entende que “toda linguagem observacional contém elementos teóricos” (p. 47) e que mesmo as experiências cotidianas poderiam ser adequadamente descritas partindo de sistemas teóricos completamente diferentes. Por isso, o método de seleção entre teorias rivais precisaria “transcender a experiência cotidiana”: “nossa ‘experiência’ continuamente muda” e as “reinterpretarmos nossa ‘experiência’ à luz das teorias que possuímos” (p. 48). Ou simplesmente: “Não há experiência ‘neutra’”.

3.2.3. Teoria Pragmática da Observação e Voluntarismo Epistêmico Os documentos reproduzidos em 3.1.2.1.1 e 3.1.2.1.2 indicam que o objetivo da tese Zur Theorie der Basissätze foi investigar o papel das sentenças observacionais na verificação das ciências empíricas. Neles, Feyerabend confirma que a elaboração do texto de doutorado teria se beneficiado de discussões com K. Marc-Wogau, J. Joergensen, A. J. Ayer e E. Tranekjaer-Rasmussen, dentre outros.145 A tese de 1951 remonta às reuniões do Círculo Kraft e contém as bases do ‘texto síntese’ de 1958. Inicialmente, o foco dos encontros do grupo consistia em questões relativas aos fundamentos da ciência. Contudo, consoante o Nachtrag de 1977 (3.2.1.1), o tema principal debatido era o problema da doutrina fisicalista (WRAW, p. 25). Então, tanto a dissertação de 1951 como o ‘texto síntese’ de 1958 pretenderam superar a distinção semântica entre conceitos observacionais e termos teóricos; e, também, afastar as tentativas de fundamentação da ciência nos dados dos sentidos ou na linguagem observacional. Posteriormente, Feyerabend complementou tais considerações com estudos desenvolvidos no âmbito do Minnesota Center. Então, o ‘texto de transição’ de 1960 amplia as formulações feyerabendianas dos anos 1940 e 1950. Ele reunirá reflexões de dois distintos momentos do desenvolvimento intelectual do austríaco: i) as primeiras formulações científico-filosóficas (entre 1949 a 1951) sobre a teoria da ciência (3.2.1) e ii) as teses sobre o problema da realidade, completadas após sua migração em 1958 para a Califórnia (3.2.2). A própria publicação desse trabalho em 1960146 remonta a um contexto comemorativo o qual sinaliza para o encerramento do 145

Essas discussões repercutiram também no ensaio discutido em 3.2.2 (ver PP3, pp. 33-34). O ‘texto de transição’ de 1960 faz referências diretas ao ‘texto síntese’ de 1958, portanto, a confluência entre eles não alude apenas aos temas gerais tratados em ambos, mas a questões pontuais 146

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frutífero período no qual as ideias feyerabendianas estiveram conectadas a tópicos da tradição da filosofia austríaca, sobretudo através de V. Kraft e H. Feigl (MT, p. 125).147 O ‘texto síntese’ de 1958 apresenta o conjunto de características {O, A, S, F, R} que definem as condições pragmáticas de enunciados observáveis, mas que, entretanto, não estabelecem a interpretação desses próprios enunciados. Feyerabend defende que o significado dos enunciados observacionais remete à reação comportamental de um sistema inserido em uma dada situação observacional. Então, a proposta feyerabendiana assevera que a “observabilidade é um conceito pragmático” (PP1, p. 19). Essa Teoria Pragmática da Observação148 considera que a interpretação dos fatos depende de teorias pressupostas na observação: “a interpretação de uma linguagem observacional é determinada pelas teorias que usamos para explicar o que observamos, e muda tão logo aquelas teorias mudam” (p. 31).149 Mas o autor também sublinhou que a crítica à tese da estabilidade remetia a uma discordância básica quanto a efeitos dos ideais epistemológicos do positivismo: “Como oposto ao positivismo”, ele asseverou, “a posição realista não admite qualquer sentença dogmática ou incorrigível no domínio do conhecimento”. Portanto, também atacou a assimetria expressa na Teoria Semântica da Observação. Quanto à E1, ele afirmou que a identificação de uma sentença como observável envolvia fatores não lógicos; e, quanto à E2, insistiu que sentenças observacionais são hipotéticas. Feyerabend contestou ainda a teoria dos dados dos sentidos mostrando que sentenças acerca de sensações são dubitáveis.

dos argumentos. Para detalhes, ver PP3, p. 40 n. 8. Ao mesmo tempo, convém salientar que o ‘texto síntese’ de 1958 já reflete as primeiras discussões de Feyerabend com Feigl (ver PP1, p. 31 n. 21). Assim, consideramos os dois textos como par de trabalhos que melhor reflete as principais posições de Feyerabend dos anos 1940 e 1950. 147 O livro é Probleme der Wissenschaftstheorie. Festschrift für Viktor Kraft, organizado por Ernst Topitsch e publicado pela Springer-Verlag (Wien) em 1960. Além de um prefácio destinado à biografia do homenageado, a obra traz nove capítulos (seguidos de uma lista da bibliografia de V. Kraft) redigidos por: R. Freundlich, Paul Feyerabend, F. Austeda, B. Juhos, H. Schleichert, W. Stegmüller, E. J. Walter, H. Albert e E. Topitsh. 148 Para uma discussão crítica pormenorizada da Teoria Pragmática da Observação de Feyerabend, ver os clássicos trabalhos de Butts (1966) e Townsend (1971). 149 Em 1955, saiu a versão inglesa do ‘ensaio-resenha’ de Feyerabend sobre as Investigações Filosóficas de Wittgenstein. Naquele texto, o pensamento wittgensteiniano foi abordado enquanto expressão de uma nova ‘teoria da linguagem’ (ver 3.1.2.2). Com efeito, a Teoria Contextual do Significado que Feyerabend discutiu em alguns dos seus primeiros escritos remontaria às ideias de Wittgenstein acerca da relação entre o ‘uso’ e o ‘significado’ dos termos. Essencialmente, a Teoria Contextual do Significado afirma que “o significado de um termo não é uma propriedade intrínseca dele, mas é dependente do modo como o termo foi incorporado na teoria” (PP1, p. 74). Preston (1997, pp. 25, 107) situa a Teoria Contextual do Significado na gênese da tese I de 1958. De forma mais consistente, Oberheim (2006, pp. 58-63) argumenta que a tese I alarga o conteúdo da Teoria Contextual do Significado. Por isso, identificamos a tese I de 1958 como conceitualmente mais fundamental do que a Teoria Contextual do Significado.

175

Acrescentou, ainda, que decisões epistemológicas levariam à certeza quanto ao caráter absoluto daquelas. Logo, de forma análoga à argumentação de 1958, em 1960 ele reforça que a crítica a posições epistemológicas envolve a uma reflexão sobre propriedades indesejáveis de ideais epistemológicos. Diante disso, a crítica a E3 defende a importância metodológica de sistemas categoriais passíveis de refutação. Em suma, a postura feyerabendiana se conecta a uma concepção voluntarista segundo a solução de problemas epistemológicos envolve provas e, especialmente, decisões.150 A Teoria Pragmática da Observação consiste em uma das mais importantes ideias do corpus feyerabendiano nos anos 1940 e 1950.151 Mesmo assim, convém lembrar que o próprio Feyerabend atribuiu a paternidade dela a três a outros pensadores: “A nova teoria da observabilidade que resulta do procedimento descrito (e que foi formulada muito nitidamente no início dos anos 1930 por Popper, Carnap e Neurath) pode ser denominada Teoria Pragmática da Observação” (PP1, p. 125). Portanto, ela não consiste propriamente em uma inovação conceitual do autor de Contra o Método – muito embora ampare várias das propostas posteriores do corpus em vista. Igualmente, o Voluntarismo Epistêmico (ou ainda, uma ‘Epistemologia baseada em Decisão’)152 expresso nos escritos feyerabendianos de 1958 e 1960 recupera lições herdadas de Kraft e Popper: “O papel de decisões na discussão de problemas filosóficos foi enfatizado com grande nitidez pelo Professor Victor Kraft e pelo Professor Karl Popper” (PP3, p.

Feyerabend reconheceu claramente a ligação entre ambas: “A escolha entre a teoria pragmática e a teoria semântica é, naturalmente, apenas uma questão de convenção” (PP1, p. 125). No entanto, o austríaco se recusará categoricamente a eleger concepções epistemológicas fundadas em “leis eternas” ou “sentenças a priori” como superiores a propostas que submetem o conhecimento à “revisão”. Mesmo no Nachtrag de 1977 encontramos a afirmação de que “uma decisão entre positivismo e realismo não pode ser operada simplesmente por referência a certos fatos”. Segundo Preston (1997, p. 60), “Feyerabend conclui seu argumento afirmando que quem quer que aceite o princípio de revisão precisa rejeitar a tese da estabilidade e a existência de uma linguagem observacional”. A centralidade do voluntarismo no pensamento de Feyerabend foi discutido por Farrell (2003, cap. IV). O voluntarismo de Feyerabend consistiria na tese segundo a qual a escolha do ideal epistemológico deveria acompanhar preocupações éticas. 151 “As ideias expressas na tese I são base para muito da obra filosófica de Feyerabend” (OBERHEIM 2006, p. 58). 152 Ver PP1, p. xiii. A descrição indicada é uma formulação de D. Kuby. Em “Knowledge without Foundaments” essa postura de Feyerabend se manifesta de forma mais clara: “É fácil ver que essas demandas e preferencias possuem pouca ligação com o bem-estar dos seres humanos e, portanto, demandas éticas: a epistemologia, ou a estrutura do conhecimento que admitimos, é baseada em uma decisão ética” (PP3, p. 71); e também: “Mostrei que existem duas formas de vida e que ambas são ligadas a certas formas de conhecimento. Mostrei que a escolha entre essas duas formas de vida é uma escolha genuína que pode ser realizada individualmente por todos que forem apresentados a elas partindo de suas próprias exigências e ideias. Também justifiquei minha opção pelo modo de vida crítico. Penso que essas razões são forçosas. Contudo, percebo que o que emprego como base para minha decisão pode soar repulsivo para outrem e pode ser uma razão para ele eleger a forma de vida dogmática” (PP3, p. 77). 150

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42). Em uma resenha publicada em 1963, entretanto, Feyerabend identifica Kraft como o promotor original daquela ideia:

Kraft tinha sido membro do Círculo de Viena. Como Thirring, foi afastado quando a Áustria se tornou parte da Alemanha. Era um professor não muito inspirado, mas um pensador astuto e meticuloso. Ele antecipara algumas ideias que mais tarde foram associadas com Popper. Deixei isso claro ao resenhar seu Allegmeine Erkenntnislehre para o British Journal for the Philosophy of Science. Popper não gostou, embora a versão original de sua Lógica da descoberta científica reconheça o débito. Kraft, contudo, agradeceu-me por minha ‘análise atenta’ (ainda tenho sua carta) (MT, p. 82).

A referida resenha discute a abordagem de Kraft acerca da natureza e principais traços do conhecimento científico (PKF 1963, p. 319). Uma das teses de Kraft afirmaria que a teoria do conhecimento envolvia uma reflexão sobre a possibilidade e a desejabilidade dos “ideais” empregados para “criticar ou elogiar” projetos científicos. Assim, Kraft destacaria uma “epistemologia puramente normativa” orientada para as “normas adotadas” e as “razões para a adoção dessas normas” (p. 320). O enfrentamento de alguns problemas epistemológicos não envolveria resultados empíricos, mas a formulação de “hipóteses para as quais se apresenta pouca ou nenhuma justificação” (p. 321). Kraft admitiria a inclusão de “conjecturas injustificadas para as quais não há fundamento” nos modelos epistemológicos (p. 322). Então, a solução de impasses epistêmicos seria “puramente metodológica, ou normativa”. Feyerabend considerou:

Na literatura anglo-saxã, essa doutrina se associou ao nome do Professor Karl Popper, da London School of Economics. Assim, não é dispensável assinalar que Kraft desenvolveu suas próprias ideias independentemente e anteriormente [em seu Grundformen der Wissenschaftlichen Methoden publicado em 1925 (isto é, dez anos antes da publicação em alemão da Logic of Scientific Discovery), no Vol. 203 da Sitzungsberichte der Oesterreichischen Akademie der Wissenschaften; esse ensaio aborda tanto as ciências naturais como as ciências sociais; ele ainda merece um estudo detalhado por parte de alguém interessado nessas questões. O próprio Popper se refere a Kraft como um dos seus predecessores] (p. 321).

177

3.3. O Pluralismo Global de Feyerabend: panorama A Teoria Pragmática da Observação e o Voluntarismo Epistêmico sintetizam duas ideias essenciais do pensamento feyerabendiano dos anos 1940 e 1950.153 Elas se relacionam, respectivamente, com a influente tese da indeterminação teórica da experiência e com o reconhecimento da função de decisões na apreciação de programas epistemológicos. Nesse sentido, ocupam uma posição de destaque na gênese e na consolidação da filosofia pluralista de Feyerabend elaborada ao longo das décadas de 1960 a 1990. Diante disso, convém considerar a periodização/disposição do corpus feyerabendiano proposta Kidd & Brown (2015):154

Periodização

Datação

Escritos iniciais

1951-1975

Escritos intermediários

1978-1987

Escritos tardios

1989-1994

Temas principais Realismo semântico Pluralismo Teórico Proteger a ciência de restrições filosóficas Pluralismo cultural Ciência como uma tradição Crítica da autoridade da ciência na sociedade Retorno ao realismo Recusa do relativismo

O modelo que propomos, entretanto, possui a seguinte estrutura:

Datação 1938-1948 1938-1942 1946-1947 1948 1949-1958 1949-1951 1952-1954 1955-1959 1960 1960-1990

Periodização Início e estabilização da formação acadêmica Origens austríacas O período formativo Os estágios de socialização Início e estabilização da carreira filosófica e profissional Iniciação científico-filosófica Atividades de pós-doutoramento Processo de profissionalização Momento de transição Pluralismo Global

153

Silva (1998, pp. 188-202) aponta algumas dificuldades da posição de Feyerabend acerca da Teoria Pragmática da Observação. Outras considerações sobre o tema podem ser encontradas em Dissakè (2001, pp. 37-42). 154 Em relação à controvérsia Visão Padrão versus Escola de Hannover sobre a compreensão das fases ou continuidades da filosofia de Feyerabend, Kidd & Brown (2015) aceitam a tese prestoniana de que houve mudanças significativas de ênfase e de estratégias na obra de Feyerabend, mas salientam, com Oberheim, que elas não eliminam a existência de continuidades no pensamento feyerabendiano. Para detalhes desse debate, ver 2.1.1 e 2.1.2.

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Ambos modelos oferecem caminhos didáticos para compreender o conjunto da produção de Feyerabend. Entretanto, duas diferenças importantes entre eles remetem: i) à especificação das fases anteriores e posteriores a 1951; e ii) à determinação do recorte cronológico relativo à edificação do Pluralismo Global de Feyerabend. A premissa de nossa proposta hermenêutica considera que Feyerabend desdobrou a ideia de proliferação aos domínios das teorias/ideias (anos 1960), métodos/procedimentos (anos 1970), culturas/‘formas de vida’ (anos 1980) e ontologias/‘cosmovisões’ (anos 1990).155 Com efeito, o que designamos por Pluralismo Global de Feyerabend156 seria composto por estes tipos específicos de teses pluralistas: pluralismo teórico (3.3.1), pluralismo metodológico (3.3.2), pluralismo cultural (3.3.3) e pluralismo ontológico (3.3.4). O material bibliográfico básico analisado para edificar nossa leitura é:

Anos 1960

Pluralismo Teórico

Anos 1970

Pluralismo Metodológico

Anos 1980

Pluralismo Cultural

Anos 1990

Pluralismo Ontológico

“Explanation, Reduction, and Empiricism” “Outline of a pluralistic theory of knowledge and action” “Experts in a free society” “Theses on Anarchism” Contra o Método (“Introdução” e “Capítulo I”) “Democracy, élitism, and scientific method” “Notas sobre o relativismo” “O conhecimento e o papel das teorias”” “Realismo e a Historicidade do Conhecimento” “Comentários históricos sobre o Realismo” “Que Realidade?”

1962 1969 1970 1974 1975 1980 1987 1987 1989 1992 1995

155

Concordamos, então, com a opinião de Farrell (2003, p. 129) segundo a qual o conceito mais importante do corpus feyerabendiano consiste na “noção crucial de proliferação”. 156 Terence Blake (no ainda inédito “From Universe to Pluriverse: Feyerabend’s Cosmological Pluralism”) propõe compreender o pensamento de Feyerabend como um Pluralismo Cosmológico. Essa leitura, corretamente, não associa o pensamento feyerabendiano à simples crítica destrutiva dos padrões epistemológicos ortodoxos, culminando no anarquismo epistemológico do Contra o Método. Blake reconhece que tal ‘estereótipo negativo’ ignora a complexidade da obra do austríaco, em especial a ‘guinada ontológica’ presente nos textos finais de Feyerabend, os quais se baseariam nas seguintes ideias: a abordagem histórica, a crítica cosmológica, a analogia com a teoria quântica (complementaridade) e o primado da democracia. Diferentemente do Pluralismo Cosmológico, no entanto, nosso Pluralismo Global propõe uma hermenêutica do corpus de Feyerabend baseada na premissa da expansão gradual da noção de proliferação do âmbito das teorias, métodos, formas de vida e ontologias. Assim, elaboramos uma imagem interpretativa do pluralismo feyerabendiano pautada em certas críticas de intérpretes (Capítulo I), fundada em certos pressupostos interpretativos (Capítulo II), embasada em certas análises textuais (Capítulo III) e orientada para tópicos específicos da tradição filosófica (Capítulo VI).

179

Nas seções 3.3.1, 3.3.2, 3.3.3 e 3.3.4 estudamos essas fontes textuais. Em 3.4 indicamos como as concepções expostas nelas permitem designar como Pluralismo Global a unidade programática da filosofia de Feyerabend.

3.3.1. O método das alternativas: o Pluralismo Teórico (anos 1960) Feyerabend herdou de Viktor Kraft (e, em certa medida, também de Popper) a ideia de uma abordagem normativo-descritiva para teoria da ciência (KUBY 2010b, cap. IV).157 Basicamente essa ideia propõe a crítica da desejabilidade de certos ideais epistêmicos – como em relação ao ‘positivismo’ (tanto no ‘texto síntese’ de 1958 como no ‘texto de transição’ de 1960).158 Nesse mesmo contexto, a tese I sugeria a inexistência de experiências teoricamente neutras (3.2.1 e 3.2.2). Uma implicação importante do caráter teórico das sentenças observacionais envolvia a crítica da validade de experimentos cruciais para selecionar entre teorias rivais: “Essa dificuldade foi-me assinalada pelo Professor Herbert Feigl” (PP1, p. 31). Essa ‘questão de Feigl’ afirmava a impossibilidade de “um experimento decidir entre duas teorias” uma vez que “sua interpretação já depende dessas teorias” (CM3, p. 287). Assim, parte substancial dos trabalhos de Feyerabend publicados nos anos 1960 objetivam elaborar uma teoria da ciência normativo-descritiva que incorpore a tese I e responda epistemicamente à questão da seleção de teorias. Nesse horizonte, o “realismo pluralista” inicial dele pretendeu associar uma tese realista (o caráter totalmente teórico das observações) com a metodologia pluralista (testes científicos não demandam a homogeneidade da experiência, apenas o confronto entre alternativas teóricas incomensuráveis e factualmente consistentes) (PP1, p. xi).

157

Para acompanhar o debate sobre esse tema na literatura secundária, ver a discordância entre Preston (1997, pp. 14-17) e Oberheim (2006, pp. 269-276). 158 Antes disso, no entanto, essa linha argumentativa já se mostrava em escritos de Feyerabend. Ver, por exemplo, as teses 5 a 7 da conclusão do texto sobre a teoria quântica da medição (1957) (PP1, pp. 216217).

180

3.3.1.1. Proliferação e Incomensurabilidade (1962) Em 1962, Feyerabend publicou “Explanation, Reduction and Empiricism”.159 O objetivo do texto era mostrar que “uma descrição formal da redução e da explicação é impossível para teorias gerais ou não instanciais” (PP1, p. 44). Em outros termos, que a teoria de redução de Nagel e a teoria da explicação de Hempel e Oppenheim não teriam amparo i) na prática científica ou ii) em um empirismo defensável:

O que acontece nesses casos de transição de uma teoria T’ para uma teoria mais ampla T (a qual, segundo assumimos, é capaz de cobrir todos os fenômenos que T’ cobria) é algo muito mais radical do que a incorporação de uma teoria inalterada T’ (inalterada, ou seja, com relação aos significados dos principais termos descritivos de sua linguagem observacional) no contexto de T. O que acontece é uma substituição da ontologia (e talvez mesmo do formalismo) de T’ pela ontologia (e o formalismo) de T, e uma mudança correspondente dos significados dos termos descritivos do formalismo de T’ (desde que esses elementos e esse formalismo ainda seja empregado) (pp. 4445).

Essa tese da substituição de ontologias T’T implica duas ideias: i) T’T afeta os termos teóricos de T’; e ii) T’T afeta alguns dos termos observacionais do domínio T’. Em outros termos, a tese da substituição de ontologias T’T diz: (i) O formalismo dos termos de T ou o significado dos termos de T vão se infiltrar na “descrição de coisas e processos” no domínio T’. (ii) As “sentenças que expressam o que é acessível à observação” no domínio T apresentarão um significado diferente das sentenças em T’. Para sustentar sua posição [A], Feyerabend assevera que

introduzir uma nova teoria envolve mudanças de perspectiva tanto em relação às características observáveis como inobserváveis do mundo, e mudanças correspondentes nos significados mesmo dos termos mais ‘fundamentais’ da linguagem empregada (PP1, p. 45).

159

Para uma apreciação do histórico desse texto e uma justificação da edição escolhida, ver HoyningenHuene & Oberheim (2014, p. 99 n. 44). Importa apenas lembrar que o texto foi originalmente incluído no terceiro volume dos Minnesota Studies in the Philosophy of Science, editado em 1962, e reimpresso com alterações, em 1980 (PP1, 44-96). Ver o complemento em PP1, p. 47 n. 6.

181

A posição [A] assenta-se em duas teses básicas: (A.1) – relativa ao caráter onipresente de teorias abrangentes (Kantismo)160; e (A.2) – relativa ao caráter refutável dos pressupostos (Demanda de Testabilidade). Quanto a (A.1), lemos:

[…] a influência de uma teoria científica abrangente ou de algum ponto de vista geral em nosso pensamento vai bem mais a fundo do que admitem aqueles que as consideram meros esquemas convenientes de ordenação dos fatos.

Portanto, Feyerabend afirma que: i) teorias “são formas de ver o mundo” e ii) que a adoção de teorias “afeta nossas crenças gerais e expectativas”. Nesse sentido, [A] afirma que adoção de teorias abrangentes afeta nossas experiências e concepções de realidade:

Podemos mesmo dizer que o que consideramos ser a ‘natureza’ em uma época particular é produto nosso, no sentido de que todas as características atribuídas a ela precisam, primeiro, ter sido inventada por nós e, assim, usadas para ordenar nosso ambiente.

Quanto a (A.2), Feyerabend recusa que os pressupostos teóricos afirmados por (A.1) sejam estáveis e imutáveis. Logo, (A.2) exige que: “teorias sejam testáveis e que sejam abandonadas tão logo um teste não produza os resultados preditos”. Em outros termos, A.2 levaria à mudança dos pressupostos teóricos da ciência e, ocasionalmente, à substituição de ontologias (tais como indicadas no modelo T’T). Contudo, (A.2) apenas poderia se realizar se surgissem fatos inconsistentes com as teorias estabelecidas. Portanto, a posição [A] de Feyerabend propõe (através de A.2) um abandono do modelo monista (ou ortodoxo) do teste científico, segundo o qual o confronto de teorias ocorre através da comparação direta com os fatos (p. 46). Para compatibilizar (A.1) com (A.2), ou seja, para compatibilizar a tese do caráter pervasivo das teorias abrangentes com a demanda de refutabilidade dos pressupostos através da testabilidade das teorias o autor elabora um modelo pluralista de teste científico: “[…]

160

Oeser (2006) traz apontamentos gerais sobre a herança kantiana na teoria da ciência de Feyerabend.

182

um modelo no qual fazemos uso de pelo menos duas teorias factualmente adequadas, porém mutuamente inconsistentes […]”. O modelo pluralista de teste feyerabendiano confronta dois princípios epistemológicos básicos do modelo monista:

Princípio de dedutibilidade (PD): “a explicação [teórica] é alcançada através de dedução no sentido lógico estrito”, logo, “todas as teorias bem-sucedidas em um dado domínio devem ser mutuamente consistentes”. Princípio de Invariância do Significado (PIS): “uma explicação não pode alterar o significado dos principais termos descritivos do explanandum”, ou ainda: os significados dos “termos empíricos” devem permanecer “inalterados”.

O PD e o PIS estariam estreitamente ligados aos seguintes pressupostos da teoria de redução de Nagel e da teoria da explicação associada a Hempel e Oppenheim. O reducionismo teórico assenta-se nos pressupostos P1 e P2, ao passo que a “teoria ortodoxa” da explicação recorre aos pressupostos P3 e P4: P1. Relação entre T’ e T (a ciência que reduz T e a ser reduzida a T’) deve seguir o PD. P2. O significado dos termos descritivos de T’ não será afetado com a redução a T, logo, significado dos termos descritivos de T’ em T permanecerá inalterado/invariante conforme define a CIS. P3. O explanans (a teoria básica da explicação) apenas constituirá uma base para o explanandum (o fato a ser explicado) se o explanandum for uma consequência lógica do explanans (conforme a PD). P4. Os significados são invariantes com relação ao processo de explicação (conforme PIS). Como diz Feyerabend: Em suma: duas ideias que são comuns às teorias de redução e explicação dos empiristas modernos são: (A) redução e explicação é (deve ser) por derivação. (B) os significados dos termos (observacionais) são invariantes com relação tanto à redução quanto à explicação (p. 55).

183

Crítica (1), (2) e (2) ao PD a partir da formulação P5 Os defensores do PD concebem a tarefa da ciência como a atividade de prever fatos particulares a partir de teorias gerais. Para criticar essa ideia, Feyerabend considera esta situação: T’ – a totalidade dos fatos particulares e regularidades a serem explicadas; D’ – o domínio em que T’ realiza predições corretas; e T – o explanans. Partindo de P3, determina-se que T seja capaz de conter T’ como uma consequência lógica ou T seja compatível com T’ em D’. Na sequência das críticas a P1, P2, P3 e P4, Feyerabend inclui P5: P5. São admissíveis em um dado domínio somente teorias que i) já contenham teorias já empregadas nesse domínio ou ii) sejam consistentes com as teorias existentes. P5 afirma que a confirmação de T envolveria observações que confirmam uma teoria mais restrita (T’) quando T for compatível com T’ (p. 56). Contra P5, vemos que: Obj. 1) Os exemplos históricos empregados para ilustrar P5: i) não satisfazem P5 e ii) não se adaptam à estrutura dedutiva. Um exemplo recorrentemente usado para ilustrar P5 é a redução da ciência galileniana à física de Newton. Feyerabend argumenta que a suposição básica referente à física galileana – sobre movimento dos objetos materiais próximo à superfície terrestre – defenderia a constância da aceleração vertical da queda: “as acelerações verticais envolvidas são constantes em qualquer intervalo (vertical) infinito” (p. 57). A redução das leis dessa teoria (T’) às leis da mecânica celestial de Newton (T) poderia ser expressa por P6: T & d├T’, onde d descreve as condições de validade de T no domínio D. Nos termos de T’, então, d conteria i) descrições da Terra e seu entorno e ii) faria referência a H (variação do peso da Terra comparado com o raio R da Terra) (p. 58). Contudo, o autor assevera que P6 é incorreta: “na medida em que H/R possui um valor infinito, mesmo que pequeno, T’ não se seguirá (logicamente) de T e d”. A implicação de T e d seria T” (experimentalmente indistinguível de T’, porém, inconsistente com T’). Uma derivação precisa de T’ a partir de T e d exigiria trocar d (referente ao movimento dos objetos no entorno da Terra) pela “evidentemente falsa” da afirmação da aceleração vertical constante em um intervalo finito de distância. Tal rejeição de P6 acarreta uma refutação (histórica) de P5, PD, P1 e P3: “é, pois, impossível, por razões quantitativas, estabelecer uma relação dedutiva entre T e T’ ou sequer compatibilizar T e T’”. 184

Obj. 2) P5 i) não pode ser defendido em bases empíricas e ii) conduz a consequências indesejáveis. A crítica básica de Feyerabend a P5 e P3 remonta, ainda, à tese da indeterminação teórica dos fatos: “[…] um mesmo conjunto de dados observacionais é compatível com teorias muito diferentes e mutuamente inconsistentes” (p. 59). Tal afirmação envolveria duas razões as quais ampliariam consideravelmente a “liberdade de construção” teórica:

i. ii.

“[…] teorias universais sempre transcendem qualquer conjunto de observações disponíveis em um dado momento”; “[…] a verdade de uma sentença observacional sempre pode ser asserida com apenas uma certa margem de erro”.

Algumas condições adicionais restringiriam a liberdade de teorizar: “crenças e preconceitos” das tradições científicas, as “idiossincrasias pessoais” dos cientistas, o “aparato formal disponível” e a “estrutura da linguagem”, além das “crenças metafísicas”. Em termos gerais:

[…] a teoria sugerida por um cientista também dependerá, além dos fatos à disposição, da tradição da qual ele participa, dos instrumentos matemáticos que ele ocasionalmente conhece, de suas preferências, predileções estéticas, das sugestões de seus amigos e de outros elementos enraizados não nos fatos, mas na mente do teórico e que, portanto, são subjetivos. Sendo assim, é de se esperar que teóricos trabalhando em diferentes tradições, em diferentes países, chegarão a teorias que, apesar do acordo acerca de todos os fatos conhecidos, são mutuamente inconsistentes (p. 60).

Essas considerações mostrariam que a consistência lógica aspirada por P3 e P5 não ilustraria uma virtude metodológica. A pressuposição de consistência entre teorias seria, segundo o autor, um “sinal alarmante de que novas teorias não estão sendo elaboradas e que a atividade de teorização chegou ao fim”. Então, a liberdade teórica promovida pela defesa da indeterminação factual assumiria um lugar de destaque. Em termos psicológicos, legitimaria a prática de distintos cientistas seguirem suas inclinações. Em termos metodológicos, porque as evidências empíricas não consistem em “fatos puros e simples, mas fatos analisados, modelados e produzidos segundo alguma teoria” (p. 61). Feyerabend ilustra essa tese da produção teórica das evidências experimentais com o exemplo da interpretação dos instrumentos de medição: “Tanto a 185

correção como a seleção depende das teorias adotadas e podem diferir do contexto teórico contendo T para o contendo T’”. E Feyerabend acrescenta ainda que:

T e T’ não são conectadas apenas com ideias teóricas distintas levando a predições diferentes, mesmo no domínio onde se sobrepõem e são confirmadas, mas as melhores técnicas experimentais e mais elaborados instrumentos de medição frequentemente produzirão evidências para T que diferem da evidência de T’, mesmo em um domínio de validade comum.

Obj. 3) P5 não deveria ser satisfeito uma vez superado o domínio das generalizações empíricas. Feyerabend também considera que P5 afetaria o avanço do conhecimento (p. 70). Primeiro, P5 “levaria à eliminação de uma teoria não porque ela seja inconsistente com os fatos, mas porque é inconsistente com outra teoria”. Segundo, P5 reteria a teoria precedente unicamente por sua precedência histórica. Logo, o filósofo mostra que P5 manteria teorias antigas e rejeitaria novas alternativas sem qualquer justificativa empírica (pp. 70-71). Nesse sentido, o critério formal de seleção teórica contido em P5 seria “incompatível com uma metodologia razoável”. Para Feyerabend, P5 seria incorreto e indesejável. Por fim, a própria unidade de conteúdo e método presumida na visão ortodoxa remontaria sempre a uma única teoria – algo impossível nos casos em que a escolha entre rivais não pode ser realizada mediante comparação direta de uma única teoria com a experiência:

Isso sugere que fora do domínio das generalizações empíricas a unidade metodológica à qual nos referimos quando discutimos questões de teste e conteúdo empírico consiste em um conjunto completo de teorias parcialmente sobrepostas, factualmente adequadas, mas mutuamente inconsistentes (p. 72).161

O pluralismo teórico de Feyerabend consiste em uma proposta metodológica de teste através do confronto de várias teorias inconsistentes entre si. Diferentemente, o monismo teórico em P5 não fomentaria o acréscimo de conteúdo empírico das teorias. Segundo o autor, a demanda de contraste de teorias rivais convergiria com a própria meta empirista de ampliação do conteúdo do conhecimento. Então, tal perspectiva 161

A passagem já evidencia a estrutura básica da metáfora oceânica de Feyerabend discutida em 4.1.2.1.

186

deveria estimular o confronto entre teorias factualmente adequadas e mutuamente inconsistentes (p. 73). A consequência psicológica do pluralismo teórico seria um melhor entendimento das propriedades das teorias. E a consequência lógica seria evidenciar que o conteúdo do conhecimento envolve a relação das teorias com o conjunto de suas consequências empíricas bem como com o conjunto de todas as teorias alternativas existentes (p. 74). A metodologia feyerabendiana também impediria o dogmatismo da decorrente da inabilidade de elaborar concepções alternativas. Para Feyerabend, a unidade teórica levaria: i) ao “gradual estabelecimento” de métodos e medições; ii) à “codificação” das interpretações; e iii) à “padronização da terminologia”. Por sua vez, (i), (ii) e (iii) acarretariam a admissão de um único ponto de vista e a exclusão de posturas opostas (p. 75). Contra isso, o pluralismo teórico estimularia a diversidade de instrumentos de medição e de formas interpretar os resultados deles. A crítica da uniformidade de opiniões também se orientaria para o desenvolvimento das capacidades humanas:

Levando tudo isso em conta, nos sentimos inclinados a afirmar que enquanto a uniformidade de opinião pode ser positiva para uma igreja, ou para os servos voluntários de um tirano, ou ainda algum tipo de ‘grande homem’, a variedade de opinião é uma necessidade metodológica para as ciências e, a fortiori, para a filosofia (p. 76).

Crítica ao PIS: um exemplo e as críticas descritiva e metodológica Feyerabend considera que o PIS não permitiria uma descrição adequada do progresso científico e das descobertas que conduziram a ele, bem como não conseguiria estabelecer correlações entre conceitos incomensuráveis.162 Nesse caso particular, os principais termos das teorias precedentes não poderiam ser definido nas bases ou ser relacionados empiricamente com os termos descritivos primitivos da teoria subsequente:

[…] considere duas teorias, T’ e T, empiricamente adequadas dentro de D’, mas que diferem fora de D’. Nesse caso, a demanda pode aparecer para explicar T’ nas bases de T, ou seja, derivar T’ a partir de T e condições iniciais adequadas (para D’). Se 162

Para uma análise pormenorizada da tese da incomensurabilidade teórica em Feyerabend, ver Abrahão (2009). Uma apreciação mais sintética, conquanto conceitualmente precisa, ver Oberheim (2005).

187

assumirmos que T e T’ estão em acordo quantitativo dentro de D’, tal derivação será impossível se T’ é parte de um contexto teórico cujas regras de uso envolvem leis inconsistentes com T.

O autor sustenta que pares de teorias incomensuráveis não admitiriam uma redução mútua ou uma explicação, como proposto pelo PIS. As regras de uso dos termos de T’ os tornariam inconsistentes com T. Para ilustrar a ideia, Feyerabend observa que o conceito de massa indicava uma propriedade absoluta no contexto da física clássica (p. 81). Contudo, o conceito na teoria da relatividade se transforma em um conceito relacional: sua “especificação é incompleta sem a indicação do sistema de coordenadas às quais se referem todas as descrições espaço-temporais”. O que é medido no primeiro caso seria uma “propriedade intrínseca do sistema”, enquanto o segundo concerne a uma “relação entre o sistema e certas características de D’”. A postulação do PIS também entraria em confronto com a prática científica (p. 82). Ele lembra que o caráter revolucionário de novas teorias apareceria na capacidade delas em suspender exigências como PD ou PIS. Em outros termos, o efetivo progresso científico envolveria a violação dos usos estabelecidos dos termos científicos:

Nosso argumento contra a invariância do significado é simples e claro. Ele decorre do fato de que geralmente alguns dos princípios envolvidos na determinação do significado das antigas teorias ou pontos de vista são inconsistentes com as novas e melhores teorias. Isso mostra que é natural solucionar essa contradição eliminando antigos princípios problemáticos e insatisfatórios (pp. 82-83).

A crítica metodológica ao PIS também recusa o valor de “preservar intocados” os significados dos termos (p. 90). Na verdade, o progresso do conhecimento levaria ao abandono de “certos pontos de vista e dos significados associados a eles”. Com isso, Feyerabend encerra sua defesa da renúncia ao PIS. Enfim, o PD e o PIS estariam em desacordo tanto com a prática científica como com a “metodologia razoável”: se duas teorias T e T’ atendessem a P6, então, T será metodologicamente mais satisfatória quanto mais inconsistente ou incomensurável com T’ (p. 91). Então, o texto feyerabendiano defende que teorias formais de redução e explicação deveriam ceder espaço para a Teoria Pragmática da Observação, na qual o “critério de sucesso

188

preditivo” não envolve qualquer “referência ao significado” dos termos científicos, mas apenas o “acordo com o comportamento” do observador (p. 93).

3.3.1.2. A racionalidade da proliferação (1968) Em 1969, o texto “Outline of a pluralistic theory of knowledge and action” orienta a defesa do pluralismo teórico para uma crítica à visão segundo a qual o amadurecimento (intelectual, científico, filosófico etc.) envolve a uniformidade de ideias e o estabelecimento de uma imagem correta da realidade (PP3, p. 104). Nesse texto, Feyerabend rejeita as propostas hostis à proliferação de ideias e à diversidade de visões alternativas e propõe uma concepção de avanço do conhecimento que não elimine a liberdade dos indivíduos. Primeiro, recorre a uma analogia evolucionista163 e frisar que “o desenvolvimento das espécies animais é o resultado de um processo de proliferação” (p. 106). O autor comenta que o processo de proliferação também seria válido no âmbito das teorias. Segundo, insiste que falhas teóricas geralmente são descobertas através do confronto com alternativas. Elas mostrariam novas formas de compreender as evidências empíricas das teorias corroboradas. Terceiro, relembra que o próprio sistema judiciário estimularia a busca por falhas nas ideias estabelecidas através da diversidade de opiniões (p. 107). Quarto, sublinha que o método científico se beneficia de uma ampliação do domínio de teorias. Nesse horizonte, Feyerabend estrutura três argumentos em favor do pluralismo: Argumento I – É imprudente abandonar uma teoria T em razão i) das inconsistências de T com resultados observacionais ou ii) das dificuldades internas de T. As relações entre T e dos dados empíricos podem mudar (contra (i)) e T pode ser aprimorada (contra (ii)). Assim, o Argumento I conduz à exposição do Princípio de Tenacidade como consequência da análise dos parâmetros normativos gerais de seleção teórica e dos procedimentos efetivos de adesão teórica. Conforme o autor, selecionamos teorias que trazem as características consideradas mais importantes e que se mostram mais promissoras. A eleição das teorias que atendem a essas condições ocorreria independentemente de suas dificuldades:

163

Oeser (2006, p. 36) reconhece as raízes desse argumento analógico com a biologia (o Princípio de Darwin) em Boltzmann. Para tanto, ver PP1, cap. I e PP3, cap. III.

189

Após a aceitação da tenacidade, uma teoria T não pode mais ser removida em razão de experimentos discordantes. É possível que alguém se sinta inclinado a especificar um limite para o desacordo que os demais não estão dispostos a aceitar (p. 108).

O método pluralista de refutação afirma que é racional trocar T por T1 quando: i) T1 acentua as dificuldades de T e ii) T1 sugere direções de pesquisa diferentes das de T, isto é, quando são admitidas alternativas a T: “O resultado é que a ciência a qual se preparou para desenvolver suas teorias apesar das dificuldades necessita de um princípio de proliferação para a crítica efetiva das teorias tenazmente mantidas”. Portanto, o Argumento I indica que os fatos que colocam em risco a teoria T já estão disponíveis e explora como T pode ser eliminada mesmo diante de (i) e (ii) acima. Argumento II – Há fatos que colocam T em risco que apenas podem ser revelados através do recurso a alternativas. Feyerabend explora o Argumento II recorrendo a este exemplo: T implica C; ocorre C’; C’ acarreta um processo macroscópico M; M pode ser percebido por todos os observadores; isso indica que C e C’ são indistinguíveis. Então, o processo macroscópico M refuta a teoria T, entretanto, seria impossível determinar esse resultado a menos que existissem alternativas a T”. Se a alternativa T’ prediz C’ e a conexão entre C’ e M; se T1 repete aproximativamente as mesmas predições S de T; e se T’ apresenta predições adicionais A – então: T’ gera mais confiança do que T e, assim, conclui-se que M refuta T.

Nesse caso, a alternativa não apenas acentuou uma dificuldade já existente; na verdade, ela a criou. Sob a luz dessa possibilidade, o uso de alternativas é recomendado mesmo se a teoria que se coloca no centro das atenções não apresentasse qualquer defeito.

Argumento III – A tese da estabilidade positivista (discutida em 3.2.1 e 3.2.2) afirma que os significados dos termos observacionais não dependeriam teorias, mas apenas dos fenômenos aos quais se referem. Contra essa ideia, Feyerabend reitera que toda sentença observacional comporta componentes metafísicos e pressupostos teóricos:

190

Sobretudo Kant enfatizou que a experiência, tal como concebida pelos cientistas, contém elementos teóricos e que os relatos observacionais desprovidos desses elementos não encontram espaço no conhecimento científico.

Feyerabend entende que a tese dos dados dos sentidos não tem validade para ciência. Para terem utilidade, deveriam extrapolar os fenômenos. Também considera equivocado minimizar o caráter hipotético das sentenças observacionais. Assim, assevera que uma teoria T somente pode ser considerada científica se apresentar falsificadores potenciais que comportariam sentenças observacionais contraditórias Si (p. 110). O valor de Si somente poderia ser determinado partindo de teorias auxiliares T’ as quais: i) ajudam a testar Si e ii) influenciam os termos de Si. Portanto, o teste de T por meio de Si seria mais efetivo quanto maior fosse o número de falsificadores potenciais T’ que incluiriam teorias auxiliares T”, T’’’ e assim por diante. A possibilidade de uma teoria Tx isenta de potenciais falseadores adicionais não teria base científica e, por isso, as refutações experimentais das teorias exigiriam uma proliferação de alternativas:

Em suma, a proliferação é necessária tanto para fortalecer nossos testes como para descobrir fatos refutadores que, de outro modo, permaneceriam inacessíveis. O progresso da ciência é impensável sem proliferação.

A última linha argumentativa feyerabendiana reconhece que a proliferação de ideias acolheria “os mais excepcionais produtos do cérebro humano” e que essa postura pluralista beneficiaria a ciência (p. 111). O pluralismo encorajaria os indivíduos a seguir e desenvolver suas próprias inclinações, além de fomentar a comparação crítica das teorias estabelecidas com alternativas. Esse confronto elevaria as concepções aceitas a “um estágio mais elevado de articulação” e a “um nível maior de consciência”, impedindo qualquer estagnação no campo das ideias:

Considero que esse seja o último e mais importante argumento contra as teorias do conhecimento tradicionais. Elas não são apenas concebidas equivocadamente, mas a defesa delas é, ademais, incompatível com uma perspectiva humanitária.

191

3.3.2. A “máscara anarquista”: o Pluralismo Metodológico (anos 1970) Em 1980, Feyerabend incluiu um apêndice ao texto “Antwort an Kritiker; Bemerkungen zu Smart, Sellars und Putnam”, versão alemã de um ensaio sobre o pluralismo teórico. Nesse texto, escrito originalmente em inglês em 1965, o autor formulou o que denominou Prinzip des Pluralismus: “Inventar e elaborar teorias inconsistentes com as concepções aceitas, ainda que elas sejam largamente conformadas e amplamente aceitas” (ver 4.1.2.1.1). Essa ideia convergia com os dois pilares do pluralismo teórico feyerabendiano dos anos 1960: a proliferação e a tenacidade teóricas (isto é, inventar novas alternativas mutuamente incompatíveis e factualmente adequadas e preservar teorias antigas ou refutadas). Contudo, naquele complemento, o austríaco interpretou tal metodologia pluralista como um resquício de “militância cientificista” (PE, p. 160). Através da proposição do “pluralismo purificado”, o autor antagonizava com noções conservadoras de ciência.164 Mas o pluralismo teórico ainda propunha uma atitude epistemológica geral. Reconsiderando aqueles argumentos contrários à “preservação de certas categorias” conceituas na ciência,

Feyerabend

admitiu

que

nem

mesmo

uma

concepção

científica

autoproclamada pluralista poderia suplantar o consentimento das pessoas às ideologias. Então, o Nachtrag de 1980 reconhece: “O método [pluralista] não é apenas não científico, é também antidemocrático”. A autocrítica de Feyerabend quanto ao pluralismo teórico dos anos 1960 reflete um primeiro movimento revisionista do corpus.165 Essencialmente, ele conceberá a própria afirmação da proliferação e tenacidade como um reflexo de um antiquado e

164

Para essa leitura das críticas feyerabendianas às várias formas de conservadorismo, ver Oberheim (2005) e Hoyningen-Huene & Oberheim (2014). 165 Essa autocrítica é pouco reconhecida pelos leitores menos atentos, mas, sobretudo, fonte de discórdia entre os leitores mais especializados (ver Capítulo I deste trabalho). Sinteticamente, a Visão Padrão interpreta essa mudança filosófica como uma ruptura teórica no corpus (ver 1.1.2, 1.1.3.4 e 2.1). Contudo, acompanhamos as leituras continuístas, exploradas em 2.1.1, que concebem o pluralismo metodológico dos anos 1970 ‘superação dialética’ consistente do pluralismo teórico 1960. Em particular, convergimos com Tambolo (2007), discutido em 1.5.4, quanto às motivações feyerabendiana para o abandono do ‘bom empirismo’ (ou empirismo purificado de 3.3.1). A percepção de que mesmo o método da pluralidade de alternativas refletia ainda uma versão do dogma do monismo metodológico teria impelido o autor a expandir a noção de proliferação do âmbito das teorias para o âmbito dos métodos. Portanto, a consistência filosófica do pluralismo de Feyerabend demandou a admissão da proliferação de teorias e de métodos. Ainda argumentando em favor da diversidade de pontos de vista alternativos, Feyerabend passará a argumentar em favor da diversidade procedimentos alternativos, o que inclui, enfim, rejeitar a normatividade do pluralismo teórico como ‘o único’ método defensável. A partir disso, o corpus feyerabendiano defenderá tanto a variedade de teorias/ideias como a variedade de métodos/ações para promover o avanço do conhecimento.

192

nocivo “louvor” a regras metodológicas (PP1, p. 235).166 A partir disso, o filósofo gradualmente passou a qualificar como indevida a imposição de um único método científico (mesmo que esse método unitário defendesse uma metodologia pluralista).167 Com efeito, a essa ampliação da noção de proliferação – do âmbito das teorias para o dos métodos – envolveu um alargamento do método pluralista no sentido de um pluralismo dos próprios métodos. A identificação da insuficiência do método centrado na função refutadora das alternativas coincide com a identificação, em meados da década de 1960, da própria “futilidade” da tentativa de “descobrir regras gerais” para a pesquisa científica (CM3, p. 350; PP1, p. 47 n. 6).

3.3.2.1.O “mito do método oculto” Em 1970, Feyerabend escreveu “Experts in a free society” com o objetivo de discutir certos “desenvolvimentos desastrosos nas ciências” (PP3, p. 112). Ele reconhece o avanço histórico da ciência e considera que diletantes auxiliam no progresso do conhecimento. Assim, insiste que a prevalência dos experts no âmbito científico pode estagnar o desenvolvimento das ideias e da sociedade. Especialistas seriam imaturos em termos de convívio em um espaço democrático livre, no qual nenhuma concepção possui, intrinsecamente, mais poderes do que as demais. Nesse contexto, decisões atinentes à ciência e à sociedade seriam responsabilidade de cidadãos, alguns deles leigos. A definição geral de ‘especialista’ que encontramos no texto feyerabendiano diz:

Um expert é um homem, ou mulher, que decidiu alcançar a excelência, a suprema excelência em um domínio restrito em detrimento de um desenvolvimento equilibrado. Ele decidiu se submeter a padrões que o restringem de muitas formas – estilo de escrever e modos de fala, inclusive – e está preparado para conduzir a maior parte de sua vida produtiva segundo tais padrões (p. 113).

166

Outro momento importante de explícita revisão da própria obra pode ser identificado em DC, p. 87, 93-94; uma mudança pontual referente ao Contra o Método pode ser vista em CM3, p. 36 n. 12. Esse revisionismo, contudo, não sinaliza uma radical ‘guinada’ filosófica como insiste Brouček (2012) acompanhando Preston (1997). 167 Sluga (2006) explica essa mudança como a transição de uma primeira fase histórico filosófica para uma segunda fase política e pragmática.

193

Historicamente, os fundadores da física clássica teriam avançado o conhecimento científico com vivacidade (p. 115). A profissionalização expressa com a inclusão de termos técnicos no discurso científico não havia se imposto. Após isso, “linguagem do especialista” levantaria uma barreira entre a ciência e o público geral. Então, não seria um motivo de orgulho se assumir como um especialista (p. 117). Pelo contrário, o “homem livre” mostraria um equilíbrio de tendências e uma postura não limitada aos seus domínios: “Ele é bem informado em política, ciência, artes” e nenhuma delas “pode demandar atenção exclusiva”. Enfim, o diletante não seria escravizado pela mentalidade de uma área restrita (p. 118): “[…] em nossos dias, especialistas são excepcionais, úteis, insubstituíveis, mas muitos deles são torpes, competitivos, escravos mesquinhos, escravos tanto mentalmente, na fala, como na postura social”. Contudo, a ideologia científica dos especialistas defenderia que educação deveria ser baseada em saberes científicos. A base dessa ideologia estaria na compreensão de que leigos seriam incapazes de refletir sobre a ciência e seus usos (p. 119). Logo, o público geral não participaria da apreciação de questões científicas, muito embora parte do financiamento das pesquisas se origine dos impostos pagos por leigos. Para criticar tais opiniões, Feyerabend se debruça sobre a crença de que teorias científicas são mais corretas do que outras ideias. Primeiro, comenta que a revolução científica dos séculos XVI e XVII teria sido fundamental para o avanço do conhecimento. Entretanto, afirma que eles não teriam decorrido diretamente de um empirismo radical, contudo, de procedimentos como “argumentos capciosos”, mudanças ad hoc etc. Diante disso, depreende que um dos momentos mais produtivos da ciência dependeu de vários talentos humanos, tais como senso crítico, habilidade literárias ou retóricas. No “tempo heroico da ciência”, segundo o autor, a produção do conhecimento envolveu a ação dos “melhores cientistas” e dos “mais incríveis diletantes” (p. 122). Segundo, critica a opinião segundo a qual o sucesso científico depende do “auxílio de métodos especiais”:

Nem Galileu, nem Kepler, nem Newton usam métodos específicos e bem definidos. Eles são ecléticos, oportunistas metodológicos. Claro, cada indivíduo tem o que se poderia denominar estilo de pesquisa que dá aos esforços dele algum tipo de unidade, mas o estilo muda de um indivíduo para outro, e de um tópico de pesquisa para outro (pp. 122-123).

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Tal rejeição da unidade metodológica da ciência considera a variedade de estilos científicos. Por conseguinte, o sucesso científico não teria origem em um único “método especial”. A própria história da ciência ilustraria que os avanços no conhecimento envolveram uma pluralidade de concepções metodológicas. Portanto, Feyerabend conclui: “Na prática, o único princípio que é constantemente respeitado parece ser: vale tudo”. A complexidade da histórica forçaria os pesquisadores a adaptarem seu estilo às situações específicas, ou seja, o ecletismo seria um traço forte da ciência. Nos termos feyerabendianos, cientistas adotariam um “oportunismo metodológico, ou um anarquismo”, o que implica a rejeição do monismo metodológico:

Percebe-se que o método científico é mais complicado do que se pode pensar, e que ele não pode ser apreendido através de regras simples. Não obstante, apesar dessas dificuldades, ainda se acredita que exista algo como um método, mas agora se admite que ele está oculto no processo da atividade científica, e que ele pode ser extraído através da imersão nesse processo, e através da participação nele com o espírito de conformismo completo e fiel (p. 124).

Feyerabend pretende desmontar a crença no “mito do método oculto” da ciência porque ela sustentaria a atribuição de privilégios cognitivos e sociais aos especialistas e, então, levaria à exclusão de ideias não científicas. Ele também busca demonstrar a imagem da ciência como um conhecimento certo e linear (p. 125). O autor desafia, ainda, as narrativas oficiais orientadas unicamente para os êxitos científicos: “Não há método, e não há autoridade”. Em uma sociedade livre, a avaliação de questões científicas e outras crenças não dependeria apenas de especialistas, ela seria responsabilidade da própria comunidade da qual os experts participam (p. 126). Isso significa que a comunicação com os leigos não poderia se basear na linguagem técnica, mas em uma linguagem “mais humana”. Todavia, o autor afirma que tal mudança apenas ocorrerá “se abandonarmos a enorme e desarrazoada reverência, e medo imaginário, que temos dos experts e assumirmos a percepção mais sensata de que especialistas são tão humanos como nós”.

195

3.3.2.2.Elogio do oportunismo metodológico O livro Contra o Método168 de Feyerabend foi originalmente publicado em 1975.169 Logo na “Introdução” somos informados de que a obra foi composta partindo da convicção de que o anarquismo seria um “excelente remédio para a epistemologia e para a filosofia da ciência” (CM3, p. 31). A razão feyerabendiana por trás dessa convicção seria a impressão de que regras metodológicas “ingênuas e simplórias” não explicariam a dinâmica, a variedade e a riqueza de conteúdo da história das ideias científicas (p. 32). Além disso, entende que a participação exitosa em uma atividade complexa como a pesquisa científica exigiria uma atitude oportunista. O cientista adotaria o procedimento mais adequado para a situação real, ao invés de seguir regras epistemológicas preestabelecidas:

Um meio complexo, contendo desenvolvimentos surpreendentes e imprevistos, demanda procedimentos complexos e desafia uma análise baseada em regras que tenham sido estabelecidas de antemão e sem levar em consideração as condições sempre cambiantes da história (p. 33).

O oportunismo metodológico expresso no Contra o Método seria demonstrado por dois fatores: i) o exame da história da ciência e ii) a análise da relação entre ideia e ação. Com relação ao primeiro aspecto, Feyerabend argumenta que a história da ciência evidenciaria que todos os métodos já teriam sido infringidos: “não há uma única regra, ainda que plausível e solidamente fundada, que não seja violada em algum momento” (p. 37). Ele também insiste que tais violações não seriam acidentes históricos, tampouco fruto da ignorância dos cientistas. Pelo contrário, se mostrariam “necessárias para o progresso”.170 Então, o Contra o Método mostra que o desenvolvimento da ciência 168

Em carta remetida a Lakatos em 17 de dezembro de 1967, Feyerabend comentou que daria o título “Contra o Método” a uma seção do artigo “Consolando o Especialista” (PKF 1970), em analogia à coletânea de ensaios Contra a Interpretação (1966), na qual Susan Sontag critica a interpretação da arte formalista e a interpretação da arte baseada no conteúdo. Para detalhes do desenvolvimento do Contra o Método, desde o artigo homônimo de 1970 até a primeira edição do livro em 1975, ver FAM, p. 181 n. 71. Oberheim (2006, p. 21 n. 2) apresenta uma visão sobre a “série” Contra o Método e reitera que o slogan anarquista vale tudo precede a publicação do livro de 1975. 169 Usamos, no entanto, a edição ‘padrão’ de 1993, a qual, para os fins desta seção, não apresenta diferenças relevantes em relação à primeira edição de 1975 (CM1). 170 Alguns dos exemplos históricos que, segundo Feyerabend, ilustrariam tal tese seriam: a invenção do atomismo na Antiguidade, a Revolução Copernicana, o surgimento do atomismo moderno ou a teoria ondulatória da luz.

196

apenas ocorreu porque os cientistas violaram regras metodológicas consideradas óbvias ou plausíveis: “A ideia de um método que contenha princípios firmes, imutáveis e absolutamente obrigatórios para conduzir os negócios da ciência depara com considerável dificuldade quando defrontada com os resultados da pesquisa histórica”. Quanto ao segundo, Feyerabend destaca que em certas circunstâncias se mostra desejável ignorar ou contrariar regras metodológicas (p. 38). Nesse sentido, seria razoável “introduzir, elaborar e defender” hipóteses ad hoc, hipóteses inconsistentes com dados factuais corroborados, hipóteses incongruentes com teorias empiricamente adequadas, hipóteses inconsistentes etc. O autor assinala que mesmo processos não argumentativos (propaganda, coerção, interesses, paixão etc.) poderiam contribuir para o fortalecimento da ciência (p. 39). Segundo o Contra o Método, o oportunismo metodológico, além de ser um fato histórico, seria “absolutamente necessário” para o avanço da ciência (p. 37). Portanto, a obra mais conhecida do austríaco afirma que inexistência de um programa fixo para a elaboração e consolidação de ideias:

O desenvolvimento da perspectiva copernicana, de Galileu até o século XX, é um exemplo perfeito da situação que quero descrever. Principiamos com uma firme convicção que é contrária à razão e à experiência da época. Essa convicção se dissemina e encontra apoio em outras crenças igualmente desarrazoadas, se é que não o são mais ainda (lei da inércia; o telescópio). A pesquisa é então desviada em novas direções, novos tipos de instrumentos são construídos, a ‘evidência’ passa a ser relacionada às teorias em novas maneiras, até que surge uma ideologia rica o suficiente para prover argumentos independentes em defesa de qualquer de suas partes específicas, e versátil o suficiente para encontrar tais argumentos sempre que pareçam necessários. Podemos dizer, hoje, que Galileu estava no caminho certo, pois sua busca persistente de algo que, em certa ocasião, pareceu ser uma cosmologia ridícula veio entrementes a criar o material necessário para defende-la contra todos aqueles que aceitam um ponto de vista somente se for expresso de certa maneira e só confiam nele se contiver certas frases mágicas, chamadas ‘relatos observacionais’. E isso não é uma exceção – é o caso normal: as teorias tornam-se claras e ‘razoáveis’ apenas depois que partes incoerentes delas tenham sido usadas por longo tempo. Esse prelúdio desarrazoado, insensato e sem método revela-se, assim, ser uma precondição inevitável de clareza e de êxito empírico (p. 41).

O Contra o Método permite descrever e compreender a inadequação factual e metodológica da ideia da unidade metodológica da ciência (p. 43). Ainda assim, pensadores racionalistas buscariam por regras metodológicas válidas para toda a atividade científica (o denominado Preceito Racionalista). Diante disso, Feyerabend argumenta que se os racionalistas “examinam o rico material” histórico e se os racionalistas “não têm a intenção” de empobrecer o material histórico, então, eles 197

identificarão apenas um princípio metodológico universalmente válido na atividade científica: vale tudo.171

3.3.2.3.O “salto anarquista” Feyerabend comentou com Lakatos que o “responsável” por seu “salto para o anarquismo” teria sido Carl von Weizäcker (FAM, p. 273; ver B1/2.1.2.2 e 3.4.3.3).172 Feyerabend buscou deslindar ideia de um anarquismo epistemológico já antes da publicação do Contra o Método (1975). Em 1974, publicou a polêmica nota “Thesen zum Anarchismus”, a qual exploraria o assunto de forma direta e radical (FAM, pp. 323, 325).173 Primeiro, ele estabelece a tese básica do anarquismo: “O anarquismo se opõe à ordem existente, ele busca destruir essa ordem, ou escapar dela” (FAM, p. 113). Segundo, distingue o anarquismo epistemológico dos anarquismos político, que “se opõe a instituições políticas”, e religioso, que “se opõe ao mundo material”. Feyerabend rejeita ambos por adotarem “posições dogmáticas sobre o que é verdadeiro, bom e valioso para o ser humano”. Assim, o autor sublinha que o anarquismo político pósIluminista apostou nas capacidades da ciência e da razão para emancipar seres humanos e harmonizar a sociedade. Conforme tal leitura, a “fé na ciência” não se justificaria plenamente. As origens dessa atitude remontariam ao papel revolucionário que a ciência exerceu nos séculos XVII e XVIII: a ciência teria “esmagado o universo harmonioso

das

épocas

anteriores”,

“eliminado

o

conhecimento

infértil”,

“transformado as relações sociais” e “estruturado os elementos de um novo tipo de conhecimento verdadeiro e benéfico à humanidade”. Porém, dois fatores suspenderiam a aceitação absoluta da ciência (p. 114): o fim do caráter reflexivo da ciência e o caráter hipotético de fatos e teorias científicas. Com relação ao primeiro, ciência teria abandonado suas pretensões reflexivas para se transformar em um “grande negócio”. Assim, preocupações humanitárias deixaram de ocupar qualquer lugar de destaque no âmbito do conhecimento. Quanto ao segundo, ele afirma que os resultados da ciência

171

Então, uma vez que o próprio Feyerabend recusa explicitamente para si o Preceito Racionalista, constatamos que o anarquismo epistemológico não reflete uma proposta esposada pelo próprio Feyerabend. Para uma excelente discussão do anarquismo como uma redução ao absurdo do Preceito Racionalista, ver as três seções iniciais do capítulo I de Farrell (2003). 172 Ou: “Von Weizäcker é o principal responsável por minha mudança para o ‘anarquismo’ – embora ele não tenha ficado nada satisfeito quando eu lhe disse isso em 1977” (CSL, p. 146). 173 Traduzida para o espanhol em 1985, pp. 9-16) e para o inglês em 1999 (FAM, pp. 113-118).

198

não são inquestionáveis: “tanto sentenças teóricas como factuais são hipóteses as quais, frequentemente, não são apenas localmente incorretas, mas inteiramente falsas”. A ciência consistiria em uma “coleção de alternativas em competição” desprovida de princípios ou fatos imutáveis ou irretocáveis. Apesar dos fatores mencionados, o século XX permaneceu crente na verdade científica. Por isso, ela não seria mais uma aliada do anarquismo – a menos que os elementos dogmáticos da crença na ciência fossem removidos e uma postura crítica (como o anarquismo epistemológico) fosse endossada. Então, o autor do Contra o Método explica que o anarquismo epistemológico difere do ceticismo174 e do anarquismo político:

Enquanto o cético ou defende que toda concepção é igualmente boa, ou igualmente ruim, ou desiste de efetuar esses juízos, o anarquista epistemológico não tem o menor escrúpulo em defender as afirmações mais toscas e absurdas. Enquanto o anarquista político deseja remover uma dada forma de vida, o anarquista epistemológico pode querer defende-la, afinal, ele não tem qualquer lealdade ou aversão perene contra qualquer instituição ou ideologia.

Feyerabend também menciona que o anarquismo epistemológico não é contrário à defesa de posições, ideias ou formas de vida:175

O passatempo favorito dele é confundir racionalistas inventando razões convincentes para doutrinas desarrazoadas. Não há uma única razão, por mais ‘absurda’ e ‘imoral’, que ele se recuse a considerar ou encenar, e nenhum método que considere indispensável. A única coisa à qual se opõe positiva e absolutamente são padrões universais, leis universais, ideias universais tais como ‘Verdade’, Justiça’, ‘Honestidade’, ‘Razão’ e o comportamento que eles engendram.

Feyerabend conclui o texto asseverando que o anarquismo epistemológico é favorável ao uso de diversos métodos para promover uma doutrina particular. Duas

174

Ver também CSL, p. 264 n. 1. Tal postura anarquista guardaria algum parentesco com o Dadaísmo: ambos não possuem um programa e ambos são contrários a todos os programas – mesmo que, ocasionalmente, possam se encenar uma extrema defesa do “status quo ou dos seus oponentes” (FAM, p. 115) Ver CM3, pp. 354-355; ver também CM1, p. 25. Outros comentários sobre o tema em Dusek (1998) e Knoll (2006, pp. 52-53). 175

199

ideias sustentariam essa posição explorada no Contra o Método. O caráter limitado das regras metodológicas (“não existe uma única metodologia que, ocasionalmente, não inibe a ciência”) e o caráter progressivo de movimentos ‘irracionais’ (“não há um único movimento ‘irracional’ que não possa beneficiar a ciência, dadas as circunstancias adequadas”). Ambas balizam a tese segundo a qual o vale tudo refletiria a única regra universalmente aceita para avançar a ciência (p. 116).

3.3.2.4.Comentários adicionais à crítica do ‘conto de fadas’ monista Feyerabend revisitou diversas vezes as teses do Contra o Método (DC, p. 108), mesmo já considerando o livro “acqua passata” (DSC, p. 118). Os constantes retornos do autor ao seu Contra o Método tentaram eliminar equívocos interpretativos similares àqueles contidos em resenhas publicados logo após a aparição da obra. Dentre outras coisas, os resenhistas erroneamente apontaram Feyerabend i) entendia o vale tudo como uma metodologia científica correta176, ii) encorajaria uma filosofia irracionalista177 ou iii) que aproximaria os anarquismos epistemológico e político.178 Nas seções abaixo, reproduzimos dez reconsiderações do autor atinentes às implicações epistemológicas e ético-culturais da crítica ao monismo metodológico (3.4.1). Esse vasto material, até então inexplorado em conjunto, analisa pontos controversos do pensamento de Feyerabend com tópicos relativos ao anarquismo epistemológico, ao estatuto de teorias gerais da ciência ou ao oportunismo científico.

“Paul Feyerabend é contrário à ‘lei e à ordem na ciência’ – a ciência cuja prática segue aquelas regras estritas e regulamentações firmadas pela filosofia científica. Para Feyerabend, a metodologia científica adequada é ‘vale tudo’ […] Ele aspira inverter a relação entre história e filosofia transformando as regras (ou falta delas) em um resultado da prática histórica. O que deveria ser feito corresponde ao que foi feito, e o que foi feito é não seguir qualquer conjunto de regras, de maneira que as regras deveriam ser ‘vale tudo’” (HANDS 1977, pp. 897, 899). 177 “A tese principal do ‘anarquismo’ ou do ‘antirracionalismo’ que ele [Feyerabend] apresenta nesse livro [Contra o Método] é que, com uma única exceção, não existem princípios metodológicos aos quais se conforma ou deveria se conformar os procedimentos de qualquer ciência ‘progressiva’ […] Entretanto, Feyerabend é suficientemente ‘racionalista’ para oferecer razões e evidências (aduzidas da história da ciência) em apoio de sua tese central” (NAGEL 1977, pp. 1132-1133). 178 “Os aspectos anarquistas ou 'Dadaístas’ do livro [Contra o Método] são baseados na ideia de que há um paralelo entre anarquia epistêmica e política, de modo que o abandono de todo e qualquer princípio metodológico, inclusive a adesão a qualquer base de racionalidade, é tratado não apenas como semelhante ao anarquismo político, mas como uma parte substantiva do ponto de vista anarquista no qual toda ordem é recusada” (HARRE 1977, p. 295). 176

200

3.3.2.4.1. A progressividade dos desvios metodológicos (1978) A Ciência em uma Sociedade Livre, lançado em 1978, informa que o Contra o Método teve origem em palestras proferidas na London School of Economics e na Univertsity College London (CSL, p. 19). O objetivo delas era mostrar que episódios progressivos na ciência apenas ocorreram porque regras metodológicas consideradas simples e constitutivas da racionalidade científica foram violadas. Esquematicamente, o escrito de 1975 afirmaria que: i. ii. iii. iv.

“as regras (padrões) foram verdadeiramente violadas”; “cientistas mais perceptivos estavam cientes dessas violações”; “[as regras (padrões)] tinham de ser violadas”; “A insistência nessas regras não teria melhorado as coisas, mas detido o progresso”; Feyerabend reforça que o Contra o Método assumia que seria impossível

conjugar o avanço científico com a adesão irrestrita a regras metodológicas (p. 20). Porém, o livro de 1978 também detalha a crítica feyerabendiana ao Preceito Racionalista. Ele insiste que as pesquisas científicas mais heurísticas envolvem um desvio com relação aos métodos (p. 51). A avaliação de tais pesquisas a partir de padrões aceitos conduziria à conclusão de que não há um único padrão universal:

Observe o contexto da afirmação. ‘Vale tudo’ não é o único ‘princípio’ de uma nova metodologia, recomendada por mim. É a única maneira pela qual aqueles que estão firmemente compromissados com padrões universais e desejam compreender a história em seus termos podem descrever a minha explicação das tradições e das práticas de pesquisa […] Se essa explicação é correta, então tudo o que um racionalista poderá dizer sobre a Ciência (e sobre qualquer outra atividade) é: vale tudo.

A crítica feyerabendiana do Preceito Racionalista do monismo metodológico não afirma a violação absoluta de princípios metodológicos. Tradições científicas poderiam se tornar padronizadas a ponto de abarcar regras fixas.179 Todavia, essa uniformidade seria rara e desapareceria em períodos de revoluções teóricas. Mesmo pesquisas realizadas no âmbito de tais tradições chegariam à situação do vale tudo (p. 52). Feyerabend também não recusa que mudanças científicas possam ser

Em 4.4.1 e 4.4.2 discutimos a forma como Feyerabend explica esse processo de “simplificação” da ciência. 179

201

racionalmente justificadas, embora assevere que a racionalidade da mudança científica exige “argumentos dialéticos” e não “um conjunto estabelecido de padrões”.

3.3.2.4.2. Um (circunstancial) princípio (antiautoritário) (1981 e 1982) Em março de 1981, Teresa Ordunya encaminhou uma miscellanea de ‘Quinze Questões a Feyerabend’.180 Nas ‘Questões’ 1 e 7, o filósofo responde, respectivamente, à formulação de um anarquismo epistemológico no Contra o Método e à recepção dessa proposta pela audiência filosófica, além da leitura do vale tudo como um princípio antiautoritário. Em 2 de fevereiro de 1982, Feyerabend concedeu uma entrevista a Guitta Pessis-Pasternak, publicada dois anos depois no volume 14 da Unter dem Pflaster liegt der Strand, editada por Hans Peter Duerr.181 A entrevista foi reimpressa, também em 1984, nas Entretiens avec “Le Monde”. Feyerabend explicou que seu anarquismo consistia em uma conclusão obtida após uma reflexão nos termos racionalistas. Além disso, recusou ser um anarquista e assinalou o caráter circunstancial da proposta do anarquismo epistemológico. A) ‘Questões’ 1 e 7 de Teresa Ordunya

QUESTÃO 1 - O Contra o Método atordoou uma parte da audiência filosófica. Você considera que a formulação explícita da anarquia epistemológica, como você a propôs, consistia em uma boa ‘propaganda’ para ‘vender’ algo além do que um método de pensar, por exemplo, uma ação vital? PKF. – Contra o Método não formula qualquer posição, menos ainda um ‘anarquismo epistemológico’. Ele ataca posições familiares (como o positivismo, o racionalismo crítico, o neohegelianismo) com fatos que se encaixam aos padrões daquelas posições, e conjectura que a única coisa que um amante de princípios pode dizer quando pretende levar esses fatos em consideração é ‘vale tudo’. ‘Vale tudo’ não é um princípio que eu defenda, afinal, o mundo é complexo demais para se capturar através de algo imperfeito como um ‘princípio’; é o único princípio que resta ao racionalista (positivista, neohegeliano etc.) que leva a história (no sentido deles ou no meu) em consideração. Tal situação já era conhecida no século XIX. Para Ernst Mach, existe a prática da pesquisa; existem várias ‘regras de ouro’ que funcionam em um caso, falham em outros; existem exemplos de grandes cientistas – mas não existem princípios. Einstein concorda (ver a citação na página 18 de Contra o Método).182 Uma ‘audiência filosófica’ (penso que

180

Material completo disponível em: http://www.driftline.org/cgi-bin/archive/archive_msg.cgi?file=spoonarchives/feyerabend.archive/feyerabend_1998/feyerabend.9804&msgnum=13&start=1129 181 Feyerabend menciona Hans Peter Duer, sobretudo, quando se refere à Festschrift publicada (em dois volumes) em 1980/1981 (ver DC, p. 103; AR, p. 333; MUNÉVAR 1991, p. xx). 182 Feyerabend se refere à seguinte passagem, na página 33 da 3ª edição em português: “‘As condições externas’, escreve Einstein, ‘que são colocadas para [o cientista] pelos fatos da experiência não lhe

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você quer dizer uma audiência de professores de filosofia, pois não restam filósofos nesse mundo), evidentemente, ficará atordoada quando confrontada com essa situação, do mesmo modo que uma esposa fiel fica atordoada ao saber da infidelidade do marido. A ignorância (em relação ao que ocorre de fato) é a causa em ambos os casos. Você sugere que eu deveria ter tentado remover essa ignorância com mais cautela – e você pode estar com a razão. […] QUESTÃO 7 – No final dos anos 1960 e na década de 1970, assistimos a uma crise da autoridade em todos os níveis. Você descreveria seu princípio ‘vale tudo’ como o cerne de uma ação antiautoritária? E como você define ação antiautoritária? PKF. – Como expliquei na resposta 1: ‘vale tudo’ não é um princípio que eu defenda. Mas eu diria que uma ação antiautoritária depende da natureza da autoridade, da natureza do poder em questão, dos desejos daqueles que vivem sob a autoridade (existem muitos lugares onde as pessoas amam a autoridade que as oprime) e de muitas outras coisas. Falar sobre tais assuntos de forma genérica é superficial e também imprudente, afinal, assume que ideias insignificantes que pululam nos escritórios dos intelectuais são o sumo adequado para pessoas com as quais jamais encontrou, que não conhece e com as quais sequer saberia como se comunicar.

B) Duas questões de Guitta Pessis-Pasternak

Por que o senhor diz que ‘o anarquismo teórico é mais propício ao progresso do que as doutrinas fundadas sobre a lei e a ordem’? Utilizei a palavra ‘anarquismo’ em um sentido bem preciso, ou seja, aquele que lhe daria um ‘racionalista’ que analisasse todos os procedimentos elaborados pelos cientistas a fim de chegar às suas descobertas, e que diria: ‘Mas é pura anarquia!’ […] “Não contente de ser um anarquista que joga o jogo da razão a fim de minála, o senhor se proclama um dadaísta desenvolvido, para o qual, ‘tudo é bom’… Não me considero um anarquista, mesmo tendo escrito um livro anarquista. Igualmente, mesmo que tenha defendido a epistemologia anarquista, isso não quer dizer que eu a adore. Parecia-me indispensável defendê-la, já que tantos cientistas, defensores da razão, encontram-se do outro lado. Quis mostrar que seus raciocínios não eram tão irredutíveis quanto pretendiam. Qual a melhor maneira de demonstrar isso? Defendendo um ponto de vista contrário. Mas eu nunca revelei minha própria opinião” (PKF 1993, pp. 103-104).

3.3.2.4.3. Tutto fa brodo e o método anárquico (1984) Durante a primavera/verão de 1984, Feyerabend manteve uma interlocução frequente com Grazia Borrini.183 Na entrevista publicada em março de 1985 na revista

permitem deixar-se restringir em demasia, na construção de seu mundo conceitual, pelo apego a um sistema epistemológico. Portanto, ele deve afigurar-se ao epistemólogo sistemático como um tipo de oportunista inescrupuloso’” (CM3, p. 33). 183 Ver nota referente à parte B3 da seção 2.1.2.2.

203

SE – Scienza/Esperienza, ele recusou a paternidade de um método anarquista para a ciência e considerou a incorreção de leituras do Contra o Método:

G.B.: Para dizer a verdade, alguns atribuem a você a paternidade de um dado método anárquico do ‘vale tudo’ (‘tutto fa brodo’), malgrado suas explícitas considerações de que, efetivamente, isso não refletia seu objetivo. Ainda há algo a comentar a propósito? PKF. Apenas que as pessoas não sabem ler, e isso não é verdade apenas nesse caso particular. Fiquei surpreso ao ler algumas críticas ao meu livro. Disse a mim mesmo: “Deus do céu, como podem dizer que eu afirmei tal coisa?”. Reli meu texto e percebi que afirmava exatamente o contrário atribuem a mim. No entanto, isso não é uma novidade. Muitos afirmam que Aristóteles disse isso e aquilo. Mas, se formos ver o que Aristóteles disse, encontramos algo como: ‘uma pessoa seria tola se acreditasse nisso e naquilo’. Recordo que quando eu tinha quinze anos ou menos admirava muitíssimo o trabalho de Ernst Mach… o qual lia à noite, no frio, em um quanto quase sem luz… e, como é natural, esqueci-me completamente disso, até o momento em que senti que não tinha mais motivo para condenar Mach como um positivista, alguém que só acredita nos dados dos sentidos, que rejeita a especulação, que é ingênuo e parcial, e pensei que eu me lembrava dele forma diferente. Pois bem, voltei a lê-lo e, na verdade, ele recomenda especulações e a formulação de hipóteses ousadas... isso é claro como luz, mas as pessoas entendem o contrário. Portanto, não surpreende: algumas pessoas não leem – e se não o fazem deveriam se calar (ou, pelo menos, não tenho ideia de como elas leem…).

3.3.2.4.4. A impossibilidade de teorias da ciência (1987) Feyerabend considerava o Adeus à Razão “uma outra colagem”, assim como o Contra o Método (MT, p. 191). O capítulo final daquele escrito de 1987 traz um título homônimo ao livro e revisita tanto o Wider den Methodenzwang (3ª edição alemã do Contra o Método, de 1986) como o Erkenntnis für Freie Menschen (versão preliminar alemã de A Ciência em uma Sociedade Livre, de 1976). Também responde a críticas incluídas nos volumes da compilação comemorativa Versuchungen. Aufsätze zur Philosophie Paul Feyerabends, de 1980/1981. Na seção “II – A Estrutura da Ciência”, Feyerabend discute consequências do Contra o Método quanto a dois tópicos particulares: (A) a estrutura do raciocínio científico e (B) o papel de uma filosofia da ciência. Sobre (A), Feyerabend afirma (p. 334):

i. ii.

“os eventos e resultados que constituem as ciências não têm qualquer estrutura em comum”; “não há elementos que ocorram em todas as investigações científicas”.

204

Os desenvolvimentos científicos teriam diferentes características entre si as quais permitiriam explicar por que e como eles obtiveram sucesso. Entretanto, nem todas as conquistas científicas teriam a mesma estrutura. Por isso, procedimentos úteis em certas circunstâncias poderiam ser prejudiciais em outros momentos: “A pesquisa bem sucedida não obedece a padrões gerais; ela ora utiliza um truque, ora outro, e os movimentos que a fazem avançar nem sempre são conhecidos por aqueles que o fizeram”. Sobre (B), comenta:

Uma teoria da ciência que planeje padrões e elementos estruturais de todas as atividades e as autorize por referência a alguma teoria da racionalidade pode impressionar pessoas de fora – mas é um instrumento por demais grosseiro para as pessoas envolvidas, isto é, para os cientistas que estão enfrentando um problema de pesquisa concreto.

Isso significa que teorias da ciência não poderiam realizar mais do que listar regras práticas, exemplificar condutas a partir da história, discutir várias formas de proceder ou revelar a complexidade inerente à pesquisa científica. Longe de pretender normatizar a atividade científica, teorias da ciência apenas ajudariam os cientistas a reconhecer a riqueza histórica da ciência, e a não temer violar normas metodológicas:

Uma ‘teoria’ do conhecimento que tenha a intenção de fazer mais do que isso perde o contato com a realidade. Não só suas regras não são usadas pelos cientistas, mas elas tampouco podem, de alguma forma, ser utilizadas em todas as circunstâncias (pp. 334335).

O “Adeus à Razão” sintetiza a tese do Contra o Método como uma crítica à convicção de que todos os processos científicos possuem uma estrutura comum e seguem as mesmas regras universais (p. 336). O livro afirmaria, com isso, a impossibilidade de teorias gerais da ciência. Para Feyerabend, regras práticas poderiam tanto ajudar quanto desvirtuar o processo de pesquisa:

205

Quanto ao slogan ‘vale tudo’, que certos críticos atribuíram a mim para depois atacálo, não é meu e não e eu não tinha a intenção de resumir os estudos de caso de [Contra o Método e A Ciência em uma Sociedade Livre]. Não estou procurado novas teorias da ciência. Estou perguntando se a busca por tais teorias é um empreendimento sensato e concluo que não é: o conhecimento que precisamos para entender e fazer progredir a ciência não vem das teorias, ele vem da participação (p. 337).

3.3.2.4.5. A singularidade das pesquisas (“Introdução à edição chinesa” de 1988) A “Introdução à edição chinesa” do Contra o Método, incluída na segunda versão do livro, em 1988, detalha ainda mais certos aspectos da obra. Feyerabend reforça que a tese básica concerne ao reconhecimento da singularidade das pesquisas: “os fatos, operações e resultados que constituem as ciências não têm uma estrutura comum; não há elementos que se verifiquem em todas as investigações científicas e só nelas” (CM2, p. 11). Desenvolvimentos científicos concretos não poderiam ser descritos de forma idêntica tampouco seguiriam modelos gerais. Dentre as consequências daquela tese encontramos a compreensão do caráter complexo das conquistas científicas e da natureza fragmentada da ciência:

i. ii. iii. iv. v. vi.

“[…] os êxitos científicos não podem ser explicados de maneira simples” (p. 12); “[…] o sucesso da ‘ciência’ não pode ser usado como argumento para a abordagem de problemas ainda por resolver de acordo com modelos-padrão”; “[…] a ‘não cientificidade’ dos modos de proceder não é um argumento para os pôr de fora”; “[…] o público pode participar na discussão sem perturbar as vias para o êxito já existentes” (p. 13); “[…] podem existir muitas espécies de ciência”; “A ciência do primeiro-mundo é uma ciência entre muitas outras” (p. 14).

A “Introdução à edição chinesa” também revela que o Contra o Método teve como motivações questões “de ordem humanitária e não intelectual”. Ele visava defender modos de vida não científicos e, para tanto, assinalou os prejuízos materiais e espirituais da imposição da tradição ocidental: “O ‘progresso do conhecimento’ significou em numerosos lugares o extermínio do espírito”. Por fim, descobrimos que a crítica feyerabendiana ao ‘conto de fadas’184 do Único Método não implicaria um ataque à própria ciência, “uma das mais maravilhosas invenções do espírito humano”

184

Para o uso feyerabendiano dessa imagem, ver PP3, cap. VIII.

206

(p. 15). O Contra o Método envolveria, sobretudo, um ataque a ideologias que usam a ciência como forma de “extermínio cultural”.

3.3.2.4.6. Repercussões do Contra o Método (1989) Feyerabend publicou o extenso texto “Über die Methode: Ein Dialog” no volume 3 da edição de 1976 da revista Unter dem Pflaster liegt der Strand. O diálogo foi reimpresso, três anos depois, na coletânea em holandês Voraussetzungen und Grenzen der Wissenschaft, organizada por Gerard Radnitzky e Gunnar Andersson. A reimpressão desse livro, em inglês, ocorreu no mesmo ano como The Structure and Development of Science. Para a edição italiana do mesmo, intitulada Dialogo sul Metodo (1989), o filósofo adicionou um diálogo inédito (ainda entre os personagens A e B). O diálogo 2 da edição italiana de 1989 foi convertido no Terceiro Diálogo da coletânea Three Dialogues on Knowledge, lançada em 1991. No trecho a seguir, Feyerabend (o personagem B) comenta retrospectivamente o impacto pessoal e editorial do livro de 1975:

A. E Contra o Método? […] B. Foi o maior erro da minha vida. Na verdade, nunca pensei que Contra o Método fosse causar tanta comoção – até o momento já foi traduzido para dezesseis idiomas, o mais recente sendo o romeno e a versão coreana sairá logo. Foram publicadas resenhas, críticas e análises em periódicos de expressão, por exemplo na revista Science, que ao final enviou um fotógrafo para me retratar com meu pôster do King Kong ao fundo; também na New York Review of Books e por aí vai. Desconheço a maior parte das críticas endereçadas a mim, pois não leio revistas intelectuais; amigos enviaram para mim algumas delas – eram, no geral, de uma burrice extrema. Jamais tinha encontrado algo assim antes, afinal, minhas discussões iniciais aconteceram em círculos restritos com pessoas que eu conhecia bem e que me conheciam bem. Fui surpreendido e caí no erro de ser sugado pelo debate. Foi uma perda de tempo e de energia (TDK, p. 158; DM, p. 115).

3.3.2.4.7. Uma teoria da desordem (os Dibbattito de 1992) Entre 4 e 8 de maio de 1992, Feyerabend proferiu um ciclo de palestras na Universidade de Trento, Itália. As duas perguntas reproduzidas abaixo, feitas no encerramento do evento, exploram a natureza e sentido do anarquismo/dadaísmo e da máxima vale tudo contidos no Contra o Método. 207

QUESTÃO: Eu gostaria que você explicasse o subtítulo de seu Contra o Método. Você escreveu ser um anarquista, e além disso a partir de um ponto de vista ‘dadaísta’. FEYERABEND: O título não passa de uma brincadeira. Veja bem, o que é anarquismo? Desordem. O que é teoria? Ordem. Combinar ambos é um artifício dadaísta endereçado àqueles anarquistas que desejam ser anarquistas e, além disso, possuem uma teoria – um empreendimento impossível. Um anarquista italiano certa vez escreveu para mim. Pediu que contribuísse para uma série de manifestos sobre anarquismo. Respondi com uma carta irreverente. Pois bem, ele a publicou – mas a reduziu a um sisudo parágrafo de louvação. Ora, se é isso o que um anarquista faz, então bye-bye para o anarquismo! Há ainda um segundo motivo pelo qual eu usei o subtítulo: estou convencido de que um filósofo da ciência que crê em leis da razão, e que enfrenta todo o esplendor da história da ciência, ficaria tão aturdido que diria que a ciência é pura anarquia. QUESTÃO: Estou ciente de toda a discussão ocorrida entre você e seus críticos sobre sua famosa sentença ‘vale tudo’ (‘tutto fa brodo’). Com frequência, você denunciou um certo mal-entendido, assinalando que esse não era seu verdadeiro ponto de vista, mas sim uma conclusão lógica de um ponto de vista teórico. Penso que também aqui na Itália você também é conhecido como aquele que crê no ‘vale tudo’. Desse modo, você poderia gastar um pouco mais de tempo comentando isso. FEYERABEND: Tutto fa brodo: é verdade. As coisas mais absurdas levam a grandes descobertas! Aqueles que pensam que coisas novas apenas podem ser descobertas trilhando vias claramente definida estão equivocados. Não é possível prever qual tipo de movimento despropositado te levará a uma nova ideia ou a uma nova descoberta. Esse movimento é ‘despropositado’ apenas quando comparado com a opinião geral da época na qual se vive […] Assim, ‘vale tudo’ significa ‘não restrinja sua imaginação’ – uma ideia completamente despropositada pode levar a um resultado extremamente sólido. Ademais, não restrinja sua imaginação pela lógica. Muitas teorias frutíferas, se analisadas com as lentes de aumento dos lógicos, são internamente inconsistentes. Mas os cientistas mostram o talento de contornar os pontos de conflito e avançar apesar deles. Afora isso, uma inconsistência é mortal apenas se você possui conceitos rígidos. Entretanto, conceitos são como barro – podem ser modelados de várias maneiras. Em suma, eu diria que ‘vale tudo’ (TS, p. 131).

3.3.2.4.8. A consulta a não especialistas (“Prefácio” de 1992) Em 1992, Feyerabend redigiu um novo Prefácio para a 3ª edição do Contra o Método (1993). O autor reconheceu diversas mudanças que ocorreram desde a primeira publicação da obra, em 1975 (CM3, p. 11). No âmbito político, o crescimento de “fome, insegurança, tensões nacionalistas, guerras e franco assassinato”, além de preocupações ambientais e a abertura do espaço universitários. No acadêmico, a consolidação dos estudos históricos sobre a ciência sem o propósito de analisar o passado a partir de critérios atuais e o reconhecimento dos equívocos de abordagens racionalistas (p. 12). Uma alternativa seria abordar a ciência segundo uma perspectiva sociológica: “Na sociologia, a atenção aos detalhes levou a uma situação em que o problema não é mais por que e como a ‘ciência’ muda, mas como se mantém unida” (p. 13). Mas o autor 208

entende que a “nova microssociologia” também não forneceria uma explicação geral (p. 15). Em suma, tais mudanças demandariam a formulação de uma nova filosofia baseada em novos conceitos. A questão mais importante desse cenário diria respeito à questão ciência versus democracia:

Ora, se a ciência não é mais uma unidade, se partes diferentes dela procedem de maneiras radicalmente diferentes e se as conexões entre essas maneiras são ligadas a episódios particulares de pesquisa, então projetos científicos têm de ser considerados individualmente […] Agências governamentais não mais financiam a ‘ciência’, financiam projetos particulares. Mas então a palavra ‘científico’ não pode mais excluir projetos ‘não científicos’ – temos de examinar o assunto em detalhe (pp. 15-16).

Feyerabend menciona que, atualmente, haveria uma maior abertura à pluralidade de opiniões alternativas. Entretanto, reitera que tanto filosofias dogmáticas quanto liberais possuem limites: “Não há soluções gerais”, ele afirma, abarcando se inclusive as próprias ideias impressas no Contra o Método:

[…] advirto mais uma vez o leitor de que não tenho a intenção de substituir princípios ‘velhos e dogmáticos’ por outros ‘novos e mais libertários’. Por exemplo, não sou nem populista, para quem o apelo ‘ao povo’ é a base de todo o conhecimento, nem relativista, para quem não há ‘verdades como tais’, mas apenas verdades para este ou aquele grupo e/ou indivíduo. Tudo o que digo é que os não especialistas frequentemente sabem mais do que os especialistas e deveriam, portanto, ser consultados, e que profetas da verdade (incluindo os que empregam argumentos) em geral são impelidos por uma visão que conflita com os próprios eventos que, supõe-se, essa visão estaria explorando (p. 17).

3.3.2.4.9. A trivialização da metodologia liberal (1994) Em Matando o Tempo, Feyerabend dedicou um capítulo exclusivamente para comentar alguns aspectos relacionados ao Contra o Método. Quanto à gênese da obra, comenta que ela surgiu como uma tentativa de sistematizar sua interlocução com Lakatos: “No fim dos anos 60 a editora inglesa New Left quis publicar uma coleção de meus escritos […] Assim encorajado, comecei a preparar o Contra o Método” (MT, pp. 148, 151). Ele descreve a obra como “uma colagem” de textos previamente publicados: “Organizei-a numa ordem adequada, acrescentei transcrições, substituí passagens moderadas por outras mais violentas e chamei o resultado de ‘anarquismo’” (p. 150). 209

Quanto às teses, comenta que a apresentação de uma concepção não seria apenas retórica. O livro insistiria i) na impossibilidade de capturar o “mundo da ciência” através de modelos e regras unitários; ii) na complexidade e a desunidade da ciência e do conhecimento; iii) no caráter não sistemático e especulativo da ciência; iv) na necessidade do controle público da ciência; v) na influência de ideias e instituições não científicas na ciência; vi) e na crítica da crença nos benefícios materiais da ciência. Quanto a isso, afirmou: “Há grandes benefícios, é verdade. Mas eles trazem também grandes desvantagens. E o papel da entidade abstrata ‘ciência’ na produção dos benefícios não é nada claro”. Quanto às repercussões acadêmicas, relembrou a larga discordância filosófica (raramente fundamentadas) em torno das teses do Contra o Método (p. 152).185 Os cientistas o atacaram em razão da defesa do valor cognitivo de instituições não científicas e da proposta do controle democrático da ciência. E, no âmbito pessoal, a evolução de um quadro depressivo em razão dos ataques direcionados ao livro (p. 155; ver 3.4.2.4): “Posto diante de um mundo que eu não compreendia, mas que parecia importante, comecei a pensar que eu poderia ter ‘algo a dizer’”. Por fim, quanto à atualidade/relevância do Contra o Método, lemos:

O que penso hoje do Contra o Método? Penso que os cientistas sempre agiram de uma maneira liberal e oportunista ao fazerem a pesquisa, embora geralmente falem de modo diferente ao pontificar sobre ela. Atualmente, isso já se tornou uma trivialidade entre historiadores da ciência (p. 158).

É importante sublinhar que Feyerabend não reclama qualquer originalidade sua em relação à tese do oportunismo científico, não obstante, julga valioso que outros pesquisadores notem a presença dela na prática científica (p. 159). Mas houve uma ideia expressa no Contra o Método que ele afastou, a saber: “culturas são entidades mais ou menos fechadas com seus próprios critérios e procedimentos, que elas têm valor intrínseco e que não devem sofrer interferência”. Feyerabend reconheceu a interação mutua e transformação cultural e propôs que “toda cultura é potencialmente todas as

“Muitos críticos me acusaram de inconsistência: sou um anarquista, disseram, e, no entanto, ainda argumento. Fiquei atônito com esta objeção. Alguém que se dirige a racionalistas certamente pode argumentar contra eles. Isto não significa que ele acredite que argumentos resolvam um problema, são eles que o creem. Deste modo, se os argumentos são bons (nos seus termos), eles devem aceitar o resultado […] Será que os filósofos estavam tão alheios à função de uma reductio as absurdum?” (MT, p. 153). 185

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culturas” (ver 4.3.2.4.3.2). Logo, notou que traços culturais seriam manifestações históricas e, por isso, não se justificariam ações políticas ou teorias que as protejam de interações: “[…] o objetivismo e o relativismo não são apenas insustentáveis como filosofias: são maus guias para uma colaboração cultural frutífera” (p. 160).

3.3.2.4.10. O fato do pluralismo metodológico na ‘Última Entrevista’ (1994) Feyerabend morreu em 11 de fevereiro de 1994, no Hospital Männedorf, Suíça. Entre 12:45 e 15:15 do dia 27 de janeiro, cerca de uma semana antes de ser colocado em coma induzido, já com a parte esquerda do corpo paralisada em razão de um câncer inoperável no cérebro, conversou com Joachim Jung. Comentou que o pluralismo metodológico era unicamente um fato histórico e que a compreensão de racionalidade ligada ao estabelecimento de regras para a pesquisa científica não se justificava:

J. Sua principal proposta foi a defesa de uma variedade de métodos. F. Não se tratava de uma proposta. Era tão somente uma afirmação de um fato. É assim que é. Basta olhar para a história das ciências. Compare o que disseram alguns físicos em um e outro momento particular, em cartas pessoais. Você encontrará todos os tipos de métodos. E isso não é uma posição filosófica. É estritamente uma questão de fato. [...] J. O que significa racionalidade na sua concepção? F. Um conjunto de regras que supostamente é preciso seguir e que diz: ‘Se assim, então ocorrerá isso e aquilo’. Por exemplo: ‘Sempre evite contradições’. Isso é uma parte importante da racionalidade. Mas cientistas evitam contradições desde o início tendo em vista purificar suas teorias, de modo que se tornem livres de contradições. Ora, não é tão bom ter uma teoria perfeitamente moldada. É preciso aplicá-la a diferentes contextos. Veja bem, certa vez eu estava em Hamburg com Carl Friedrich von Weizsäcker, que me convidara para proferir uma palestra lá. Naquela época, eu acreditava que fazia sentido defender certos procedimentos para as ciências. E eu tinha excelentes argumentos. Mas von Weizsäcker elaborou um relato histórico do aparecimento da mecânica quântica e isso se mostrou muito mais rico e muito mais valioso, de modo que percebi que aquilo do qual eu falava não passava de um sonho. Exatamente como [o líder comunista romeno Nicolae] Ceaucescu pretendeu colocar ordem em seu país, de modo que demoliu pequenas casas e erigiu seus monstros concretos. Quando von Weizsäcker passou a descrever o desenvolvimento da mecânica quântica, foi como se ele estivesse apontando para as pequenas casas, pois haviam sido empreendidos inúmeros pequenos passos. Niels Bohr disse: ‘Quando se empreende uma pesquisa, não se pode deixar amarrar a qualquer regra, sequer à regra da não contradição. É preciso ter liberdade completa’. Assim, logo que me explicou isso, percebi que meus argumentos eram excelentes, contudo, aqueles argumentos

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excelentes não contam quando se deseja lidar com algo que tem uma natureza rica, ou com outros seres humanos" (PKF 2000, pp. 161-162).186

3.3.3. Crítica da Tradição Racionalista: o Pluralismo Cultural (anos 1980) A crítica feyerabendiana do monismo metodológico acarretou reflexões de natureza ético-políticas atinentes ao privilegiado status cognitivo e cultural do saber científico.187 O A Ciência em uma Sociedade Livre abordou essa questão através do estudo referente ao relativismo e a posição da ciência e do racionalismo em uma sociedade democrática.188 Então, ele propôs um modelo participativo no qual os cidadãos informados e responsáveis deliberariam democraticamente acerca dos impactos (culturais, ambientais etc.) das ideias científicas na sociedade (2.2.1.2). Isso impediria que o público em geral continuasse sendo “explorado e tiranizado pelos intelectuais” (CSL, p. 99). No entanto, tal crítica à prevalência e centralidade da ciência decorria da negação de que o racionalismo científico fosse intrinsecamente preferível às demais tradições (p. 98). A principal consequência filosófica dessa defesa do relativismo democrático (3.5.1) seria a recusa da concepção de que ciência atuaria como o parâmetro epistêmico e cultural: “ela própria é uma tradição ou um aspecto de uma tradição” (p. 36). Contudo, Feyerabend encontrou no relativismo de Protágoras a forma adequada de expressar defender o pluralismo de tradições e valores (ver PRESTON 1995). Também analisou em nova ótica (em termos históricos e conceituais) o problema da estrutura e da autoridade da tradição racionalista (PP2, p. xii).189 Originalmente, tais investigações de Feyerabend foram suscitadas pelas revoltas estudantis na Califórnia (ver B2 na seção 2.1.2.2). O autor passou a questionar as pretensões intelectuais do racionalismo (CM3, p. 353) e essa reorientação na produção feyerabendiana implicou um esforço para pensar a noção proliferação também no âmbito cultural. É exatamente isso o que encontramos na tese basilar do Adeus à Razão (1987): “a diversidade é benéfica, a uniformidade diminui nossas alegrias e nossos recursos (intelectuais, emocionais e materiais)” (AR, p. 7). Poderosas tradições culturais se oporiam à essa perspectiva pluralista, pois, para elas, “a variedade precisa 186

Para o episódio, ver também a parte B1 da seção 2.1.2.2. Feyerabend denominou essa discussão de “Consequências políticas” (PE, p. 64; PP2, p. 25). 188 Em 1980, Feyerabend comentou: “O racionalismo significa o uso de (a) conceitos abstratos e independentes do observador que podem ser explicados independente da prática que a orienta e (b) uma lógica e uma metodologia estáveis” (FN, p. 311). 189 Um estudo sintético a respeito aparece em PE, pp. 35-38; reimpresso em de PP2, pp. 5-8. 187

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ter limites” definidos por leis morais e físicas. Em contraste, Feyerabend argumenta que as considerações teóricas sobre os riscos da fragmentação cultural seriam infundadas: a tendência à diversidade não seria apenas um traço da cultura contemporânea (p. 8) e várias ações se oporiam a ela: “Há fragmentação, mas há também uniformidades novas e poderosas”. Ele também rejeita a expansão global da cultura espiritual e material do ocidente:

O que está sendo imposto, exportado e mais uma vez imposto é uma coleção de ideias e práticas uniformes que têm o apoio intelectual e político de grupos e instituições poderosas. Hoje, formas de vida ocidentais já são encontradas nos cantos mais remotos do mundo, mudando os hábitos de pessoas que há umas poucas décadas não estavam sequer cientes de sua existência. As diferenças culturais desaparecem e artesanatos, costumes e instituições nativas vão sendo substituídos por objetos, costumes e formas organizacionais ocidentais (p. 9).

A busca por “uniformidade tecnológica, social e natural” se oporia à tendência à fragmentação cultural (p. 10) e acarretaria problemas ecológicos e destruição de valores: “Para muitas sociedades a aquisição do conhecimento era parte da vida; o conhecimento adquirido era relevante e refletia os interesses pessoais e do grupo” (p. 11). Nesse sentido, o pluralismo cultural feyerabendiano defenderia:

i. ii. iii. iv.

Diversidade de formas de vida: “[…] há muitas formas de viver […]”; Legitimidade epistêmica de culturas não ocidentais: “[…] culturas diferentes da nossa não são erros”; Adaptacionismo cultural: “[…] culturas diferentes da nossa […] são resultados de uma adaptação delicada ao meio específico”; Legitimidade existencial de tradições: “[…] culturas diferentes da nossa […] encontraram – e não perderam – os segredos de uma boa vida”.

3.3.3.1.

Elitismo intelectual e Relativismo Democrático

O texto “Democracy, élitism, and scientific method” (1980) preserva parte substancial das ideias do livro de 1978. Reitera que uma sociedade livre precisa de meios para supervisar e controlar suas instituições e que conselhos de cidadãos se responsabilizariam por avaliar inclusive os efeitos das instituições científicas (PP3, p. 218). Contudo, Feyerabend alega que o verdadeiro controle democrático da ciência não 213

se cumpriria se os próprios critérios de julgamento da ciência fossem científicos. Isso representaria uma forma de elitismo intelectual que intimidaria os leigos e reiteraria a posição cultural privilegiada dos experts. Os critérios e padrões de avaliação da ciência não poderiam ser estabelecidos unicamente por intelectuais ou cientistas, pois, em uma sociedade livre, cidadãos adotariam os valores de suas próprias tradições (p. 220). Tais considerações feyerabendianas revisitam a tese de que racionalistas não constituem um grupo intelectual e culturalmente superior: “Eles simplesmente presumem que suas próprias tradições de construção de padrões e de recusa de padrões são as únicas tradições que contam” (p. 221). Na leitura dele, os intelectuais ocidentais recusariam tradições diferentes baseados no dogma do êxito exclusivo de instituições científicas. Todavia, o autor critica a base da ideia da superioridade epistêmica da ciência ocidental. Primeiro, porque a ciência não seria “uniformemente melhor do que todas as alternativas” tampouco existiriam evidências indubitáveis sobre a superioridade do racionalismo ocidental. Segundo, os padrões científicos que elegem os resultados científicos valiosos seriam presumidos como certos (p. 222). Terceiro, a predominância de uma tradição científica não provaria que ela precisa ser aceita. Quarto, a ampliação do grupo da elite científica não implica qualquer diversificação cultural, mas somente o fortalecimento de “uma tradição particular”. Quinto, o relativismo democrático é contrário à imposição de uma forma de vida sobre outras, por isso defende a proteção de tradições não científicas de interferências externas. Em suma, Feyerabend considera que as decisões não seriam prerrogativas de experts, mas dos próprios cidadãos (p. 233). Feyerabend expôs três argumentos em favor do relativismo democrático: A) Argumento do direito à diversidade “As pessoas têm o direito de viver conforme vislumbram”, então, nenhuma instituição obrigaria os cidadãos a aceitar tradições contrárias aos seus interesses deles. A adesão à forma de vida científica não seria obrigatória: “A ciência e o racionalismo, nessa ótica, são instrumentos colocados à disposição das pessoas para a utilizarem como desejarem; elas não são condições necessárias da racionalidade, da cidadania ou da vida” (p. 224). B) Argumento da emancipação (social e individual) através da proliferação

Uma sociedade que mantém muitas tradições lado a lado tem muito mais chances de julgar melhor cada tradição específica do que uma sociedade monista. Ela tanto aumenta a qualidade das tradições como a maturidade dos cidadãos.

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C) Argumento da incompletude e dos equívocos da ciência “Concepções científicas não são apenas incompletas”, afirmou Feyerabend, “elas com frequências são errôneas”. Pressupostos teóricos que fundamentam argumentos e procedimentos científicos seriam inacessíveis sem o confronto com alternativas. Ao mesmo tempo, mesmo os cientistas discordariam entre si:

A lição a ser aprendida a partir desse fenômeno é que debates fundamentais entre tradições são debates entre leigos que não podem nem devem ser solucionadas por qualquer autoridade maior do que (uma vez mais) a autoridade do leigo, isto é, conselhos democráticos.

No início dos anos 1980 o corpus feyerabendiano insistiu na defesa do relativismo democrático contra a unicidade das tradições (p. 225). O autor ainda reforçou a tese segundo a qual as formas de vida não poderiam ser “impostas de cima para baixo” por uma “gang de intelectuais radicais”. Feyerabend argumenta que os especialistas deveriam inverter a lógica elitista com a qual operam e reconhecer que o valor mais importante em uma sociedade democrática é a decisão dos cidadãos, não modelos teóricos abstratos propostos por grupos de intelectuais.

3.3.3.2. Uma (histórica/empírica) tradição (abstrata/teórica) Em “O conhecimento e o papel das teorias” (1987), Feyerabend considerou impossível reduzir a diversidade da realidade a descrições gerais (AR, p. 127). Ele afirma que “nem todos vivem no mesmo mundo” e as diferenças de visões de mundo não seriam meras variações nas aparências dos eventos. Essa variedade poderia ser evidenciada através do estudo de épocas passadas, de culturas estrangeiras ou de idiomas diferentes (p. 129). O autor insiste que a própria sobrevivência dos indivíduos dependeria da aquisição de conhecimentos necessários para perceber e interpretar os fenômenos os quais comportariam fatores objetivos da situação específica e descrições subjetivas: “a objetividade aparente de ‘fatos’ familiares é resultado de treinamento combinado com esquecimento e apoiado por disposições genéticas”, lemos (p. 130). Assim, a posição feyerabendiana envolve duas premissas: i) o “conhecimento ordena os fatos” e ii) “formas diferentes de conhecimento geram esquemas diferentes de ordenação”. A primeira forma de conhecimento discutida são as listas (de costumes, regras, descrições, indivíduos, problemas etc.). Elas constituíam as bases do senso comum 215

grego e ofereceriam padrões de classificação “multidimensionais, mas estáticos” (p. 137). As descrições teriam exercido uma importante função na preservação de conhecimentos e na origem de eventos sociais. Então, representariam o único tipo de conhecimento relacionado às complexidades do pensamento e da ação humana (p. 140). Porém, os primeiros filósofos gregos teriam iniciado um processo de negação da riqueza fenomênica e da diversidade dos saberes. Para eles, “o mundo era simples, uniforme, sujeito a leis universais estáveis e o mesmo para todos”. Essa nova forma de compreender a realidade exigiu a formulação de novos conceitos e disciplinas, o que envolveu a eliminação de concepções distintas. A emergência das tradições teóricas se contrapôs às tradições “empíricas ou históricas” baseadas nas listas:

Os membros das tradições teóricas identificam conhecimento com universalidade, consideram as teorias verdadeiros portadores de informações e tentam raciocinar de uma maneira padronizada ou ‘lógica’. Querem colocar o conhecimento sob o comendo de leis universais. As teorias, segundo eles, identificam o que é permanente no fluxo da história e, com isso, fazem com que ele passe a ser anistórico. Eles introduzem um conhecimento genuíno, isto é, não histórico. Os membros das tradições históricas dão ênfase àquilo que é particular (isso inclui regularidades particulares, tais como as leis de Kepler). Eles utilizam listas, histórias, apartes, a razão pelos exemplos, a analogia e a associação livre e usam regras ‘lógicas’ quando é conveniente para seu objetivo. Também dão ênfase à pluralidade e, por meio dessa pluralidade, à dependência que os padrões lógicos têm da história (p. 144).

Feyerabend descreve as relações entre a tradição histórica e a tradição abstrata em quatro aspectos: i) As duas formas de tradição comportam padrões específicos de ordem e procedimentos. O racionalismo não introduziu ordem e sabedoria onde antes havia caos e ignorância; ele introduziu um tipo especial de ordem, estabelecido por procedimentos especiais e diferentes da ordem e dos procedimentos das tradições históricas.

ii) A implementação das tradições abstratas enfrentou dificuldades internas e externas. […] o racionalismo, a filosofia inerente à abordagem teórica, não conseguiu plenamente reduzir a abundância de formas de conhecimento que existiam quando ele entrou em cena (p. 145).

iii) Tais dificuldades não impediram o estabelecimento das tradições abstratas. Pois as dificuldades e debates que acabei de mencionar tornam-se insignificantes quando comparados com a constante expansão da civilização ocidental em todas as áreas do mundo (p. 146).

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Os racionalistas apostam que o conhecimento abstrato suplanta todas as tradições. Mas Feyerabend recusa essa independência das propriedades e dos temas. Segundo o autor, eles comportariam características dos “indivíduos, grupos e sociedade” (p. 147). As teorias também seriam “históricas no uso: a ciência e seus predecessores filosóficos são parte de tradições históricas especiais, e não entidades que transcendem a história”. Uma maneira encontrada de uniformizar o pensamento seria substituir termos complexos por noções abstratas simples. As designadas provas (racionais, lógicas, teóricas) se tornariam a própria medida de avaliação das tradições (p. 148). Alguns dos “admiradores mais sofisticados da ciência” considerariam o racionalismo uma tradição, entretanto, a veriam como única forma de vida capaz de explicar e transformar a realidade. Teorias científicas explicitariam a “ordem objetiva por trás da confusa abundância”. Por sua parte, Feyerabend considera que a prática científica não validaria essa concepção. As situações concretas vividas por indivíduos não se reduziriam a princípios abrangentes (p. 149): “abstrações são incapazes de ‘eliminar’ qualquer coisa” (p. 150). Ademais, a ideia de que as leis científicas independem dos interesses humanos eliminaria reflexões humanitárias na ciência e se basearia em pressupostos metafísicos realistas (por exemplo, objetividade e universalidade das teorias). A própria “sombra epistemológica” do realismo implícita na concepção da tradição abstrata/teórica não seria uniforme: “a ‘realidade que a ciência supostamente define e usa para ‘eliminar’ os ingredientes mais desordenados de nosso mundo está constantemente sendo redefinida para enquadrar-se à tendência em voga no momento” (p. 151). Diante disso, o argumento do sucesso científico como parâmetro da realidade perderia parte de sua força. Tanto os critérios de sucesso e o fracasso de um conhecimento como a validade de ideias seriam culturalmente dependentes (p. 152):

Observe que essa interpretação não nega a eficiência da ciência como provedora de tecnologias e mitos básicos; ela só nega que objetos científicos – e só eles – são ‘reais. Tampouco é afirmado que que podemos ficar sem as ciências. A interpretação indica que não podemos. Tendo entrado em um ambiente – e elaborado esse mesmo ambiente – no qual as leis científicas vêm para o primeiro plano, nós, isto é, cientistas e cidadãos comuns da Civilização Ocidental estamos sujeitos a seu comando. Mas as condições sociais mudam e as ciências mudam com elas. A ciência do século XIX negava a pluralidade cultural, a ciência do século XX, castigada pelos fracassos filosóficos e práticos (inclusive os fracassos do ‘desenvolvimento’) e pela invenção das teorias com ingredientes decididamente ‘subjetivos’, já não se opõe a ela (pp. 152-153).

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iv) A oposição entre tradições teóricas/abstratas e históricas/empíricas não é factual. Ao tentar criar um conhecimento que difere do ‘mero’ conhecimento histórico ou empírico, elas [tradições abstratas/teóricas] conseguiram encontrar formulações (teorias, fórmulas) que parecem objetivas, universais e logicamente rigorosas, mas que são usadas e, no uso, são interpretadas de uma maneira que entra em conflito com todas essas propriedades. O que temos é uma nova tradição histórica […].

3.3.3.3. R1, R2, R3… R11 O longo ensaio “Notas sobre o Relativismo” (1987) discute as formas como a diversidade cultural é encarada (AR, p. 27). O relativismo seria uma dessas maneiras de compreender o fenômeno da multiplicidade de formas de vida e teria se convertido em uma difundida opção de atacar a “tirania intelectual” da tradição científica. Contudo, mesmo o relativismo comportaria diferentes versões. A primeira delas concerne ao âmbito prático: “ideias, costumes e tradições diferentes dos nossos podem influenciar nossas vidas”. O relativismo prático comportaria dois elementos: i) parte factual: “como podemos ser influenciados” (p. 29); e ii) parte normativa: “como deveríamos ser influenciados”. Os elementos (i) e (ii) do relativismo prático levariam à formulação R1:

R1: indivíduos, grupos e civilizações inteiras podem lucrar ao estudar culturas, instituições e ideias estrangeiras, por mais forte que sejam as tradições que apoiam as suas próprias ideias (por mais forte que sejam os argumentos que servem de base a ela […].

R1 ainda se dividiria em uma vertente epistemológica e outra culturalista. A primeira afirma que “cientistas de um modo geral podem se beneficiar com um estudo de métodos e pontos de vista não científicos”. A segunda que “a civilização ocidental como um todo pode aprender muito com crenças, hábitos e instituições de povos ‘primitivos’”. Conforme o autor, R1 não recomenda a interação entre tradições tampouco converte o estudo de opiniões alternativas em uma regra metodológica. R1 somente sugere que o contato com outras concepções pode gerar resultados positivos. Haveriam quatro reações a R1: i) Rejeição total

Isso ocorre quando uma visão de mundo fortemente consolidada, que influencia a vida cotidiana das pessoas que nela creem, é considerada a única medida aceitável de verdade e excelência (p. 30).

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ii) Rejeição parcial

Isso ocorre em culturas pluralistas que contêm partes que interagem fragilmente (religião, política, arte, ações privadas ou públicas etc.), cada parte sendo guiada por um paradigma bem definido e exclusivo (p. 31).

iii) Posição liberal […] estimula um intercâmbio de ideias e atitudes frente a diferentes domínios (culturas), mas os sujeita às leis que regulam o domínio (cultura) em que se entrou (p. 32).

iv) Aceitação […] até mesmo as premissas mais básicas, nossas crenças mais sólidas e nossos argumentos mais conclusivos podem ser mudados – aprimorados, perderem parte do seu poder ou passarem a ser considerados irrelevantes – por comparação com aquilo que, à primeira vista, parece loucura total.

As reações (i), (ii), (iii) e (iv) a R1 seriam especialmente interessantes quando envolvem a apreciação das teorias e progressos científicos.190 Assim, Feyerabend aponta as teses I, II e III contra as críticas à aplicação de R1 ao âmbito científico: I) Valores não corroboram a ideia da superioridade da ciência e da tecnologia Feyerabend explica que valores dizem respeito ao tipo de vida que os indivíduos/culturas desejam ou deveriam levar. Portanto, a especificação do valor de condutas ou concepções alternativas não envolveria uma análise factual (p. 34). Do mesmo modo, as divergências entre formas de vida envolveriam tensões sobre valores de vida. Uma forma de enfrentar essa situação seria empregar o poder e impor uma norma que elimina a postura diferente. Outra forma seria elaborar diretrizes teóricas que levariam à solução do conflito (p. 35). Uma terceira via defenderia a necessidade de um intercâmbio aberto entre as partes envolvidas (p. 37). Feyerabend julga que o uso do poder é uma ideia popular (p. 34), que a teorização é uma postura arrogante (p. 45) e que apenas o estímulo à interação responderia à complexidade das situações reais e às necessidades do mundo moderno (p. 38). Ele afirma que valores influenciariam “Por ‘ciência’ quero dizer a ciência moderna, natural e social (teórica e aplicada), como é interpretada pela maioria dos cientistas e por uma grande parte do público educado: uma investigação que visa à objetividade, usa observação (experimento) e razões contundentes para estabelecer seus resultados e é guiada por regras bem definidas e logicamente aceitáveis” (AR, p. 33). 190

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tanto a “aplicação do conhecimento” como os critérios de avaliação do sucesso da ciência (pp. 39-40). Então, posições acerca do valor e o uso da ciência envolveriam “decisões existenciais”, isto é, escolhas sobre a forma de “viver, pensar, sentir, comportar-se de certa maneira”. Para concluir, o filósofo considera que tampouco os produtos materiais e espirituais da ciência seriam culturalmente definitivos: “Eles são bons ou maus, úteis ou destrutivos, dependendo do tipo de vida que queremos viver”.

II) Fatos não corroboram a ideia da superioridade da ciência e da tecnologia Feyerabend reconhece o êxito do materialismo científico, mas nega que as vantagens de uma visão científico-tecnológica validem a exclusão de outras tradições. Tal apreciação da excelência científica apenas poderia ser efetivamente respondida após um confronto entre procedimentos científicos e não científicos (p. 41). Qualquer suposição da superioridade da tradição científica desprovida desse confronto careceria, ela mesma, de uma fundamentação científica. O autor também afirma que a eliminação de alternativas não científicas baseada nos sucessos da ciência seria incorreta e irrelevante (p. 42). Elas não teriam decorrido de “pesquisas comparativas sistemáticas” com os resultados de outras culturas: “Inúmeros procedimentos foram anunciados com muita retórica e impostos a um público incauto” (p. 43). Também refletiriam o uso de conceitos, instrumentos etc. cuja validade também seria historicamente circunscrita.

Podemos concluir que não existe nenhum argumento científico contra a utilização ou uma nova apresentação de ideias não cientificas ou científicas que, ao ser testado, deixe claro que lhe falta alguma coisa; mas existem realmente argumentos científicos (plausíveis, mas nunca conclusivos) a favor de uma pluralidade de ideias, inclusive absurdos não científicos e partes rejeitadas de conhecimento científico. Isso dá mais apoio à ideia do conhecimento local […] (p. 47).

III) Métodos não corroboram a ideia da superioridade da ciência e da tecnologia Feyerabend discorda que a aplicação de um suposto método científico justificaria a exclusão de formas de vida não científicas. Ele diz: “a unidade fictícia ‘ciência’, que supostamente exclui tudo o mais, simplesmente não existe”. Contra essa crença na homogeneidade e unidade do pensamento e da prática científica, o filósofo sustenta que os cientistas: i) empregaram concepções oriundas de campos não científicos, ii) elaboraram noções distintas dos conhecimentos estabelecidos e do saber do senso comum e iii) adaptaram suas atividades a diferentes objetivos. Com efeito, o autor de Contra o Método reforçou a crítica ao monismo metodológico e elogiou o 220

oportunismo científico: “Não há um único ‘método científico’, mas sim uma grande quantidade de oportunismo; vale tudo […]”. Em outros termos, a pesquisa científica efetiva não se definiria segundo padrões epistemológicos estáticos (p. 49). As teses I, II e II de Feyerabend contra as críticas a R1 mostram que o relativismo prático seria tanto benéfico como estruturante do conhecimento científico. Assim, a tentativa racionalista de excluir tradições não científicas seria reflexo de uma ideologia preconceituosa (p. 48). No sentido oposto dessa postura, o autor entende que todas as culturas possuem saberes que podem favorecer a humanidade, de maneira que R1 seria tanto “razoável” como uma “parte significativa das ciências não inibida pela ideologia” (p. 50). Ideias e práticas de culturas não científicas também seriam parte de investigações científicas, logo, não haveria conflito entre a pesquisa científica efetiva e o “pluralismo cultural”. Entretanto, essa defesa de R1 acarretaria também consequências práticas quando se trata de sociedades democráticas (que valorizam a opinião pública) e pluralistas (que valoriza a variedade de formas de vida).

R2: sociedades dedicadas à liberdade e à democracia devem ser estruturadas de uma forma que dê a todas as tradições oportunidades iguais, ou seja, o mesmo acesso a recursos federais, às instituições educacionais, às decisões básicas. A ciência deve ser tratada como uma tradição entre muitas, não como um padrão para avaliar aquilo que é aceito, aquilo que não é, aquilo que pode e aquilo que não pode ser aceito (pp. 5051).

R2 aponta que i) em espaços democráticos e plurais ii.a) a ciência não pode ser considerada uma instância superior às demais e ii.b) todas as tradições devem receber as mesmas oportunidades. Então, R2 evidencia uma delimitação cultural definida: “Não sou a favor da exportação da ‘liberdade’ para regiões que estão vivendo muito bem sem ela e cujos habitantes não demonstram qualquer vontade de mudar suas formas de vida”. Ademais, ajuíza a igualdade de oportunidade para todas tradições (e não a igualdade de acesso a uma única tradição) (ideia (ii)): “até mesmo os modos de vida mais estranhos podem ter algo a oferecer” (p. 52). Em termos mais gerais:

R3: As sociedades democráticas devem dar direitos iguais a todas as tradições e não apenas oportunidades iguais (pp. 50-51).

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R3 propõe abstratamente a igualdade de direitos das tradições. Essa proposta surge independentemente de debates nos quais participam as partes interessadas. Mesmo assim, recusa-se qualquer supremacia cultural dos especialistas em sociedades democráticas. Pelo contrário, eles precisariam adaptar suas atividades às tradições às quais servem (p. 53). Feyerabend esclarece que essa crítica aos experts em nada restringe a liberdade de teorizar dos cientistas. (p. 54). Espaços democráticos precisariam proteger as tradições científicas das tradições não científicas tanto quanto “tradições não científicas precisam de proteção por parte da ciência”. Em seguida, o autor busca compreender a influência de costumes, crenças e ideias nas pessoas que os consideram válidos. A formulação R4 aponta que a validade de costumes, crenças e ideias depende tanto do poder quanto dos direitos:

R4: Leis, crenças religiosas e costumes governam, como reis, em territórios restritos. Seu governo depende de uma autoridade dupla: de seu poder e de esse poder ser legítimo; as regras são válidas em seus domínios (p. 56).

Feyerabend associa R4 à posição de Protágoras. Na leitura feyerabendiana, o sofista admitiria a necessidade de leis, contudo, acrescentaria que essas leis seriam adaptáveis às demandas sociais. O autor destaca essa noção para evidenciar que o relativismo não implica a recusa da existência de normas: “podemos ser relativistas e ainda assim defender e fazer com que se cumpram as leis e instituições” (p. 57).

R5: ‘O homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são por aquilo que são e daquelas que não são por aquilo que não são’ (Protágoras, 152a1 ss.).

R5 ilustra a sentença protagórica que fundamenta o relativismo de Feyerabend. Conforme ele, R5 poderia ser lida como uma premissa (R5a) que comporta consequências precisas (interpretação platônica) ou como uma regra prática (R5b) na qual a própria interpretação da sentença do sofista seria parte da aplicação o princípio:

R5a: seja o que for que pareça a uma pessoa, é para aquela pessoa a quem parece (idem, 170a3 ss.) (p. 58).

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R5b: que as leis, costumes e fatos que estão sendo colocados diante dos cidadãos em última instância dependem de pronunciamentos, crenças e percepções de seres humanos e que questões importantes deveriam, portanto, ser dirigidas às (percepções e pensamento das) pessoas envolvidas e não a agências abstratas e especialistas distantes (p. 61).

Feyerabend analisa R5a e R5b. Os racionalistas criticariam R5 (na versão R5a) por três motivos: i) é falsa, uma vez que as pessoas preferem a opinião de especialistas do que as suas próprias; ii) leigos não fazem predições confiáveis como os especialistas; iii) a verdade não é uma questão de opinião individual. Mas Feyerabend defende R5 dessas críticas afirmando R5b. Contra (i), afirma que o parecer de especialistas são uma outra forma de opinião; contra (ii), que apenas uma comunidade que já assume a superioridade do parecer dos especialistas admite que leigos não fazem predições confiáveis; e, contra (iii), que todos os tipos de conhecimento são incompletos e mutáveis. No geral, o Protágoras de Feyerabend reabilitaria o valor do senso comum em oposição à hegemonia dos sistemas abstratos (p. 65). Assim, em uma democracia, a verdade não refletiria a definição dos especialistas, mas a decisão da assembleia: “É assim que a teoria da verdade e da realidade de Protágoras pode ser usada para explicar o funcionamento da democracia direta” (p. 66). Como tal, o relativismo democrático de Feyerabend projeta um retorno ao senso comum e à superioridade da assembleia pública sobre o parecer dos experts.191 Feyerabend reconhece que a presença de especialistas nas sociedades é algo comum, contudo, entende que o problema do privilégio social de autoridades epistêmicas surgiu na Grécia clássica. Naquela época, teriam se consolidado duas posturas diante da relação entre especialistas e as autoridades tradicionais. A abordagem autoritária entendia que: i) especialistas produzem saberes relevantes; ii) especialistas possuem competências relevantes; iii) os saberes e competências são inquestionáveis por leigos. A abordagem democrática considerava que: i) os conhecimentos dos especialistas se restringiam a domínios restritos; ii) tais conhecimentos limitados não poderiam ser tomados como referentes à totalidade dos fenômenos; iii) a introdução desses conhecimentos especializados não poderia estar em

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No Prefácio à 3ª edição do Contra o Método Feyerabend esclareceu que não deveria ser considerado um populista “para quem um apelo ‘ao povo’ é a base do conhecimento”: “Tudo o que digo é que os não-especialistas frequentemente sabem mais do que os especialistas e deveriam, portanto, ser consultados” (CM, p. 17).

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confronto com os interesses da sociedade. Logo, enquanto a primeira louva as opiniões de “superespecialistas”, a segunda considera que os cidadãos são os “melhores juízes” para suas próprias necessidades (p. 72). Feyerabend adiciona, em oposição à abordagem autoritária, estas quatro considerações: i) as opiniões dos especialistas não convergem quando se trata de questões básicas; ii) há tanta divergência de opinião entre especialistas quanto encontramos entre leigos; iii) especialistas comentem erros; iv) as opiniões dos especialistas consideram estritamente aspectos relativos aos seus respectivos campos de atuação; e v) comumente a opinião dos especialistas se distancia dos problemas concretos. Nesse horizonte, reafirma que leigos podem identificar falhas dos especialistas, especialmente porque em sociedades democráticas a informação não se restringe a grupos fechados: “a informação flui livremente de um cidadão para outro” (p. 73). O julgamento dos leigos não estaria imune a erros, contudo, eles não seriam ocultados pela comunidade de especialistas e poderiam ser superados. Isso leva a R6:

R6: os cidadãos, e não grupos especiais, têm a última palavra na decisão daquilo que é verdadeiro ou falso, útil ou inútil para sua sociedade (p. 74).

R6 é composta de duas partes. A parte relativista afirma que diferentes perspectivas sobre o mundo são aceitáveis, ao passo que a parte democrática mostra que as consequências públicas dessas perspectivas de mundo são deliberadas coletivamente. Então, seria possível viver em uma tradição não científica sem que isso eliminasse a própria forma de vida objetivista, isto é, aquela interessada em elementos independentes dos contextos históricos: “objetivismo é tratado como uma tradição entre muitas” (p. 75). Feyerabend assevera a inconsistência de privilegiar uma tradição cultural historicamente delimitada que sequer alguma vez erigiu uma verdade científica unitária e objetiva. Como ele escreve: “As teorias ou pontos de vista que definem os processos em todos esses domínios colidem ou deixam de fazer sentido quando universalizados” (p. 76).

R7: o mundo, como é descrito por nossos cientistas e antropólogos, consiste de regiões (sociais e físicas) com leis e concepções especificas da realidade […] A tentativa de impor uma verdade universal (uma maneira universal de descobrir a verdade) provocou

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desastres no domínio social e levou a formalismos vazios combinados com promessas que nunca serão cumpridas nas ciências naturais (p. 77).

Inicialmente, Feyerabend explica que R7 se aplica a um âmbito limitado. Inserese no interior de uma tradição que discute a validade e as limitações do objetivismo segundo certas regras. Em seguida, reforça que essa tradição representa uma ampliação da própria pluralidade de abordagens, ao invés de uma eliminação dessa pluralidade. Então, o relativismo democrático feyerabendiano planeja uma posição política pautada pelo princípio da participação dos cidadãos. A discussão pública de saberes especializados legitima a variedade de formas de vida, além de ir ao encontro da posição segundo a qual os cidadãos devem ter o direito viver de forma “feliz e satisfatória” (p. 78). Contudo, a abordagem democrática não determina condições para a interação entre culturas: “o intercâmbio cultural é responsabilidade dos participantes, não de pessoas de fora”, lemos (p. 79). Haveria, porém, muita resistência em aceitar as vantagens do intercâmbio cultural. Os críticos da interação entre tradições frisam que ela ocasiona desvios em relação ao ‘real’ – e, para tanto, recorrem à noção de realidade independente do contexto. Primeiro, Feyerabend ressalta a impossibilidade de gerar uma imagem teoricamente unitária para todos os eventos (p. 80). Segundo, lembra que a tendência tal generalização espelharia uma tendência do racionalismo grego na qual provas lógicas referentes a certas teses foram concebidas como objetivas e conhecimentos tradicionais foram atacados como ilusórios ou falsos. Porém, o filósofo considera equivocado pensar que a conexão lógica de conceitos abstratos reduz experiências empíricas e suprime termos usuais. A autoridade da tradição abstrata dependeria, pois, menos de provas lógicas do que de uma tendência favorável àquela forma de generalização. Isso significa que a consolidação do racionalismo ocidental teria gerado uma nova forma de vida: “a descoberta de procedimentos de prova aumentou a variedade cultural, não a substituiu por uma única história verdadeira” (p. 84). As teses R8 e R9 resumem, respectivamente, as consequências históricas e empíricas dessas formulações feyerabendianas:

R8: a ideia de uma verdade objetiva ou de uma realidade objetiva que seja independente dos desejos humanos, mas que possa ser descoberta pelo esforço humano, é parte de uma tradição especial que, na avaliação dos seus próprios membros, contém sucessos e também fracassos, sempre foi acompanhada por e misturou-se a tradições (empíricas,

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subjetivas) mais práticas e deve ser combinada com essas tradições para produzir resultados práticos (p. 90). R9: a ideia de uma verdade objetiva independente da situação tem validade limitada. Como as leis, as crenças e os costumes de R4, ela governa em alguns domínios (tradições), mas não em outros.

R8 e R9 afirmam que o racionalismo científico não invalida tradições não científicas e o retratam como culturalmente dependente. Tampouco haveria uma universalidade na forma de vida científica: “A tradição objetivista há muito se dividiu em escolas rivais ou, no caso das ciências, em abordagens baseadas em premissas diferentes e utilizando métodos também diferentes” (p. 91). Tais conclusões trazem à tona R10:

R10: para cada afirmação (teoria, ponto de vista) que acreditamos ser verdadeira por bons motivos, é possível que existam argumentos mostrando que ou a afirmação oposta ou uma alternativa mais fraca é verdadeira (p. 92).

Feyerabend aponta que as críticas usuais ao racionalista buscam legitimar a experiência cotidiana. Basicamente, ressaltam que a experiência poderia ser organizada de diversas maneiras e consideram a diversidade de descrições da realidade. Também admitem que as diversas visões de mundo também tinham sucesso em suportar material e espiritualmente formas de vida. Conforme vemos, essas críticas usuais ao racionalismo apontam para a hipótese de que “existem muitas maneiras diferentes de viver e de acumular conhecimento” (p. 93). Assim, o combate à hegemonia da cultura ocidental conduziria a duas ideias específicas: i) existem diversas maneiras de abordar a natureza e ii) a natureza responde diferentemente a essas diversas maneiras de abordagem. Com efeito, R11 surge para aprofundar R10:

R11: Para cada afirmação, teoria, ponto de vista que, por bons motivos, acreditamos serem verdadeiros, existem argumentos mostrando uma alternativa conflitante que é pelo menos igualmente, ou até melhor (p. 95).

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Feyerabend se dedica, sobretudo, ao tema das relações humanas e da interação de tradições. Ele considera indevido lidar com tais assuntos a partir unicamente de conceitos abstratos e alijados dos concretos intercâmbios culturais. A esse respeito, a perspectiva intelectualista aponta uma certa crise no âmbito cultural, marcada pela fragmentação de pontos de vista. O autor de Contra o Método, todavia, discorda de tal diagnóstico. Em vez disso, insiste que o principal problema estaria na imposição dogmática de valores e tecnologias da forma de vida científica a sociedades não ocidentais. O dogmatismo consiste em uma reação ao choque cultural baseada nesta premissa: “nossa maneira é a maneira correta, outras maneiras são falsas, cruéis, ímpias” (p. 104). Mas a premissa dogmática se mostraria bastante nociva quando aplicada como princípio do intercâmbio cultural. A imposição dos valores e frutos científicos, inclusive, teria gerado a “eliminação em grande escala dos costumes tradicionais” (p. 105). Uma atitude alternativa mais razoável propõe um contato entre o “conhecimento local”, os costumes tradicionais e o conhecimento ocidental: “Desconsiderá-los significa tratar as pessoas como escravos que precisam da instrução dada por senhores superiores”. Essa ótica relativista contraria aquela dogmática na medida em que interpreta culturas distintas como portadoras de valores próprios. Nesse mesmo sentido, o oportunismo admite que elementos de culturas estrangeiras também possam ser incorporados à cultura local. Os argumentos não estariam excluídos da interação em termos oportunistas, afinal, eles não representariam uma exclusividade da tradição racionalista: “O que os primeiros racionalistas ocidentais realmente inventaram não foi o argumento, mas uma forma de argumentação especial e padronizada” (p. 107). Feyerabend encerra sua crítica ao racionalismo discutindo a tese segundo qual a Razão descreveria perfeitamente a essência da Natureza. Contra o Argumento do Sucesso Objetivo, mostra i) que êxitos e fracassos são noções culturalmente dependentes e ii) que não existem pesquisas científicas objetivas que comparem a eficiência de procedimentos científicos e não científicos. Contra o Argumento da Objetividade das Leis Científicas, sustenta que a descoberta das leis da natureza exige tanto uma estrutura intelectual apropriada como condições históricas determinadas. “A descoberta e o desenvolvimento de uma forma particular de conhecimento é um processo sumamente específico e que não pode ser replicado” (p. 109), ele conclui. Contudo, o autor de Contra o Método admite que a cultura racionalista não pode simplesmente dispensar a ciência: leis científicas e produtos tecnológicos comporiam nossa visão de mundo, isto é, ideias e tecnologias sustentariam 227

a forma de vida da sociedade na qual vivem tanto cientistas como leigos. Mas, na ótica dele, a própria ciência responderia a fatores históricos, sociais e individuais:

Este mundo não é uma entidade estática habitada por formigas pensantes que, arrastando-se por todas as suas fendas, gradativamente descobrem suas características sem influenciá-las de forma alguma. Ele é uma entidade dinâmica multifária que influencia e reflete a atividade de seus exploradores (p. 110).

3.3.4. As Vertigens da Abundância: o Pluralismo Ontológico (anos 1990) Os últimos escritos de Feyerabend evidenciam uma profunda revisão conceitual quanto a elementos do seu relativismo político (2.2.1.2 e 3.3.3.3).192 Essa autocrítica foi declaradamente tratada no final desta carta de Feyerabend a George Couvalis:193

20/07/1989 Prezado George Couvalis, Muito obrigado pelo seu livro194 e pelos artigos enviados. Recebi-os ontem. Estou indo para a Itália neste momento e logo em seguida retorno para Berkeley (onde devo retomar as atividades em 20 de agosto). Por isso, não posso mais do que folhear o material. Tanto quanto percebo, você está correto na crítica que faz a mim a respeito de Brecht (incidentalmente, você conhece a biografia de Brecht escrita por Werner Mittenzwei? Das Leben des Bertold Brecht, 2 volumes, Aufbau Verlag Berlim e Weimar, 1986, 1.400 páginas – uma obra fantástica!) – e Ionesco. Não tenho comigo o artigo sobre Galileu (“Philosophers as Playwrites”) 195, mas realmente não aplico Aristóteles à Oresteia?196 A teoria de Aristóteles dificilmente se aplica a qualquer tragédia grega existente, com exceção talvez de Édipo; se tratou de uma réplica à crítica de Platão (e, portanto, é um tanto teorética). Não penso que a presença de deuses na Oresteia seja uma desvantagem, se comparada com um debate filosófico. Um dos trechos mais importantes para se aproximar do tema em Feyerabend é este: “Pois devemos distinguir entre Relativismo político e Relativismo filosófico […] O Relativismo político afirma que todas as tradições têm direitos iguais: o mero fato de algumas pessoas terem organizado a vida de acordo com certa tradição é suficiente para dar a essa tradição todos os direitos básicos da sociedade em que ela ocorre […] O Relativismo filosófico é a doutrina de que todas as tradições, teorias e ideias são igualmente verdadeiras ou falsas, ou, em uma formulação ainda mais radical, que qualquer distribuição de valores da verdade acima das tradições é aceitável. Essa forma de relativismo não é defendida em nenhuma parte deste livro [A Ciência em uma Sociedade Livre]” (CSL, p. 103). Quanto às versões do relativismo discutidas na seção 3.3.3.3 acima, o esquema elaborado por M. Kusch (“Relativism in Feyerabend’s Later Writings”, inédito) é bastante didático: R1: Relativismo prático; R2-R6: Relativismo democrático; R7-R9: Contra o objetivismo; e R10-R11: Relativismo epistêmico. Um estudo detalhado sobre o desenvolvimento do relativismo de Feyerabend aparece em Farrell (2003, seção 4.2). 193 Documento inédito, gentilmente disponibilizado por G. Couvalis, a quem agradecemos pela autorização de reproduzir aqui um arquivo pessoal. 194 Couvalis (1989). 195 Couvalis (1986). 196 Ou Oréstia ou Orestíada, em referência ao matricida Orestes. Trata-se da trilogia de peças teatrais (Agamemnon, Coéforas e Euménides) compostas pelo tragediógrafo grego Eurípedes. 192

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Primeiro, porque o discurso filosófico é repleto de frases que também possuem a função de repelir as pessoas (‘irracional’, ‘busca pela verdade’ etc. etc. – tenho certeza de que você será capaz de fazer uma lista adequada delas); e, segundo, porque os deuses são limitados no poder deles; e o quê mais os limita? O julgamento dos cidadãos comuns. O mais fraco pode levar o mais forte e é, inclusive, respaldado por um dos seus, Atena, que até mesmo garantiu a sobrevivência restrita de todas as tradições que tornaram Atenas pródiga. A Sociedade Aberta197 superior à O Triunfo da Vontade198? Sem chance! Péssimos argumentos embasando uma filosofia ruim no primeiro, arte magnífica amparando uma questionável visão de mundo no segundo (Riefenstahl apenas sustenta parte da doutrina nazi, não tudo: lembre-se das incríveis fotografias de Jesse Owens feitas por ela no filme Olympia 199). O Capítulo X de [A Sociedade Aberta] permanece excelente, e em um confronto com Riefenstahl ele ganha. Eu não sei ao certo qual foi meu intento ao escrever o artigo “Let’s Make More Movies”200; posso ter desejado substituir a filosofia por filmes, por dramas etc. Se foi assim, então fui um tapado. Entretanto, seria igualmente estúpido atribuir exclusivamente à filosofia o direito de tratar de temas como a verdade, a justiça etc. etc. Com efeito, é isso que alguns a maioria dos filósofos fazem. Brecht estudou posições filosóficas, a situação política e científica antes de escrever suas peças, e mesmo sua poesia: dificilmente algum filósofo estudou drama para um artigo filosófico. Ainda não li seu livro, conquanto me pareça bem argumentado e posso mesmo ter merecido alguns dos golpes contidos ali. Entretanto, permita-me assinalar que já não sou mais um relativista. Escrevi um pormenorizado artigo a respeito, para efeito de uma réplica a uma coletânea de artigos em minha (des)homenagem (que vai aparecer no ano que vem) e um ensaio que vai ser publicado no número de Agosto do Journal of Philosophy. Com meus melhores cumprimentos! Paul Feyerabend

A carta acima menciona duas fontes daquela autocrítica relativista. A primeira delas (apresentada como um “pormenorizado artigo”) é, aparentemente, o diálogo “Ao Término de um Passeio não-filosófico entre os Bosques”, o qual encerra a coletânea Beyond Reason: Essays on the Philosophy of Paul Feyerabend, organizada por Gonzalo Munévar (DC, pp. 65-117; PKF 1991).201 Inicialmente, o tema emerge com a recusa da tese segundo a qual “qualquer que seja o ponto de vista, é tão bom quanto qualquer outro…” (DC, p. 88). Mas autor de Contra o Método assevera que esse ponto de vista jamais foi defendido em alguma de suas obras.202 Em seguida, admite que após a

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Sociedade aberta e seus inimigos (1945), de Karl Popper Referência ao O Triunfo da Vontade (Triumph des Willens), dirigido por Leni Riefenstahl, em 1936, documentário que buscava glorificar o partido nacional socialista alemão e construir uma imagem idealizada do Füher. 199 Documentário de 1938, dirigido por Leni Riefenstahl, sobre os Jogos Olímpicos de Verão de 1936. 200 Ver PP3, IX. 201 A segunda (“um ensaio que vai ser publicado no número de agosto do Journal of Philosophy) se refere ao texto “Realismo e a Historicidade do Conhecimento” (CA, cap. IX), analisado pontualmente na seção 3.3.4.1 a seguir. 202 Ver a primeira nota desta seção 3.3.4. 198

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publicação do Adeus à Razão, em 1987, sua opinião em relação ao tópico se transformou (p. 93). Primeiro, reconheceu que apresentou ideias abstratas sobre temas que requerem proximidade – portanto, comportara-se de forma idêntica à dos filósofos que criticara: “é exatamente o que fiz, quando sugeri que a todas as tradições devem ser concedidos direitos iguais e iguais oportunidades de chegar ao poder” (p. 94; ver R3 em 3.3.3.3). Segundo, julgou seu o conselho não intervencionismo cultural (isto é, tradições devem ser protegidas de interferência externa, também relacionado a R4 em 3.3.3.3) um “exercício de baixa literatura” (p. 95) De um lado, percebeu que essa ideia continha ela mesma uma “armadilha”: “As tradições que detêm um poder militar ou econômico, ou aparentemente espiritual, amiúde esmagam os opositores mais débeis”. Portanto, a intervenção cultural não democrática seria legítima em casos nos quais as forças das tradições se revelem assimétricas.203 Por outro, notou que tradições não são entidades estáticas: “por sua natureza mesma procuram transpor os próprios confins – e devem fazê-lo, se quere sobreviver”. Assim, esse revisionismo feyerabendiano reflete a noção de que culturas não são isoladas e que tal isolamento não significaria necessariamente uma vantagem. Em suma, com a chegada dos anos 1990, dissipa-se do corpus feyerabendiano a premissa da proteção absoluta e do valor intrínseco de culturas contra intervenções externas. O defeito básico da anterior posição relativista residiria na afirmação de que culturas possuem fronteiras delimitadas e que elas “permanecem no interior de limites estabelecidos da tradição” (p. 103).204 Um outro tópico marcante dos últimos escritos de Feyerabend é o retorno à reflexão sobre o realismo e o papel das abstrações frente à diversidade fenomênica (MT, p. 195).205 O filósofo apontou que a cristalização de certas formas de pensamento e percepção poderiam se converter em “prisões ideológicas” (DC, p. 109). Ao mesmo tempo, ressaltou que apenas uma pequena parte da riqueza fenomênica afeta nossos sentidos – uma limitação que, de resto, seria vantajosa: “Um organismo superconsciente não seria supersábio, estaria paralisado” (CA, p. 26). Todavia, o autor do Contra o Método também salientou que a tendência de reduzir a multiplicidade dos

203

A admissão feyerabendiana de intervenções, entretanto, já consta no Adeus à Razão. No próprio capítulo analisado em 3.3.3.3 ele afirma a necessidade de interferência em situações que envolvem a supressão e o assassinato em massa (AR, p. 38). Detalhes dessa rejeição feyerabendiana do antiintervencionismo serão discutidos na Conclusão deste texto (ver KUBY 2014). 204 Os desdobramentos filosóficos dessa autocrítica relativista serão trabalhados em 4.3.2.4.3.2. 205 Nesse sentido, vamos ao encontro da terceira parte do Modelo Kidd/Brown (2015), para quem a obra de Feyerabend realiza, a partir de 1989, exatamente uma recusa do relativismo e um retorno ao realismo.

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eventos naturais a conceitos fixos e duradouros se excedeu (p. 27). A “simplificação do mundo” ocasionada por ela teria convertido a realidade em um “ambiente artificial” e alheia aos eventos ordinários (p. 28). Em contraposição, sublinha que as categorias conceituais alinhadas a essa concepção epistemológica seriam “demasiado simplistas para capturar as complexidades do nosso mundo” (p. 34). Todavia, Feyerabend também enfrentou o debate em torno do realismo ao recusar a ideia segundo a qual os resultados de todas as formas de saber são igualmente exitosos.206 No “Pós-escrito sobre o Relativismo” da 3ª edição do Contra o Método ele rebateu frontalmente a essa opinião (que atribui ao “programa forte da sociologia da ciência”) (CM3, p. 361).207 Essa posição diz que os vários pontos de vista enfrentam alguma restrição por parte das “propriedades materiais” do mundo.208 Com efeito, em torno dos anos 1990209, o austríaco conecta a noção de um pluralismo ontológico (ou da multiplicidade de cosmovisões) ao abandono de um relativismo epistêmico radical:210

[…] indivíduos, grupos profissionais e culturas podem criar uma ampla variedade de ambientes, ou ‘realidades’ – mas nem todas as abordagens têm êxito: algumas culturas prosperam, outras subsistem por algum tempo e então decaem. Mesmo um empreendimento ‘objetivo’ como a ciência, que aparentemente revela A Natureza Tal Como Ela É Em Si Mesma, intervém, elimina, amplia, produz e codifica os resultados de maneira rigidamente padronizada – novamente, porém, não há garantia de que os resultados se aglutinarão em um mundo unificado […] Isso é relativismo, porque o tipo de realidade encontrado depende da abordagem tomada. Contudo, difere da doutrina filosófica ao admitir o malogro: nem toda abordagem tem êxito” (CM3, pp. 362-363).

3.3.4.1.Esculpindo Seres: elementos para uma ontologia ‘multifacetada’ O texto “Realismo e a Historicidade do Conhecimento” (1989) começa formulando o seguinte problema: “[…] como pode a informação resultante de mudanças históricas idiossincráticas tratar de fatos e leis histórico-independentes?” (CA, p. 179). Feyerabend o examina a partir de duas suposições: Suposição 1: O conhecimento é inseparável/dependente do contexto histórico [S1]:

206

A rigor, Feyerabend nunca afirmou essa tese, como atesta o texto da nota 190 da seção 3.3.4. Exploramos a relação de Feyerabend com os estudos sociais da ciência e tecnologia em Abrahão (2015). 208 Para maiores detalhes, ver Tambolo (2014) e Brown (2015). 209 Para a confirmação dessa nota cronológica, ver DC, p. 115 e MT, p. 195. 210 Para detalhes, ver Kidd (2011). 207

231

[…] teorias, fatos e procedimentos que constituem o conhecimento (científico) de uma época particular resultam de desenvolvimentos históricos específicos e altamente idiossincráticos (p. 180).

Suposição 2 (Suposição de Separabilidade): O conhecimento é separável/independente do contexto histórico [S2]:

[…] o que se descobriu nesse caminho idiossincrático e cultural-dependente (e é portanto formulado e explicado em termos idiossincráticos, ad hoc, e culturaldependentes) existe independentemente das circunstancias de sua descoberta (p. 181).

S2 afirma que as entidades existem independente da tradição que as concebe. Isso conduz à Hipótese 1: S2 se aplicaria a todas as entidades (sejam ‘átomos’ ou ‘deuses homéricos’). Contra a Hipótese I, observa-se que “deuses não se encaixam em uma visão científica de mundo” (p. 183). Ou ainda: i) a crença em deuses homéricos é algo raro e ii) não há razões aceitáveis parar crer nos deuses homéricos. Porém, Feyerabend defende a Hipótese I. Primeiro, mostra que a diferença entre existência e crença seria presumida em S2. Segundo, nega que ‘átomos’ e ‘deuses’ deveriam receber um tratamento diferente, dado que a crença nas divindades não teria sido removida racionalmente. O autor insiste:

Os opositores de crenças populares sobre os deuses nunca apresentaram razões que, usando pressuposições comumente mantidas, tivessem demonstrado a inadequação das crenças. O que temos é uma gradativa mudança social, levando a novos conceitos e a novas histórias construídas a partir daquelas.

Essa segunda linha argumentativa insiste que“a história, não o argumento, solapou ou deuses” (p. 185). Contudo, conforme S2, a história não teria competência para eliminar entidades, algo que reforçaria a Hipótese I: S2 “nos força ainda mais a admitir a existência dos deuses homéricos”. Apesar de realistas científicos aceitarem essa segunda crítica a S2, afirmariam a irrazoabilidade de crer nos deuses homéricos (p. 186). Esse movimento, por seu turno, conduz à:

232

Suposição 2* (ou Suposição de Separabilidade Modificada): O conhecimento (científico) é separável/independente do contexto histórico [S2*]:

Apenas entidades postuladas por crenças razoáveis podem ser separadas de sua história (p. 186).

S2* torna a razoabilidade da crença em uma entidade a medida da existência separada dela. Entretanto, a própria prática científica confrontaria essa suposição, uma vez que não há uniformidade nos critérios ou procedimentos de identificação/medição de entidades: “Os critérios de aceitação de crenças mudaram, com o tempo, a situação e a natureza das crenças”, afirma Feyerabend. Nem mesmo a força epistêmica das provas científicas ou os triunfos tecnológicos seria uniformes, de modo que que parte da autoridade das evidências científicas refletiria “desenvolvimentos históricos idiossincráticos” (pp. 187-188). Portanto, S2* não consegue refutar a existência de entidades não científicas:

Resultado: nem a suposição de separabilidade, nem a suposição de separabilidade modificada podem nos fazer aceitar átomos, mas negar deuses. Um realismo que separa ser e história, e mesmo assim pressupõe que o Ser pode ser captado pela história, é forçado a povoar o ser com todas as criaturas que foram e ainda são consideradas pelos cientistas, profetas e outros.

Realistas científicos buscariam contornar essa abundância afirmando que as entidades científicas seriam projeções associadas a teorias (p. 189). Modelos “projetivos especiais” certificariam a certeza na independência das entidades científicas e da objetividade da ontologia em questão. A diversidade de entidades refletiria, segundo eles, um traço da história das ideias científicas, não uma característica ontológica. Em resposta, Feyerabend argumenta i) que o domínio científico em alguns campos não implica a exclusão de ideias alternativas (p. 190); ii) que a redução de certas áreas a leis básicas de disciplinas científicas específicas envolve um pressuposto metafísico, de forma que a unificação das ciências não seria algo efetivo (p. 191); iii) que a ciência não possui um conjunto consistente e unitário de leis, teorias, abordagens etc.; e iv) que mesmo teorias científicas com alto grau de corroboração envolvem um traço circunstancial (histórico) de projeções teóricas. Em suma, o conhecimento 233

científico comportaria lacunas (teóricas, teóricas etc.) e a ideia de unidade da ciência não passaria de uma noção sem base concreta (p. 192). Logo, a própria crença na superioridade da ciência resultaria do fato de as entidades científicas terem percorrido um caminho marcado por menos resistência do que outras. As conclusões apontadas por Feyerabend permitiriam diferentes abordagens, dentre as quais a relativistas. Os relativistas aceitariam S1, contudo, relativizariam S2: “átomos existem, dada a estrutura teórica que os projeta” (p. 194). Entretanto, o filósofo rebate essa perspectiva afirmando que tradições (culturas, formas de vida etc.) não possuem fronteiras demarcadas e possuem ambiguidades (3.3.4). Essas características fariam com que os membros das tradições pudessem agir como se os limites fossem inexistentes, ou como se “toda tradição é todas as tradições”:211

Relativizar a existência de um simples sistema conceitual, que é então isolado do resto e apresentado com inequívoco detalhamento, mutila reais tradições e cria uma quimera. Paradoxalmente, isso é feito por pessoas que se orgulham de sua tolerância quanto a todos os modos de vida.

Uma versão distinta de S1 e S2 concebe a relação entre entidades científicas e a história consiste na seguinte perspectiva (p. 195): i. ii. iii. iv.

Cientistas possuem um “organismo complexo” e se fundamentam em um “ambiente físico e social em constante transformação”. Cientistas usam “ideias” e “ações”. As ideias e ações usadas pelos cientistas fabricam: “átomos metafísicos”, “átomos físicos” e “sistemas complexos de partículas elementares”. A fabricação dessas entidades e sistemas ocorre a partir de um “material que não tinha esses elementos, mas que poderia amoldar-se a eles”.

Os cientistas, conforme essa versão, seriam escultores da realidade – mas escultores em um sentido específico. Eles não apenas agem causalmente sobre o mundo (embora eles façam isso também e tenham de fazê-lo se quiserem descobrir novas entidades); eles também criam condições semânticas, engendrando fortes inferências de efeitos conhecidos e novas proteções e, inversamente, das projeções e efeitos testáveis.

211

Mas Feyerabend aponta que (iii) está correto ao assinalar que a projeção de certas teorias cria a impressão de que elas “realmente aparecem de maneira clara e decisiva”. O desenvolvimento dessa tese culturalista e suas implicações em termos de crítica do relativismo encontra-se explorado na seção 4.3.2.4.3.2.

234

Na ótica de Feyerabend, S2 se aplicaria somente para o caso de algumas tradições ou culturas específicas (por exemplo, o objetivismo) (p. 196). Feyerabend também não considera que toda “ação causal-semântica” alcança êxito, dado que o aspecto material do mundo “oferece resistência”. A afirmação da resistência material do mundo em relação às abordagens, entretanto, deveria incluir a noção da maleabilidade desse mesmo material: “esse material é mais flexível do que comumente se supõe”. De forma geral, o aspecto material da realidade estabeleceria uma interação (de resistência e plasticidade) com as abordagens – e, consoante o autor de Contra o Método, a construção ontológica da ciência não seria a única proposta confiável. O autor não compreende essa visão como um programa epistemológico, mas como uma forma de descrever ou explicar resultados teóricos ou práticos: “Podemos contar muitas estórias interessantes. Não podemos explicar, contudo, de que modo a abordagem escolhida se relaciona com o mundo e por que ela é bem-sucedida em termos de mundo” (p. 197). A recusa do privilegio ontológico da visão científica de mundo não implica, porém, que o conhecimento científico seria dispensável. O impacto e a onipresença da ciência – em termos materiais, espirituais e intelectuais – teriam construindo um “ambiente científico” que demandaria a existência de profissionais capazes de lidar com ele. Não obstante, a posição feyerabendiana insiste que as consequências da ciência e tecnologia não se apoiariam em uma natureza objetiva. Os sucessos da visão científica de mundo decorreriam de uma “complicada inter-relação e um material desconhecido e relativamente flexível e pesquisadores que afetam e são afetados pelo material que, afinal, é o material do qual foram moldados”. Por fim, isso converge com a lição (já exposta no Adeus à Razão, como vimos na conclusão de 3.3.3.3) segundo a qual “esse não é um mundo estático”. A imagem ontológica expressa por Feyerabend nesse contexto salienta: “[O mundo] É um Ser dinâmico, multifacetado, influenciado e que reflete a atividade de seus exploradores”.

3.3.4.2.O Princípio de Aristóteles e a tese da Incognoscibilidade do Ser O texto “Comentários históricos sobre o Realismo” (1992) retoma o debate sobre o tema em questão a partir do confronto entre duas posições. A primeira defende que i) o realismo é preferível às concepções idealista e positivismo e ii) os modelos 235

realistas são férteis (CA, p. 264). A segunda privilegia a busca por experiências cruciais. Para Feyerabend, porém, ambas poderiam ser apreciadas através do estudo histórico. Por exemplo, a separação entre sujeito e objeto remontaria à tendência racionalista à abstração e à generalização (p. 265). No princípio, as hipóteses explicativas relativas à unidade essencial por trás dos fenômenos teriam sido plausíveis, contudo, posteriormente teriam se degenerado em teses qualquer base experimental. Para ilustrar essa leitura, ele menciona a tese parmenídica para a qual a mudança (o não-Ser) seria ilusória e apenas o Ser apresentaria atributos como existência, unidade, integridade etc.: “A entidade mais fundamental na qual tudo está baseado […] é o Ser”. Feyerabend compreende que essa perceptiva alimentou a crença (inclusive adotada por cientistas modernos) na existência de uma realidade contextualmente independente (p. 267). Porém, alguns pesquisadores não admitiriam a relação de tais noções com a produção de evidências científicas. O próprio Aristóteles havia levantado duas objeções àquela perspectiva. A primeira identificava problemas internos ao raciocínio de Parmênides e a segunda argumentava que a ilusória mudança consistia em algo “importante na vida humana”. Assim, a crítica aristotélica abordava (p. 268): i. ii.

Prova (lógica e racional) de que há entidades estáticas A vida cotidiana não evidencia a existência de entidades estáticas Duas posturas alternativas a (i) e (ii) acima buscaram, por sua parte, i) adaptar

a vida às entidades estáticas ou ii) permanecer com as práticas e ações habituais. Assim, a convicção da realidade da mudança e da diversidade suplantaram a tendência cultural que conduziu à ascensão do racionalismo grego. Na formulação do Princípio de Aristóteles:

Usando a palavra real para descrever o que é básico para um indivíduo, um grupo ou nação, podemos dizer […]: é real o que desempenha um papel central no tipo de vida com o qual nos identificamos.

Feyerabend extrai cinco consequências desse Princípio de Aristóteles: Consequência 1: Componente normativo da dicotomia aparência/realidade

236

[…] o limite entre realidade e aparência não pode ser estabelecido pela pesquisa científica; ele contém um componente normativo ou, se quisermos, existencial (p. 269).

Consequência 2: Explicação da natureza dos debates sobre o realismo

[…] isso explica por que tantos processos diferentes (visões, experiência imediata, sonhos e fantasias religiosas) foram declarados reais, e por que as discussões sobre a realidade são tão acaloradas.

Consequência 3: Especificidade das interpretações epistemológicas

[…] diferentes modos de vida acarretam interpretações diferentes de conhecimento especializado, ou, mais recentemente, de conhecimento científico.

Consequência 4: Reconhecimento do sucesso de concepções não científicas

Não é tarefa da ciência [decidir qual interpretação da ‘realidade’ é correta], porque a ciência contém tradições diferentes (o atomismo e abordagens mais fenomenológicas são exemplos vindos do passado); além disso, ela não é a única fonte de conhecimento. As pessoas estruturando a sua existência em torno de fenômenos não-científicos, e os declarando reais, não terminaram em desastre – pelo menos não todas elas. Desenvolveram culturas detalhadas e eficientes (p. 270).

Consequência 5: Afirmação do caráter fragmentário da ciência

“[…] segue-se daí que as ciências são incompletas e fragmentárias. Vemos isso de maneira mais direta quando consideramos as grandes áreas da experiência e da ação humana que constituem as vidas das gerações passadas e presentes, mas que são consideradas como não-científicas, subjetivas e irracionais […] E, realmente há uma grande variedade de interpretações, correspondentes a diferentes visões de mundo”.

Feyerabend conecta tais consequências do Princípio de Aristóteles com algumas teses ontológicas (p. 172). Haveria um mundo primário (Proposição I) o qual corresponderia ao Ser (Proposição II). Esse Ser se comportaria de uma maneira própria (Proposição III), não necessariamente segundo as leis científicas (Proposição IV). Ao lado dessas considerações de viés realistas, o autor considera que os humanos participariam desse “mundo primitivo” (Proposição V), então, eles estariam sujeitos às 237

disposições do Ser (Proposição VI). Mas o Ser também revelaria uma relativa independência quanto às intervenções humanas (Proposição VII), de modo que apenas algumas ações sobre o Ser levariam à emergência de “mundos manifestos” (Proposição VIII). Intervenções humanas poderiam expandir ou explorar tais mundos manifestos (Proposição IX), porém, comportariam um caráter fragmentário (Proposição X): “O Ser como é, independentemente de qualquer espécie de abordagem, não pode nunca ser conhecido, o que significa que teorias realmente fundamentais não existem” (p. 273).

3.3.4.3. Crítica ao materialismo e tese da Inefabilidade do Ser Em “Que Realidade?” (1995) Feyerabend desenvolve tais reflexões ontológicas (CA, p. 275). Inicialmente, analisa dois sentidos da palavra ‘realidade’: Sentido 1 – Realidade como restrição social objetiva Feyerabend frisa que i) formas de vida moldam a interpretação dos eventos, fatos etc. e ii) que o desencontro de visões de mundo distintas pode levar a paradoxos. Os paradoxos poderiam ser solucionados através da consulta democrática a qual produz “restrições sociais objetivas” (ou seja, uma realidade) (p. 277). Sentido 2 – Realidade como ‘processos materiais’ A ‘realidade’ também poderia ser compreendida apenas como os processos materiais. Mas essa perspectiva consideraria ilusório vários eventos importantes. Mesmo assim, seria defendida por autores materialistas: “[…] real na ciência é o que está ligado à experiência por etapas análogas às que ligam os objetos cotidianos à evidência dos sentidos” (p. 278). Feyerabend ataca a posição materialista expressa no Sentido 2. Conforme o autor, ela se restringiria às propriedades comuns de objetos ordinários (mesas, cadeiras etc.), desconsiderando outros aspectos (por exemplo, forma, estilo, eficiência etc.) os quais não seriam simplesmente subjetivas, afinal, acarretam efeitos práticos. Todavia, o hábito perceptivo levaria à predominância de um estilo particular e à impressão de que as propriedades não materiais dos objetos seriam partes integrantes deles. Elas se tornariam evidências perceptivas independentemente do seu alegado status ontológico: “Seria possível dizer que elas são propriedades reais, em um sentido bastante direto da 238

palavra real” (p. 279). O filósofo adiciona duas observações a esse sentido de ‘realidade’: i) não convém considerar “irreal o que desempenha um papel tão importante nas nossas vidas” (como determina o Princípio de Aristóteles) e ii) a influência de objetos ordinários (mesas, cadeiras etc.) em indivíduos e em contextos de grandes escalas (culturas, nações) é irrelevante, pouco ‘real’. Nesse sentido, a posição feyerabendiana acerca do realismo insiste:

Os que acreditam em um mundo uniforme e não querem quebrar a conexão com a experiência devem, por conseguinte, considerar os fenômenos que descrevi como aparências confusas de uma realidade que não pode ser nunca conhecida (p. 281).

Feyerabend assevera que inexiste uma abordagem unitária da realidade (p. 282). Não obstante, concepções cosmológicas seriam removidas pela estipulação da superioridade de apenas uma perspectiva ontológica. O Argumento do Sucesso e o Argumento da Racionalidade sustentariam essa prevalência do objetivismo:

A primeira dificuldade com esses argumentos é que a ciência é um saco no qual se misturam opiniões, procedimentos, ‘fatos’, ‘princípios’, e não uma unidade coerente. Disciplinas diferentes (antropologia, psicologia, biologia, hidrodinâmica, cosmologia etc.) e escolas diferentes tratam do mesmo assunto (tendências empíricas e teóricas em astrofísica, cosmologia e hidrodinâmica; fenomenologia e alta teoria na física de partículas elementares; morfologia, embriologia, biologia molecular em biologia – e assim por diante) usam procedimentos amplamente diversificados, têm visões do mundo diferentes – discutem sobre elas e têm resultados: a natureza parece responder positivamente a muitas abordagens e não somente a uma. Considerando essa pletora de ideologias, de enfoques e de fatos, alguns filósofos e sociólogos não se preocupam mais em como separar, digamos, a física da biologia, mas perguntam-se como toda a coisa se mantém unida, não somente administrativa, mas também conceitualmente (pp. 283284).

Feyerabend responde ao Argumento do Sucesso afirmando que muitas culturas foram exitosas em “garantir o bem-estar mental e físico de seus membros”:

[…] seleciona não somente a ciência mas também outros procedimentos, inclusive visões de mundo e as cosmologias que se desenvolvem em seu rastro: visões de mundo não científicas são tão boas candidatas para se compreender a realidade como o é a ciência.

239

Ao Argumento da Racionalidade, responde que não existe mais qualquer ligação necessária entre a racionalidade e a abordagem científico:

[…] o racionalismo (que agora é tão complexo e disperso como a ciência) não é nem uma evidência independente nem aceitável, para as ciências. Estas devem sustentar-se em suas próprias bases (p. 285).

Portanto, a tese ontológica de Feyerabend nos anos 1990 comporta duas ideias: I – Tese da Manifestação/Aparência do Ser: “Temos evidência de como o Ser reage quando abordado de maneiras diferentes”. II – Tese da Obscuridade/Incognoscibilidade do Ser: “[…] o próprio Ser e as condições do seu agir de uma certa forma permanecem para sempre envoltos em escuridão”. O autor busca amparar (I) e (II) na mecânica quântica e na filosofia de PseudoDionísio Areopagira. No primeiro caso, retoma a posição de Bohr segundo a qual certas propriedades da realidade refletem o aparato de medição e que certos eventos ocorrem apenas “sob circunstâncias particulares e precisamente restritas”. No segundo, recupera a compreensão de que “Deus (ou, para usar os termos desse texto, a Realidade Última ou o Ser) é inefável” (p. 286). A busca por revelar a Realidade Última conduziria, pois, ao “nada, um vácuo, nenhuma resposta positiva”. Teríamos acesso apenas ao modo como o Ser responde à aproximação humana: “A Realidade Última, se é que tal entidade pode ser postulada, é inefável”. Feyerabend insiste que conhecemos apenas uma “realidade manifesta” (p. 287). Ao mesmo tempo, o autor também aponta alternativas à metafisica da unidade ontológica expressa em (I) e (II), sendo que uma delas admite: i) que existem vários tipos de objetos e aspectos os quais ii) se relacionam mutuamente de formas complexas; somente algumas dessas formas iii) refletiriam os interesses humanos e iv) a hierarquia daquelas espécies seria dinâmica. A noção do realismo unitário teria se propalado apenas porque eliminou fenômenos e propagandeou a redução das ciências a uma teoria fundamental. Contudo, o autor de Contra o Método considera: “Um pluralismo ontológico (epistemológico) parece estar mais próximo aos fatos e à natureza humana”. O pluralismo ontológico rejeitaria algumas noções relativistas tradicionais (ver 3.4.3). Primeiro, não afirma que todas as 240

abordagens sobre o Ser são igualmente exitosas. Algumas delas não evidenciariam uma reação favorável da Realidade Básica (p. 288). Segundo, nega que culturas sejam entidades fechadas e bem definidas, mas elementos temporários e ambíguos. Como Feyerabend afirmará, a efetiva interação cultural mostraria que “potencialmente cada cultura é todas as culturas” (ver 4.3.2.4.3.2).

3.4. “Por que é que você não o denomina desse modo?”212 A Teoria Pragmática da Observação e o Voluntarismo Epistêmico correspondem a duas das principais ideias de Feyerabend nos 1940 e 1950. Assim, os períodos do início e da estabilização da formação acadêmica (3.1.1) e da carreira profissional (3.1.2) do autor de Contra o Método podem ser revisitados tendo tais noções como foco essencial. A centralidade de ambas no corpus feyerabendiano decorre do fato de elas serem seminais para a gênese de sua filosofia pluralista: a primeira ajuíza que dados factuais não determinam o significado das sentenças observacionais, logo, experiências podem ser descritas a partir de distintos quadros categoriais; a segunda, que a adesão a projetos filosóficos envolve decisões referentes às consequências dos ideais epistêmicos, logo, que a seleção de teorias envolve vários tipos de valores. Pois bem, o ‘texto síntese’ de 1958 e seu complemento no ‘texto de transição’ de 1960 evidenciam como o filósofo afirmou o caráter heurístico da metafisica e a inexistência de experiências observacionais neutras (3.2.1 e 3.2.2). Assim, a questão suscitada por Feigl quanto à existência de experimentos cruciais – dadas as consequências logicas da tese I de 1958 – impôs a Feyerabend o desafio de elaborar uma teoria da ciência i) que admitisse a tese da impregnação teórica da observação e ii) que fosse epistemicamente desejável (CM3, p. 287). Em face disso, ele formulou os argumentos (históricos e metodológicos) opostos a um modelo monista fundado na redução lógica e na consistência teórica de teorias sucessivas (3.3.1). Então, em 1962, surge o modelo de teste fundado no confronto de teorias factualmente adequadas e inconsistentes entre si.213 O esquema original do teste pluralista trabalhava com o ideal de uma “unidade metodológica” composta por “um conjunto completo de

212

DC, p. 105. Esse modelo buscava compreender, sobretudo, os casos de seleção teórica rivais em que a escolha não pode ser realizada por comparação direta de uma única teoria com a experiência. Para detalhes, ver Laymon (1977) e Couvalis (1988). 213

241

teorias parcialmente sobrepostas, factualmente adequadas, mas mutuamente inconsistentes” (PP1, p. 72).214 O pluralismo teórico feyerabendiano dos anos 1960 propunha, assim, um esquema de crítica do conhecimento fundado no método das alternativas. Com isso, rejeitou as teorias da ciência hostis à proliferação de ideias e à diversidade de pontos de vista. Basicamente, esse método pluralista: i) mostraria que as relações entre teorias com as experiências podem ser aprimoradas mediante confronto com outras ideias; ii) afirmaria que o confronto com concepções alternativas contribui para a descoberta de fatos refutadores das teorias estabelecidas; e iii) insistiria que o contato com alternativas fomenta o desenvolvimento das inclinações individuais e impede a estagnação do conhecimento. Por isso, a variedade de pontos de vista se revelaria como o elemento fundamental do avanço da ciência: “a variedade de opinião é uma necessidade metodológica para as ciências e, a fortiori, para a filosofia” (PP3, p. 76). Nesse contexto, Princípio do Pluralismo definia: “Inventar e elaborar teorias inconsistentes com as concepções aceitas, ainda que elas sejam largamente conformadas e amplamente aceitas”.215 Para cumprir os objetivos (i), (ii) e (iii), o método pluralista exigia o princípio de proliferação (“comparar ideias com outras ideias”, ao invés de comparar ideias com a ‘experiência’”) e o princípio de tenacidade (“tentar aprimorar, e não descartar, as concepções que perderam essa competição”) (PP2, pp. 143-144). As discussões de Feyerabend com C. F. von Weizsäcker, em meados da década de 1960, deflagraram a autocrítica feyerabendiana quanto ao método das alternativas (ver B1/2.1.2.2, 3.3.2.3 e 3.4.3.3). Posteriormente, o filosofo inclusive descreveu sua prescrição da uma unidade metodológica pluralista como ilustração do antiquado e nocivo “louvor” epistemológico a regras universais típico da “militância cientificista” (PP1, p. 235; PE, p. 160).216 A superação dos limites do pluralismo teórico ocorreu com a rejeição do método das alternativas como o único método recomendável – o que representa a expansão a ideia de proliferação ao domínio metodológico (CM3, p. 350). Inicialmente, a elaboração desse pluralismo metodológico mostrou um ataque à ideologia cientificista segundo a qual o saber dos especialistas seria algo excepcional, Feyerabend redigiu diversos artigos inspirado nesse programa, dentre os quais: “Problems of Microphysics” (1962), “A Note on the Problem of Induction” (1964), “Problems of Empiricism” (1965) ou “A Note on two ‘problems’ of Induction” (1968). 215 Discussão detalhada das versões e implicações do Princípio do Pluralismo em 4.1.2.1 e 4.1.2.1.1. 216 Como vimos em 3.2.1.1, esse resquício seria eliminado no par de ‘elegias a Bohr’ que Feyerabend publicou em 1968/69. Para tal descrição dos textos em questão, ver FAM, p. 127. 214

242

útil e insubstituível (3.3.2.1). Para tanto, rebateu o dogma do sucesso científico como fruto do uso de regras metodológicas universais. Feyerabend argumentou que cientistas adotariam um “oportunismo metodológico” (PP3, p. 122) e que o mito do monismo metodológico não passaria da prevalência de um estilo de pesquisa: “Percebe-se que o método científico é mais complicado do que se pode pensar, e que ele não pode ser apreendido através de regras simples” (p. 124). Mais claramente, o Contra o Método evidenciou o avanço do saber não respeita normas preestabelecidas (CM3, p. 33; ver 3.3.2.2). A variedade de procedimentos de pesquisa refletiria tanto fato histórico como seria um desiderato epistemológico: “Essa prática liberal, repito, não é apenas um fato da história da ciência. É tanto razoável quanto absolutamente necessária para o desenvolvimento do conhecimento” (p. 37). Portanto, a defesa da proliferação de métodos expressa no Contra o Método suplantou a própria recomendação feyerabendiana do método de proliferação de alternativas teóricas dos anos 1960. A crítica do monismo metodológico (contida no Contra o Método e em outros escritos feyerabendianos) coloca em questão a opinião geral sobre a autoridade da ciência: “Não há método, e não há autoridade” (PP3, p.125; CSL, p. 122). O cerne dessa afirmação remonta à percepção de que os êxitos da ciência envolvem fatores mais gerais do que a fictícia aplicação de um único método de pesquisa universal. A outra linha de ataque à ideologia cientificista envolve premissa do sucesso científico. O autor argumenta: i) não há comprovação incontestável da superioridade das concepções científicas em relação a tradições não científicas; ii) existem alternativas aos expressivos resultados científicos; e iii) os êxitos da ciência não são autônomos a fatores não científicos: “a ciência se vê enriquecida por métodos não científicos e resultados não científicos” (CM1, p. 461; ver também WRAW, p. 356; CSL, p. 125). Feyerabend insiste, ainda, que pressões políticas, ideológicas, institucionais e mesmo militares estariam envolvidas no desaparecimento de culturas não científicas (PP3, p. 186; CSL, p. 127). E, ademais, frisa que a tradição racionalista “nem sempre é bemsucedida” (CM1, p. 462). Então, o pluralismo metodológico coloca em relevo o dogma do mérito da ciência e da superioridade da tradição racionalista. Por conseguinte, conduz à própria revalorização de formas de vida e saber não ocidentais. Nos anos 1980, a crítica feyerabendiana à tirania dos intelectuais recuperou a tese do relativismo democrático (já apresentada em 1978) segundo a qual os cientistas não seriam um culturalmente superior: “Eles simplesmente presumem que suas próprias tradições de 243

construção de padrões e de recusa de padrões são as únicas tradições que contam” (PP3, p. 221). No Adeus à Razão, a tese R1 exprimiu um relativismo prático que afirmava as vantagens do intercâmbio cultural para o avanço do conhecimento. Também mostrou que valores, fatos ou métodos não confirmam a superioridade da ciência e da tecnologia sobre outros saberes. As teses R2-R6 sustentaram que sociedades democráticas e pluralistas não admitiriam a hegemonia da tradição científica, dado o princípio da igualdade de oportunidades e de direitos. As teses R7R9 combateram a ideia de objetivismo científico e mostraram que a imposição de saberes universais gera prejuízos e envolve promessas vazias. Mas também salientaram que a tradição racionalista teria aumentado “a variedade cultural” (AR, p. 84), portanto, não anularia tradições não científicas. Por fim, o relativismo epistêmico em R10-R11 asseverou que existem alternativas fortes aos saberes ocidentais, de forma que não haveria justificativa para a imposição dogmática de valores e tecnologias da forma de vida científica a sociedades não ocidentais. Portanto, a crítica do monismo metodológico do Contra o Método se desmembrou no sentido de um pluralismo cultural, o qual apareceu no Adeus à Razão através da afirmação de que a proliferação de várias formas não científicas de vida é epistêmica e eticamente legítima (AR p. 7). Após a publicação do Adeus à Razão, Feyerabend realizou uma segunda autocrítica filosófica, em particular quanto às suas ideias relativistas (3.4.1). Uma das principais mudanças envolve a recusa da ideia de que tradições devem ser protegidas de interferência externa (R4/3.3.3.3). O não intervencionismo comportaria uma “armadilha” porque não protegeria tradições com menos força militar econômica. Além disso, o relativismo tradicional se equivocava ao supor o caráter estático e impenetrável de tradições e culturas. Nesse contexto, o autor avança a tese do caráter fragmentário do conhecimento científico (teóricas, teóricas etc.) (CA, p. 192) e critica a crença na superioridade da ciência (3.4.1.1). O autor introduz a imagem dos cientistas como “escultores da realidade” como forma de evidenciar que a pesquisa cientifica tanto age causalmente sobre o mundo como cria condições semânticas que permitem novas inferências e projeções (CA, p. 195). Entretanto, como já apontamos em 3.3.4, toda “ação causal-semântica” enfrentaria uma resistência do aspecto material do mundo, apesar das abordagens evidenciarem uma maleabilidade da ‘realidade’: “esse material é mais flexível do que comumente se supõe”, disse Feyerabend. Em seus últimos escritos, o filosofo também criticou a doutrina materialista da unidade ontológica 244

partindo do Princípio de Aristóteles: “é real o que desempenha um papel central no tipo de vida com o qual nos identificamos” (CA, p. 268). Essa objeção sugere que generalizações teóricas e abstrações conceituais não deveriam eliminar as práticas ordinárias e ações habituais. Feyerabend reforça a existência e o sucesso de múltiplas concepções, interpretações e saberes não científicos: “As pessoas estruturando a sua existência em torno de fenômenos não-científicos, e os declarando reais, não terminaram em desastre – pelo menos não todas elas. Desenvolveram culturas detalhadas e eficientes (CA, p. 270). Do ponto de vista ontológico, essas considerações feyerabendianas sugerem que as diversas intervenções humanas relativas ao Ser produziriam “mundos manifestos” (Proposição VIII/3.3.4.3). Com efeito, consoante a tese da Inefabilidade do Ser, o “Ser como é, independentemente de qualquer espécie de abordagem, não pode nunca ser conhecido, o que significa que teorias realmente fundamentais não existem” (CA, p. 273). A inexistência de uma abordagem unitária da realidade refletiria a própria natureza dinâmica, multifacetada e maleável da Realidade. Nem o Argumento do Sucesso nem o Argumento da Racionalidade comprovariam a superioridade de uma suposta visão científica de mundo: “visões de mundo não científicas são tão boas candidatas para se compreender a realidade como o é a ciência” e “o racionalismo (que agora é tão complexo e disperso como a ciência) não é nem uma evidência independente nem aceitável, para as ciências” (AR, p. 285). Concluímos que a postura ontológica pluralista expressa nos escritos finais de Feyerabend envolve a Tese da Manifestação/Aparência do Ser (“Temos evidência de como o Ser reage quando abordado de maneiras diferentes”) e a Tese da Obscuridade/Incognoscibilidade do Ser (“o próprio Ser e as condições do seu agir de uma certa forma permanecem para sempre envoltos em escuridão”). Como Feyerabend mesmo declarou, o “pluralismo ontológico (epistemológico)” se mostraria uma maneira razoável de compreender a complexidade do Ser (CA, p. 287). O desenvolvimento do corpus feyerabendiano evidencia quatro tipos de teses pluralistas: pluralismo teórico, pluralismo metodológico, pluralismo cultural e pluralismo ontológico. Diante disso, nós propomos designar como Pluralismo Global o conjunto das opiniões dele sobre a diversidade de ideias, procedimento, tradições e cosmovisões. Assim, não limitamos nossa interpretação às categorias analíticas elaboradas pelas dominantes posições da Visão Padrão (1.1.2, 1.1.3.4 e 1.1.3.5) e Escola de Hannover (1.1.5), restritas às posições feyerabendianas relativas apenas à 245

pergunta O que é a ciência? (2.1 e 2.2). Entendemos que o projeto de Crítica da Razão Científica não envolve apenas uma recusa da uniformidade das teorias e métodos da ciência (2.3.1). Mais especificamente, o projeto crítico do autor de Contra o Método também questiona a o dogma da superioridade (cognitiva e cultural) da ciência por meio da pergunta O que há de tão excelente com a ciência? (2.3.1.2) Um estudo englobante da obra feyerabendiana, então, precisa considerar tanto as fontes dos Estudos primários como dos Estudos secundários (1.1 e 1.2). Isso permite elaborar a nova hermenêutica do corpus de Feyerabend como um Pluralismo Global no qual a noção central de proliferação217 é gradual e irrestritamente aplicada aos domínios das teorias, métodos, culturas e ontologias.218

217

Feyerabend não designou sua filosofia por meio de qualquer rótulo, tendo mesmo rejeitado essa pretensão (PnP, p. 167). No entanto, é razoável considerar que a proliferação consiste na noção central, uma vez que para ele o estímulo à diversidade (de teorias, métodos, culturas e ontologias) beneficiaria a crítica radical do conhecimento e impediria a unicidade dogmática de categorias conceituais/perceptuais ou de visões de mundo. Como ele escreveu: “A crítica é facilitada pela proliferação: não trabalhamos com uma única teoria, sistema de pensamento, estruturas institucionais até que circunstâncias nos forcem a mudá-los ou rejeitá-los; usamos uma pluralidade de teorias (sistema de pensamento, estruturas institucionais) desde o começo” (PP1, p. ix). 218 Especificamente, as premissas exegéticas do Pluralismo Global em Feyerabend que tomamos de empréstimo da Feyerabendiana são: 1) 2) 3) 4) 5) 6)

Premissa do revisionismo teórico (Tese de Preston) Premissa da continuidade filosófica (Tese de Hoyningen-Huene & Oberheim) Premissa da centralidade da noção de ‘proliferação’ (Tese de Farrell) Premissa do expansionista da noção de ‘proliferação’ (Tese de Silva/Tambolo) Premissa da inseparabilidade (Tese de Dissakè) Premissa do ceticismo interpretativo (Tese de Munévar)

A premissa (1) afirma que Feyerabend revisou criticamente certas ideias (1.1.2 e 2.1.2.2). A premissa (2) salienta que as autocríticas feyerabendianas não são inconsistentes com um contínuo desenvolvimento filosófico pluralista (2.1.1). A premissa (3) sugere que o elemento comum a todas as etapas do desenvolvimento filosófico de Feyerabend corresponde à noção de proliferação (como princípio metodológico ou como metaprincípio do pluralismo) (1.1.4). A premissa (4) mostra que Feyerabend expandiu gradualmente a noção de proliferação a diferentes domínios conceituais (1.2.1e 1.2.4). A premissa (5) sugere que o pluralismo de Feyerabend aplica noção de proliferação tanto no âmbito epistemológico como no ético-político (1.2.2). Por fim, a premissa (6) instrui que a elaboração de leituras englobantes do corpus feyerabendiano devem ser vistas como ferramentas analíticas que contribuem para a inteligibilidade do pensamento do filósofo, portanto, não espelham a unidade imanente à própria obra (1.2.3).

246

CAPÍTULO IV IMAGENS DA DESUNIDADE Feyerabend contra a ‘Visão Científica de Mundo’ “B – Ao que parece, o senhor presume que a ciência seja uma coisa só. Nada poderia estar mais longe da verdade. Há um grande número de abordagens diferentes, espalhadas em toda parte, que produzem resultados contrastantes” (DC, p. 102). “Assim, a desconexão é a regra, e a harmonia não apenas uma exceção – ela simplesmente não existe” (TS, p. 9).

A hermenêutica do corpus de Feyerabend como um Pluralismo Global propõe que o autor de Contra o Método expandiu o princípio de proliferação ao nível das teorias, métodos, culturas e ontologias. Naturalmente, a concepção filosófica correspondente a essa aplicação irrestrita do pluralismo sugere um desacordo generalizado dele com o ideal de Unidade (teórica, metodológica, cultural e ontológica) da ciência. A Visão Padrão explorou o tópico da desunidade da ciência na obra de Feyerabend em dois momentos ([A] e [B]). Em [A], Preston (1997) afirma que:

[A.1.] “Há uma certa vertente do pluralismo metodológico na filosofia da ciência contemporânea que pode ser remontada a Feyerabend, e que manifesta ceticismo quanto à alegada ‘unidade’ da ciência. Segundo essa visão, não devemos exagerar quanto à uniformidade das ciências: diferentes ciências possuem, simultaneamente, diferentes métodos, e estágios na história de uma única ciência também exibe diferentes métodos. Essa perspectiva resulta em um pluralismo não quanto a teorias, mas acerca da natureza da ciência e do conhecimento” (p. 180). [A.2] “Vista nessa perspectiva, Feyerabend anuncia o declínio do projeto de ‘Unidade da Ciência’ positivista, a tentativa de especificar ou um único método científico conhecido ou uma relação na qual teorias de diferentes ramos da ciência podem compartilhar mutuamente em virtude do fato de que seus domínios podem ser reduzidos a ou identificados com um outro. Isso é um tanto quanto irônico, dado o forte comprometimento inicial de Feyerabend com o ideal de unidade e a função que ele exerce em sua argumentação em favor do realismo científico”. [A.3] “Eu tenho em mente o ‘modernismo crítico’ de Dupré [1993], caracterizado por seu antirreducionismo, antiessencialismo e pluralismo epistemológico” (p. 220 n. 13).

247

E, em [B], Preston (1998) afirma:

[B.1] “A filosofia da ciência é, provavelmente, a área da filosofia na qual o ‘pósmodernismo’ tem tido a menos penetração e tem sido menos discutida. Minha intenção aqui é esclarecer tanto a obra final de Feyerabend e a natureza do [pensamento] pósmoderno situando aquela obra relativamente a três posições diferentes na filosofia da ciência que têm sido denominadas ‘pós-modernas’” (pp. 80-81). [B.2] “O termo [‘pós-moderno’] foi recentemente aplicado […] à obra de John Dupré. Os temas (sobrepostos) na obra de Dupré que adotados para balizar tal caracterização são estes:     



A explícita afirmação da ‘desunidade da ciência’. A ciência não é, e jamais pode ser um único projeto unitário. […] O alinhamento com o que tem sido apelidado como ‘o novo empirismo’ […] A identificação com a esquerda política. O pluralismo ontológico […] A oposição com o reducionismo teórico: ainda que objetos macroscópicos possam ser fisicamente comprimidos a partes cada vez menores, teorias em ciências ‘altamente teóricas’ não são redutíveis àquelas da física e da química […] O antiessencialismo: embora existam divisões objetivas entre alguns tipos diferentes de coisas, questões sobre o(s) tipo(s) aos quais aquelas coisas pertencem apenas fazem sentido relativo a um objetivo especifico subjacente à intenção de classificar os objetos” (pp. 80-81).

“[B.3] “Podemos, agora, notar a afirmação de Feyerabend como um pós-moderno em seus próprios termos. Com a exceção, provável, do explícito comprometimento político com a esquerda (que não discutiremos aqui), a produção final feyerabendiana, nitidamente, contém todos os temas supracitados. Aqueles que o autor endossa mais fortemente são agrupados em torno do reconhecimento e admissão da ‘desunidade da ciência’, que é o tema central na obra final de Feyerabend”.

Esquematicamente, a perspectiva geral da Visão Padrão sobre a postura de Feyerabend quanto à Unidade da Ciência envolve cinco ideias básicas: i. ii. iii. iv. v.

219

O “pluralismo metodológico” de Feyerabend fecundou o “ceticismo” quanto à unidade da ciência ([A.1]). O “pluralismo metodológico” de Feyerabend diverge do projeto de ‘Unidade da Ciência’ positivista ([A.2a]). É “um tanto quanto irônico” Feyerabend defender a desunidade da ciência dado seu “forte comprometimento inicial” com o “ideal de unidade” ([A.2b]). A “obra final” de Feyerabend pode ser esclarecida se analisada sob a ótica do “pós-modernismo” ([B.1]). O perfil “pós-moderno” da “produção final” de Feyerabend decorre da presença de temas como a desunidade da ciência ([B.3]).219

[A.3] e [B.2] serão melhor discutidos em 4.2.1.

248

As ideias básicas da interpretação da Visão Padrão220 quanto às posições de Feyerabend contrárias à Unidade da Ciência sustentam uma influente interpretação do pensamento de Feyerabend, a qual se baseia em duas teses fundamentais:

I.

O abandono tardio (pós 1975) do ideal de Unidade da Ciência. Os assaltos pós-modernos de Feyerabend à perspectiva unitarista do Círculo de Viena sinalizam uma ruptura com o próprio ideal de unidade característico da produção inicial feyerabendiana.

II.

Ocorrência tardia (pós 1975) de temas pós-modernos. A ocorrência de temáticas pós-modernas (antirreducionismo, desconstrucionismo semântico e desunidade da ciência) no corpus de Feyerabend se acentuaria no período posterior ao Contra o Método, em particular textos tardios como Three Dialogues on Knowledge (1991) e A Conquista da Abundância (1999).

As ideias [A.3] e [B.4] acima apontam dois temas os quais, segundo a Visão Padrão, definiriam o caráter pós-moderno da obra final de Feyerabend: o antirreducionismo (teórico)221 e o desconstrucionismo (semântico) (PRESTON 2000, pp. 82, 86). Contudo, as considerações feyerabendianas sobre ambos tópicos remontam a obras bastante anteriores à publicação do Contra o Método.222 Sendo assim, a própria 220

Outros intérpretes do corpus feyerabendiano discutiram o tema, embora não tão detidamente como Preston. Por exemplo, Farrell (2003, p. 111) sintetiza o questionamento de Feyerabend: “Feyerabend também objetou aquela ideia de que existe uma estrutura unitária monolítica chamada ‘ciência’: ele concebe a ciência como uma coleção heterogênea de paradigmas distintos, ideias e práticas. Se não há unidade na ciência, então, o que constitui a forma de vida da cultura científica ocidental, como algo distinto de outras culturas e formas de vida não-ocidentais?”. Farrell (2003, pp. 188-189, 232-234) discute esse aspecto da Visão Padrão. Aparentemente, quanto a esse tópico, a Escola de Hannover parece convergir com a referida opinião prestoniana: “Feyerabend foi cético quanto à utilidade de alguns valores epistêmicos tradicionais, tais como a noção de verdade; a obra de Feyerabend no final dos anos 1970 e nos anos 1980, de fato, expressam algumas posições aparentemente ‘pós-modernistas’” (OBERHEIM 2006, p. 26; ver também KNOLL 2006, p. 50). Sobre a leitura de Dissakè (1999, 2001), ver a seção 4.3.2. No caso de Silva (1998, p. 309), o tema é apresentado de forma indireta e incompleta: “Uma sociedade na qual a ciência é única fonte de avaliação das tradições em presença. Não é uma sociedade livre”. Ver também Silva (1996, p. 314, 319). 221 Sobre o antirreducionismo ontológico de Feyerabend, ver o Cap. III. 222 O ‘antirreducionismo’ é o tema central da resenha que Feyerabend elaborou, em 1964, do livro The Structure of Science de Ernst Nagel. Críticas anteriores ao modelo reducionista de Nagel em PP1, cap. VI (1962) e PP3, cap. III (1963). Segundo o austríaco, a “ótica de Nagel sobre a interpretação de teorias” envolveria a estrutura “de uma redução” (PP2, p. 56). O reducionismo de Nagel afirmaria que as teorias científicas possuem “camadas, ou níveis, começando pelo nível observacional e ascendendo a níveis cada vez maiores de abstração” (p. 53). A atribuição de “conteúdo empírico” para o nível teórica decorreria do emprego de “regras de correspondência”. Segundo Feyerabend, tal modelo reducionista visaria não apenas se tornar o parâmetro do “resultado final” da ciência, mas também do

249

cronologia do corpus feyerabendiano diverge da periodização pressuposta na leitura prestoniana. Esse seria um primeiro obstáculo das teses I e II indicadas acima: a defesa feyerabendiana da desunidade da ciência antecede os trabalhos característicos da obra final de Feyerabend. O próprio Feyerabend proporciona elementos textuais que confirmam tal anterioridade temática em relação ao livro de 1975:

“Os filósofos, em especial os filósofos da biologia, suspeitavam havia já algum tempo que não há apenas uma entidade chamada ‘ciência’, com princípios claramente definidos, mas que a ciência compreende grande variedade de abordagens (em alto nível teóricas, fenomenológicas, experimentais) e que mesmo uma ciência particular como a física não passa de uma colação dispersa de assuntos (elasticidade, hidrodinâmica, reologia, termodinâmica etc.), cada um deles contendo tendências contrárias (exemplos: Prandtl versus Helmholtz, Kelvin, Lamb e Rayleigh; Trusdell versus Prandlt; Birkhoff versus ‘o senso comum físico’; Kinsman exemplificando todas as tendências – na hidrodinâmica). Para alguns autores, isso não é só um fato, mas é também desejável. Aqui tive novamente uma pequena contribuição a dar, nos Capítulos 3, 4 e 11 de [Contra o Método], na seção 6 de minha contribuição para o volume Criticism and the Growth of Knowledge de Lakatos e Musgrave (crítica da uniformidade dos paradigmas em Kuhn) e, em 1962, minha contribuição para aos Delaware Studies for the Philosophy of Science” (CM3, p. 13).

O trecho supracitado, extraído do Prefácio à 3ª edição do Contra o Método, convida à elaboração de uma leitura alternativa à influente leitura prestoniana. Com efeito, nossa opinião geral quanto à relação entre a filosofia pluralista Feyerabend e a

“desenvolvimento de nosso conhecimento” (p. 58): “O desenvolvimento do conhecimento, então, consiste na acumulação de fatos, e de camadas teóricas. A ciência avança por aprimoramento interno de cada nível, por adição de novos fatos no nível observacional, por adição de novos sistemas explicativos no alto”. Contudo, o autor de Contra o Método conclui que o “método recomendado por Nagel conduz a consequências indesejáveis” (p. 61). O modelo nageliano não seria, enfim, “consistente nem com a prática da ciência nem com uma metodologia razoável” (p. 62). O ‘desconstrucionismo semântico’ remonta à pioneira resenha das Investigações Filosóficas de Wittgenstein, que Feyerabend preparou em 1955. Ainda em seu ‘período londrino’, Feyerabend leu “detalhadamente” aquele escrito, além de uma fotocópia das Observações sobre os Fundamentos da Matemática (CM3, pp. 347, 349). A lição wittgensteiniana das Investigações Filosóficas envolve uma visão ‘instrumentalista’ dos sistemas de comunicação, isto é, uma tese segundo a qual os termos que empregamos consistem estritamente em ‘ferramentas linguísticas’ uteis para a transmissão, recepção e replicação das informações: “De minha parte chego a afirmar – e existem fortes evidências a favor dessa visão – que a teoria de Wittgenstein pode ser compreendida como uma teoria construtivista do significado, isto é, como um construtivismo aplicado não apenas aos significados das expressões matemáticas, mas aos significados em geral” (PP2, p. 125). Algumas passagens das Investigações Filosóficas nas quais Feyerabend se baseou para elaborar essa interpretação são: §§569, 1, 9, 120, 13, 29, 43, 29, 117, 233, 81, 23, 7. Nesse sentido, encontraríamos claramente uma recusa do “realismo” ou do “essencialismo” (PP2, p. 99) quanto ao significado. Portanto, Feyerabend conclui por endossar (ver MT, p. 101) a “nova teoria (instrumentalista, nominalista ou seja lá como se queira denominar) do significado” (p. 125) de Wittgenstein: “De minha parte chego a afirmar – e existem fortes evidências a favor dessa visão – que a teoria de Wittgenstein pode ser compreendida como uma teoria construtivista do significado, isto é, como um construtivismo aplicado não apenas aos significados das expressões matemáticas, mas aos significados em geral” (p. 111 n. 12).

250

afirmação da desunidade da ciência discorda substancialmente223 da referida interpretação contida nas teses I e II da Visão Padrão. Como evidenciaremos adiante: i) Feyerabend não abandonou tardiamente (pós-Contra o Método) o ideal de Unidade da Ciência (contra a tese I da Visão Padrão); e ii) a ocorrência do tema da desunidade da ciência no corpus de Feyerabend não se restringe a textos tardios (contra a tese II a Visão Padrão). Em outros termos, podemos perceber que o tópico da fragmentação da ciência224 habita o núcleo do Pluralismo Global de Feyerabend, portanto, emerge como uma das mais salientes vias de inteligibilidade do alentado corpus feyerabendiano. Para tanto, em 4.1, apresentamos as três fontes textuais básicas referentes à posição básica de Feyerabend quanto à desunidade da ciência e elucidamos a metáfora oceânica como sua principal imagem; e sintetizamos a posição básica de Feyerabend enquanto afirmação de uma concepção pluralista orientada para a proliferação de alternativas teóricas heterogêneas e mutuamente inconsistentes. Em 4.2, discutimos a gênese e composição da posição avançada Feyerabend quanto à desunidade da ciência e elucidamos o ícone do Monstro como sua principal imagem; e sintetizamos a posição avançada enquanto afirmação da natureza inarmônica, desarticulada, fraturada e heterogênea da ciência. Em 4.3, introduzimos o programa neopositivista de Concepção Científica de Mundo e ideal de unidade da ciência do Círculo de Viena; apresentamos e objetamos três leituras que buscam aproximar Feyerabend da perspectiva unitarista do Empirismo Lógico, sobretudo da filosofia de Otto Neurath. Em 4.4, explicitamos a leitura feyerabendiana sobre os mecanismos pedagógicos e formas materiais de difusão da ideologia monista; e, finalmente, em 4.5, indicamos que a filosofia pluralista de Feyerabend, de forma filosoficamente consistente, admite de movimentos de unificação, desde que deliberados e provisórios. Desse modo, concluímos que a recusa feyerabendiana da Unidade da Ciência exibe como alvo principal potenciais implicações éticas decorrentes de ideologias monistas.

223

O ponto de aproximação será debatido em 4.3.2. Feyerabend discutiu a noção de fragmentação em CA, p. 235 e AR, p. 7, tendo também usado o termo ‘desunidade’ em sua obra, como, por exemplo, em CM, p. 13 n. 7. Consideramos esses dois conceitos como filosoficamente intercambiáveis, tanto entre si quanto em relação a heterogeneidade, diversidade, fratura, diversidade etc. 224

251

4.1. A ‘posição básica’ de Feyerabend A posição básica de Feyerabend quanto à desunidade da ciência concerne à defesa da proliferação e tenacidade de teorias alternativas como meio de avanço do conhecimento. Essa ideia remonta àquelas três fontes bibliográficas que o filósofo destacou no Prefácio à 3ª edição’ do Contra o Método: i) o texto “How to be a Good Empiricist” (1963), ii) a seção 6 do ensaio “Consolando o Especialista” (1970) e iii) os capítulos III, IV e XI de Contra o Método (1975). Nas seções abaixo vamos analisar separadamente essas fontes da posição básica de Feyerabend e, em (4.1.2), associá-las à primeira imagem da proposta desunitarista feyerabendiana: a metáfora oceânica.

4.1.1. As três fontes da ‘posição básica’ As seções 4.1.1.1, 4.1.1.2 e 4.1.1.3 detalham o conteúdo daquelas três fontes da posição básica de Feyerabend sobre a desunidade da ciência. Então, tal concepção abarca ideias elaboradas entre o início da década de 1960 e meados dos anos 1970.

4.1.1.1.O ‘empirismo depurado’ Feyerabend não aceita que o empirismo seja a única forma de promover o avanço científico. Segundo ele, ao contrário, a própria tendência empirista radical (associada ao Empirismo Lógico) que propunha a eliminação da metafísica acarretaria uma estagnação do conhecimento científico. Assim, Feyerabend considera que “alguns métodos do empirismo moderno” envolveriam mesmo uma “metafísica dogmática” (PP3, p. 79). Em contraposição a isso, o texto “How to be a Good Empiricist” (1963) retoma a metodologia pluralista, pautada pela defesa da diversidade de teorias alternativas, que encontramos na obra feyerabendiana dos anos 1960 (ver 3.3.1). Feyerabend designa como “bom empirismo” essa concepção metodológica baseada em “muitas teorias alternativas”, a qual recusa a “petrificação” do conhecimento em torno de uma única perspectiva supostamente fundada na experiência (p. 80). Nesse sentido, constatamos como o autor de Contra o Método considera o método do pluralismo teórico uma “característica essencial de todo conhecimento que aspire ser objetivo”.

252

A função de alternativas concretas é, contudo, esta: elas fornecem meios de criticar a teoria aceita de uma forma que vai além da crítica oferecida por uma comparação daquela teoria ‘com os fatos’: por mais que uma teoria pareça refletir os fatos, por mais universal que seja o uso dela e por mais necessária que a existência dela pareça ser àqueles falantes do idioma correspondente, a adequação factual dela apenas pode ser assegurada após ter sido confrontada com alternativas cuja invenção e desenvolvimento detalhado deve, pois, preceder qualquer adesão final de êxito prático e adequação factual.

A justificação do método pluralista feyerabendiano envolve a premissa de que o pensamento crítico requer uma diversidade de ideias. Por isso, o autor insiste na proliferação de alternativas como forma de investigar de maneira mais eficiente as concepções estabelecidas. Criticando os próprios fundamentos da tradição empirista, Feyerabend investiga se “fatos existem” e, em seguida, se eles “estão disponíveis, independentemente de considerarmos ou não alternativas à teoria a ser testada” (p. 91). Como mostramos em 3.2.1 e 3.2.2, desde os anos 1950 o autor recusava qualquer autonomia teórica dos fatos. Para ele, haveria uma relação estreita entre o conteúdo empírico de uma teoria e a própria teoria, ou seja, “fatos e teorias estão muito mais intimamente ligados do que é aceito pelo princípio de autonomia” (p. 92). A conclusão à qual Feyerabend chegou, após tal formulação, asseverava que a própria descrição dos fatos dependia de algum conjunto de pressupostos. Logo, existiriam fatos i) que não podem ser descobertos sem a presença de alternativas à teoria a ser testada e que ii) parecem inacessíveis sem a presença de alternativas. Feyerabend afirma, então, o “caráter refutador” da pluralidade teórica:

Isso sugere que a unidade metodológica à qual devemos nos referir quando discutimos questões de teste e conteúdo empírico é constituída por todo um conjunto de teorias parcialmente sobrepostas, factualmente adequadas, porém mutuamente inconsistentes (p. 92).

Nos anos 1960, Feyerabend argumentou em favor de “unidade metodológica” baseada na pluralidade de teorias. Essencialmente, o pluralismo teórico feyerabendiano assumia que o acesso a fatos decisivos para a crítica das teorias estabelecidas dependeria da variedade de opiniões, mesmo que carentes de suporte empírico e discordantes das ideias corroboradas. Para o autor de Contra o Método, o próprio aumento de conteúdo científico exigiria a invenção e articulação de concepções rivais: 253

“a invenção de alternativas, em adição à concepção posta no centro da discussão, constitui uma parte essencial do método empírico”. Por seu turno, a insistência no monismo teorético representaria uma mentalidade dogmática e intolerante com a diversidade teórica. Também conduziria à enganosa impressão de que as ideias corroboradas possuem um “enorme amparo empírico” (p. 95). A crença na unidade do conhecimento entenderia, ainda, que teorias corroboradas espelham a natureza e, por conseguinte, o “alegado sucesso” delas erigiria um “sistema metafísico”. Mas, conforme Feyerabend, a convicção no êxito inquestionável dessas ideias unitárias não passaria de um reflexo da exclusão de ideias contrárias. Por isso, a expectativa por teorias altamente confirmadas ou corroboradas envolveria um “absoluto conformismo” em termos teóricos (p. 96). O pluralismo teórico de Feyerabend salienta que a exclusão de alternativas conduz à crença na verdade das teorias estabelecidas. Contra isso, assevera: “o único meio de investigar tais princípios abrangentes consiste em compará-los com um conjunto diferente de princípios igualmente abrangentes”. Portanto, metodologias que encorajam a uniformidade de ideias implicariam uma espécie de “deterioração das capacidades intelectuais, do poder da imaginação” (p. 97). Por sua parte, a variedade de ideias se mostraria fundamental para o desenvolvimento científico. Ela também ajudaria a “desenvolver as capacidades humanas” através do encorajamento à “especulação e invenção de alternativas” (pp. 99, 102). Assim, o ideal empirista feyerabendiano submeteria teorias ao confronto com alternativas com vistas a impedir o estabelecimento dogma da única forma de conhecimento.

4.1.1.2. Contra o ‘monismo paradigmático’ A seção 6 do ensaio feyerabendiano “Consolando o Especialista” (PKF 1979), parte de quatro proposições comumente relacionadas ao pensamento de Kuhn:

i. ii. iii. iv.

“[…] as teorias não podem ser refutadas senão com a ajuda de alternativas” (p. 256). “[…] a proliferação também representa um papel histórico no derrubamento de paradigmas” (pp. 256-257). “Paradigmas têm sido derrubados mercê do modo com que as alternativas têm ampliado as anomalias existentes” (p. 257). “[…] as anomalias existem em qualquer ponto da história de um paradigma” (p. 257).

254

Feyerabend considera “um mito” a ideia kuhniana segundo a qual “as teorias são inatacáveis durante decênios e mesmo durante séculos, até surgir uma grande refutação que as derruba”. Para o austríaco, em oposição ao ideal da permanência dos paradigmas, as quatro teses acima recomendam: dar “início imediatamente à proliferação” e “nunca permitirmos que uma ciência normal venha a existir”. Assim, ele argumenta que, sem proliferação de alternativas, não ocorreriam nem refutação de teorias nem destruição de paradigmas estabelecidos. O austríaco questiona, ainda, se é “efetivamente o caso” que os próprios cientistas trabalham de modo a impedir que “períodos normais” durem “muito tempo”. Para evidenciar a inexistência factual do monismo paradigmático, ele escreve:

No segundo terço deste século existiam, pelo menos, três paradigmas diferentes e mutuamente incompatíveis. Eram eles: (1) o ponto de vista mecânico, que encontrou expressão na astronomia, na teoria cinética, nos vários modelos mecânicos da eletrodinâmica, assim como nas ciências biológicas, sobretudo da medicina (aqui na influência de Helmholtz foi fator decisivo); (2) o ponto de vista ligado à invenção de uma teoria do calor independente e fenomenológica, que finalmente se revelou incompatível com a mecânica; (3) o ponto de vista implícito na eletrodinâmica de Faraday e Maxwell, desenvolvido e liberados seus concomitantes mecânicos por Hertz (p. 257).

Feyerabend afirma que a “queda da física clássica” foi consequência de uma “ativa interação” entre os “diferentes paradigmas”. O desenvolvimento do conhecimento não refletiria o modelo que “o próprio Kuhn nos ensina” (p. 258). O progresso científico, portanto, ocorreria como efeito da “minoria proliferadora (e dos experimentadores que atenderam aos problemas da minoria e às suas estranhas predileções”. Assim, o filósofo conclui que os “velhos enigmas” não seriam solucionados através das “próprias revoluções” dos modelos teóricos dominantes. Para ele, seria absolutamente inadequado a descrição kuhniana a qual “separa temporalmente períodos de proliferação e períodos de monismo”. Para Feyerabend, o monismo paradigmático seria historicamente incorreto e metodologicamente prejudicial.225

225

Para uma discussão mais detalhada desse tópico, ver Abrahão (2013).

255

4.1.1.3. Contra a uniformidade de pensamento A terceira fonte da posição básica de Feyerabend consiste nos capítulos III, IV e XI de Contra o Método.226 Encontraremos nesse material: i) uma discussão do processo uniformização de propostas originalmente “revolucionarias” (4.1.1.3.1), ii) um argumento em favor da existência de “instituições não científicas” na proliferação de visões de mundo (4.1.1.3.2) e iii) uma exposição da relação entre a manutenção de hipóteses refutadas ou empiricamente inconsistentes e a crítica da “tirania de sistemas teóricos” (4.1.1.3.3). Essas três ideias evidenciam como Feyerabend, no contexto do Contra o Método, afirma a pluralidade de concepções teóricas (sejam teorias refutadas ou fomentadas por meios não tradicionais) com a padronização das formas de pensar.

4.1.1.3.1. Uniformização de ideias revolucionárias Feyerabend avalia que a concepção epistemológica acumulativista insiste na necessidade de que novas hipóteses sejam consistentes com as teorias corroboradas. Contudo, ele considera que importantes exemplos históricos não cumprem tal norma de consistência lógica entre teorias sucessivas. Para ilustrar essa opinião, ele menciona: a mecânica de Newton e a lei da queda livre de Galileu; a termodinâmica estatística e a segunda lei da teoria fenomenológica; as ópticas ondulatória e geométrica (CM3, pp. 51-52). Mas, além de historicamente questionável, o autor comenta que aquela exigência de consistência seria metodologicamente indesejável. Em sua perspectiva, a norma de consistência “elimina uma teoria ou hipótese não porque esteja em desacordo com os fatos”, mas porque ela “está em desacordo com outra teoria”. Por sua parte, o Contra o Método segue afirmando que a seleção de teorias exige uma pluralidade teórica. A ideia feyerabendiana dos anos 1970 ainda guarda traços daquela primeira tese pluralista segundo a qual a identificação de fatos refutadores das teorias estabelecidas exige a existência de hipóteses alternativas. Entretanto, no livro de 1975, o autor elabora uma leitura referente às etapas sucessivas que levam ideias

226

Estruturalmente, os capítulos III e IV das três edições do Contra o Método são idênticos. O capítulo XI, no entanto, difere substancialmente entre as edições: o capítulo XI da edição de 1975 corresponde ao X da de 1988 e 1993, ao passo que o XI das duas versões finais corresponde ao XII da primeira versão do livro. Tomamos como base o capítulo XI da 3ª edição do Contra o Método, seguindo a orientação de Feyerabend no referido ‘Prefácio’ à 3ª edição do Contra o Método: “Da presente edição. Reproduzimos, sem emendas, da primeira edição” (CM3, p. 13 n. 8).

256

originalmente revolucionárias a se converterem em dogmas: i) hostilidade da audiência, ii) curiosidade das novas gerações, iii) aumento de estudos especializados, iii) institucionalização, iv) aceitação por parte do status quo, v) popularização e divulgação, vi) interesse de outros campos e vii) padronização e estabelecimento. Em síntese, inicialmente as ideias inovadoras enfrentariam uma forte resistência por parte da tradição. O aumento do interesse e dos estudos especializados sobre essas ideias inovadoras, nas novas gerações, aumentaria a popularidade e a utilização delas em outros domínios. Aos poucos, propostas originalmente revolucionárias se converteriam em preceitos ou dogmas da nova tradição. Nesse sentido, os supostos êxitos delas seriam propalados através de slogans e concepções alternativas não seriam consideradas. Mas qualquer apreciação do sucesso de uma ideia se mostraria vazia se não envolver uma genuína comparação dela com ideias rivais. Então, Feyerabend sublinha que, metodologicamente, a atitude mais razoável seria adotar “um pluralismo de ideias e de formas de vida” contra a nociva prevalência de um único ponto de vista (p. 59):

[…] a unanimidade de opinião pode ser adequada para uma igreja rígida, para as vítimas assustadas ou ambiciosas de algum mito (antigo ou moderno), ou para os fracos e voluntários seguidores de algum tirano. A variedade de opiniões é necessária para o conhecimento objetivo. E um método que estimula a variedade é também o único método compatível com uma perspectiva humanitarista.

4.1.1.3.2. Importância ética de instituições não científicas De maneira geral, o argumento pluralista básico de Feyerabend assume que a crítica de ideias altamente amplamente demanda a existência alternativas. Essas alternativas poderiam ser inventadas, recuperadas a partir do passado ou apropriadas das mais estranhas fontes.227 O pensamento feyerabendiano não admite qualquer imposição de obstáculos à proliferação de ideias: “Nenhuma ideia é jamais examinada em todas as suas ramificações e a nenhuma concepção são jamais dadas todas as oportunidades que merece” (p. 66). Teorias refutadas ou desconhecidas também

“A história inteira de uma disciplina é utilizada na tentativa de aperfeiçoar seu estágio mais recente e mais ‘avançado’. A separação entre a história de uma ciência, sua filosofia e a própria ciência dissolvese no ar, e isso também se dá com a separação entre ciência e não-ciência” (CM3, p. 64). 227

257

poderiam ser recuperadas no sentido de contrastar teorias estabelecidas.228 O ponto fundamental dessas considerações é a possibilidade de que o avanço do conhecimento não dependa apenas de ideias ou tradições científicas. Então, o Contra o Método sugere que “a proliferação talvez tenha de ser efetuada por entidades não-científicas cujo poder seja suficiente para superar as mais poderosas instituições científicas” (p. 69). Portanto, Feyerabend reconhece que instituições não científicas podem atuar como promotoras da diversidade de opiniões. Como tal, o pensamento feyerabendiano não elogia a heterogeneidade de perspectivas apenas por motivos epistemológicos e metodológicos. Nas palavras do autor, a diversidade de formas de pensamento seria também essencial a partir de uma “perspectiva humanitarista”. A unidade de concepções teóricas não se compatibilizaria com o objetivo de “desenvolver a individualidade” e “fazer florescer os talentos”. Isso evidencia que a metodologia pluralista expressa no livro em foco também buscaria proteger a liberdade de pensamento.

4.1.1.3.3. O ‘passo atrás’ e a tirania de sistemas teóricos Feyerabend critica a tendência epistemológica que desconsidera a história da ciência. Ele denuncia que essa postura conduziria à impressão de que a seleção entre teorias concorrentes envolveria unicamente “observações precisas, princípios claros e teorias bem confirmadas” (p. 157). Em resposta, o Contra o Método explica que os elementos do nosso conhecimento seriam “entidades atemporais”:

[…] esse procedimento não leva em conta que a ciência é um processo histórico heterogêneo e complexo que contém antecipações vagas e incoerentes de ideologias futuras ao lado de sistemas teóricos altamente sofisticados e formas de pensamento antigas e petrificadas. Alguns de seus elementos estão disponíveis na forma de enunciados claramente redigidos, ao passo que outros estão ocultos e tornam-se conhecidos apenas por contraste, por comparação com concepções novas e fora do comum […] Muitos dos conflitos e das contradições que ocorrem na ciência são devidos a essa heterogeneidade do material, a essa ‘desigualdade’ do desenvolvimento histórico […].

228

O exemplo mais radical que Feyerabend utiliza para estruturar essa tese é o caso do vodu. Segundo o autor: “Ninguém o conhece, todos os citam como paradigma de atraso e confusão. Não obstante, o vodu tem uma base material firma, embora ainda não suficientemente compreendida, e um estudo de suas manifestações pode ser empregado para enriquecer, e talvez mesmo revisar, nosso conhecimento de fisiologia” (CM3, p. 67).

258

Aquele livro sustenta que o conhecimento dos eventos históricos da ciência afeta a compreensão quanto ao tema da seleção de teorias. Basicamente, afirma que a pesquisa

histórica

mostraria

as

complexidades

subjacentes

à

formulação,

amadurecimento e consolidação de uma nova visão de mundo. O conhecimento da história da ciência fundamentaria a atitude metodológica de aguardar o incremento das ideias e ignorar as dificuldades (empíricas, teóricas etc.) delas. Portanto, o estudo da dinâmica científica evidenciaria como avanços científicos demandam um tipo de “movimento de recuo” diante de situações refutadoras ou críticas (p. 166). Nesse sentido, mostraria também que a própria adesão a novas ideias envolveria “meios irracionais”, tais como: propaganda, emoção, hipóteses ad hoc, preconceitos de classe, paixão, idiossincrasias pessoais, questões de estilo, e até mesmo o puro e simples erro.

Ora, o que nossos exemplos históricos parecem mostrar é isso: há situações em que nossos juízos mais liberais teriam eliminado um ponto de vista que consideramos, hoje, essencial para a ciência, e não teriam permitido que prevalecesse – e tais situações ocorrem com bastante frequência. As ideias sobreviveram e, agora, diz-se que estão de acordo com a razão. Elas sobreviveram por causa do preconceito, paixão, vaidade, erros e pura teimosia; em resumo, porque todos os elementos que caracterizam o contexto da descoberta opuseram-se aos ditamos da razão e porque permitiu-se que esses elementos irracionais agissem à sua maneira (p. 168).

4.1.2. Revisitando a ‘metáfora oceânica’ O opúsculo “PHIL. VIII, 94-95: Introduction à l’Horizon de la Doctrine Human” (1715), presente no compêndio Opuscles et Fragments inédits de Leibniz (pp. 530-531), emprega uma metáfora oceânica229 para definir a natureza unitária da ciência:

O corpo inteiro da ciência pode ser visto como um oceano, o qual é, em todos os lugares, contínuo, ininterrupto ou sem divisões, mesmo que os humanos possam-lhe separar as partes, para as quais atribuem nomes visando o próprio uso. Ademais, assim como existem mares desconhecidos, ou mares que apenas foram navegados por poucas embarcações, lançadas neles por mero golpe do acaso, do mesmo modo também existem ciências das quais temos somente um conhecimento apenas eventual e sem propósito.

229

O pensador recorreu àquela imagem em outras passagens de sua obra, como mostra Selcer (2007).

259

A metáfora oceânica em Leibniz salienta que “o corpo inteiro da ciência” seria “contínuo, ininterrupto ou sem divisões”, ainda que a informação disponível acerca de certos domínios científicos permaneça “eventual e sem propósito”. Marras (2008) analisou, em pormenor, a relação entre as “metáforas aquáticas” (p. 199) de Leibniz e seu sentido epistemológico: “De fato, a metáfora oceânica ocupa uma posição central na conceptualização de Leibniz oferece para os problemas, objetivos e reformas que propõe no domínio do conhecimento”. Uma reflexão sobre o “domínio conceitual” (p. 200) da comparação entre o conhecimento científico e o oceano indicaria três “propriedades compartilhadas” (p. 203): i) flexibilidade, ii) interconexão e iii) organização. No entanto, a “propriedade central” seria a “fluidez” (p. 206). Primeiro: o oceano e a ciência não teriam “limites definidos” (p. 207). Isso possibilitaria uma “propagação infinita”, bem como uma “flexível continuidade” das partes. Assim, ainda que “imperceptivelmente”, todos os componentes deles estariam “em contato”. Segundo: o oceano e a ciência não seriam “fixos ou estáticos”. Ambos exigem “experiência”, algum “conhecimento prévio” e “imaginação” para enfrentar situações inusitadas. Portanto, eles permitiriam “descobertas” derivadas da “coleta de informação” advinda da exploração de “novas rotas”. Terceiro: o oceano e a ciência seriam “dinâmicos, ao invés de estáticos” (p. 206). Mesmo assim, “todas as partes” formariam uma unidade: “Isso assevera o caráter ‘aberto’ e ‘flexível’ da organização do conhecimento. O oceano é ilimitado; é o resultado da coexistência de partes diferentes”. O sentido da metáfora leibiniziana acena, portanto, para a ideia de que a ciência e o oceano representam a “síntese de um mundo heterogêneo” (p. 202). Aquela metáfora remeteria, enfim, à característica básica do “principal projeto de organização do conhecimento” (p. 200) elaborado pelo filósofo alemão: a enciclopédia, ou seja, um “sistema de relações e interconexões” a qual busca combinar “pluralidade com unidade” (p. 208). Marras conclui:

O ponto de vista engendrado por essa metáfora – a visão de uma massa aquática infinita, contínua, plana e fluida – permite uma nova visão da estrutura do conhecimento cuja imagem não é mais […] a usual imagem da ‘árvore do conhecimento’ (usada, por exemplo, por Descartes na esteira de Porfírio, Boécio e Bacon). Leibniz rompe as barreiras entre os diferentes ramos do conhecimento ou entre campos, domínios ou conhecimentos separados. Ao invés da classificação hierárquica das ciências implicadas pela metáfora da árvore, a visão induzida pelo oceano evoca a antiga ideia do ‘círculo do aprendizado’ (ankhyklios paideia), na qual a ênfase reside na ‘circulação’ do conhecimento, a transmissão do conhecimento, a disponibilidade do conhecimento e a interconexão do conhecimento (p. 209).

260

Como vemos, a concepção unitarista de Leibniz estimularia um “diálogo mútuo” entre áreas do saber, uma “fertilização cruzada” e uma “continuidade” entre disciplinas, além da “‘fluidização’ das fronteiras” do conhecimento. Nessa perspectiva, as próprias “propriedades do oceano” (p. 202) se alinhariam com aspectos de uma enciclopédia, a saber: “organização”, “continuidade”, “ausência de limite” etc. A enciclopédia leibiniziana pretendia ser, em síntese, o fruto de um infindável “trabalho coletivo” e “cooperativo” voltado para uma “função educacional e cultural”.

4.1.2.1. “…ein standig zunehmendes Meer von Alternativen” Não encontramos qualquer referência à metáfora oceânica leibniziana no corpus feyerabendiano.230 Não obstante, uma versão particular dessa imagem perpassa a produção filosófica de Feyerabend. Inicialmente, ela tende a ilustrar uma tese pluralista pautada pela unidade metodológica das teorias alternativas. Reproduzimos abaixo três ocorrências dessa tese básica de Feyerabend, a qual consta, com termos praticamente idênticos, em textos publicados, respectivamente, em 1962, 1963 e 1965:231

i.

ii.

iii.

Isso sugere que fora do domínio das generalizações empíricas a unidade metodológica à qual nos referimos quando discutimos questões de teste e conteúdo empírico é constituída por todo um conjunto de teorias parcialmente sobrepostas, factualmente adequadas, porém mutuamente inconsistentes (PP1, pp. 72). Isso sugere que a unidade metodológica à qual devemos nos referir quando discutimos questões de teste e conteúdo empírico é constituída por todo um conjunto de teorias parcialmente sobrepostas, factualmente adequadas, porém mutuamente inconsistentes (PP3, p. 92). A unidade metodológica à qual devemos nos referir quando discutimos questões de teste e conteúdo empírico é constituída por todo um conjunto de teorias parcialmente sobrepostas, factualmente adequadas, porém mutuamente inconsistentes (PKF 1965, p. 175).

230

As citações de Feyerabend referentes a Leibniz concernem, sobretudo, a questões científicas ou filosóficas mais gerais, tais como: a crítica cosmológica às explicações não matemáticas dos aristotélicos quanto a leis mecânicas (CSL, pp. 77-79), a importância de comparar as ideias de Newton com as de outros pensadores, como Leibniz, para aprimorar nosso entendimento sobre algumas “obscuras noções” newtonianas (CSL, pp. 77-79); a atitude “corajosa”, “otimista” de Leibniz e outros pensadores modernos em comparação à do “primeiros filósofo” jônicos (PP3, p. 52); a divergência leibniziana com a ideia newtoniana da necessidade de uma ‘intervenção divina’ para o movimento do cosmos (NP, p. 307); ou o debate com Newton, via Clarke, acerca da existência da luz no vacum (CA, p. 294). 231 O trecho em defesa do pluralismo de teorias se repete em textos posteriores, como neste de 1969: “Isso sugere que a unidade metodológica à qual devemos nos referir quando discutimos questões de teste e conteúdo empírico é constituída por todo um conjunto de teorias parcialmente sobrepostas, factualmente adequadas, porém mutuamente inconsistentes” (PP1, p. 157).

261

4.1.2.1.1. Ocorrência original e elementos essenciais Em 1965, Feyerabend insistiu na tese da unidade metodológica pluralista. Naquele momento, ele ainda aspirava por um “modelo abstrato para a aquisição do conhecimento” (PP1, p. 104): “Tais modelos”, segundo o filósofo, “nos ensinam como proceder tendo em vista certos objetivos” (p. 105). Pois bem, a metodologia pluralista feyerabendiana buscava aumentar a testabilidade do conhecimento e, para tanto, recorria ao princípio de proliferação: “Inventar e elaborar teorias que são inconsistentes com o ponto de vista aceito, ainda que ele seja amplamente confirmado e aceito de forma geral”. Feyerabend introduziu três argumentos em favor da proliferação de alternativas como método de crítica do conhecimento científico: Argumentos lógicos i) Proliferação como meio para a acentuar ou suspender desacordos entre teoria e evidência:

[…] nenhuma teoria jamais concorda (fora do domínio dos erros conhecidos) com a evidência disponível. Assim, se não quisermos ficar sem nenhuma teoria, precisamos de mecanismos para atenuar certos desvios, de extraí-las do oceano de ‘ruídos desviantes’ que circundam toda teoria. Alternativas oferecem tais meios.

ii) Proliferação como método de avançar o conhecimento:

Teorias concordam com fatos (e não com observações) apenas em certa medida. Na verdade, seria uma grande surpresa para todos se fosse encontrada uma teoria que representa todos os fatos perfeitamente. A evidencia espelha alguns desacordos com os fatos. Mas há casos em que leis físicas impedem a discrepância de aparecer sempre na evidência. Pois bem, se encontramos uma teoria que afirme a discrepância, que seja capaz de repetir os sucessos passados do ponto de vista admitido, que traga evidências novas e independentes a seu favor, então teremos boas razões para abandonar o ponto de vista aceito, apesar do seu sucesso.

Argumento psicológico iii) Proliferação como forma de preparar a mente para perceber falhas:

262

[…] uma mente que está imersa na contemplação de uma única teoria não é capaz sequer de perceber a mais flagrante fraqueza dessa teoria (PP1, p. 106).

Na explicação de Feyerabend, o Princípio do Pluralismo232 comporta duas recomendações: i) Proliferação – inventar novas alternativas e ii) Tenacidade – preservar teorias antigas refutadas. Na opinião do autor, proliferação e a tenacidade de teorias ignoram restrições metodológicas a priori. Ideias impopulares, conjecturas metafísicas, perspectivas abandonadas etc. poderiam ser utilizadas para maximizar a testabilidade do conhecimento e aumentar o conteúdo empírico das teorias. É nesse contexto que a metáfora oceânica surge na obra feyerabendiana:

Concebido dessa forma, o conhecimento não é um processo que converge em direção a uma visão ideal; é um oceano crescente de alternativas [ein standig zunehmendes Meer von Alternativen], cada uma delas forçando a outra a um nível maior de articulação, todas contribuindo, através desse processo de competição, para o desenvolvimento de nossas capacidades mentais (PP1, p. 107; PE, p. 130).

De forma geral, o panorama da perspectiva pluralista que subjaz a essa versão da metáfora oceânica pode ser apreendido a partir de quatro indagações: i. ii. iii. iv.

O que é o conhecimento? Qual a imagem adequada para representar o conhecimento? Qual a relação existente entre teorias alternativas? Qual a meta da competição entre teorias alternativas? Na citação acima reconhecemos as respostas de Feyerabend para cada uma

dessas questões: (Ri) “o conhecimento não é um processo que converge em direção a uma visão ideal”; (Rii) a imagem adequada para esse processo é um “oceano crescente de alternativas”; (Riii) a relação entre as alternativas é de um “processo de competição”; e (Riv) a meta dessa competição é “o desenvolvimento de nossas capacidades mentais”.

232

Convém notar que, na edição em alemão desse artigo, o Princípio de Proliferação é denominado Princípio do Pluralismo: “Prinzip des Pluralismus: Man erfinde und entwickIe Theorien, die der gängigen Auffassung widersprechen, auch wenn diese sehr gut bestätigt und allgemein anerkannt ist” [ou seja: “Inventar e elaborar teorias inconsistentes com as concepções aceitas, ainda que elas sejam largamente conformadas e amplamente aceitas] (PE, pp. 128-129). Nesse sentido, adotamos a interpretação de que, para Feyerabend, o pluralismo encontra na proliferação sua expressão adequada. Assim, o pluralismo feyerabendiano inclui tanto a invenção de alternativas rivais como a manutenção de pontos de vista antigos refutados.

263

Desse modo, compreendemos que a metáfora oceânica no corpus de Feyerabend contrasta com a versão da imagem marítima alinhada à ideia de unidade da ciência. Pois bem, o mar do conhecimento feyerabendiano se definiria, sobretudo, pela instabilidade, desarmonia, fragmentação e pelo movimento incessante sem pretender uma Única Teoria Final. Portanto, concebida para ilustrar a heterogeneidade teórica da ciência, essa primeira imagem da desunidade surgiu nos anos 1960 como corolário de argumentos lógicos e psicológico em favor da proliferação e tenacidade de teorias alternativas.

4.1.2.1.2. Variações do Contra o Método A figura do oceano de teorias contrastantes se converteu em uma peça retórica central da argumentação feyerabendiana. O autor recorre a ela em todas as edições do Contra o Método.233 Mas tais aparições dessa metáfora introduzem elementos teóricos àquela formulação original de 1965 (4.2.1.1). A primeira diferença concerne aos distintos contextos teóricos, os quais no Contra o Método refletem o objetivo de examinar detalhadamente a máxima vale tudo (AM, p. 20; CM1, p. 39; CM2, 35; CM3, p. 45; ver 3.3.2.2). Feyerabend comenta que essa apreciação exigiria “traçar as consequências de contra-regras” de normas metodológicas estabelecidas. O caso analisado no capítulo II do Contra o Método concerne ao ditame que representaria a “essência do empirismo”:

Regra empirista – “é a ‘experiência’, ou são os ‘fatos’ ou os ‘resultados experimentais’ que mensuram o sucesso de nossas teorias”.

A “contra-regra” dessa regra empirista aconselharia: Contra-regra empirista (‘contra-indução’) – “introduzir e elaborar hipóteses que são inconsistentes com teorias bem estabelecidas e/ou fatos bem estabelecidos”.

Na ótica feyerabendiana, seria razoável agir contra-indutivamente, ou seja: 233

Consultamos simultaneamente o capítulo II nas três edições do Contra o Método. Para contornar diferenças estilísticas ou conceituais nas diferentes versões, para este caso particular realizamos nossa própria tradução partindo da 3ª edição da obra em inglês (AM).

264

(A) “examinar a contra-regra que nos instiga a desenvolver hipóteses inconsistentes com teorias aceitas e amplamente confirmadas”. (B) “examinar a contra-regra que nos instiga a desenvolver hipóteses inconsistentes com fatos bem-estabelecidos”.

Sobre (A): Feyerabend mantém a tese de que, em certos casos, as evidências refutadoras das teorias somente podem ser descobertas através de recurso a alternativas incompatíveis (ver 3.3.1.2). Assim, o Contra o Método preserva a noção pluralista de que “algumas das mais importantes propriedades formais de uma teoria são encontrados por contraste” (AM, p. 21; CM1, p. 40; CM2, 35; CM3, p. 46). O contraste de alternativas incompatíveis permitiria: i) descobrir evidências refutatórias de uma teoria aceita e amplamente confirmada e ii) encontrar propriedades formais de uma teoria aceita e amplamente confirmada. Uma vez mais, afirma-se que a maximização do conteúdo empírico precisaria de uma “metodologia pluralista”, cujos procedimentos básicos buscariam:

i. ii.

“comparar ideias com outras ideias, ao invés de comparar ideias com a ‘experiência’”. “tentar aprimorar, e não descartar, as concepções que perderam essa competição”.

É nesse contexto do Contra o Método que a metáfora oceânica reaparece:

O conhecimento, concebido dessa maneira, não é uma serie de teorias auto-consistentes que convergem em direção a uma visão ideal; não é uma aproximação gradual à verdade. Pelo contrário, é um sempre crescente oceano de alternativas mutuamente incompatíveis, no qual cada teoria particular, cada conto de fadas, cada mito que é parte da coleção força as demais no sentido de uma maior articulação e todas elas contribuindo, através de tal processo de competição, para o desenvolvimento de nossa consciência. Nada jamais é definitivo, nenhuma perspectiva pode jamais ser omitida de uma explicação abrangente.

A perspectiva pluralista do Contra o Método conduz à tese da inseparabilidade entre a história da ciência e a atividade científica. Nesse sentido, o autor afirma: “a história da ciência se torna uma parte inseparável da própria ciência – é essencial para o desenvolvimento dele tanto quanto para fornecer conteúdo às teorias que ela contém

265

em um momento particular”. O livro também estimula um tipo de princípio de participação irrestrita na crítica da ciência:

Especialistas e leigos, profissionais e diletantes, fanáticos pela verdade e mentirosos – todos eles estão convidados a participar da crítica e a fazer sua contribuição para o enriquecimento da cultura”. Nessa ótica, a “tarefa do cientista” não seria outra além de “garantir o movimento do todo.

Sobre (B): Feyerabend entende a contra-regra relacionada a desenvolver hipóteses inconsistentes com fatos conhecidos dispensa maiores justificativas. O motivo é simples: “não há uma única teoria interessante que concorde com todos os fatos conhecidos em seu domínio”. Nesse sentido, ele sublinha que “hipóteses inconsistentes com observações, fatos e resultados observacionais” são um fato científico. O essencial seria, então, definir a atitude adequada frente às “discrepâncias existentes entre teoria e fato”. A posição feyerabendiana remonta à ideia de que “relatos observacionais, resultados experimentais ou sentenças ‘fatuais’ ou contêm pressupostos teóricos ou os afirmam pela forma como são usados” (AM, p. 22; CM1, p. 42; CM2, 37; CM3, p. 47). Tais pressupostos moldariam as cosmovisões e não seriam explícitos.234 Logo, os efeitos deles nas visões de mundo apenas seriam identificados em situações de confronto com cosmovisões alternativas. Em outros termos: “preconceitos são encontrados por contraste, não por análise”. De forma similar, a ciência também comportaria pressupostos os quais também não poderiam ser testados e criticados sem o recurso a outras concepções rivais:

Precisamos de um padrão externo de crítica, de um conjunto de pressupostos alternativos ou, dado que tais pressupostos serão muito amplos, constituindo, digamos, um mundo totalmente alternativo, então necessitamos de um mundo imaginário para descobrir as características do mundo real no qual supomos viver (e que, de fato, pode ser que seja apenas outro mundo imaginário).

O Contra o Método sustenta que a efetiva crítica do conhecimento começa com a invenção de sistemas conceituais contrastantes com o saber tradicional. Somente assim resultados observacionais consagrados poderiam ser questionados de forma 234

Para essa tese do caráter implícito de pressupostos, ver CM3, p. 347; discutimos o ponto em Abrahão (2009, seções 3.3.1 e 3.3.1.2).

266

radical. Ademais, apenas a variedade de opiniões conseguiria perturbar princípios estabelecidos e fomentar o surgimento de novas formas de compreensão dos fenômenos (AM, pp. 22-23; CM1, p. 43; CM2, 38; CM3, p. 48).235 A versão original da metáfora oceânica de Feyerabend deriva de argumentos pluralistas orientados para a maximização da testabilidade das teorias e o aumento do conteúdo empírico do conhecimento. Os quatro tópicos básicos da ideia do conhecimento como oceano de teorias incompatíveis (assinalados em (i), (ii), (iii) e (iv) na seção 4.1.2.1.1) pretendiam apoiar a ideia de uma unidade metodológica pluralista da ciência (4.1.1.1). Isso significa que, na versão original de 1965, a imagem do “oceano crescente de alternativas” insistia no “processo de competição” e na rejeição da crença de que a ciência converge para uma única “visão ideal”. No Contra o Método, porém, aquela imagem marítima se conectou com a discussão em torno do princípio vale tudo. Vimos que Feyerabend debateu a regra empirista segundo a qual a experiência, os dados factuais ou os resultados experimentais mensuram o êxito das teorias. Em contraposição, ele defendeu a razoabilidade e as vantagens de proliferar hipóteses inconsistentes com teorias e com fatos conhecidos, como nas contra-regras (A) e (B) reproduzidas em 4.1.2.1.2. Assim, no Contra o Método o sentido inicial da metáfora oceânica se vinculou aos dois pilares da metodologia pluralista: i) princípio de proliferação (“comparar ideias com outras ideias” e, ao invés de comparar ideias com a ‘experiência’”) e ii) princípio de tenacidade (“tentar aprimorar, e não descartar, as concepções que perderam essa competição”). Essa mudança contextual, destarte, aponta para uma diferença adicional nos usos da metáfora em foco. Essa variação emerge quando comparamos as formulações básicas das versões original (1965), intermediária (1975, 1988) e final (1993) da referida figura da desunidade feyerabendiana:

Versão original (1965)

Concebido dessa forma, o conhecimento não é um processo que converge em direção a uma visão ideal; é um oceano crescente de alternativas, cada uma delas forçando a outra a um nível maior de articulação, todas contribuindo, através desse processo de

No entanto, seria equivocado depreender dessas lições de Feyerabend a proposição de uma “nova metodologia”: “Minha intenção não é substituir um conjunto de regras gerais por um outro conjunto: pelo contrário, minha intenção é convencer o leitor de que todas as metodologias, mesmo as mas obvias, possuem seus limites”. 235

267

competição, para o desenvolvimento de nossas capacidades mentais (PP1, p. 107; PE, p. 130).

Versão intermediária (1975, 1988)

O conhecimento, concebido segundo essas linhas, não é uma série de teorias coerentes, a convergir para uma doutrina ideal; não é um gradual aproximar-se da verdade. É, antes, um oceano de alternativas mutuamente incompatíveis (e, talvez, até mesmo incomensuráveis), onde cada teoria singular, cada conto de fadas, cada mito que seja parte do todo força as demais partes a manterem articulação maior, fazendo com que todas concorram, através desse processo de competição, para o desenvolvimento de nossa consciência. Nada é jamais definitivo, nenhuma forma de ver pode ser omitida de uma explicação abrangente (CM1, p. 40; CM2, p. 36).

Versão final (1993)

O conhecimento, concebido dessa maneira, não é uma serie de teorias auto-consistentes que convergem em direção a uma visão ideal; não é uma aproximação gradual à verdade. Pelo contrário, é um sempre crescente oceano de alternativas mutuamente incompatíveis, no qual cada teoria particular, cada conto de fadas, cada mito que é parte da coleção força as demais no sentido de uma maior articulação e todas elas contribuindo, através de tal processo de competição, para o desenvolvimento de nossa consciência. Nada jamais é definitivo, nenhuma perspectiva pode jamais ser omitida de uma explicação abrangente (AM, p. 21; CM3, p. 46).

As três versões da metáfora oceânica de Feyerabend concordam que “o conhecimento não é um processo que converge em direção a uma visão ideal”. Todas também encontram na imagem de um “oceano crescente de alternativas” a representação adequada para tal perspectiva epistemológica. A noção de um “processo de competição” das alternativas como padrão relacional para uma “maior articulação” também permanece. Por fim, todas preservam a premissa segundo a qual a meta da competição e da articulação de teorias alternativas consiste no “desenvolvimento de nossas capacidades mentais/consciência”. Todavia, as versões intermediária e final agregam elementos novos à ocorrência original. Em relação à formulação de 1965, os usos de 1988 e 1993: i) qualificam que as teorias em questão também não seriam “coerentes/auto-consistentes”; ii) apontam que o conhecimento também não deveria ser concebido como um “gradual aproximar-se da verdade”; iii) insistem que as alternativas em questão deveriam ser “mutuamente incompatíveis”; iv) incluem “contos de fadas” e “mitos” no grupo das partes que força “maior articulação” do conhecimento; 268

e v) concluem que “nada jamais é definitivo, nenhuma perspectiva pode jamais ser omitida de uma explicação abrangente”. Por fim, a única diferença notável entre as duas formulações da metáfora oceânica no Contra o Método concerne à observação (inexistente na edição de 1993) de que as teorias alternativas, além de “mutuamente incompatíveis”, poderiam ser “até mesmo incomensuráveis”.

4.1.3. Síntese da ‘posição básica’ A posição básica de Feyerabend sobre a desunidade da ciência é constituída por fontes textuais que cobrem um período de, no mínimo, quinze anos.236 O ponto de partida dela remonta ao plano de uma metodologia para as ciências adversa à “petrificação dogmática” do conhecimento. O autor frisou o caráter inacessível de alguns fatos sem o confronto de alternativas rivais. Também sublinhou que a permanência de uma única teoria engendra um dogmatismo incompatível com uma atitude tolerante com a diversidade de pensamento. A exclusão de teorias rivais encorajaria uma uniformidade de pensamento que conduziria à “deterioração das capacidades intelectuais” e do “poder da imaginação”. Diante disso, o monismo paradigmático se mostraria metodologicamente indesejável, ao contrário do pluralismo de teorias. Feyerabend acusou o monismo teórico de constituir obstáculos para o pensamento: “a unanimidade de opinião pode ser adequada para uma igreja rígida”. Na obra de 1975, ele afirmou que a efetiva crítica do conhecimento derivaria de um método que estimula a desunidade de opiniões. Considerou também que instituições não científicas também contribuiriam para “desenvolver a individualidade”. Conforme essa leitura, a prevalência de um conjunto específico de ideias limitaria a liberdade de pensamento. O Contra o Método explica a ciência como um processo histórico heterogêneo no qual o aprimoramento de hipóteses exige, inclusive, um “movimento de recuo” em face de dificuldades teóricas e empíricas. Isso contribuiria para o afastamento da “tirania de sistemas teóricos bem organizados, altamente corroborados e deselegantemente apresentados”. Assim, a posição básica de Feyerabend quanto à desunidade da ciência destaca um método científico orientado para a diversidade de concepções. Nessa visão pluralista, no entanto, a variedade de opiniões não consistiria

236

Note-se que os argumentos do texto de 1963 sintetizam e reproduzem ideias elaboradas anos antes, e as teses do Contra o Método serão mantidas, ipsis litteris, nas três edições da obra (1975, 1988 e 1993).

269

em um “simples ‘estágio preliminar’ do avanço científico em direção a “Uma Teoria Verdadeira”. Originalmente, a metáfora oceânica retratou “o corpo inteiro da ciência” como algo “contínuo, ininterrupto ou sem divisões” (4.1.2). O traço fundamental dessa aproximação entre o conhecimento e o mar envolveria a noção de “fluidez”: ambos não teriam “limites definidos” e, simultaneamente, estariam “em contato”. Por isso, o oceano representaria a “síntese de um mundo heterogêneo”, exatamente como uma enciclopédia: um “sistema de relações e interconexões” que combina “pluralidade com unidade”. A proposta unitarista de Leibniz, então, acentuaria a “fertilização cruzada” e a “continuidade” entre disciplinas científicas, sob a forma de um “trabalho coletivo” e “cooperativo” que carrega um objetivo “educacional e cultural”. Entretanto, o sentido da metáfora oceânica no corpus de Feyerabend visa, exatamente, evidenciar a incorreção da ciência como uma visão ideal constituída por teorias “coerentes/autoconsistentes” gradualmente próximas “da verdade”. O “processo de competição” de perspectivas “mutuamente incompatíveis (e, talvez, até mesmo incomensuráveis)” conduziria a uma “maior articulação” do conhecimento, entretanto, esse processo não levaria a saberes “definitivos” nem permitiria “omitir” perspectiva divergentes. A finalidade de proliferar um “oceano crescente de alternativas” seria, pois, aprimorar “nossas capacidades mentais/consciência”. Nesse horizonte, o sentido da metáfora oceânica para Feyerabend envolve a representação da heterogeneidade teórica da ciência. Ele não a emprega tendo em vista qualquer “contato imperceptível” entre todas as partes do “corpo inteiro da ciência” da ciência, pelo contrário, insiste no valor metodológico da diversidade de opiniões e do conflito de visões alternativas. “Nada jamais é definitivo”, afirmou. Portanto, todo o esforço epistemológico precisa estar orientado para um único objetivo ético: o “desenvolvimento de nossa consciência”.

4.2. A ‘posição avançada’ de Feyerabend A posição avançada de Feyerabend quanto à desunidade da ciência incorpora noções oiundos dos novos estudos filosóficos, antropológicos e históricos da ciência. Essa ampliação teórica envolve o reconhecimento de que a fragmentação na ciência

270

não ocorre somente no nível teórico, mas também no âmbito dos experimentos e procedimentos:237

A unidade [da ciência] desaparece ainda mais quando prestamos atenção não apenas em rupturas no nível teórico, mas na experimentação e, especialmente, na moderna ciência laboratório. Como Ian Hacking mostrou em seu ensaio pioneiro, Representing and Intervening, e como emerge de Science as Practice and Culture, de Pickering, termos como ‘experimentação’ e ‘observação’ abrangem complexos processos contendo muitos elementos. ‘Fatos’ surgem de negociações entre grupos diferentes, e o produto final – o relatório publicado – é influenciado por eventos físicos, processadores de dados, soluções conciliatórias, exaustão, falta de dinheiro, orgulho nacional e assim por diante […] De qualquer maneira, estamos bem longe da velha ideia (platônica) de ciência como um sistema de enunciados desenvolvendo-se por meio de experimentação e observação e mantido em ordem por padrões racionais duradouros (CM3, p. 14). Ora, se a ciência não é mais uma unidade, se partes diferentes dela procedem de maneiras radicalmente diferentes e se as conexões entre essas maneiras são ligadas a episódios particulares de pesquisa, então os projetos científicos têm de ser considerados individualmente (pp. 15-16).

John Dupré desponta com um dos autores que, no final dos anos 1980 e inicio da década de 1990, mais impactaram o pensamento feyerabendiano sobre a desunidade da ciência. Como mostramos, no trecho do Prefácio à 3ª edição do Contra o Método, Feyerabend anunciou que, segundo alguns “filósofos da biologia”, a inexistência de uma entidade (a Ciência) “com princípios claramente definidos” não seria “só um fato”, mas também “desejável”. Em nota a essa passagem, remeteu ao seguinte trabalho: “J. Dupré, ‘The Disunity of Science’, Mind, 92, 1983” (CM3, p. 13 n. 7).238 Nesse texto, encontramos uma refinada exploração de modalidades de unificação da ciência, tais como: i) redução em princípio e redução de fato; ii) redução sincrônica e redução diacrônica; ou iii) redução por derivação e redução por substituição. Reconhecemos também uma forte denúncia do caráter “extremamente simplório” da concepção segundo a qual “a totalidade da ciência” poderia ser “derivada estritamente a partir de leis da física e de princípios ponte” (Dupré, 1983, p. 324). Contudo, Feyerabend aludiu 237

Isso é mostrado pelo crescente volume de referências às obras de A. Pickering, P. Galison, M. Rudwick, A. Fine, dentre outros. Para as discordâncias de Feyerabend com certas abordagens sociológicas e antropológicas da ciência (sobretudo Latour e o ‘Programa Forte’ de Bloor), ver CM3, pp. 360-365 e MT, p. 98. Para uma síntese dos principais argumentos sobre a desunidade da ciência nos Estudos de Ciência e Tecnologia, ver Duarte (2013, pp. 1-15). 238 Por sua parte, Dupré reconheceu seu débito com as ideias pluralistas do autor de Contra o Método. Dupré (1983) não menciona Feyerabend, mas Dupré (1992, p. 263) afirma ser Feyerabend o filósofo da ciência com o qual ele mais concorda, a despeito de divergências pontuais (FTR p. vi).

271

a outros escritos de Dupré atinentes à desunidade da ciência, em especial o livro The Disorder of Things.239 Na opinião de Preston (1997, p. 220 n. 13), o modernismo crítico de Dupré se caracterizaria pelo antirreducionismo, pelo antiessencialismo e pelo pluralismo epistemológico. Essas noções remontariam ao ceticismo metodológico expressado no Contra o Método. Preston (2000, pp. 80-81) também listou vários temas pós-modernos vinculados à obra de Dupré, dentre os quais a desunidade da ciência. A partir disso, atribuiu a Feyerabend o rótulo de pós-moderno. Assim, a Visão Padrão afirma que a proximidade de Feyerabend e Dupré envolve i) o ceticismo quanto à unidade metodológica da ciência e ii) temas pós-modernos, como a desunidade geral da ciência. De nossa parte, ponderamos que o principal impacto filosófico de Dupré nas ideias de Feyerabend aparecem nos crescentes ataques ao reducionismo ontológico presente nas obras feyerabendiana lançadas em torno dos anos 1990.

4.2.1. Uma metafísica da desordem: antirreducionismo ontológico Dupré (1996, p. 101) 240 entende que, geralmente, defensores da desunidade da ciência contornam as implicações metafísicas da ideia. Ele endossa a imagem da ciência

Em entrevista concedida em 1992, Feyerabend comentou: “Atualmente, historiadores tomam como certo que existem muitas abordagens diferentes. Acabou de ser publicado um livro intitulado The Disunity of Science. O autor afirma que a ciência não é unitária, e nem o mundo. O mundo é, digamos assim, uma colagem de todo tipo de coisas” (PFK 1995, p. 121). Como vemos, Feyerabend não cita o nome do autor do livro. Em nota, os editores indicam o trabalho de Alex Rosenberg, Instrumental Biology or the Disunity of Science, Chicago: CUP, 1994. Entretanto, Feyerabend é claro ao mencionar o título da obra: The Disunity of Science, algo muito próximo – inclusive em termos da tese segundo a qual “o mundo é uma colagem de todo tipo de coisas” – à obra de Dupré: The Disorder of Things. Ademais, a primeira edição do livro de Dupré surgiu em 1993, enquanto a do de Rosemberg em 1994. Isso significa que o livro de Dupré antecede o de Rosemberg (que, inclusive, cita a obra de Dupré lançada em 1993). Esses elementos indicam que, em razão da confusão de Feyerabend em relação ao título das obras – isto é, The Disunity of Science e não Instrumental Biology or the Disunity of Science ou The Disorder of Things –, os próprios editores se enganaram em mencionar o nome de Rosemberg ao invés de Dupré. Adicione-se a isso o fato de que não mapeamos quaisquer referências à obra de Rosenberg no corpus de Feyerabend (por exemplo: Adeus à Razão, a 3ª edição do Contra o Método ou A Conquista da Abundância), ao passo que Dupré é explicitamente citado por Feyerabend (CM3, p. 13 n. 7). 240 Para conhecer de forma mais completa as críticas de Dupré ao ‘reducionismo’, ver: “The Disunity of Science” (1983), “Scientific Pluralism and the Plurality of the Sciences: Comments on David Hull’s Science as a Process” (1990), The Disorder of Things: Metaphysical Foundations of the Disunity of Science (1993), “Methodological Individualism and Reductionism in Biology” (1994), “Against Reductive Theories of Human Behaviour” (1998), “Reductionism” (2000), “On the Impossibility of a Monistic Account of Species” (1999) e “It is not Possible to Reduce Biological Explanations to Explanations in Chemistry and/or Physics?” (2010). Concentramos nossa exposição no programático ensaio “Metaphysical Disorder and Scientific Disunity” (1996). 239

272

como uma atividade “radicalmente fraturada e desunificada”, contudo, tal concepção seria ontologicamente relevante e defensável. Assim, o autor resume que “a metafísica é útil para um defensor da desunidade da ciência”. Primeiro, comenta o caráter inegável da desunidade das áreas científicas. Segundo, expõe que a principal questão dessa temática concerne à determinação de “se a ciência é desunificada apenas porque ainda não foi unificada ou, pelo contrário, porque a desunidade é a condição inevitável e própria dela”. Terceiro, entende que a determinação da desunidade da ciência exigiria mesmo uma concepção metafísica mais elaborada. Dupré considera o reducionismo a posição filosófica mais fortemente vinculada à unidade da ciência. Inicialmente, ela expressaria apenas uma postura epistemológica: “uma opinião sobre a natureza das teorias científicas”. Assim, teorias científicas precisariam explicar o comportamento de objetos complexos partindo de entendimento dos comportamentos dos componentes básicos deles. Haveria inclusive uma conexão estrutural vertical entre todas as ciências. Mas o reducionismo também comportaria pressupostos metafísicos, como a ideia de uma hierarquia ontológica (p. 103): “O mundo é concebido como composto por objetos a uma dessa sequência de níveis: partículas elementares, átomos, moléculas e assim por diante”. Todavia, Dupré entende que uma ontologia baseada nessas classificações hierárquicas é incapaz de explicar a complexidade fenomênica: “Mesmo o primeiro esboço [dessa ontologia] não está isenta de dificuldades”. O autor acrescenta que a ideia de uma hierarquia na ontologia seria artificial quando tendo em vista o nível biológico: “o componente estrutural de um organismo complexo não é, nem remotamente, homogêneo com relação à sua posição em uma tal hierarquia” (p. 104). Dupré considera inescapável o fato de a desunidade da ciência conduzir a outras conclusões. Uma delas concerne à questão do poder político da ciência, baseado na crença da uniformidade das ideias científicas. Entretanto, o autor defende que se “a ciência é retratada como uma miscelânea sortida de diferentes investigações as quais possuem apenas relações e interconexões frouxas, então, o apelo particular à autoridade da ciência deve se amparar em seus próprios méritos”. Ele sublinha que aquela crença sustentaria projetos de natureza cientificista baseados em pressupostos “suposições típicas” e “equivocadas” acerca da investigação científica, dentre as quais (p. 116):

273

i) Propensões ideológicas da unidade da ciência

A crença na unidade da ciência tende a atribuir credencias epistêmicas aferidas de investigações científicas genuinamente exitosas” e tal movimento “tende a legitimar resistências a consistentes críticas contemporâneas a domínios particulares de teorias científicas.

ii) Pluralidade de descrições

A tese da desordem não oferece motivos para supor que existe um modo correto de caracterizar e descrever um domínio particular”. Essa perspectiva admite “diversas descrições possíveis” as quais comportam “graus limitados de ordem e de inteligibilidade.

iii) Implausibilidade histórica da tese de unidade metodológica da ciência

Algumas versões da unidade da ciência consideram que a unificação é “estritamente metodológica”. Mas “trabalhos recentes em história da ciência” revelaram que tal tese é “extremamente problemática”. A sobrevivência dessa tese unitarista evidenciaria uma “reverência fetichista pelos métodos formais.

iv) Inexistência do pressuposto do estilo científico canônico

[…] uma metafísica da desordem implica que não há uma suposição relativa à existência de qualquer análise de um domínio particular no estilo canônico da ciência.

Ao longo dos anos 1990, o corpus de Feyerabend incorporou essa crítica ao reducionismo ontológico como uma peça adicional à defesa da desunidade da ciência.241 Um exemplo ilustrativo disso aparece na análise feyerabendiana acerca de três suposições comumente associadas à ciência moderna:

i. ii.

241

A ciência moderna “é baseada em uma abordagem uniforme” A ciência moderna “tem levado a um corpo coerente de resultados”

Ver, por exemplo, os capítulos V (1992), VI (1994) e VIII (1992) de A Conquista da Abundância.

274

iii.

A ciência moderna produz resultados que “nos formam a tomar a ciência […] a medida da realidade” (CA, p. 255).

Feyerabend entende que as três suposições são incorretas. Primeiro, ele afirma que diferentes ramos da ciência empregam diferentes procedimentos, além de erigirem suas teorias de formas diferentes (p. 256). Segundo, comenta que as argumentações referentes ao êxito científico confirmariam somente as próprias noções de realidade já implícita nas teorias em questão (p. 257). Terceiro, destaca que os cientistas não oferecem um conjunto uniforme de respostas (p. 259). Então, o autor compreende a ciência como algo complexo, heterogêneo e tomado por contradições. Nesse sentido, as supostas reduções científicas não passariam de tentativas de subordinar umas perspectivas a outras. A ideia de uma unidade ontológica seria um “trabalho de colagem”. Feyerabend entende que há apenas “espécies diferentes de realidade definidas por modos diferentes de pesquisas bem-sucedidas”. Por isso, advoga em favor da proliferação de ontologias não científicas: “se a ciência é realmente uma coleção de diferentes abordagens, algumas bem-sucedidas, outras muito especulativas, então não há motivo para que eu deva desconsiderar o que acontece fora dela” (p. 261). Nesse sentido, ele argumenta que tradições não científicas também teriam sucesso e, ademais, elabora um critério mais amplo para avaliar o êxito de uma tradição: permitir que membros de uma cultura vivam de forma “moderadamente rica e realizada”.

Usando esse critério extensivo de sucesso, concluo que também as noções não científicas recebem uma resposta da Natureza; que a Natureza é mais complexa do que uma crença na uniformidade e singular excelência que a ciência poderia sugerir […] Eu próprio parti do que Pseudo-Dionísio Aeropagita disse sobre os nomes de Deus. Segundo ele, Deus é inefável. Mas, dependendo da nossa abordagem, Deus pode responder em uma variedade de maneiras compreensíveis […] Além disso, descrevendo uma resposta e não o próprio Ser, todo conhecimento sobre o mundo torna-se ambíguo e transparente. Aponta para além de si mesmo a outros tipos de conhecimento, e juntamente com eles, para uma Realidade Básica desconhecida e para sempre incognoscível.

4.2.2. Outras imagens da fragmentação A posição avançada de Feyerabend quanto à desunidade da ciência reflete o contato dele com novos horizontes teóricos, particularmente o antirreducionismo

275

ontológico de Dupré (4.2.1). Em relação à posição básica (4.1.3), também emprega outras de imagens da desunidade além daquela metáfora oceânica (4.1.2.1). Nesse sentido, o filósofo lançou mão de figuras como ‘coleção’, ‘supermercado’ ou ‘sacos de coleta’ no intuito de conceber a fragmentação da ciência.242 Encontramo-las, em particular publicadas em textos dos anos 1990, tais como Diálogos sobre o Conhecimento, A Conquista da Abundância ou The Tyranny of Science:

(i) Arthur (que permaneceu junto à porta, à escuta, e agora adentra, voltando-se para Jack) – Desculpe-me, não pude deixar de ouvir. Sou historiador da ciência e penso que vocês têm uma ideia acerca de Newton um pouco superficial demais. Antes de tudo, aquilo que chamaram ‘simples e belo’ não equivale àquilo que chamaram de ‘bem-sucedido’ – ao menos, não em Newton. ‘Simples e belo’ refere-se aos seus princípios básicos; ‘bem-sucedido’ é o modo pelo qual ele os aplica. Nesse sentido, ele usa uma coleção um tanto incoerente de novas assunções, dentre elas, uma, segundo a qual Deus interfere periodicamente no sistema planetário a fim de impedi-lo que caia aos pedaços (DC, p. 14; TDK, p. 5). (ii) Nenhuma área é unificada e perfeita, e poucas são repulsivas e completamente desprovidas de mérito. Não há um princípio objetivo que possa nos afastar do supermercado religião ou do supermercado arte e nos direcionar para o supermercado mais moderno, e mais dispendioso, ciência (CA, p. 214). (iii) […] devo definir visão de mundo como coleção de crenças, atitudes e suposições envolvendo integralmente a pessoa, não apenas o intelecto (CA, p. 221). (iv) O resultado produzido no século XIX não foi uma ciência coerente, mas uma coleção de temas heterogêneos (óptica, acústica, hidrodinâmica, elasticidade, eletricidade, termologia em física; fisiologia, anatomia em medicina; morfologia, evolucionismo em biologia, e assim por diante) (CA, pp. 224-225; 258). (v) Concluo que termos como Arte e Ciência são sacos de coleta temporários que contém uma grande variedade de produtos, alguns excelentes, outros podres, todos caracterizados por uma única etiqueta. Mas sacos de coleta e etiquetas não afetam a realidade; podem ser omitidos sem que se mude o que supostamente organizam (CA, p. 308). (vi) Assim, o que observamos quando olhamos ao redor são grandes subdivisões entre áreas que, entre si, são coleções discordantes de métodos e resultados (TS, p. 8). (vii) O que as ciências e as humanidades, o que a religião e as artes oferecem são supermercados espirituais, digamos assim, com departamentos diferentes e muitas conexões entre eles (TS, p. 9).

4.2.2.1. ‘Die Wissenschaft’: a ‘teratologia epistemológica’ de Feyerabend A imagem primordial da posição avançada de Feyerabend quanto à desunidade da ciência é a inusitada figura do Monstro. As seções a seguir evidenciam como os

242

Essas metáforas aparecem relacionadas a outros conceitos em TS, pp. 5, 105, 106; TDK, p. 71.

276

distintos perfis do monstrum nos escritos feyerabendianos pretenderam mostrar a falta de harmonia, coesão, coerência, regularidade e homogeneidade da ciência.

4.2.2.1.1. O ‘monstro multifacetado’ Uma ocorrência original da metáfora em questão aparece na segunda metade da década de 1960, na seção final do ensaio “Consolando o Especialista” (FAM, pp. 125, 129; MT, p. 136). No início de sua defesa da posição de Kuhn, Feyerabend insiste que “a ciência é, e deveria ser, mais irracional” do que ele mesmo havia considerado (PKF 1979, p. 265). O austríaco pondera que tal mudança de ideia espelharia a própria natureza da ciência. Tal complexidade mostraria que a ciência traz diversos traços os quais não poderiam ser separados de sua própria história (p. 266). Em suma, a história explicitaria que a ciência “utilizou e continua a utilizar todos os talentos e todas as sandices do homem”. Uma maneira de representar essa variedade da ciência seria a figura de um monstro multifacetado:

Argumentos contrários trazem à luz características diferentes que ela contém, desafiam-nos a tomar uma decisão, desafiam-nos a aceitar esse monstro de muitas caras e ser devorados por ele, ou a muda-lo de acordo com nossos desejos.

4.2.2.1.2. O ‘monstro abstrato’ Outra aparição daquela imagem ocorre no ensaio “How to defend society against science”, de 1975.243 Feyerabend observa que diversos grupos compartilham entre si o “interesse pela ciência e pelo conhecimento” (PKF 2006, p. 358). De um lado, eles admitiriam que a reforma da ciência a tornaria menos autoritária. No entanto, por outro, afirmariam que ela reflete a uma “fonte valiosa” de conhecimento “não contaminado” ideologicamente. Em contraste a essa opinião, o austríaco propõe:

Eu desejo defender a sociedade e os seus habitantes de todas as ideologias, incluindo a ciência. Todas as ideologias devem ser vistas em perspectiva. Não se deve tomá-las tão seriamente. Convém considerá-la como se fossem um conto de fada, os quais têm 243

Trata-se da versão redigida de uma palestra proferida em Viena, contudo, originalmente apresentada à Philosophy Society na Universidade Sussex, em novembro de 1974.

277

muitas coisas interessantes para dizer, contudo, que também comportam mentiras maliciosas ou prescrições éticas que podem ser úteis enquanto regras práticas, mas que são mortais quando seguidas ao pé da letra (PP3, p. 181).

Feyerabend reconhece que sua atitude é antagônica à opinião segundo a qual “a ciência sempre esteve, inquestionavelmente, na linha de frente da luta contra o autoritarismo e a superstição”. Mas o autor de Contra o Método considera essa leitura uma quimera. Para ele, uma ideologia que contribua para “romper com as amarras de um sistema de pensamento onipresente” colabora para a libertação humana. Em outros termos: “Qualquer ideologia que leva o ser humano a questionar crenças herdadas é um parceiro do esclarecimento”. Na leitura feyerabendiana, a “ciência dos séculos XVII e XVIII foi, sem dúvidas, um instrumento de libertação e esclarecimento” (p. 182). Isso não prova, entretanto, que “a ciência está fadada a permanecer como tal instrumento”: “Não há nada de inerente na ciência ou em qualquer outra ideologia que a torne essencialmente libertadora. Ideologias podem se deteriorar e se converter em religiões estúpidas”, ele sentencia. Para basear essa assertiva, Feyerabend analisa o papel da ciência na educação. Assim, comenta que “‘fatos’ científicos” seriam ensinados como os “‘fatos’ religiosos” eram ensinados: “Não há o menor esforço de despertar as habilidades críticas do jovem para que ele consiga ver as coisas em perspectiva”. Essa postura sinalizaria para uma “doutrinação sistemática” de conteúdos científicos. Com efeito, o autor reconhece que a “ciência se tornou tão opressiva quanto as ideologias que um dia combateu”. Em outros termos: “a ciência se tornou rígida, ela deixou de ser um instrumento de mudança e libertação”. A doutrinação científica também sugere que a ciência “encontrou a verdade” e que, por isso, essa forma de conhecimento deveria ser adotada. Feyerabend discorda radicalmente desse postulado da fidelidade à verdade científica. Conforme ele entende, a “vida humana se orienta por diversas ideias” – e noção de verdade científica não passaria de apenas uma delas:

Minha crítica da ciência moderna é que ele inibe a liberdade de pensamento. Se a razão para tal remonta à ciência ter encontrado a verdade, e por segui-la, então eu diria que há melhores coisas do que encontrar e, posteriormente, seguir tal monstro (p. 183). 244

244

A relação entre a metáfora do monstro e a ideia de Verdade (científica) também ocorre no Contra o Método de 1975. Nessa obra, Feyerabend indaga: “Com efeito, não é admissível que a ciência tal como a conhecemos, ou a ‘busca da verdade’, no estilo da filosofia tradicional, venha a criar um monstro?” (CM1, p. 274). Essa passagem reaparece nas edições posteriores de Contra o Método (CM2, p. 203; CM3, p. 154). Nesse contexto, Feyerabend designa explicitamente a ideia de Verdade como um “monstro abstrato” (CM1, p. 280).

278

4.2.2.1.3. O ‘monstro monolítico’ A caracterização feyerabendiana da ciência como um monstrum reaparece, nos anos 1980, na seção 5 do capítulo “O progresso na Filosofia, nas Ciências e nas Artes”.245 Feyerabend comenta que “as artes e a filosofia tentaram […] superar o relativismo” (AR, p. 186). O insucesso da empreitada, no entanto, refletiria a “natureza do caso”: “as preferências qualitativas não têm qualquer ordem inerente”. Por sua parte, as ciências teóricas buscariam “estabelecer esse tipo de ordem”. Uma ordenação qualitativa proposta pelas ciências teóricas submeteria “avaliações qualitativas às leis do progresso quantitativo; ideias que levam a um maior número de predições bemsucedidas são ‘objetivamente’ ideias melhores”. Feyerabend elenca quatro críticas a tal proposta:

i) Caráter qualitativo dos juízos quantitativos da ciência […] a combinação de quantidade e qualidade que supostamente caracteriza as ciências é em si mesma uma ideia qualitativa e, portanto, não absoluta […] (Devemos notar também que as ciências efetivas, como praticada pelos cientistas, têm pouco a ver com o monstro monolítico ‘ciência’ que serve de base à afirmação da progressividade.) (p. 187).

ii) Problemas qualitativos do aumento de predições […] as condições que garantem um aumento das predições muitas vezes levam a problemas qualitativos que provocam questões serias sobre a realidade do aumento.

iii) Impossibilidade de comparação factual […] a transição de uma teoria para outra ocasionalmente (mas nem sempre) envolve uma mudança de todos os fatos, de forma que já não é possível comparar os fatos de uma teoria com os da outra […] O Professor Kuhn e eu usamos o termo ‘incomensurabilidade’ para caracterizar essa situação.

iv) Indeterminação factual dos fundamentos teóricos […] os elementos qualitativos das ciências, ou, o que dá no mesmo, as ideias fundamentais de certo ramo do conhecimento, nunca são determinados somente pelos fatos daquele mesmo ramo (p. 188). 245

Esse capítulo tem origem nas conferências e seminários que Feyerabend proferiu, entre 1981 e 1983, na Escola Politécnica de Zurique (STA, p. 9). Para detalhes sobre tais seminários, ver MT, pp. 175-176. No Adeus à Razão, a crítica feyerabendiana à ideia de ciência como um ‘monstro monolítico’ também ocorre no capítulo I (AR, p.37).

279

4.2.2.1.4. O ‘monstro mítico’ O exemplo mais significativo do uso feyerabendiano da metáfora em questão nos anos 1990 aparece no capítulo XIX da 3ª edição do Contra o Método.246 Basicamente, Feyerabend busca responder às três seguintes perguntas:

i. ii. iii.

O que é a ciência? O que há de tão formidável com a ciência? Como devemos usar as ciências, e quem decide a questão?

Com relação à questão (i), Feyerabend reforça o argumento da heterogeneidade de “indivíduos, escolas, períodos históricos” (p. 319). Tal diversidade tornaria “extremamente difícil identificar princípios abrangentes” em termos de método ou de fatos específicos da ciência: “A palavra ‘ciência talvez seja uma única palavra – mas não há uma entidade única que corresponda a essa palavra”. Quanto à diversidade de métodos, Feyerabend discute a existência de tanto de tendências estritamente empiristas como abordagens especulativas: uma “demanda contato próximo com a experiência” e outra aposta no “exercício puramente teórico” (p. 320). Segundo o autor, “não é verdade 246

A edição de 1975 contém dezessete capítulos, portanto, não precisa ser considerada neste caso. Por sua parte, a edição de 1988 contém 21 capítulos. O capítulo XIX dessa segunda edição é tematicamente semelhante ao da terceira edição, de 1993. A apresentação de 1988 diz: “A ciência é uma tradição entre muitas outras e uma fonte de verdade apenas para os que fizerem as escolhas culturais adequadas. Numa sociedade democrática, deve ser separada do estado, tal como é hoje o caso da religião. Não há factos nem modelos que possam garantir-lhe uma excelência privilegiada” (CM2, p. 323); a de 1993 diz: “A ciência não é uma tradição isolada nem a melhor tradição que há, exceto para aqueles que se acostumaram com sua presença, seus benefícios e suas desvantagens. Em uma democracia, deveria ser separada do Estado exatamente como as igrejas ora estão dele separadas” (CM3, p. 319). Ambos capítulos também começam de forma idêntica, com a proposta de responder àquelas duas ‘perguntas fundamentais’ (ver 2.3.1.2). Importa destacar, no entanto, que essas fontes introduzem uma terceira indagação: Como devemos usar as ciências e quem decide a questão? A principal diferença entre os capítulos XIX das edições do Contra o Método publicadas, respectivamente, em 1988 e 1993 concerne à profundidade e à elaboração filosófica das respostas dadas àquelas questões. Partindo da edição de 1988, vemos Feyerabend respondendo à primeira (O que é a ciência?) assim: “A primeira questão não comporta uma resposta, mas várias. Toda a escola de filosofia tem concepções especiais acerca da natureza das atividades científicas enquanto existem amplas zonas sobre as quais é pequena a unanimidade dos cientistas” (CM2, p. 323). E complementa: “Existe uma grande diversidade de procedimentos e estilos no interior das ciências […] A resposta prática à questão 1 é em termos gerais: a ciência é aquilo que eu faço e aquilo que meus colegas fazem e aquilo que os meus pares, eu e o público globalmente, temos por ‘científico’” (p. 324). À segunda (O que é que há tão excelente com a ciência?), Feyerabend responde: “existem vastas áreas nas não há ainda respostas científicas”. Nesse sentido, ele insiste: “Nem os factos nem os métodos capazes de estabelecer a excelência da ciência. Os métodos não são capazes de o fazer porque não existe um ‘método científico’ uniforme. Os factos não são também capazes porque não são os factos que contam, mas a importância dos fatos” (p. 325). Para a terceira pergunta, enfim, Feyerabend afirma: “uma comunidade utilizará a ciência e os cientistas de um modo que essencialmente com seus valores e fins e corrigirá as instituições científicas que albergam a fim de as adaptar melhor aos seus próprios propósitos” (p. 326). Note-se, por fim, que Contra o Método de 1988 elabora essas ideias em apenas quatro páginas, enquanto o de 1993 traz uma reflexão disposta em mais de uma quinzena.

280

que os cientistas procedem de forma” a prestar “atenção à observação e à experimentação” (p. 321). Certas posições se inclinariam a “desvalorizar observações que entram em conflito” com seus pressupostos (p. 323).

Assim, tudo o que podemos dizer é que os cientistas procedem de muitas maneiras diferentes, que regras de método, se explicitamente mencionadas, ou não são obedecidas de modo algum ou funcionam na maior parte dos casos como regras práticas de proceder, e resultados importantes surgem da confluência de realizações produzidas por tendências separadas e frequentemente conflitantes. A ideia de que ‘o conhecimento ‘científico’ é, de algum modo, peculiarmente positivo e isento de diferenças de opinião’ não passa de uma quimera (p. 324).

Feyerabend acrescenta que modelos metodológicos também envolvem pressupostos metafísicos. As regras de ação seriam, pois, capazes de gerar resultados consistentes com a base metafísica correspondente dos modelos (p. 325). Mas os resultados positivos deles não se restringem ao seu domínio original de aplicação. Para o autor, eles podem fornecer conteúdo empírico para outras visões de mundo. Em outros termos: “diferentes procedimentos baseiam-se em e fornecem evidencia para diferentes visões de mundo” (p. 327). Uma “única e abrangente ‘visão de mundo científica’” poderia i) oferecer uma enumeração de “conquistas e desvantagens de várias abordagens” e identificar a ciência com tal confronto de abordagens; ii) eleger uma perspectiva e reduzir outras ideias a ela “por meio de pseudoderivações”; ou iii) suplantar as especificidades e realizar uma colagem que conecta homogeneamente os resultados obtidos tendo em vista construir “um edifício impressionante e coerente – ‘a’ visão de mundo científica”:

Expressando-o de uma maneira diferente, podemos dizer que o pressuposto de uma visão de mundo única e coerente que subjaz ao todo da ciência é uma hipótese metafísica tentando antecipar uma unidade futura, ou uma fraude pedagógica; ou então é uma tentativa de mostrar, por uma judiciosa elevação e rebaixamento de categoria das disciplinas, que já foi alcançada uma síntese.

Feyerabend discute um último problema da suposição de homogeneidade da ciência (p. 328). Para ele, não há razão para supor a existência de uma única visão de mundo científica (p. 329). O próprio mundo resistiria à unificação pretendida por “educadores e metafísicos”. A imagem de um mundo “ordeiro, uniforme, o mesmo em todo lugar” eliminaria os exatamente as tensões que fomentam o avanço do conhecimento. Assim, segundo o autor de Contra o Método, as propostas dos unitariastas extinguiriam as condições que transformam a ciência. 281

Com relação à questão (ii), Feyerabend comenta que a eleição pela ciência seria a habituação com resultados e a certeza de sua relevância. A alta reputação dela refletiria sua “popularidade” junto ao público em geral: […] ou, melhor dizendo, não as ciências, mas um monstro mítico, ‘ciência’ (no singular – em alemão, isso soa ainda mais impressionante: Die Wissenschaft) (p. 330).

Feyerabend entende que a imagem popular da ciência compreende as realizações científicas como advindas de uma postura científica padronizada. Mas o autor explica que a prática científica não é uniforme. Também comenta que a popularidade das ideias e frutos da ciência pode ser questionada. Discutindo as “vantagens práticas” da ciência, salienta que o êxito dele não é necessário: “a ‘ciência’ às vezes funciona e às vezes não” e somente algumas ideias triunfariam (p. 331): […] não há uma ‘visão de mundo científica, assim como não há um empreendimento uniforme denominado ‘ciência’ – exceto na mente dos metafísicos, mestre-escolas e políticos que tentam tornar a nação competitiva. Ainda assim, há muitas coisas que podemos aprender das ciências. Mas também podemos aprender das humanidades, da religião e dos remanescentes das tradições antigas que sobreviveram ao furioso assalto da Civilização Ocidental. Nenhuma área é unificada e perfeita, poucas áreas são repulsivas e completamente despidas de mérito. Não há nenhum princípio objetivo que possa nos afastar do supermercado ‘religião’ ou do supermercado ‘arte’ e possa nos conduzir para o mais moderno, e muito mais caro, supermercado ‘ciência’ (p. 332). A lição que tiro dessa sequência de eventos é que uma ‘visão científica de mundo’ uniforme pode ser útil para as pessoas fazendo ciência – dá-lhes motivação sem amarrá-las. É como uma bandeira. Embora apresente um único padrão, faz com que as pessoas façam muitas coisas diferentes. Contudo, é um desastre para os de fora […] Sugere a eles um comprometimento religioso da mentalidade mais estreita e encoraja uma estreiteza de mentalidade por parte deles (p. 335).

A resposta de Feyerabend para (iii) é direta: “uma comunidade usará a ciência e cientistas de um modo que concorde com seus valores e objetivos” (p. 335). Da mesma forma, a correção das instituições científicas também será realizada pela comunidade. Essa proposta feyerabendiana deriva da ideia segundo a qual o objetivo principal de uma democracia é “alcançar modos de viver mais humanos”: “as populações locais não apenas usarão, mas também deveriam usar as ciências nas maneiras mais adequadas a elas”. O modelo democrático em vista reconhece que leigos não são experts em questões científicas (p. 336), mas destaca que questões científicas com frequência transcendem a competência da especialidade dos cientistas. Por isso a comunidade deveria participar das tentativas de solução de tais problemas. Cientistas

282

também teriam saberes limitados, não apresentariam uma posição unânime e os leigos se beneficiariam do reconhecimento da “falibilidade dos especialistas”.

4.2.3. Síntese da ‘posição avançada’ A imagem da ciência que Feyerabend e Dupré compartilham retrata a ciência como uma entidade “radicalmente fraturada e desunificada” (4.2). No geral, ambos recusam a “hierarquia ontológica” presumida pela metafisica reducionista, a qual, ademais, tende a “legitimar resistências” contra outras “descrições possíveis” (4.2.1). Nesse passo, assinalamos que a posição avançada de Feyerabend quanto à desunidade da ciência insistiria: i) que os procedimentos de cientistas de diferentes campos não coincidem; ii) que os êxitos científicos convergem unicamente com as visões metafisicas pressupostas nas próprias teorias em teste; e (iii) que os cientistas não apresentam uma opinião unitária diante de todos os problemas. Logo, as reduções científicas consistiriam apenas em um “trabalho de colagem” o qual busca gerar a “impressão de uma realidade única e coerente”. Então, Feyerabend formula a tese segundo a qual a ciência não passaria de “uma coleção de diferentes abordagens”. Ele também aproveita para sublinhar o caráter exitoso de “tradições de culturas” não científicas: “a Natureza é mais complexa do que uma crença na uniformidade e singular excelência que a ciência poderia sugerir”. O antirreducionismo ontológico feyerabendiano, portanto, afirma que o Real é algo “inefável”, que nosso conhecimento sobre a Natureza depende da abordagem. Para expressar essas noções, o austríaco utilizou a diversas metáforas, das quais, efetivamente, a figura do Monstro desponta como primordial (4.2.2 e 4.2.2.1). A visão da ciência como inseparável do “resto da história” conduziria à constatação de que ela seria um “monstro de muitas caras” (4.2.2.1.1). A crítica da “doutrinação sistemática” com relação a “‘fatos’ científicos” levaria à percepção da ciência como um monstrum que “inibe a liberdade de pensamento” (4.2.2.1.2). A recusa de que predições exitosas consistiriam em critérios objetivos para avaliar ideias afastaria a crença na ciência como um “monstro monolítico” que permitiria definir a progressividade de hipóteses (4.2.2.1.3). Por fim, o reconhecimento da heterogeneidade de indivíduos, escolas ou períodos históricos da ciência indicaria que a “palavra ‘ciência talvez seja uma única palavra – mas não há uma entidade única que corresponda a essa palavra”. O “monstro mítico” – Die Wissenschaft – não passaria de uma crença metafisica reducionista: “uma visão de 283

mundo única e coerente que subjaz ao todo da ciência é uma hipótese metafísica tentando antecipar uma unidade futura, ou uma fraude pedagógica”. Assim, de maneira geral, o corpus de Feyerabend evidenciaria uma crescente busca por legitimar epistemicamente a importância da existência de cosmovisões não científicas; e, particularmente, a posição avançada de Feyerabend sublinharia que a ciência não consistiria em de uma única Visão Científica de Mundo harmônica, coesa, coerente, regular e homogênea.

4.3. Críticas de Feyerabend ao programa monista do Círculo de Viena No manifesto de 1929, o Círculo de Viena assumiu como uma prioridade a consecução do ideal de uma Wissenschaftliche Weltauffassung.247 O grupo vienense adotou aquela expressão cientificamente orientada para se opor à tradicional ideia, metafisicamente

carregada,

de

uma

Visão

de

Mundo

[Weltanschauung].

Sinteticamente, a brochura anunciou que os neopositivistas compartilhavam de uma “mesma atitude científica básica” [gleicher wissenschaftlicher Grundeinstellung] (p. 5): rejeitar de todo “pensamento metafísico e teologizante” (p. 6). Para tanto, os membros do grupo vienense assumiram uma postura baseada “na experiência e avessa à especulação”, isto é, uma posição orientada para a “pesquisa antimetafísica dos fatos”. O intento daquela “atitude fundamental” (p. 10) do Círculo de Viena era, basicamente, elaborar uma “ciência unificada” [Einheitswissenschaft]. Destarte, os esforços fundamentais da concepção científica do mundo almejavam “conectar e harmonizar entre si” [miteinander zu bringen miteinander] os resultados dos vários ramos do conhecimento. Como tal, a unificação do conhecimento assinalava para um “trabalho coletivo” e se pautava por conteúdos que intersubjetivamente apreensíveis. Em linhas gerais, o Círculo de Viena procurou uma ciência constituída por “um sistema de fórmulas neutro” e purificada das “linguagens históricas”. Para atingir os ideais de “a clareza e a limpeza”, problemas filosóficos precisariam ser convertidos em problemas empíricos. O método da “análise lógica” definiria o conteúdo cognitivo das sentenças através da redução dos enunciados a níveis “mais simples sobre o que é dado

247

Há uma versão traduzida deste do documento em Hahn et al. (1986), usada nas citações numeradas no texto. Cotejamos, no entanto, a versão original do texto (“Wissenschaftliche Weltauffassung – Der Wiener Kreis”), para ocasionais conferências conceituais. Para maiores detalhamentos, ver principalmente Stadler (2001) e Uebel (2008).

284

empiricamente”. Em síntese, o ponto de vista antimetafísico do Empirismo Lógico pretendia remover o “entulho metafísico” (p. 18) e, com isso, impactar a “vida contemporânea” (p. 19): “Presenciamos a penetração, em crescente medida, do espírito da concepção científica de mundo […] A concepção científica de mundo serve à vida, e a vida a acolhe”.

4.3.1. O ‘Movimento para a Unidade da Ciência’ e o enciclopedismo248 Pombo (2011) estudou detalhes do programa neopositivista de Unidade da Ciência. Segundo essa leitura, aquela proposta unitarista receberá a “formulação mais precisa e mais técnica” no contexto do Empirismo lógico (p. 80). Como tal, a unidade da ciência ocuparia um lugar destacado na perspectiva do Círculo de Viena. Esquematicamente, o programa unitarista vienense seria composto por teses metateóricas e comportaria pretensões pedagógicas:249

i.

ii.

iii.

iv.

Estudar os “resultados” das ações científicas para analisar a forma dos enunciados científicos, visando “clarificar” o conteúdo deles e, assim, eliminar noções metafísicas (não redutíveis a proposições empíricas) do terreno científico. Elaborar uma “unidade da linguagem” das ciências empíricas que incorpore as “sub-linguagens” das distintas disciplinas científicas e que cumpra a função de “condição necessária” para uma ciência homogênea. Reduzir os termos das linguagens científicas particulares a termos fisicalistas (conceitos que descrevam eventos/objetos/propriedades espaço-temporalmente determinados), de forma que inexista nessa “linguagem das coisas” qualquer resquício de um vocabulário não verificável. Erigir enunciados científicos universalmente acessíveis, intersubjetivos, os quais convertam a “linguagem fisicalista” em um “jargão universal” (ou “língua universal”), possibilitando, assim, tanto a “cooperação” e a “comunicação” dos pesquisadores como o ensino e a popularização da visão científica de mundo através de uma “plataforma comunicativa” unitária (a Enciclopédia).

248

As ideias para esta seção remontam, substancialmente, ao nosso contato com a Profa. Olga Pombo, especialmente os esclarecedores escritos dela sobre as concepções neopositivistas (sobretudo Neurath) acerca da Unidade da Ciência. 249 A versão forte da unidade da ciência na tradição do Empirismo lógico remonta, prioritariamente, aos seguintes estudos pioneiros de Carnap: “Die physikalische Sprache als Universalsprache der Wissenschaft” (1932), “Physics as a Universal Science” (1945) e Philosophy and Logical Syntax (1935), “Logical Foundations of the Unity of Science” (1938).

285

Nesse sentido, o programa de unidade da ciência do Empirismo Lógico deveria ser compreendido, rigorosamente, como um “verdadeiro movimento”. Pombo esclarece: “o movimento neopositivista para a unidade da ciência – conjunto de posições teóricas a que correspondem claras finalidades enciclopedistas e educativas e de comunicação universal” (p. 14). Pois bem, o Movimento para a Unidade da Ciência incluiria uma série de “iniciativas e realizações” (p. 59) voltadas para a promoção da unidade da ciência. Primeiro, as iniciativas editoriais: i) a fundação da coleção de monografias Einheitswissenschaft [Ciência Unificada], convertida, em 1938, no projeto editorial Library of Unified Science; ii) a publicação, a partir de 1930, da revista Erkenntnis, que, em 1937, transformou-se no Journal of Unified Science; e iii) a edição da enciclopédia International Encyclopaedia of Unified Science – planejada desde a década de 1920. Inicialmente, pretendia-se publicar, em 1938, um conjunto de monografias voltadas para a ideia de unidade da ciência, e, em 1962, outros vários escritos foram lançados como parte da International Encyclopaedia of Unified Science. Então, a Enciclopédia corresponderia a uma das principais “figura da unidade da ciência” (p. 14) na ótica neopositivista, afinal, ilustraria o “conjunto complexo e denso de materializações” que articularia a estrutura e a organização das ciências sob uma “ideia de harmonia” (p. 15). Segundo, as realizações: a organização do International Congress on Unity of Science250 e a fundação (1934) do Mundanaeum Instituut (em Haia, Holanda), posteriormente transferido para os Estados Unidos como o Institute for the Unity of Science. As posições do Empirismo Lógico sobre a unidade da ciência não deveriam ser consideradas “inteiramente coerentes” (p. 59), contudo, é razoável considerar o economista, sociólogo e filósofo austríaco Otto Neurath como o “grande dinamizador e organizador” (p. 61) daquelas iniciativas editoriais e realizações do Movimento para a Unidade da Ciência. Pombo (2011) afirma que a Enciclopédia corresponde ao modelo da unidade da ciência neurathiano (p. 59). A Enciclopédia representaria a “metáfora da unidade da ciência” porque “condensa densa informação e as exibe em uma forma espacial”. Então, o modelo enciclopédico resumiria a essência do próprio projeto neurathiano, pautado por uma “atitude aberta, cooperativa e antidogmática” (p. 60). Além disso, funcionaria como um “poderoso mecanismo de unificação” através do qual cientistas de vários

250

Praga, em 1929; Paris, em 1935; Copenhague, em 1936; Paris, 1937; Cambridge (Inglaterra), em 1938; Cambridge (Massachussetts), em 1939; e Chicago, em 1941.

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ramos poderiam se empenhar em um “esforço cooperativo”. Para Neurath, a enciclopédia exibiria uma “realização, um trabalho material concreto” (p. 61). Assim, apesar de existirem esforços similares, o enciclopedismo de Neurath visaria substancialmente “enciclopédias filosóficas”: isto é, “menos uma exposição exaustiva” do que “salientar a articulação, a integração, as conexões, as relações universais dos vários tipos de conhecimento”. Nesse cenário, a comentadora destaca oito aspectos de convergência entre todos os projetos enciclopedistas (pp. 62-66):

(i) “A Enciclopédia aspira se tornar uma reflexão completa, imparcial e objetiva de todo conhecimento alcançado pela humanidade”. (ii) “A Enciclopédia não é um dicionário” (iii) “Se a Enciclopédia jamais é um dicionário, ambos possuem, no entanto, pontos em comum” (iv) “A objetividade material de uma enciclopédia possui, então, uma condição ilimitada”. (v) “[A Enciclopédia] sempre possui uma forte expectativa quanto ao seu papel cultural, educativo” (vi) “[A Enciclopédia] é um trabalho coletivo” (vii) “Trabalho coletivo, a Enciclopédia nunca é uma soma de elementos descontínuos advindos de diversas fontes” (viii) “[A Enciclopédia] possui também um papel prospectivo, tanto em seus objetivos práticos, ideológicos, políticos e educativos como em seu enorme valor heurístico”

As “determinações principais” da Enciclopédia de Neurath caracterizam uma proposta segundo a qual o conhecimento é assumido como uma produção histórica. O ponto [(i)] sugere que a ciência seria sempre “inacabada, incompleta, precária”. Nesse sentido, a redução das disciplinas apareceria como uma “tarefa infinita”. O ponto [(ii)] reconhece que a ciência comportaria uma “estrutura semanticamente aberta” a qual demandaria “atualizações constantes”. O ponto [(iii)] formula que as entradas/verbetes da Enciclopédia e do dicionário seriam mutuamente relacionados, isto é, ilustrariam “entidades dinâmicas” nas quais “cada entrada é conectada virtualmente com todas as outras”. O ponto [(iv)] sublinha que as “múltiplas relações” materiais permitiriam um “número indeterminado de relações”. O ponto [(v)] assinala que a busca pelo conhecimento dispensaria um “curriculum predeterminado”. O recurso a “descrições icônicas e imagéticas” conduziria a uma ainda mais efetiva “democratização e popularização” das informações. O ponto [(vi)] mostra que o conhecimento se transformaria em algo “pluralista, polimorfo, democrático”. O ponto [(vii)] explicita que a ciência “jamais é uma miscelânea” porque permitiria uma “apresentação ordenada”. Uma enciclopédia sempre supõe alguma espécie de estrutura, ainda que não

287

seja uma “totalização sistemática”. Por fim, o ponto [(viii)] defenderia a busca por “conexões cruzadas” e “articulações cooperativas” entre as diversas disciplinas científicas. Finalmente, Pombo destaca que o “enciclopedismo de Neurath possui um grande significado para a formulação de uma concepção contemporânea de unidade da ciência” (p. 67). A singularidade da metáfora enciclopédica se evidenciaria no contraste dela com outras usuais imagens da unidade: círculo, árvore, casa ou mapa. A Enciclopédia se distinguiria do círculo porque “não precisa da perfeição”: as ideias de “eternidade, estabilidade e sistematicidade completa”; da árvore porque “não precisa da hierarquia”: “exige o pluralismo, a tolerância e o perspectivismo” ao mesmo tempo que “rejeita o absolutismo, o piramidismo e o fundacionismo”; da casa porque “não precisa de planejamento prévio”, embora necessite de “cooperação organizada”; e do mapa mundus porque “não precisa de uma cartografia prévia”: descarta qualquer “concepção de conhecimento territorial, colonialista, imperialista”. Nesse sentido, de fato, a “enciclopédia de Neurath está próxima de reconhecer a metáfora oceânica de Leibniz para a unidade da ciência” (ver 4.1.2).

4.3.2. Feyerabend, o Círculo de Viena e Neurath: três leituras A posição avançada de Feyerabend explicita uma recusa radical da Concepção Científica de Mundo251 harmônica, coesa, unitária, coerente, regular e homogênea (4.2.3). Com efeito, estaria correta a ideia (sintetizada em [A.2a] no início deste capítulo) segundo a qual a defesa feyerabendiana da desunidade da ciência confrontaria, primordialmente, o ideal unitarista do Empirismo Lógico. Na influente leitura prestoniana, a crítica de Feyerabend à ideia de um único método científico sinalizaria para o “declínio do projeto de ‘Unidade da Ciência’ positivista” (PRESTON 1997, p. 180). Todavia, essa explicação não é consensual entre os interpretes do corpus feyerabendiano. Por exemplo, Dissakè (1999, p. 53) encontrou a unidade da filosofia de Feyerabend no caráter radical e consequente do antifundacionismo feyerabendiano

251

Feyerabend usa indiscriminadamente as expressões Visão Científica de Mundo ou Visão de Mundo Científica para se referir ao que se traduz, comumente, por Concepção Científica de Mundo. De nossa parte, consideramos que aqueles usos feyerabendiano tinham como alvo a noção geral Wissenschaftliche Weltauffassung, isto é, o projeto de fundar epistemicamente uma concepção de mundo harmônica e homogênea baseada na unificação dos resultados científicos (ver 4.3).

288

(ver 1.1.2). Sob essa ótica, a obra do filósofo não expressaria uma “abordagem póspositivista da ciência”. Como o “programa antifundacionista” já se revelava nuclear para o neopositivismo, o autor de Contra o Método consistiria, propriamente, em um “herdeiro infiel do Círculo de Viena, por meio de Kraft”. Dissakè (2001, p. 19) insiste que o acesso de Feyerabend às ideias do Círculo de Viena ocorreu “via grupo KraftFeyerabend, o qual não é outra coisa senão uma forma de estudo amplificada que imita o Círculo de Viena”. A influência do Círculo de Viena no pensamento de Feyerabend seria determinante até as últimas obras do filósofo. Até o tema da desunidade da ciência remeteria a teses neopositivistas:

Em todo caso, o filósofo [Feyerabend] parece enfrentar, em seu íntimo, a abordagem vienense. A ideia de desunidade da ciência, que atravessará seus trabalhos, remete, nem mais nem menos, ao programa do Círculo de Viena, um tema em relação ao qual seus membros, como sabemos, se debruçaram de maneira incansável e do qual a Encyclopaedia of Unified Sciences é um dos frutos (p. 25)

Nesse cenário, o didatismo da perspectiva da Visão Padrão também pode ser confrontado a partir dos trabalhos de Stadler (2006), Sanchez (2006) e Yuann (2007), os quais discutem convergências entre as ideias de Feyerabend com teses do Círculo de Viena, principalmente as aproximações entre os pluralismos feyerabendiano e o neurathiano.

4.3.2.1. A abordagem histórico-biográfica: o “retorno a Viena” Stadler (2006, p. xi) parte da constatação da escassez de estudos sobre Feyerabend devotados ao período precedente à publicação do Contra o Método. Entretanto, segundo o estudioso, “essa fase foi decisiva” para o desenvolvimento intelectual de Feyerabend. No mesmo sentido, a produção tardia do filósofo retornaria “aos temas iniciais do seu período vienense”. Portanto, para Stadler, “há mais continuidades do que rupturas na biografia dele e mais consistências do que contradições nos aspectos teóricos da obra filosófica de Feyerabend”:

289

Afirmo que, ao longo de toda sua vida, Feyerabend foi efetivamente ‘um filósofo de Viena’ ou ‘um filósofo vienense’ [ein ‘Philosoph aus Wien’ oder ‘Wiener Philosoph’], a despeito de alguns importantes desenvolvimentos intelectuais – e ainda que ele mesmo pudesse não subscrever essa opinião. Ademais, eu diria ainda que ele permaneceu estritamente ligado à filosofia austríaca e à tradição científica da Europa central [österreichischen Philosophie und mitteleuropäschen Wissenschaftstradition], mesmo após ter deixado Viena, de tal forma que é improvável entender o desenvolvimento intelectual dele sem esse contexto.

Em primeiro lugar, Stadler reconstrói o ambiente intelectual de Feyerabend no período entre 1947 a 1954 (ver 3.1.1 e 3.1.2). Em Viena, Feyerabend teria conhecido Hans Thirring, Karl Przibram, Felix Ehrenhaft, Alois Dempf e Viktor Kraft. O contato do jovem austríaco com importantes filósofos da ciência e com a comunidade científica remontaria aos encontros, em 1948, promovidos pelo Colégio Austríaco. Na ocasião, estiveram presentes Karl Popper, Friedrich A. von Hayek, Hans Albert e membros do Círculo de Viena, dentre os quais: Rudolf Carnap, Herbert Feigl e Philipp Frank. Alpbach surgiria como um contexto crucial para a aproximação de Feyerabend com a “rede internacional” de epistemólogos e cientistas. A fundação do Kraft-Kreis decorrera desse contexto de emancipação cultural e científica da Áustria. Entre 1948 e 1954, Viktor Kraft conduzira reuniões com a presença de: i) membros estáveis (Bela Juhos, Walter Hollitscher, Ernst Topitsch), ii) estudantes universitários (Johnny Sagan, Heinrich Eichhorn, Goldberger de Buda, Peter Schiske, Erich Jantsch) e iii) participantes convidados (Elisabeth Anscombe, Emil J. Walter, Georg Henrik von Wright, Edgar Tranekjaer-Rasmussen e Ludwig Wittgenstein) (pp. x-xi). Conforme Stadler compreende, tal lista (composta por figuras austríacas e estrangeiros) permitiria designar o Círculo Kraft de ‘o Terceiro Círculo de Viena’ [Dritten Wiener Kreis]. Ademais, a tese de Feyerabend, intitulada Zur Theorie der Basissätze (1951), orientada por Kraft, refletiria as discussões daquele grupo. Stadler concebe esse texto como uma

reconstrução original do problema das sentenças de base, incluindo o debate sobre as sentenças protocolares [des Basisprobleme samt Protokollsatzdebate], no Círculo de Viena, levando em consideração pesquisas experimentais contemporâneas em psicologia, com uma precisa reformulação da tese Duhem-Neurath-Quine referente ao caráter teórico de qualquer sentença empírica [These von der prinzipiellen Theoretität aller empirischer Aussagen] (p. xiv).

290

Em seguida, o estudioso aponta que o período de pós-doutoramento (19491952) de Feyerabend envolveu viagens a países do norte da Europa, onde manteve uma “intensa comunicação científica” com Louis Hjelmslev, Tranekjaer-Rasmussen, Joergen Joergensen, Konrad Marc-Wogau e Anders Wedberg. Filósofos do Círculo de Viena originários dos países nórdicos (como Eino Kaila e Aerne Naess) também discutiram temas – como o debate realismo/materialismo versus fenomenalismo, e a relação entre filosofia e filosofia (‘psicologismo’) – pelos quais Feyerabend teria se interessado. Entre 1953 e 1954, Arthur Pap buscou reviver na Universidade de Viena a tradição filosófica do empirismo lógico – e Feyerabend ocupou o cargo de assistente do filósofo analítico. Através de Pap, o autor de Contra o Método conheceu Herbert Feigl, em 1954. Feigl, que se tornaria “uma das influências filosóficas mais importantes de Feyerabend”, tinha como objetivo estabelecer a tradição vienense nos Estados Unidos (pp. xv-xvi). Stadler menciona que “após a admissão de Feyerabend em Berkeley [1958-1959], Feigl foi particularmente importante enquanto anfitrião de Feyerabend junto ao Minnesota Center for the Philosophy of Science” (p. xxii). Enquanto colaborador do MCPS (entre 1957 até 1968), Feyerabend produziu diversos trabalhos importantes (ver 3.1.2.1, 3.1.2.2 e 3.1.2.3). Destaque especial deve ser dado ao artigo “Against Method”, incluído no volume IV da série Minnesota Studies for the Philosophy of Science (PKF 1970). Stadler julga importante recuperar essas informações porque o próprio Feyerabend ofereceria uma deturpada reconstrução “deshistoricizante [Enthistorisierung]” (p. xxiv) de suas relações com os membros e herdeiros do Círculo de Viena. Por exemplo, Feyerabend não detalha “o contexto do Terceiro Círculo de Viena associado a Kraft e o Círculo de Viena na América, em torno de Feigl”. Essa postura produziria a deturpada “nova imagem” dele como um “ícone da pós-modernidade e do relativismo epistemológico e cultural”:

Foi apenas no final de sua vida que ele [Feyerabend] retornou às raízes vienenses do seu desenvolvimento intelectual [den Wiener Wurzein seiner intellektuellen Entwicklung], isto é, a unidade programática da filosofia e história da ciência, com Mach, Boltzmann, Alois Riegl e a tradição histórica do Empirismo Lógico, ainda que, no fim de sua produção, ele tenha criticado o Círculo de Viena e Karl Popper de uma maneira indiferenciada (pp. xxiv-xxv).

Stadler reconhece que, na década de 1980, Feyerabend “retornou tanto fisicamente como mentalmente às suas socializações intelectuais iniciais” (p. xxv). Esse movimento envolveu uma releitura de Mach e teve como tópico central a defesa 291

de um regresso à “teoria de pesquisa histórico-crítica [historisch-kritischen Forschungs-theorie], em oposição à tradição abstrata-teórica em filosofia da ciência”. Na opinião do estudioso:

Dando sequência à sua reabilitação, Feyerabend procurou prestar homenagem à teoria de pesquisa de Mach, entre abstração e fantasia independente da epistemologia fenomenista, por meio da qual os dualismos teoria vs. experiência, filosofia vs. ciência, materialismo vs. idealismo, bem como história da ciência vs. teoria da ciência eram superados.

A abordagem de Stadler objetiva corrigir uma simplificação referente ao corpus feyerabendiano (p. xxvi). Para tanto, não analisa simplesmente o período posterior à publicação do Contra o Método, em 1975. O foco intenso na parte que se seguiu aos anos 1970 desqualifica o “forte impacto e a influência recíproca do Terceiro Círculo de Viena, o Círculo Kraft em Viena dos anos pós-Guerra e o Colégio Austríaco/Fórum Alpbach até a década de 1960”. Tais considerações não colocam que questão a “indiscutível originalidade e autonomia intelectual” do pensamento feyerabendiano (p. xxvii). Ainda assim, não seria excessivo o considerar

um filósofo de Viena [ein Philosophen aus Wien] ou alinhá-lo com o Círculo de Viena, como alguém que foi tão fortemente influenciado por esse grupo (do primeiro ao terceiro Círculo de Viena, incluindo Wittgenstein e Popper, da ‘outra Montanha Mágica’ ao ‘Minnesota Center’) e que, próximo ao final de sua vida, voltou a essas tradições filosóficas de uma forma provocativa e construtiva.

4.3.2.2. A abordagem correspondentista: duas epistemologias naturalistas Yuann (2007) discute os encaminhamentos da filosofia da ciência naturalizada e afirma que Feyerabend elaborou as teses naturalistas de Neurath (p. 171). Especificamente, o ponto de aproximação estaria na defesa feyerabendiana da teoria pragmática da observação. Para o comentador, aquela abordagem epistemológica “surge a partir da tentativa de compreender o crescimento do conhecimento científico”. Ela decorreria de “um processo que se origina no Círculo de Viena”, especialmente os debates acerca das proposições protocolares. Com efeito, a interpretação em questão parece divergir da imagem estereotipada de Feyerabend como um antipositivista: 292

“Incluo os debates sobre ‘sentenças protocolares’ no Círculo de Viena principalmente por Neurath, seguidos por Feyerabend, como parte indispensável desse movimento filosófico” (p. 172). Inicialmente, Yuann assinala ser equivocada a impressão de que o Círculo de Viena tinha uma posição oficial. Para ele, o grupo comportaria “heterogeneidade e dinamismo”. Ao mesmo tempo, a busca de uma noção mais precisa do Círculo de Viena permitiria uma redescoberta do pensamento neurathiano (p. 175). Com relação ao debate sobre as proposições protocolares, por exemplo, as ideias neurathianas seriam nitidamente antifundacionistas: “Na verdade, esse tipo de ‘conhecimento sem fundamento’ lança luz a uma ‘nova epistemologia’”: o naturalismo (p. 176). A expressão do naturalismo (antifundacionismo) neurathiano apareceria na famosa metáfora do barco, segundo a qual o conhecimento é um processo constante de reconstrução de um barco navegando em mar aberto. Desse modo, a atitude em relação à ciência natural não faria mais apelo à justificação racional (p. 177). Mas a “parábola do marinheiro” de Neurath não expressaria um programa completo de epistemologia naturalizada. Tal perspectiva epistemológica englobaria quatro condições (p. 179):

1. Afirmação do primado da prática – abordar a efetiva atividade científica. 2. A tese da substituição – a racionalidade da ciência não pode ser estabelecida ‘de fora’ da ciência, ao contrário do postulado da epistemologia tradicional. 3. A exigência da austeridade explicativa – compreensão epistemológica deve recorrer a noções científicas. 4. Primado da aceitação teórica – a justificação de uma teoria não envolve a verdade dela, mas sua aceitação. Haveria, ainda, uma exigência adicional (p. 183): 5. Condição de evidência – considerar apenas proposições ‘especificáveis e justificáveis’. Uma última condição completaria esse esboço de programa epistemológico: 6. Exigência normativa – elementos extra-cognitivos (pragmáticos) caracterizam a aceitação teórica (p. 181). Yuann entende que a explicação desse programa neurathiano encontra sua “realização plena na ‘teoria pragmática da observação’ de Feyerabend” (p. 183). Assim, a hipótese em vista entende que “todo o programa da epistemologia naturalista de Neurath pode ser observado da filosofia da ciência de Feyerabend”. Existiriam três “linhas de raciocínio” para embasas essa proposta:

293

i. ii. iii.

Reconsiderar o desenvolvimento do debate em torno das proposições protocolares considerando a influência de Popper no Círculo de Viena. Considerar as ideias feyerabendianas como uma versão de metodologia naturalista da ciência similar à de Neurath. Demonstrar o caráter normativo da Teoria Pragmática da Observação de Feyerabend

Com relação a (i), Yuann defende que a posição antifundacionista de Neurath, segundo a qual resultados experimentais seriam apenas hipotéticos, o impedia de aceitar a condição factual como critério epistêmico. Essa postura seria comungada pelo “antiindutuvismo” de Kraft e Popper (p. 194) e refletiria o “‘início’ de um programa em defesa de uma epistemologia naturalizada” (p. 195). Diante disso, o estudioso afirma que os esforços de Feyerabend pretenderam avançar tal programa:

Vemos que, muito longe de ser um antipositivista, Feyerabend mantêm uma posição que se orienta no sentido do ‘lado naturalista’ do Círculo de Viena. De fato, inclusive afirmaríamos que Feyerabend é fundamentalmente distinto de todos seus contemporâneos pós-positivistas por descender diretamente do Círculo de Viena” (p. 186).

Quanto a (ii), Yuann entende que a metodologia da ciência feyerabendiana atente às seis condições do programa epistemológico em vista. A condição (1) estaria ligada à insistência de Feyerabend quanto ao fato de uma “filosofia da ciência propriamente dita exige a história da ciência” (p. 187). A condição (2) remeteria à ideia de que “podemos observar a racionalidade da ciência apenas através da prática da ciência, a qual não é limitada por uma tradição preestabelecida”. A condição (3) englobaria a noção de que os padrões avaliativos de um processo histórico são imanentes. A condição (4) abarcaria da premissa de que “a apreciação da adoção de uma tradição específica não envolve qualquer padrão de racionalidade” A condição (5) envolveria a tese feyerabendiana de que a ciência é uma tradição cujo predomínio deveria ser democraticamente debatido. A condição (6) seria o “verdadeiro desafio” dessa nova leitura, afinal, um “autodeclarado ‘anarquista epistemológico’” não atenderia à condição de normatividade. Assim, Yuann apresenta uma resposta negativa à questão referente à posição anarquista de Feyerabend. Segundo o estudioso, a posição epistemológica do austríaco seria, mais propriamente, “uma forma de metodologia naturalista que se fundamenta na ‘teoria pragmática da observação’” (p. 188). A teoria

294

pragmática da observação de Feyerabend recusaria a concepção semântica segundo a qual haveria uma conexão lógica entre o significado de um termo e o fato. Assim, “variações de circunstâncias externas” não permitiriam “mudanças nos significados dos termos empregados nas sentenças observacionais”. Em contraste com tal teoria empirista do significado, Feyerabend seguiria as ideias de Neurath, Popper e Carnap (ver 3.2.3). “Para Feyerabend, a consequência mais importante da transição para a teoria pragmática é a inversão que ocorre na relação entre teoria e prática” (p. 189), comenta Yuann. Os princípios observacionais não seriam mais “significativos per se”:

a teoria pragmática, por outro lado, sustenta que observações, embora formadas mediante processos fisicalistas ou psicológicos, são interpretadas pragmaticamente e, assim, naturalmente determinadas por uma ‘teoria’ funcionando como princípio ontológico (p. 190).

O tópico (iii) concerne à atribuição de uma metodologia normativa a Feyerabend (p. 192). Yuann entende, a propósito, que o autor de Contra o Método acompanha a direção metodológica de Kraft e Popper. Assim, ele também sustentava que os problemas epistemológicos seriam solucionados se assumíssemos que todas as ideias “são refutáveis e revisáveis”. Partindo dessa posição, a metodologia pluralista de Feyerabend insistiria que seríamos “capazes de rejeitar ideias plausíveis e a aceitar ou inventar ideias implausíveis”. O caráter normativo da visão feyerabendiana residiria no olhar voltado para a “efetividade prática do conhecimento científico”:

Embora se baseie em suposições desprovidas de bases firmes, as práticas científicas conduzem a um programa metodológico totalmente naturalista no qual uma teoria específica (e seus princípios explicativos do mundo) é aceita com base em todos os elementos disponíveis. A teoria enfrenta desafios assim que suas predições são negadas pelos ‘dados’ da experiência. Para alcançar uma melhor explicação dessa ‘parte malograda’ da teoria precedente, o que precisamos não é de um critério justificador que permita avaliar a teoria, mas uma outra teoria para incorporar todos os ‘fenômenos anômalos’ em sua tenacidade explicativa. Esse é o modo pelo qual a ciência naturalmente se desenvolve e, com esse irrecusável desenvolvimento, concluímos nossa exposição da natureza ‘normativa’ da filosofia da ciência naturalista de Feyerabend (p. 194).

295

Portanto, a abordagem correspondentista de Yuann pode ser sintetizada a partir de três seguintes ideias: i) a “imagem estereotipada do positivismo lógico” (p. 195) ignorou a “metodologia naturalista em epistemologia e filosofia da ciência” desenvolvida no interior do Círculo de Viena, particularmente por Neurath; ii) o pensamento de Neurath comporta um programa completo de epistemologia naturalista valioso para examinar do “desenvolvimento do conhecimento científico”; e iii) a obra de Feyerabend consiste em um “programa de filosofia da ciência naturalista” cujas origens remontariam ao Círculo de Viena através de Kraft, Neurath e Popper. O comentador conclui: “É devido a essa ‘correspondência’ que, finalmente, afirmamos encontrar o acabamento de um programa metodológico naturalista na filosofia de Feyerabend”.

4.3.2.3. A abordagem compatibilista: as “virtudes do pluralismo” Sánchez (2006) se inscreve na tradição de leitores que reconhecem a heterogeneidade da filosofia do Círculo de Viena (p. 75). Não obstante, considera que a unidade da ciência consistia em um dos problemas comuns do grupo vienense (p. 76). Na verdade, a questão da unificação da ciência representaria o projeto de pensadores como Schlick, Carnap e Neurath, ainda que soubessem que “a ciência não era unitária nem homogênea”. Sob essa ótica, o projeto vienense de Unidade da Ciência reconhecidamente não espelhava o real estado da ciência. As “versões mais sofisticadas” do projeto unitarista recusavam “reduzir as ciências a uma única disciplina”. No caso particular de Neurath, encontraríamos uma recusa da ideia de que a física pudesse ser o modelo da ciência. Existiriam formas variadas de produzir conhecimento e, por isso, as diferenças deveriam ser mantidas. Nesse sentido, o modelo de unidade neurathiano seria o de uma enciclopédia capaz de efetuar uma orquestração dos saberes. O objetivo dessa unidade orquestrada de conhecimentos seria essencialmente otimizar a predição. Assim, os únicos critérios epistêmicos considerados seriam “o êxito preditivo e a coerência”. Isso não implicaria, entretanto, a inexistência de falhas ou incongruências no interior da própria enciclopédia:

A metáfora do barco, a qual afirmou que o conhecimento deve ser reconstruído em mar aberto a partir dos recursos disponíveis, não apenas ilustra o antifundacionismo [de

296

Neurath], mas também a ideia crucial de que existem zonas nas quais a vagueza e (possivelmente) a contradição estão presentes.

Para o filósofo, a análise lógica teria como função purificar os traços metafísicos da linguagem científica. A unificação da ciência decorreria de uma “integração das leis” das variadas disciplinas através da coordenação delas. Portanto, Sánchez conclui que “o modelo que Neurath articula reconhece as virtudes do pluralismo” (p. 77). Da mesma forma, Feyerabend seria “um dos autores a quem melhor se conhece por sua defesa do pluralismo”. Na leitura em questão, o autor de Contra o Método faria uma “aposta a favor do pluralismo por razões epistêmicas”. O pluralismo teórico feyerabendiano estimularia a proliferação como uma maneira de combater a “tirania de uma única maneira de ver o mundo”:

O pluralismo, como no caso de Neurath, é necessário para o desenvolvimento do conhecimento. Em seus trabalhos das décadas de oitenta e noventa, seu pluralismo epistêmico se amplia até o terreno político e cultural. Em todo caso, podemos entender a posição de Feyerabend como uma militância contra a tirania dos sistemas totalitários ou totalizadores (teóricos, culturais ou políticos).

Sánchez relembra que Feyerabend defende a participação ativa dos indivíduos e comunidades nas decisões políticas. Assim, questões científicas de interesse coletivo não poderiam ser deixadas aos especialistas. Como ocorre em Neurath, para Feyerabend também “não existia tal classe de experts”. Assim, a estudiosa observa diversas convergências entre os pensamentos de ambos filósofos. Nesse sentido, ela busca evidenciar como o projeto de unidade neurathiano “está atravessado pelas virtudes do pluralismo”. Para o membro do Círculo de Viena, o pluralismo importaria não seria importante apenas para “o reconhecimento da diferença e, assim da tolerância”. Neurath também veria no pluralismo como uma “chave para o progresso do conhecimento”. Assim, encontraríamos objetivos comuns aos pluralismos de Neurath e Feyerabend: “levar o conhecimento aos cidadãos”. Sánchez ressalta que o pensamento neurathiano abarcava tanto a ciência como a política. A concepção de conhecimento dele mantinha uma justa aproximação entre reflexão filosófica e ativismo político. Para Neurath, a ciência apareceria como um 297

“instrumento para realizar o aprimoramento humano”. Por isso, a ciência seria insuficiente. Ao mesmo tempo, considerava essencial “consultar os cidadãos” quanto àquilo que concebiam como “bem-estar” ou “vida digna” (p. 79). Os ideais políticos de Neurath o teriam comprometido com processos de educação. Dentre outras atividades, Neurath se comprometera em “criar um sistema de representações gráficas” que fosse compreensível ao maior número de cidadãos. Na base desse “sistema de comunicação” estaria a tese da “linguagem fisicalista para a ciência”. Segundo a comentadora, a noção de fisicalismo e o “projeto de unidade da ciência” são “noções intimamente relacionadas” na obra em questão (p. 80). Para Neurath, porém, o fisicalismo não significa a “redução das disciplinas científicas a uma única disciplina, a física”. A linguagem das ciências não seriam apenas a “linguagem dos objetos físicos”. Então, ele reconheceria o valor dos termos de “todas as disciplinas” científicas. Neurath tinha especial interesse pelas leis científicas: “estruturadas em termos espaço temporais” (ou seja, em linguagem fisicalista) elas funcional como “diretrizes para realizar predições”. Contudo, o fisicalismo neurathiano incluiria também na linguagem fisicalista os termos da linguagem cotidiana, afinal, termos ordinários também “se referem a objetos físicos”.

Portanto,

a

unificação

da

ciência

segundo

Neurath

envolveria,

prioritariamente, um trabalho coletivo (p. 81). Sánchez explica que tal compreensão da unidade da ciência seria melhor representada pela imagem de uma enciclopédia escrita em linguagem fisicalista. Ademais, o processo de unificação da ciência seria uma “tarefa pendente, aberta, que tem como objetivo principal a comunicação”. Com feito, a unificação da ciência não consistiria na conjunção da linguagem exotérica dos especialistas. O modelo enciclopédico rejeita que o conhecimento consiste em um “patrimônio de poucos” e busca “recuperar o caráter plural” da ciência.

Os materiais a partir dos quais se constrói o barco do conhecimento são múltiplos e não há motivo, tampouco possibilidade factual, de os homogeneizar. Pode-se dizer que a unidade da ciência aspirada por Neurath não consiste em uniformizar e desaparecer, ou trivializar, as diferenças entre os distintos modos de conhecimento gerados através da história da ciência. Contrariamente, o ideal consiste em aproveitar os recursos provenientes das mais diversas disciplinas com o plano de solucionar problemas, dentre de uma ou várias disciplinas (pp. 81-82).

Para Neurath, o “êxito dentro da ciência” demanda a possibilidade de comunicação da “multiplicidade de disciplinas científicas” (p. 82). Então, as escolhas 298

científicas não decorreriam de um único método válido para todas as ciências. A seleção entre teorias envolve decisões: “[D]ecisões no âmbito da ciência não podem se desprender da vida prática” (p. 83). Contudo, o modelo enciclopédico de unidade do conhecimento diverge do modelo piramidal. Neurath entenderia a estrutura da ciência unificada como uma orquestração, isto é, “nenhuma das disciplinas dentro das ciências possui um caráter privilegiado relativamente às demais”. Essas considerações indicam que o membro do Círculo de Viena “assume o caráter plural do conhecimento” (p. 84). Assim como na vida prática, o saber teórico também comportaria “incertezas”. Tais “limites da razão” demandariam decisões baseadas na vida prática. Portanto, para Neurath, a educação forneceria os recursos epistêmicos necessários para julgar a “ciência e a tecnologia”. Isso significa que a ciência não seria “um fim em si mesmo”, ainda que fosse importante para “a transformação da vida”. Sánchez identifica que os fins políticos do pensamento de Neurath estariam na base do projeto epistemológico de Feyerabend. Segundo essa leitura, Feyerabend criticou “qualquer tipo de totalitarismo, seja epistemológico, científico ou político” (p. 85). É nesse horizonte que encontraríamos a declaração em favor do pluralismo por parte de Feyerabend. O pluralismo feyerabendiano apareceria na “negação de um único método para estabelecer a validade do conhecimento”. Entretanto, sua dimensão mais fundamental apareceria na recusa da “aceitação acrítica da ciência como uma classe de conhecimento privilegiada frente a outras formas possíveis de saber”. De forma geral, ele atacaria o “cientificismo exacerbado”: atribuir à “ciência que estão fora do seu alcance” (p. 86). O caráter totalitário da perspectiva cientificista residiria em devotar à ciência uma confiança extrema. A conversão da ciência “em uma religião” decorreria de um processo de doutrinação que elimina “a força vital, crítica e criativa” da ciência. É por isso que, na visão feyerabendiana, não seria uma virtude a formação de “especialistas tecnocratas”. Contra o cientificismo tecnocrata, Feyerabend defenderia dois princípios: proliferação e tolerância (p. 87). Para Sánchez, tais princípios não seriam “apenas metodológicos, mas também éticos e políticos”: “[…] se o objetivo da ciência não é a verdade, mas o enriquecimento do mundo fenomênico, optar por uma metodologia pluralista que pressuponha um princípio de tolerância epistêmica é racional”. Haveria uma postura tirânica em “entender o mundo de uma única maneira”. Portanto, também encontraríamos em Feyerabend um pluralismo cultural. Mas nem por isso ocorreria de Feyerabend ser um relativista absoluto: para ele, linguagens não 299

constituem “sistemas fechados”. Pelo contrário, para o filósofo, “a comunicação começa, muitas vezes, na fronteira” (p. 88). Para tanto, a autoridade da tradição ou da cultura deveria ser questionada pelos indivíduos. Eles teriam liberdade e autonomia para criticar os conhecimentos estabelecidos:

Em última instância, o autoritarismo epistemológico, ético ou político cancela as possibilidades de crítica e condena os indivíduos a viver em seu mundo como se este fosse o único mundo. Disso se segue a necessidade de comunicação intercultural surge como de máxima relevância.

A leitura de Sánchez sugere que a defesa do pluralismo realizada por Feyerabend aspira “que os indivíduos, dentro das sociedades, fortaleçam sua liberdade e autonomia”. A “guerra contra o cientificismo” presente na obra feyerabendiana buscaria, pois, mostrar que o conhecimento precisa “servir à vida”. Assim, veríamos um esforço de “desmascarar o especialista” (p. 89) tendo em vista firmar uma “posição simétrica com relação aos leigos, como cidadãos que formam parte de uma comunidade ampla”. Contra a opinião geral de que a racionalidade científica seria epistemicamente privilegiada, o autor de Contra o Método mostraria que “a possibilidade de crítica apenas pode vir de tradições alternativas”. Por fim, a “tarefa primária da educação” consistiria em estimular tal abandono da “figura do especialista”. Então, Neurath e Feyerabend consideravam o pluralismo como “um valor dentro da ciência”. O membro do Círculo de Viena afirmaria uma unidade da ciência pautado em uma concepção de pluralismo: “o reconhecimento das diferenças como fontes a partir das quais se tomam os recursos necessários para a solução de problemas práticos”. Nessa perspectiva, negar a diversidade significaria “uma forma de “autoritarismo” e de “irracionalidade”. Por sua parte, Feyerabend atacaria o “aparato tecnocrático” (p. 90) que converte a ciência em “uma forma de autoritarismo, de totalitarismo”: “Uma cultura que não reconhece o direito de existência a outras formas de vida precisa ser questionada”. De forma similar a Neurath, o autor do Contra o Método mostraria traços de autoritarismo e de irracionalidade na “institucionalização de ciência”. Para ambos, apenas uma educação adequada explicitaria o “caráter plural do avanço científico”.

300

4.3.2.4.Crítica das três leituras As três leituras discutidas em 4.3.2 afastam a imagem predominante do Círculo de Viena como um conjunto homogêneo de teses estritamente epistemológicas.252 Assim, Stadler (2006), Yuann (2007) e Sanchez (2006) formulam vínculos entre o pensamento de Feyerabend e as teses do Empirismo Lógico, especialmente Neurath. Respectivamente, tais estudiosos introduziram três vias interpretativas: I.

II. III.

Leitura histórico-biográfica: Feyerabend foi e permaneceu sendo um filósofo cujo pensamento não se dissociou da tradição epistemológica e científica da Europa central, sobretudo da Áustria. Leitura correspondentista: Feyerabend efetivou o programa epistemológico naturalista de Neurath. Leitura compatibilista: o projeto de unidade de Neurath compartilha com Feyerabend uma defesa das “virtudes do pluralismo”.

As vias interpretativas I, II e III acima são instrutivas no sentido em que colocam em questão a didática opinião da Visão Padrão segundo a qual a obra de Feyerabend expressaria, indubitavelmente, um antipositivismo (como afirma a tese [A.2a] de Preston 1997, p. 180). Assim, relativamente à leitura prestoniana, consideramos: i) correta a ideia de que tese feyerabendiana da fragmentação da ciência expressa uma divergência profunda com o projeto de Unidade da Ciência do Empirismo Lógico; mas ii) incorreta a ideia de que essa divergência profunda com o unitarismo do Círculo de Viena ocorra apenas na fase final do corpus feyerabendiano. Todavia, as leituras reconstruídas em 4.3.2.1, 4.3.2.2 e 4.3.2.3 podem ser submetidas a críticas pontuais.

4.3.2.4.1. Os vários olhares de Feyerabend sobre o Círculo de Viena O corpus de Feyerabend comporta distintos posicionamentos quanto ao grupo vienense. Nos anos 1940, Feyerabend aderiu, sem ressalvas, às teses neopositivistas.253 Nos anos 1950, verificamos uma aproximação crítica254 a qual encontra nas reuniões

252

Para essa tendência revisionista, ver: Cartwright, Cat, Fleck & Uebel (1996); Giere & Richardson (1996); Stadler (2001); Uebel (1991, 1992). 253 “[A] ciência é a base do conhecimento, a ciência é empírica, empreendimentos não empíricos são ou lógicos ou sem sentido […] Eu estava absolutamente seguro de que nenhuma outra explicação fazia sentido” (MT, p. 77). 254 “Li os primeiros números da revista Erkenntnis” (MT, p. 83).

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do Círculo Kraft255 e na tese de 1951 seus momentos principais.256 Nos anos 1960, emergem no corpus ataques a modelos epistemológicos (os quais são, genericamente, designados por “empirismo contemporâneo”257) que Feyerabend associava ao Positivismo Lógico.258 Esses ataques se adensaram ao longo da década de 1970259, com a recusa de modelos epistemológicos normativos. No final da década de 1970, no entanto, sobretudo nos anos 1980260, observamos uma reaproximação de Feyerabend com o pensamento austríaco através de uma defesa das ideias de Ernst Mach.261 Por fim, na década de 1990, Feyerabend expressa um olhar mais moderado quanto ao projeto geral do Círculo de Viena262, sobretudo quando considera sua própria ascendência intelectual austríaca.263 Portanto, ainda que de maneira geral, reconhecemos que a leitura (I) simplifica demasiadamente o quadro das relações –

“Nossas discussões iniciaram-se em 1949 e continuaram, com interrupções, até 1952 (ou 1953). Praticamente toda a minha tese foi apresentada e analisada nesses encontros” (CM3, p. 340). 256 Pormenores dessa crítica em CM3, p. 286. 257 PP3, p. 82. 258 Ver PP1, cap. IV; PP2, Cap. III; 259 Ver PP3, cap. VI. 260 “A moderna Filosofia da Ciência surgiu no Círculo de Viena e seus esforços para reconstruir os componentes racionais da Ciência. É interessante comparar sua abordagem com a de filósofos mais antigos, por exemplo, Ernst Mach […] Menosprezando as ideias antigas, aos novos filósofos faltava perspectiva e logo começaram a repetir todos os erros tradicionais” (CSL, pp. 245, 248). Ver também PP2, cap. V. 261 “Com relação ao ‘positivismo’ de Mach, no entanto, a questão é simples: ele não existe” (AR, p. 212). Para detalhes, ver AR, cap. VII. 262 Na entrevista concedida à Telos, em 1992, Feyerabend expôs: “Na Áustria, a situação era diferente em razão da Igreja católica. Essa inundação germânica [isto é, as filosofias de Kant, Hegel e os hegelianos] não invadiu a Áustria. Havia espaço livre. Os Jesuítas, que eram favoráveis ao aprendizado, encorajaram as ciências e assim por diante. Esse é o escopo daqueles que originaram o primeiro Círculo de Viena, antes daquele que Hempel e Popper foram membros. Esses indivíduos aspiravam limar as tolices ensinadas nas escolas e nas palestras públicas as quais, supostamente, representavam a filosofia. Eles pretenderam tornar essa área desprovida de conteúdo um pouco mais científica, introduzir nela um pouco de precisão, de modo que as pessoas engajadas nas discussões pudessem chegar a algum lugar […] O aspecto importante é que esse movimento, sobretudo em Viena, estava ligado a um movimento de educação pública do partido socialista […] Isso se ligou ao Círculo de Viena através de Neurath, que fundou novas formas de ensino, e através de Carnap, que era um socialista engajado” (PKF 1995, p. 130131). Um pouco depois, Feyerabend sublinhou: “O Círculo de Viena não diz que elas [manifestações artísticas] devem ser rejeitadas: apenas precisam ser consideraras sem sentido” (p. 133). 263 Vejamos o seguinte trecho, retirado da última entrevista de Feyerabend, em 1994, conduzida por Joachim Jung: “J: O que te levou a deixar seu país e cidade de origem para trabalhar em países anglosaxões? Qual sua relação com Viena? F: Não sei. Nasci lá, contudo, não me sinto em casa. Veja, houve um tempo em que fiquei indo e voltando de Berlim a Londres: toda semana, três dias em Londres, quatro em Berlim, ensinando. E quando voltava a Londres me sentia em casa, mesmo que não estivesse falando meu idioma de origem. Assim, demorou muito tempo antes que eu recusasse meu cargo em Berkeley. Fugi de lá porque tinha medo de terremotos. Eu estive no epicentro de um terremoto em 1989. Assim, pensei: Não preciso disso. J: Pois bem, você jamais retornou a Viena para trabalhar lá. Teve experiências ruins em Viena? F: Não, não, nenhuma experiência ruim. [Tive] uma experiência incrível enquanto estudante, magnífica” (PKF 2000, p. 160-161). 255

302

algumas delas extremamente críticas264 – de Feyerabend com a tradição epistemológica e científica da Europa central, sobretudo austríaca.

4.3.2.4.2. O ‘interacionismo’ entre Razão e Prática Feyerabend criticou a perspectiva naturalista no contexto da discussão sobre “aquilo que foi chamado de ‘relação entre razão e prática’” (CSL, p. 32). 265 Inicialmente, o autor expõe três opiniões: (i) Versão idealista: “A razão orienta a prática”. (ii) Versão naturalista: “A razão recebe tanto seu conteúdo quanto sua autoridade da prática”. A opinião (i) afirmaria: i) a autoridade da razão independe da autoridade das práticas e ii) a razão modela a prática segundo suas necessidades. Por sua parte, A opinião (ii) afirmaria que a razão: iii) “descreve como a prática funciona” e formula os “princípios subjacentes à prática” (p. 33). Todavia, Feyerabend considera que ambas enfrentam dificuldades. O idealismo espera que “suas ações racionais tenham resultado […] no mundo real”. Mas, com frequência, “agir racionalmente” não produz os “resultados esperados”. O naturalismo adota uma prática exitosa, contudo, “uma prática pode se deteriorar; ou pode ser popular pelas razões erradas”: “Basear padrões em uma prática e parar por aí pode perpetuar para sempre os defeitos dessa prática”. Tendo apresentado essas críticas, Feyerabend assinala pontos comuns às opiniões (i) e (ii):

A inadequação dos padrões muitas vezes fica clara pela própria aridez da prática que eles produzem, e os defeitos ficam muito óbvios quando práticas em padrões diferentes prosperam. Isso sugere que razão e prática não são dois tipos diferentes de entidades, mas partes de um único e mesmo processo dialético (pp. 33-34).

“Mesmo o movimento filosófico mais iconoclasta da época, o neopositivismo, ainda se apegou à ideia antiga de que a filosofia deve fornecer padrões gerais para o conhecimento e a ação e que a ciência e política só podem lucrar se adotarem esses padrões. Rodeados por descobertas revolucionárias nas ciências, pontos de vistas interessantes nas artes e desenvolvimentos imprevistos na política, os severos fundadores do Círculo de Viena retiraram-se para uma fortaleza restrita e mal construída. A conexão com a história foi dissolvida; a colaboração estreita entre o pensamento científico e a especulação filosófica chegou ao fim; a terminologia estranha `s ciências e os problemas sem relevância científica assumiram o comando” (AR, p. 335). 265 Seguimos a exposição original do argumento, apresentado em 1978. Contudo, as mesmas teses foram reimpressas por Feyerabend no capítulo XVII da última edição do Contra o Método (ver CM3, pp. 299303). 264

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Feyerabend se recusa a considerar Razão e Prática como “entidades de espécies diferentes”. Ele afirma: “O que é chamado de ‘Razão’ e ‘Prática’, portanto, são dois tipos diferentes de prática” (p. 35). A especificidade da Razão estaria no fato de evidenciar “aspectos formais simples e facilmente produzíveis”. Isso levaria ao esquecimento acerca das propriedades complexas subjacentes à “variedade de propriedades acidentais”. Assim, encontramos a opinião (iii) sobre a relação entre razão e prática. No Contra o Método, Feyerabend explicitou que essa discussão envolvia, em particular, a relação entre “racionalidade científica e pesquisa científica” (CM3, p. 309). O obstáculo do idealismo seria colocar a prática segundo plano (p. 310). O problema do naturalismo consistiria na justificação da escolha da tradição: “A ciência, porém, não é uma tradição, e sim muitas, e, assim, dá origens a muitos padrões, parcialmente incompatíveis” (p. 311). De forma conclusiva, o austríaco afirma: “O naturalismo não consegue resolver o problema da racionalidade científica”. Com efeito, uma comparação dos inconvenientes do naturalismo e do idealismo acena para uma “concepção mais satisfatória”: o interacionismo.

O naturalismo diz que a razão é completamente determinada pela pesquisa. Disso, retemos a ideia de que a pesquisa pode modificar a razão. O idealismo diz que que a razão governa completamente a pesquisa. Disso, retemos a ideia de que a razão pode modificar a pesquisa. Combinando esses dois elementos, chegamos à ideia de um guia que é, em parte, a atividade guiada e é modificado por ela. Isso corresponde à perspectiva interacionista de razão e prática […] Ora, a perspectiva interacionista pressupõe duas entidades diferentes, um guia incorpóreo, de um lado, e uma pratica bem equipada, de outro. Mas o guia parece incorpóreo somente porque seu ‘corpo’, isto é, a própria pratica substancial que lhe é subjacente, não é percebido, e a ‘prática’ parece crua e necessitando de um guia apenas porque não está ciente das complexas e sofisticadas leis que ela contém.

Assim, contrariamente à leitura (II), Feyerabend não apenas criticou o naturalismo,

contudo,

também

expressou

uma

perspectiva

epistemológica

interacionista quanto à relação entre racionalidade científica e pesquisa científica que, declaradamente, continha somente um traço específico do naturalismo.

304

4.3.2.4.3. O ‘barco’ de Neurath no ‘oceano’ de Feyerabend A leitura (III) expõe a concepção unitarista de Neurath a partir de cinco ideias básicas:266 i. ii. iii. iv. v.

A versão sofisticada da unidade da ciência projetada por Neurath não pretendia “reduzir as ciências a uma única disciplina”. O paradigma neurathiano de unidade da ciência concebia a enciclopédia como algo capaz de efetuar uma “complexa orquestração” dos saberes. A unidade da ciência é pretendida com vistas a “otimizar a predição” de eventos empíricos. A metáfora do barco em constante reconstrução explicitaria a concepção de Neurath acerca do caráter falível e incongruente do conhecimento. A unificação da ciência decorreria de uma “integração das leis” das variadas disciplinas através da coordenação delas. As sentenças acima não cobrem a amplitude da ideia neurathiana de unidade da

ciência como orquestração. Em 4.3.2.4.3.1, apresentaremos uma leitura pormenorizada dessa proposta de Neurath; em 4.3.2.4.3.2, destacamos um ponto de divergência entre essa proposta e a filosofia da Feyerabend, encerrando a crítica à leitura (III).267

4.3.2.4.3.1. Uma unidade orquestrada Neurath (1983) explica que o Empirismo Lógico tem como meta básica a ciência unificada (p. 52). Para tanto, define que toda atividade científica busca, fundamentalmente, “realizar predições” que, por sua vez, devem ser consideradas em termos “espaço-temporais” (p. 53): “Essas predições podem, assim, ser testadas partindo de mais sentenças observacionais”. O autor pondera que as “leis de todas as ciências” particulares poderiam ser ligadas entre si, buscando “uma predição definida”. As várias disciplinas científicas convergiriam no sentido de uma ciência unificada (p. 54). Segundo o neopositivista, o objetivo da ciência consistiria em “criar a ciência unificada com todas as suas leis”. Neurath identifica a física como a área cujas sentenças remetem fundamentalmente a coordenadas espaço-temporais. Assim, a unidade da ciência buscaria formulações fisicalistas. A linguagem da física, aliás, seria

266

Em 4.3.1 encontramos uma lista complementar derivada da leitura da Profa. Olga Pombo. Outra diferença entre as duas concepções filosóficas, que não exploraremos aqui, envolve as discrepâncias entre os projetos pedagógicos de ambos: Neurath defende uma educação pluralista científica (ver esta seção e a parte final da seção 4.3.2.3), enquanto Feyerabend defende uma educação pluralista geral (ver 4.5.3 à frente). 267

305

tanto de fácil apreensão para “as crianças mais tenras” como comportaria uma dimensão “intersensual” e “intersubjetiva” (p. 55). Sinteticamente: “A ciência unificada baseada no fisicalismo apenas reconhece sentenças com dados espaço-temporais”. De maneira geral, o fisicalismo pretendia cumprir o ideal do Círculo de Viena de uma linguagem purificada de componentes metafísicos (p. 91). Então, aspirava-se atingir uma linguagem ideal que combinasse termos da “linguagem ordinária e das linguagens científicas avançadas” (p. 92). Diz Neurath: “Esperamos que seja possível substituir cada palavra da linguagem fisicalista ordinária por termos da linguagem científica”. Diante disso, o membro do Círculo de Viena menciona que a ciência unificada empregaria um “jargão universal” para a produção do conhecimento. Todavia, a noção neurathiana de um jargão universal não aponta para a ideia de um fundamento para a ciência. Conforme a famosa metáfora de Neurath: “Somos como marinheiros que precisam reconstruir seus barcos em mar aberto, sem ao menos sermos capazes de desmontá-lo em porto firme e o reconstruir a partir das melhores peças”. Neurath admite que o sistema da ciência pode conter termos conflitantes ou contradições (p. 95). Por isso, as nenhuma das sentenças que compõem o jargão universal estaria isenta de “verificação”. Em resumo, o empirista lógico afirma que uma “ciência unificada usa um jargão universal” no qual também ocorreriam termos da linguagem fisicalista (p. 98). Mesmo crianças poderiam “ser treinadas no uso desse jargão universal”. Além disso, admite-se a impossibilidade de que a linguagem unificada seja constituída por “sentenças protocolares seguras e puras”. Não obstante, o projeto neurathiano considera que as discussões mais férteis demandam que os interlocutores possuam as opiniões semelhantes (p. 115). Portanto, a “uniformidade é desejada” para o “trabalho coletivo e para a comunicação”. Por isso o “programa do empirismo” visaria uma “síntese enciclopédica” inspirada no “programa do fisicalismo” (p. 116). Mas Neurath insiste que esse projeto “não chega a ‘o’ sistema da ciência”: “tudo permanece ambíguo e, em muitos aspectos, incerto. ‘O’ sistema é a grande mentira científica”. Na proposta unitarista em vista, unidade e certeza não seriam fatos reais do corpo da ciência. Como lemos: “multiplicidade e incerteza existem em toda ciência […] A ciência como um todo está, basicamente, sempre sob discussão” (p. 118). Com efeito, a dimensão do trabalho cooperativo permanece central para a ideia de unidade da ciência de Neurath (p. 119).

306

Neurath elege um paradigma para representar tal ideia de unidade da ciência que reconhece a “ambiguidade de toda ciência factual” (p. 121). O modelo enciclopédico neurathiano, em primeiro lugar, rejeita a ideia de ciência como “um sistema fechado com métodos gerais” (p. 123). Para o autor, esse seria a representação ideal para um conhecimento que busca testar suas afirmações (p. 128) e que, portanto, afasta todo “absolutismo” em termos de “falsificação” ou “verificação” das sentenças científicas. Tal maneira de conceber a “scientia universalis” também eliminaria a necessidade de empregar expressões como “‘O’ sistema e ‘A’ ciência” (p. 137): “enciclopédias estão em mudança contínua. Assim, a ciência unificada pela qual batalhamos é algo em processo, promovida e contradita a partir dos mais distintos lados” (p. 138). Diante disso, o próprio Neurath admite ser chamado de “enciclopedista”. Como mostramos, a proposta em questão admite que “as falhas” e as “contradições” permanecem na ciência (p. 140). Não se busca apresentar um mapa absoluto dos saberes, mas “mostrar em sua totalidade a extensa e profundida unidade da ideia geral de ciência”. Os novos Enciclopedistas buscariam, prioritariamente, a unificação da linguagem científica para que ocorra a colaboração entre pesquisadores (p. 141). Mas, diante do reconhecimento dos limites da uniformidade, Neurath acrescenta a ideia de “representações gráficas” como meios de unificação (p. 142): “Curvas e outras figuras também são instrumentos de expressão científica”. Assim, para tornar a Enciclopédia acessível a um “público muito amplo”, Neurath projetou uma “linguagem pictórica” – denominada ISOTYPE. A sigla significa algo como: “Sistema Internacional de Educação através de Imagem Tipográfica” e refletia as demandas educacionais do projeto de uma linguagem comum para as disciplinas científicas. A enciclopédia como modelo aponta para a incorreção de considerar “‘O’ sistema da ciência” (p. 148). Portanto, o programa unificacionista de Neurath “não aspira um edifício único” (p. 149). De forma fundamental, o modelo em questão inclui apenas termos fisicalistas (p. 152) e a unidade terminológica da ciência demandaria o estabelecimento de “conexões cruzadas” entre as áreas (p. 155). Então, a linguagem fisicalista funcionaria como a base comum a toda a diversidade da ciência (p. 156). Neurath recusa o ideal de um sistema unitário absoluto em favor da proposta de um “desenvolvimento científico pela cooperação” (p. 158). Com base nisso, reconhecemos como movimento pela Unidade da Ciência estimula a participação dos pesquisadores sem ter em vista uma “superciência” (p. 172). As dificuldades de comunicação seriam 307

suplantadas através do estabelecimento de uma plataforma comum (p. 173): “Uma das metas mais importantes do movimento pela Unidade da Ciência é, então, o interesse pela unificação da linguagem científica”. Procura-se por uma linguagem científica “unívoca e clara” forjada através do uso da “lógica simbólica” como “instrumento de análise das ciências” (p. 175). Segundo o autor: a tarefa da moderna análise lógica da ciência consiste é erigir uma estrutura mais consistente para as ciências particulares e para a unidade da ciência”. O pensamento de Neurath converge, pois, com a perspectiva geral do Círculo de Viena segundo a qual “os termos empregados na física e na linguagem cotidiana são o bastante para construir todas as ciências” (p. 176). A busca de uma “Enciclopédia para as ciências” almejaria promover a “máxima coordenação das ciências” através do “permanente contato” dos cientistas (p. 178). “Sem buscar por ideais utópicos”, comenta Neurath, “o esforço será feito no sentido de ter a linguagem científica da Enciclopédia tão homogênea quanto possível”. O trecho a seguir sintetiza algumas dessas considerações de Neurath referentes à Ciência Unificada que, sem pretender ser uma superciência, procura pela coleção unificada dos saberes através de uma linguagem fisicalista unificada:

Esse é o panorama geral para minha proposta de uma enciclopédia internacional para incorporar a ideia de uma ciência unificada. Tal enciclopédia mostrará que cientistas, embora trabalhando em campos distintos e diferentes países, podem, apesar disso, cooperar de forma tão bem-sucedida nesse vasto campo como eles normalmente cooperam em campos particulares tais como a física e matemática. A Enciclopédia exibirá a estrutura lógica do empirismo lógico e será um esteio do empirismo científico em geral, bem como do movimento pela unidade da ciência em sentido amplo (p. 181).

Neurath entendia que o objetivo preditivo da ciência seria alcançado “com a ajuda de sentenças de observação ordinárias” em conjunção com um trabalho lógico (p. 189). Isso eliminaria a metafísica especulativa do campo científico e uniria a totalidade das ciências (p. 191). De maneira geral, buscava-se por “uma combinação entre empirismo e lógica”. A nova enciclopédia incluiria as “falhas e incertezas, contradições e dificuldades” da ciência, progredindo através da aglutinação de camadas em um processo interminável (p. 195). “Essa nova Enciclopédia”, lemos, “não é organizada por pessoas que estão em busca da verdade absoluta” (p. 197). Para o autor, a atitude científica dos enciclopedistas se expressaria principalmente pelo esforço coletivo (p. 308

198). A unidade da ciência em Neurath engloba tanto a existência de questões comuns entre as áreas, como a construção de uma “língua universal” para comunicação (p. 202). Além de escapar aos problemas de estabelecer “‘O SISTEMA’ geral” da ciência, o modelo neurathiano recusa o piramidismo que pretende um “edifício simétrico e completo das ciências” (p. 203). Ao invés de uma representação piramidal da estrutura da ciência, o novo enciclopedismo se afasta da “fantasia arquitetônica tradicional” e expressa o “padrão das ciências como um mosaico” (p. 204): “Deveríamos evitar criar uma Pirâmide composta de divisões e subdivisões” (p. 211). A estrutura da linguagem científica deveria ajudar a extinguir a metafísica do conhecimento (p. 231), todavia, Neurath preserva uma atitude pluralista que recusa qualquer “tentativa absolutista de uma única ‘imagem do mundo’ abrangente”. A abordagem fisicalista conduziria a um jargão universal que poderia ser traduzido em todos os idiomas ordinários: “O primeiro passo de nossa Ciência Unificada como uma Enciclopédia é que nós ‘reconhecemos’ os elementos do Jargão Universal” (p. 235). A atitude democrática por trás dessa proposta estaria na intenção de levar as informações “principalmente às massas” (p. 236). Ao mesmo tempo, Neurath nega uma postura tecnocrática. Cientistas seriam “treinados para descobrir tantas alternativas quanto possível”, então, não poderiam “tonar uma decisão ou agir em nome de pessoas com outros desejos e atitudes” (p. 239).

A unidade da ciência que temos diante de nós, como meta para o enciclopedismo do empirismo lógico, é baseado no estoque de expressões vigente que as pessoas compartilham em todo o mundo […] o Pluralismo é a aura dessa comunidade científica mundial do homem comum. O enciclopedismo do empirismo lógico (o qual, não apenas eu, mas tantos dos meus amigos cientistas promovem, conquanto em termos distintos) com a enciclopédia da unidade da ciência são as crianças da abordagem tolerante da cooperação democrática. Ela não compete com uma filosofia, e é completamente anti-totalitária. Nesse momento, nomeio de ‘orquestração’ esse tipo de cooperação do homem comum com o especialista científico […] (p. 242).

4.3.2.4.3.2. A quimera do ‘sistema uniforme das regras’ e o aforismo culturalista Conforme Parry (1956), a estrutura do verso épico grego comporta uma linguagem estereotipada. Assim, as habilidades do poeta não o estimulariam ou permitiriam alterar tal modelo estruturado por “frases estabelecidas” (p. 2).268 Até

“O caráter padronizado da linguagem de Homero significa que tudo no mundo é regularmente apresentado como todos os homens (isto é, todos os homens no poema) comumente o percebem. O estilo 268

309

mesmo os padrões morais e valores da vida dos heróis seriam “universalmente acordados” (p. 3) nos poemas de Homero. Para amparar essa leitura da uniformidade de base do mundo homérico, Parry cita o discurso de Sapérdon, no Canto XII da Ilíada (vv. 310-328). A passagem evidenciaria que “a honra pode ser plenamente convertida em suas expressões tangíveis”: [Sapérdon] Volta-se de improviso a Glauco – Glauco filho de Hipóloco – e lhe diz: ‘Por que somos honrados – os assentos melhores, as carnes melhores – em Lícia, nos festins, copas copiosas, feito deuses? Extenso trato de terra nos deram por domínio, vizinho a Xanto, plantações, semeaduras de trigo. Primeiros dos Lícios, cabe-nos arrostar, firmes, a luta ardente, para que os Lícios, fortes-couraças, repitam: ‘Não sem glória, na Lícia, nossos reis governam, comendo carnes nobres de vitela, vinho sabor-de-mel bebendo em copas; mas na luta postam-se na dianteira, excedem no valor’. Amigo, se fugindo dessa guerra acaso da velhice e da morte fôssemos libertos, eu não me lançaria à luta entre os primeiros nem à glória da pugna ora te exortaria; mas as Queres da morte nos rondam, miríades, às quais homem algum escapa nem evita; logo, é dar glória a alguém ou deste nos gloriarmos.

Parry argumenta que Aquiles recusava que a linguagem corresponde à realidade (p. 6). Por isso, o herói homérico não seguiria a linguagem comum. Essa postura se evidenciaria no trecho, narrado no Canto IX (vv. 318-334) da Ilíada, no qual o irado Pélida rejeita ter sua honra restituída mediante recebimento de “valiosos presentes” ofertados pelo rei Agamêmnon:

Tanto ao ocioso, que ao mais esforçado, iguais prêmios são dados; as mesmas honras se outorgam ao fraco e ao herói mais galhardo. Morre da mesma maneira o inativo e o esforçado guerreiro. Vede! Nenhuma vantagem me veio de tantos trabalhos, a pôr em risco a existência dos mais temerosos combatentes […] de igual maneira tenho eu muitas noites insone passado e dias cheios de sangue no horror dos combates, lutando contra inimigos, somente por causa de suas mulheres […] De todas elas voltei carregado de espólio magnífico, que, sempre, ao filho de Atreu, Agamêmnon, era uso, levava, o qual soia ficar para trás, junto às céleres naves. Disso, bem pouco entre nós dividia; ficava com tudo, do que, depois, presenteava os heróis mais distintos e os chefes. de Homero constantemente enfatiza a atitude aceira em relação a cada coisa no mundo, e isso constitui a grande unidade da experiência” (PARRY 1956, p. 3).

310

Aquiles ensaiou rejeitar um valor uniformemente aceito pelo senso comum homérico. Conforme Parry, todavia, o guerreiro não conseguiria expressar sua desilusão em nenhuma linguagem: “A razão disso reside no verso épico. O próprio poeta não cria uma linguagem; ele a extrai a partir de um reservatório comum de expressão poética”, explica o estudioso. Para firmar aquela distinção entre o valor pessoal da honra e a recompensa social decorrente das vitórias em batalha, Aquiles precisaria deturpar a linguagem. Consoante essa leitura, o filho de Peleu “levanta questões que não podem ser respondidas e solicitações que não podem ser atendidas”, ou seja, não haveriam termos claros e precisos para expressar as insatisfações do guerreiro. Contudo, essa impossibilidade não sinalizaria uma “deficiência artística” (p. 7) do poeta. Ela refletiria uma característica do estilo arcaico: restringir os modos de expressão a “padrões aceitos que todos admitem como verdadeiros” (p. 4). Por diversas vezes, Feyerabend abordou esse caso da mudança semântica na noção homérica de honra, partindo do Canto IX da Ilíada.269 O pano de fundo da discussão feyerabendiana aponta para duas implicações filosóficas implícitas na leitura de Parry:

i. ii.

A estrutura padronizada das regras da linguagem estabelece restrições uniformes para a expressão de ideias. Ideias discordantes dos padrões aceitos pela estrutura linguística são incomunicáveis e incompreensíveis. Para o austríaco, essa leitura sobre o Canto IX da Ilíada ilustraria uma

compreensão filosófica “bastante popular”270: linguagens, culturas, sociedades etc. seriam “fechadas, no sentido de que certos eventos transcendem as suas capacidades” (PP, p. 104). De acordo com tal ideia, regras restringiriam um intercâmbio verbal de forma coerente. Contudo, o autor de Contra o Método julga “intrinsecamente inverossímil” que as regularidades e uniformidades sejam necessárias ou invioláveis. Apesar da distinção entre a honra e a recompensa (p. 105) causar surpresa, não significa ela carece de significado (p. 106). O movimento operado por Aquiles na epopeia se situava “dentro dos limites” do período arcaico. A generalização da divergência entre a honra e suas “expressões tangíveis” estavam no horizonte do “pensamento homérico”.

269 270

Por exemplo, AA, p. 118-119; CA, p. 45-71. Para um uso anterior aos anos 1990, ver STA, p. 57. O próprio Feyerabend parece ter adotado essa postura, como vimos em 3.3.3.1 e 3.3.3.3.

311

A ira de Aquiles teria suscitado uma “mudança de ênfase” (p. 107) no senso comum grego.271 Desse modo, os pressupostos da uniformidade estariam equivocados: “Em nenhum momento desse processo encontramos as rupturas, lacunas e abismos insuperáveis pela ideia dos domínios discursivos fechados” (p. 108). O fundamental para Feyerabend consiste em explicitar que a existência de padrões ou regras (sociais, linguísticos etc.) não implica a impossibilidade lógica de mudanças (sociais, linguísticos etc.). Portanto, o autor propõe “abandonar o artifício dos domínios fechados” ou dos “significados precisos”. Feyerabend conclui essa crítica com uma tentativa de superação de perspectivas contrárias – objetivismo e relativismo –, as quais compartilhariam o dogma dos “domínios fechados”: […] as palavras, os enunciados e inclusive os princípios são ambíguos e mudam em função das situações em que são usados. As interações entre culturas, domínios linguísticos e grupos profissionais se produzem constantemente e, portanto, é absurdo falar tanto de objetividade como de significado relativo dentro de margens bem definidas. O objetivismo (e a ideia de verdade que o acompanha) e o relativismo supõem limites que não se encontram na prática, e pressupõem que indivíduos comprometidos com interessantes formas de colaboração, conquanto muitas vezes difíceis, estão fazendo tolices. O objetivismo e o relativismo são quimeras (pp. 108109).

A ideia de que ocorrem interações constantes sugere a imagem de um oceano de contatos culturais com “alguma liberdade de movimento”. Tradições, hábitos, linguagens, costumes ou formas de pensamento aparecem, aos olhos feyerabendianos, como “acidentes geográficos e/ou históricos” – e não “essências culturais claras, inequívocas e imóveis”. Com efeito, Feyerabend introduz seu instigante aforismo culturalista: toda cultura é, potencialmente, qualquer cultura. Trata-se, pois, de uma rejeição da noção segundo a qual existe uma “cultura autêntica” (p. 110), ou seja, um sistema cujas regras e padrões são uniformemente necessários e invioláveis. Nesse horizonte, o autor aponta que a “situação com as ciências” é similar – também não haveria uma ciência autêntica, com termos precisos, princípios inambíguos e limites definitivos: […] diversos cientistas conviveram, e seguem convivendo, com a ambiguidade e a contradição. Possivelmente, não poderiam viver de outro modo. Novos problemas exigem novas abordagens. Mas novas abordagens não caem do céu da criatividade. Ideias obsoletas continuam sendo usadas, são consideradas partindo de distintos pontos “O discurso de Aquiles contribuiu para o desenvolvimento e, por isso, traz um elemento de invenção. As características inventadas eram parte de uma estrutura que surgia aos poucos, o que significa que Aquiles também fez uma descoberta” (PF, p. 108). 271

312

de vista até o ponto em que inteligências metódicas notam uma estrutura completamente nova, com novos limites de sentido, e começam a fazer o que lhes parece melhor: concretizam-na […] a ideia de um sistema fechado com regras e conceitos precisos, os quais são seguidos cegamente, parecerá a única representação correta do Pensamento. Entretanto, essa situação deve ser evitada – e não elogiada.

A “nova atitude frente às culturas” exposta por Feyerabend mostra que elas não são “sacrossantas”. As diferenças culturais deixam de ser vistas como insuperáveis e se transformam em “manifestações especiais de uma natureza humana comum” (p. 111). A interação entre culturas é concretizada dada a flexibilidade dos padrões e toda uniformidade se revela um fenômeno contingente (geográfico e/ou histórico), não um elemento essencial. Do mesmo modo, o autor de Contra o Método repele a noção de que a ciência corresponde a um sistema fechado de leis, princípios, padrões procedimentais, conceitos, métodos etc.

4.3.2.4.3.3. Ciência sem Harmonia A leitura (III), proposta Sanchez (2006), apresenta o pensamento de Neurath partir das cinco ideias listadas em 4.3.2.4.3. De nossa parte, tomando como referência a exposição realizada em 4.3.2.4.3.1, consideramos que a proposta neurathiana pode ser desmembra em uma série de outras teses: 1. A unificação da ciência busca unificar as leis das diversas disciplinas científicas. 2. As predições são o objetivo da ciência e devem se basear em leis compostas por sentenças observacionais que descrevem fenômenos espaço-temporais. 3. A análise lógica das sentenças científicas visa eliminar noções metafísicas e definir uma base empírica comum para a totalidade das ciências. 4. O vocabulário fisicalista da ciência unificada se baseia em dados espaçotemporais contidos nas linguagens ordinárias e das ciências avançadas. 5. A linguagem fisicalista consiste em uma “língua universal” de fácil apreensão e intersubjetiva. 6. O Jargão Universal emprega termos da linguagem fisicalista e promove a comunicação científica. 7. A uniformidade das leis científicas é desejável para possibilitar um trabalho coletivo e progressivo. 8. A síntese enciclopédica dos saberes científicos não almeja representar ‘o’ sistema correto e definitivo do conhecimento. 9. A ‘nova’ Enciclopédia das ciências unificadas acolhe as multiplicidades, ambiguidades, contradições e incertezas do conhecimento. 10. O trabalho coletivo estimulado pelo “modelo enciclopédico” de unidade da ciência não pretende alcançar a verdade absoluta nem erigir o edifício único da ciência, ou uma ‘superciência’.

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11. O progresso científico demanda uma contínua cooperação, participação e colaboração entre cientistas. 12. A imagem do mosaico ilustra com clareza o caráter plural, assimétrico e incompleto da ciência. 13. A unidade da ciência se inspira em uma atitude democrática voltada para divulgação do conhecimento para as massas. 14. A cooperação entre leigos e cientistas é análoga à dinâmica de uma orquestra. 15. As deliberações dos cientistas diante das diversas alternativas não podem suplantar os desejos particulares dos indivíduos. Uma proposta que julgamos central para nossa análise envolve, em especial, quatro das teses complementares acima. A junção de (5), (6), (7) e (14) indica que, para Neurath, a máxima coordenação da ciência exige um jargão universal baseado em uma linguagem fisicalista intersubjetivamente apreensível. No pluralismo neurathiano, a unidade da ciência envolveria uma linguagem científica que se mostre a mais homogênea possível. A preocupação do empirista lógico com a homogeneidade do vocabulário científico se dirigir, ademais, no sentido de apreciar a ciência unificada como algo essencialmente harmônico (ver 4.3.1). Os dois trechos a seguir, redigidos em 1932 e 1936, respectivamente, atestam como a noção de unidade da ciência Neurath concebe a importância de uma harmonização linguística das áreas do conhecimento:272

O que importa em toda atividade científica e estabelecer harmonia entre as sentenças da ciência unificada: sentenças protocolares e sentenças não protocolares (p. 99). Nossos esforços, então, serão dobrados na direção de substituir essas teorias [contraditórias entre si] por outras que estão elas mesmas em harmonia (p. 156).

272

Catalogamos, em textos publicados entre 1913 e 1946, mais de uma dezena de passagens nas quais Neurath conecta explicitamente a ideia de ciência unificada à noção de ‘harmonia’ ou ‘harmonização’ das leis, teorias, vocabulários etc. das disciplinas científicas. Assim, por exemplo: em 1931, fala-se de um “senso de harmonia” ligado à “extensão” da “nova concepção científica do universo” a qual busca a “unificação da ciência” (pp. 50-51); também de uma “harmonia” entre predições científicas com “um sistema de sentenças protocolares” (p. 74); em 1932 e 1933, encontramos a referência a “harmonia” entre “linguagens altamente científicas e cotidianas” o “campo de cálculo de figuras” (p. 92); em 1934, referese ao uso ciências auxiliares para colocar em “harmonia” as “sentenças ‘sobre o mundo’” e “sentenças observacionais” (p. 110); em 1935, encontramos a ideia de que os dados disponíveis permitem realizar predições que “estão em harmonia com a ciência” (p. 116). Também menciona que o “programa fisicalista” busca “construir uma linguagem científica uniforme com uma terminologia uniforme”, um projeto que “está em perfeita harmonia” com a conexão entre “sentenças e termos diferentes disciplinas à dedução de predições individuais” (p. 133). Em 1936, busca-se por definir as sentenças que estão “em harmonia com outras sentenças” (p. 160); por fim, em 1946, refere-se à admissão de “certas sentenças como estando em harmonia com sentenças protocolares” (p. 235).

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Como 4.3.2.4.1 evidencia, Feyerabend atacou em diversos momentos o Empirismo Lógico e os adeptos da perspectiva epistemológica do Círculo de Viena.273 No entanto, Neurath foi um dos poucos membros do grupo vienense que o autor de Contra o Método chegou a enaltecer.274 Não obstante, o pluralismo feyerabendiano antagoniza com a premissa neurathiana (4.3.2.4.3.2) segundo a qual a comunicação e o avanço intelectual necessitam de qualquer espécie de unidade linguística. Mais importante, o autor de Contra o Método destacou que a atividade científica não possui e não pode possuir a harmonia/uniformidade almejada pela Visão Científica de Mundo do Círculo de Viena. Para tanto, recorremos a duas conferências que Feyerabend proferiu em Trento275, no ano de 1992. Consideramos que a noção de uma ciência sem harmonia elucida esse afastamento de Feyerabend quanto ao horizonte epistemológico geral do Círculo de Viena, e de ideias de Neurath em particular. Com isso, encerramos nossa crítica pontual à leitura (III), de Sanchez (2007), iniciada em 4.3.2.4.3. Em 4.3.2.4.3.2, discutimos a rejeição de Feyerabend quanto ao ideal de uniformidade linguística, através da reconstrução do episódio narrado no Canto IX da Ilíada. A propósito, em “Teoria e pratica”276, o autor clarifica que “os conceitos de uma linguagem são ambíguos” e que a fixação dos significados representaria o “fim do pensamento”:

Para mim, a resposta é que os conceitos de uma linguagem são ambíguos; podem ser modificados de modo a violarem regras linguísticas fundamentais (assumindo que essas regras sejam estáveis e bem definidas) sem que, porém, seja preciso parar de Sobretudo a ‘teoria semântica dual’ que atribui a Carnap, além das expressões transatlânticas do neopositivismo, como o reducionismo de Nagel e o modelo de explicação científica de Hempel (ver, por exemplo, PP1, pp. 1733-36, 38, 45-55, 125-127, 176-177; PP2, pp. 52-64; e PP3, pp. 41, 82-85). 274 Feyerabend associa Neurath a uma “filosofia mais tolerante”, conquanto ainda “abstrata”, sobre a questão da linguagem observacional (PP3, p. 133). Também disse que Neurath apresentava uma “clara concepção acerca das propriedades da pesquisa científica” (PP2, p. 86). No Contra o Método, Feyerabend relaciona a Neurath a ideia de que “tanto teorias quanto observações podem ser abandonadas: as teorias podem ser abandonadas por causa de observações conflitantes, as observações podem ser suprimidas por razoes teóricas” (CM3, p. 210). Outras observações sobre Neurath em FAM, pp. 240, 244 (relação com a filosofia de Popper); AR, pp. 228 n. 3, 341, 344 (crítica de Neurath a Popper, além da proximidade com a concepção de ‘observação’). 275 O título original da coletânea, em italiano, é Ambiguità e Armonia. Lesione trentine, de 1996. A edição em inglês do volume recebeu o publicitário título The Tyranny of Science (2011), e a segunda palestra foi denominada “The Disunity of Science”. Há uma edição espanhola do livro, Ambigüidad y Armonia (1999). A edição espanhola é mais próxima da edição italiana, e a edição inglesa apresenta algumas imprecisões e discrepâncias estilísticas em relação à argumentação feyerabendiana. Por isso, nossa exposição prioriza a análise partindo das edições italiana e espanhola, embora cite a paginação (mais usual entre os estudos sobre Feyerabend) da obra em inglês. 276 Conferência proferida em 5/5/1992. 273

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falar, explicar ou discutir. Pode parecer que o discurso de um indivíduo soe, inicialmente, uma fala cheia de contrassenso e, posteriormente, o mesmo indivíduo seja louvado por ter descoberto um significado novo e profundo (TS, p. 86).

Feyerabend complementa:

A conclusão à qual cheguei com essas considerações é que a linguagem é ambígua, que é bom que seja ambígua, e que qualquer tentativa de a afixar a significados precisos seria o fim do pensamento, do amor, da ação, enfim, da vida

Na conferência “Scienza e progresso” 277, Feyerabend discute um “ponto de vista objetivista” sobre a ciência moderna. Essa posição afirmaria que: i) os “cientistas orientados para o materialismo” científico dissolveram o pacto entre humanos e natureza; ii) tais cientistas possuem o “poder para dissolver” tal pacto; iii) o pacto homem/Natureza poderia ser alterado por uma decisão unilateral, semelhante a um acordo político; iv) as consequências daquela dissolução recaem sobre quem “não tem nada a ver com a ciência”; e v) “os cientistas aceitam o ponto de vista objetivista”. Em oposição à mentalidade objetivista, o filósofo designa como um sinal de “gesto religioso” a crença de que “aspectos materialistas causaram tais transformações” (pp. 32-33). A visão de mundo materialista, segundo ele, é “tomada como garantida” (p. 34): “A ciência, e só a ciência, e isso quer dizer as sentenças e visões de mundo a partir delas, diz-nos o que de fato acontece”. A adesão aos resultados da concepção científica nos obrigaria a abraçar “uma única visão de mundo científica” (p. 35). Contra isso, Feyerabend frisa que o materialismo “não descreve o mundo como ele ‘é e em si mesmo’; descreve um aspecto de uma entidade, na verdade, desconhecida”. Ademais, para “destronar o materialismo”, importaria rememorar que essa abordagem cientificista “matou outras alternativas” e cometeu “erros enormes”. Assim, não seríamos obrigados a “engolir a ‘visão de mundo científica’” (p. 36). Conforme o autor, poderíamos apenas “aceitar as realizações” do materialismo sem, todavia, esposar a ideologia cientificista:

277

Conferência proferida em 4/5/1992.

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[As realizações do materialismo] tornam o materialismo um mundo possível; não nos obriga a aceitá-lo. Uma vez mais, o motivo é que o materialismo é muito mais do que uma soma de seus resultados. Ele prediz que o programa de pesquisa materialista continuará a ser exitoso e assevera que os êxitos não consistem em uma espécie de truque, mas revelam a real natureza de nosso mundo (p. 37).

Feyerabend também discute o pressuposto metafísico básico da visão científica de mundo: a unidade profunda não corresponde a algo do qual “temos experiência” (p. 38). A questão relativa à abordagem que supostamente “define a realidade” se tornaria algo próximo a uma “decisão política” (p. 43). Por sua parte, ele elogia a perspectiva que estimula uma “colaboração mais próxima” entre especialistas e leigos. Conforme o autor, essa ótica seria “muito mais humana do que um procedimento puramente objetivo” (p. 49). No pluralismo feyerabendiano, entende-se que “questões acerca da realidade são importantes demais para serem deixadas nas mãos de cientistas” (p. 51). Até porque a ideia da superioridade da ciência não passaria de um “acidente histórico” decorrente de “forças sociais” (p. 54). Nesse sentido, importaria assumir um olhar crítico frente à crença segundo a qual “a ciência diz tudo o que é preciso conhecer sobre o mundo”. Por fim, cumpre saber que Feyerabend jamais recusou que indivíduos poderiam decidir tomar a ciência como seu guia (p. 55) ideológico. No entanto, não haveria obrigatoriedade de aceitar a ideologia materialista da suposta visão científica de mundo. Ela poderia ser adotada apena por questões práticas, não por uma adesão ideológica à ontologia materialista:

Ademais, as pessoas que afirmam ser a ciência que estabelece a natureza da realidade parte do pressuposto de que a ciência fala uma única voz. Pensam haver esse monstro, a CIÊNCIA, e que, quando fala, ele pronuncia e repete mais de uma vez uma única mensagem coerente. Nada poderia estar mais longe da verdade. Diferentes ciências possuem ideologias radicalmente diferentes […] Portanto, como se pode ver, existem muitas contradições dentro da ciência. O monstro unitário da CIÊNCIA, que fala com uma única voz, é uma colagem reunida por propagandistas, reducionistas e educadores (pp. 55-56).

O pluralismo de Feyerabend diverge da proposta neurathiana de uma atividade científica harmonizada através de uma uniformidade linguística. Ele também rejeita a busca por uma harmonização da linguagem científica (ou de qualquer outra linguagem). Portanto, algo que Sanchez (2006) não considerou em sua aproximação entre

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Feyerabend e Neurath concerne ao fato de que, para o autor de Contra o Método, o projeto de um “monstro unitário da CIÊNCIA” – que se comunicaria de forma uníssona e coesa – refletiria apenas idealizações de “propagandistas, reducionistas e educadores”. O plano da scientia universalis de Neurath, para Feyerabend, representaria algo como o “fim do pensamento” e da “vida”.

4.4. Educação para a Pluralidade A noção de desunidade da ciência consiste em um tópico onipresente no corpus feyerabendiano dos anos 1960 até a década de 1990. Com efeito, já podemos perceber a incorreção das teses I e II da Visão Padrão, segundo as quais: a produção inicial (pré1975) de Feyerabend preserva o ideal de unidade através do modelo pluralista de teste; e a produção final (pós-1975) de Feyerabend evidencia a aparição de temáticas pósmodernas. A fim de abordar a problemática da fragmentação da ciência no pensamento do autor do Contra o Método, distinguimos entre a posição básica (4.1.3) e a posição avançada (4.2.3) do austríaco. Em seguida, apontamos como essa reflexão engloba tanto uma defesa consistente da proliferação e tenacidade de teorias como uma recusa robusta do ideal (cientificista/materialista) de uma Visão Científica de Mundo. Para iluminar tais críticas ao monismo, recuperamos as principais metáforas que ele utilizou com vistas a caracterizar a heterogeneidade da ciência: a metáfora oceânica e o ícone do Monstro. Notemos, entretanto, que Feyerabend não define rigorosamente quem seriam seus adversários. Em vez disso, ele recorre a tipificações genéricas, tais como: ‘empirismo radical’, ‘monismo metodológico’, ‘monopólio racionalista’ e assim por diante.278 Mas entendemos essa imprecisão como reflexo do fato do filósofo jamais ter almejado elaborar uma teoria sistemática (um programa ou um movimento) da Desunidade da Ciência. Na verdade, ele primordialmente dissertou acerca de sua divergência com o caráter enganoso do “pressuposto de uma visão de mundo única e coerente que subjaz ao todo da ciência”. Feyerabend julgou o pressuposto da

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No fundo, essas caracterizações vagas compartilham entre si tendências propostas unitaristas que, segundo o filósofo, seriam (epistêmica e eticamente) inaceitáveis. Assim, em “Outline of a pluralistic theory of knowledge and action” (1969), encontramos algumas das deletérias inclinações dogmáticas que o autor de Contra o Método identifica em concepções monistas, tais como: i) ‘restrição de ideias’, ii) ‘estabelecimento de uma única imagem correta do mundo’ ou ii) ‘hostilidade à diversidade de alternativas’ (ver PP3, p. 105).

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homogeneidade da ciência como o fruto de ações de “educadores e metafísicos”. Então, a defesa feyerabendiana da desunidade da ciência se importaria, sobretudo, com a dimensão ideológica da ideia de Unidade da Ciência.279 Feyerabend alertou que a ideologia monista se dissemina através de uma série de procedimentos pedagógicos, planejados para a edificar a imagem da ciência como uma tradição unitária (4.5.1). A concepção cientificista também se fortaleceria através das ferramentas materiais280 de unificação: manuais científicos (4.5.2). Em face disso, vemos o austríaco esboçar o modelo de Educação Geral no qual a adesão à forma de vida científica resultaria de uma formação individual e deliberada, não como consequência de uma impositiva Educação Científica (4.5.3). Essa nossa leitura avança em relação àquela da Visão Padrão, afinal, descortinamos as inquietações éticopedagógicas subjacentes às objeções de Feyerabend ao ideal de Unidade da Ciência.

4.4.1. A sedimentação do monismo A edição de 1975 do Contra o Método discute os mecanismos de consolidação e difusão da ideologia monista.281 Na “Introdução” do livro, Feyerabend afirma que “regras ingênuas e simplistas” são incapazes de explicar o conteúdo multiforme da dinâmica histórica (CM1, p. 19). Contudo, menciona formas de “simplificar o meio em que o cientista atua” e, assim, eliminar a natureza “complexa, caótica, permeada de enganos e diversificada” da história da ciência” (p. 20). Uma “lavagem cerebral” tornaria a história da ciência algo uniforme e “mais facilmente acessível a tratamento por meio de regras imutáveis”. Feyerabend também aponta que a educação científica cumpriria exatamente esse objetivo: “Simplifica a ciência, simplificando seus elementos”. A primeira ação consistiria em definir o “campo de pesquisa”. Em seguida, esse campo de pesquisa seria i) “desligado do resto da História” e ii) receberia uma “‘lógica’ própria”. A segunda ação envolveria um “treinamento completo” nesses moldes. Disso, resultaria um “condicionamento dos que trabalham no campo 279

Um dos principais efeitos dessa doutrinação para a unidade consistiria em não reconhecer ou desconhecer as “realizações positivas da vida fora da civilização ocidental” (AR, p. 553). 280 Acompanhamos aqui a inovadora tese de Pombo (2011, p. 14) segundo a qual a unidade da ciência não se limita ao “nível teorético, enquanto metaprograma”, mas também incorpora um “conjunto complexo e denso de materializações ou incorporações culturais”. 281 “Uma ciência que insiste em ser a detentora do único método correto e dos únicos resultados aceitáveis é ideologia e deve ser separada do Estado e, especialmente, dos processos de educação” (CM1, p. 464).

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delimitado”. O condicionamento dos indivíduos na “‘lógica’ própria” do campo delimitado tornaria “mais uniformes as ações de tais pessoas” e congelaria “grandes porções do processo histórico”. Portanto, o Contra o Método insiste como a ideologia monista resulta de uma lavagem cerebral em termos pedagógicos. O livro também considera indesejável “criar uma tradição que se mantém una”. Primeiro, porque o estudo sobre a Natureza demanda que estejamos “abertos para as opções, sem restringila de antemão” (p. 22). Segundo, porque uma educação científica ideologicamente comprometida é incompatível com uma atitude humanista:

A tentativa de fazer crescer a liberdade, de atingir vida completa e gratificadora e a tentativa correspondente de descobrir os segredos da natureza e do homem implicam, portanto, rejeição de todos os padrões universais e de todas as tradições rígidas.

4.4.2. A materialização do monismo: manuais científicos A crítica feyerabendiana à doutrinação para unidade já aparecia nos primeiros textos do corpus feyerabendiano, a exemplo de “Knowledge without Foundations” (1961). Esse ensaio anunciava que o ensino dogmático se definia pela tentativa de “eliminar visões contrárias” (PP3, p. 60). Por seu turno, tal exclusão de perspectivas rivais adviria do uso da força ou da persuasão. Nesse momento, o austríaco comentava a respeito de um “livro a ser publicado em breve” que exploraria o “conservadorismo inerente na atividade científica, bem como os vários pontos em comum entre a comunidade científica e a religiosa” (p. 61). O trabalho em questão é o célebre A Estrutura das Revoluções Científicas, que Kuhn publicou em 1962. Essa obra mostraria como os manuais científicos exibem as teorias aceitas e como eles “raramente mencionam as alternativas existentes ou as fraquezas das teorias usuais”. O modelo pedagógico conservador propalado por tais ferramentas de ensino implicaria uma “atitude psicológica” de “aceitação completa e irrestrita” dos mitos científicos. O método de ensino monista encerraria uma doutrinação referente ao caráter infalível das teorias corroboradas. Contudo, Feyerabend insistia que os “correspondentes domínios da responsabilidade e da liberdade humanas” se tornam extremamente “restritos” (p. 62). Manuais científicos erigiriam “sistemas de crenças dogmáticas” ligados a uma “ética apologética”:

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O que é atordoante, contudo, é a existência de tal fenômeno nas ciências naturais, sobretudo na física. Como demonstrou o Professor T. S. Kuhn, você não encontra muito do que se requer para uma crítica em um manual de física. As teorias são apresentadas de uma forma que sugere que é como as coisas são e as fraquezas delas raramente são mencionadas (p. 70).

Ao contrário da conduta dogmática dos manuais, que exibiriam as teorias aceitas como “a verdade final em todas as questões”, Feyerabend advogava uma crítica racional do conhecimento, a qual primava pela investigação implacável de cada aspecto da teoria (p. 68). Segundo a postura, nenhuma informação seria “incondicionalmente aceita”, logo, não haveria espaço para a “ética da apologia” dos manuais. A “atitude de completa aceitação” e a mentalidade que torna a “refutação impossível”, por outro lado, caracterizariam a abordagem dogmática (p. 72). Para Feyerabend, o dogmatismo pedagógico não apenas “conduz a uma ciência mais enfadonha”; a crença em teorias “absolutamente verdadeiras” também “restringe a liberdade”. Seria preciso, por conseguinte, incentivar a diversidade de ideias e definir que a uniformidade de ideias não consiste em uma virtude epistêmica (p. 76).

4.4.3. O “mito do dia”: a unidade da ciência A Visão Padrão do corpus de Feyerabend ignora um traço fundamental da crítica de Feyerabend à unidade da ciência, a saber: a “fraude pedagógica” contida na crença em uma “imagem correta do mundo”. Em nossa leitura, é essencial reconhecer que, para o autor do Contra o Método, a uniformidade da visão de mundo científica não passaria de um ideal de educadores e metafísicos. Já na primeira edição daquele livro encontramos uma reflexão sobre alguns mecanismos empregados na consolidação e difusão daquela ideologia unitarista (4.4.1). Uma lavagem cerebral levaria a simplificar o multiforme conteúdo da história da ciência. O condicionamento dos jovens cientistas nessa concepção artificial originaria a impressão de que a ciência corresponde a uma “tradição que se mantém una”. Por fim, Feyerabend asseverou que a homogeneização da ciência presumida no ideal de tradições rígidas contrasta com o objetivo pluralista de aumentar a liberdade de pensamento e ação. Contudo, as preocupações feyerabendianas quanto ao ensino dogmático da ciência remontam a textos iniciais do corpus em vista (4.4.2). Em 1961, o filósofo denunciara o conservadorismo de certas

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concepções epistemológicas em excluir visões alternativas. Os próprios manuais científicos ajudariam a cumprir esse objetivo, afinal, tradicionalmente, eles omitem visões diferentes à teoria estabelecida e não divulgam as falhas dela. Isso mostra que a pedagogia monista levaria a uma atitude psicológica de “aceitação completa e irrestrita” das ideias aceitas. Especificamente, a “ética apologética” contida nos manuais científicos acarretaria a consolidação de sistemas de crenças dogmáticos contrários à liberdade dos cientistas. Nesse horizonte, o pluralismo feyerabendiano repele a uniformidade de pensamento e de ação como expressão alguma virtude epistêmica. Feyerabend aprofundou tais críticas ao monismo no pouco explorado Apêndice 1 do Contra o Método.282 Inicialmente, o texto efetua um elogio da autenticidade como forma de desenvolvimento do conhecimento: “A ciência precisa de pessoas que sejam adaptáveis e inventivas” (CM3, p. 221). Segundo ele, “instituições e organizações” se beneficiariam da presença de “pessoas com opiniões incomuns”, e não de admiradores da uniformidade (p. 222). Em seguida, afirma que “qualquer associação de pessoas que seja livre tem de respeitar as ilusões de seus membros, bem como dar-lhes apoio institucional”. A ilusão de uma única racionalidade não poderia se sobrepor a outras concepções. “Os cientistas, contudo, têm de ir mais longe”, ele constata. Os cientistas nem respeitariam nem permitiriam a presença de visões alternativas: “Tal como defensores da Única Religião Verdadeira antes deles, insinuam que os seus padrões são essenciais para chegar à verdade, ou para obter Resultados”. Diante dessa mentalidade dogmática, Feyerabend avalia a importância de uma interferência política para preservar ideias não científicas. Recuperando uma tese basilar do Contra o Método, redescobrimos que a “autoridade teórica da ciência” não justificaria a exclusão de alternativas: “Ora, vimos que não passa de uma quimera a crença em um único conjunto de padrões que sempre tenha levado ao êxito, e sempre levará ao êxito”. Para o austríaco, uma genuína avaliação relativa aos efeitos de tal interferência política na ciência demandaria uma “apresentação equilibrada da evidência” (p. 223). Tal análise decorreria: i) do estudo profundo de um caso no qual houve interferência política no Referimo-nos ao ‘Apêndice 1’ das 2ª e 3ª edições do Contra o Método, que corresponde ao ‘Apêndice 3’ da 1ª edição. Os Apêndice 1, 2 e 4 da edição de 1975 não constam nas edições de 1988 e 1993, ao passo que os Apêndices 3 e 5 de 1975 se transformam, respectivamente, nos Apêndices 1 e 2 das duas versões finais do Contra o Método. Há, porém, importantes diferenças entre o conteúdo do ‘Apêndice 3’ de 1975 e os ‘Apêndice 1’ de 1988 e 1993. Quando essas diferenças se mostrarem relevantes, reproduziremos em nota de rodapé a versão presente na primeira edição do Contra o Método. 282

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desenvolvimento da ciência; ii) do reconhecimento de que a ciência “cometeu erros graves” quando foi vista como absolutamente autônoma; e iii) do destaque quanto aos casos nos quais a “interferência política melhorou a situação” da ciência (p. 223). O fruto dessa revisão poderia conduzir à separação de Estado e ciência (ver 2.2.1.2):

A ciência é tão-só um dos muitos instrumentos que as pessoas inventaram para lidar com seu ambiente. Não é o único, não é infalível e tornou-se poderosa demais, atrevida demais e perigosa demais para ser deixada por sua própria conta.

Feyerabend assume a intervenção política na ciência porque a ciência não poderia ser ensinada como o único modo através do qual as pessoas enfrentam o ambiente. Essa assertiva, contudo, não implica uma exclusão do conhecimento científico na sociedade. A ciência, lemos no Contra o Método, “tem o direito de existir”: “em uma democracia, a ‘razão’ tem tanto direito de ser ouvida e expressa como a ‘não-razão’” (p. 224). Mas o filósofo rejeita frontalmente o programa políticopedagógico que transforma os padrões científicos nos critérios que definem a educação geral. Contra a esse modo de educação científica, ele define:

A educação geral deve preparar os cidadãos para escolher entre os padrões, ou achar o seu caminho em uma sociedade que contém grupos comprometidos com vários padrões, mas não deve em condição alguma subjugar a mente deles de modo que se conformem aos padrões de algum grupo particular. Os padrões serão considerados, serão discutidos, as crianças serão encorajadas a ter proficiência nos assuntos mais importantes, mas só como se tem proficiência em um jogo, ou seja, sem compromisso sério e sem roubar da inteligência sua capacidade de jogar outros jogos. Tendo sido preparada dessa maneira, uma pessoa jovem pode decidir devotar o restante de sua vida a uma profissão particular e pode começar a levá-la a sério daí em diante. Esse ‘comprometimento’ deveria ser o resultado de uma decisão consciente, com base em um conhecimento razoavelmente completo das alternativas, e não de um resultado inevitável.

O autor de Contra o Método entende que a educação científica opera uma lavagem cerebral na mente dos estudantes. Práticas de condicionamento e o recurso a manuais didáticos levariam os jovens a uma “aceitação completa e irrestrita” das teorias científicas estabelecidas. A doutrinação monista divergiria da posição feyerabendiana uma vez que restringe a variedade de ideias ao louvar a uniformidade como uma virtude epistêmica. Por seu turno, uma educação geral afastaria a 323

possibilidade de aceitação incondicional de alguma teoria. A postura crítica em relação à ciência e outras formas de conhecimento não admitiria qualquer tradição de pensamento como expressão da “Única Religião Verdadeira”. Assim, Feyerabend caracteriza a ciência como “um dos muitos instrumentos” capazes de gerar conhecimento: “Não é o único, não é infalível e tornou-se poderosa demais, atrevida demais e perigosa demais para ser deixada por sua própria conta”, ele declara. Então, a autoridade social da ciência demandaria alguma espécie de intervenção política, com vistas a impedir que o monopólio racionalista elimine opiniões e formas de vida alternativas. Nesse sentido, Feyerabend introduz um modelo ético-pedagógico no qual a superioridade da ciência não seria presumida, repassada e reforçada. Padrões científicos seriam “discutidos”, mas o contato com a ciência não roubaria das mentes a capacidade de “jogar outros jogos”. Cidadãos deveriam ser preparados para “escolher entre os padrões” dentre os variados “grupos comprometidos com vários padrões”. Por essa razão, estabelecimentos de ensino ou os currículos escolares não trabalhariam no sentido de “subjugar a mente dos estudantes, forçando-os a se conformarem “aos padrões de algum grupo particular”. Um aspecto básico dessas reflexões pluralistas concerne à aceitação de que indivíduo possa “decidir devotar o restante de sua vida” uma tradição específica. No entanto, trata-se de uma escolha individual esclarecida: “Esse ‘comprometimento’ deveria ser o resultado de uma decisão consciente, com base em um conhecimento razoavelmente completo das alternativas, e não de um resultado inevitável”. Diante disso, concluímos que o pluralismo feyerabendiano não elimina a possibilidade da forma de vida cientificamente orientada (3.3.3.3), contudo, combate a prevalência de uma dogmática ideologia monista imposta mediante meios pedagógicos que suprimem concepções (teóricas, metodológicas, culturais ou ontológicas) alternativas à suposta Concepção Científica de Mundo.

4.5. Uma “fusão fortuita”: empilhando fragmentos Em 1992, Feyerabend observou que os indivíduos poderiam eleger a “ciência como seu guia” (TS, p. 55). Tal conclusão converge com a ideia, já expressa no Contra o Método, de que cidadãos formados em uma educação geral também poderiam

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escolher de comprometer existencialmente com padrões científicos (CM3, p. 244).283 A adesão ao monismo seria uma decisão consciente, não o efeito de uma ideologia dogmática que exclui perspectivas alternativas e que propagandeia os êxitos da ciência como inevitáveis. Como destacamos, os permanentes ataques de Feyerabend a projeto de unidade da ciência refletem, fundamentalmente, a tentativa de edificar uma proteção ética quanto a certos princípio pluralistas frente a possíveis implicações da ideologia monista – portanto, eles não se reduzem a uma recusa absoluta da ideia mesma de unidade (4.4.3). Inclusive, vários traços das críticas feyerabendianas discutidas nas seções anteriores conduzem à nossa hipótese da dimensão ética da crítica feyerabendiana à Unidade da Ciência: em 4.1.1.3.2, 4.1.1.3.3 e 4.2.2.1.2, que a uniformidade limita a liberdade de pensamento; em 4.4.2, que restringe os “correspondentes domínios da responsabilidade e da liberdade humanas”; ou, em 4.4.3, que erige tradições de pensamento rígidas. Com efeito, voltamo-nos às esclarecedoras palavras de A Ciência em uma Sociedade Livre, onde Feyerabend julga como danosa toda unanimidade que procede de uma “decisão política”, que que suprime “dissidentes” ou que advém de “preconceitos compartilhados” (CSL, p. 110):

Assim, mais uma vez, a unanimidade pode indicar uma redução de consciência crítica: a crítica permanece fraca enquanto apenas uma opinião está sendo considerada. Essa é a razão pela qual uma unanimidade que depende apenas de considerações ‘internas’ acaba sendo errônea.

Feyerabend aceita o monismo quando ele não implica uma redução de consciência crítica.284 Isso sugere que, em relação à crítica feyerabendiana da unidade da ciência, estaríamos diante de uma postura consistente e moderada. Para concretizar essa deia, recorremos à carta que Feyerabend direcionou a Gianmarco Vergani, Peter Shinoda e David Kesler.285 A questão central da discussão consistiu na importância de uma estrutura coerente capaz de organizar a diversidade (AR, p. 325). Para Feyerabend,

283

Portanto, ao menos desde 1975 a crítica de Feyerabend ao monismo considera essa variante. Ver CM1, p. 338. 284 A pedagogia monista que Feyerabend ataca também pode ser vislumbrada na seguinte afirmação: “Nossas universidades não ensinam a ‘Verdade’, mas a opinião de escolas influentes” (TS, p. 74). 285 O documento foi publicado como parte da resposta do filósofo ao debate, ocorrido em 1985, no simpósio do Museu Guggenheim, a respeito do papel das artes, da filosofia e das ciências “na era do pósmodernismo” (AR, p. 325). Para detalhes, ver o volume The Culture of Fragments: notes on the question of order in a pluralistic world. New York: Columbia University: Rizzoli, 1987 (Precis, 6).

325

o enfrentamento disso cabe “às pessoas que criaram a diversidade e que agora estão vivendo no meio dela” (p. 326). A resposta à questão da diversidade cultural não deveria ser fornecida abstratamente por intelectuais.286 Soluções abstratas para situações concretas, ainda que fornecidas visando o bem da humanidade, teriam um potencial tirânico. O autor insiste que o contato entre culturas não se realiza através de um “metadiscurso comum”: “As conexões podem ser temporárias, ad hoc, e bastante superficiais”. E complementa:

Até uma conexão mais estreita entre culturas A, B, C etc. não precisa ser ‘organizada’ por uma ‘estrutura coerente’; tudo o que é necessário é que A interaja com B, B com C e assim por diante, em que o modo de interação pode mudar de um par para o próximo e até mesmo de um episódio de interação para o seguinte (pp. 326-327).

O pluralismo de Feyerabend incorpora a possibilidade integrações temporárias decorrentes de demandas concretas: “Admito também que os contatos ocasionalmente tornaram-se mais intensos e levaram a unidades culturais” (p. 327). De forma consistente, o pensamento feyerabendiano acolhe integrações que emanam dos “desejos e das ações das pessoas envolvidas”, enquanto afasta movimentos de uniformização “impostos pela força”. Para Feyerabend, portanto, o modo como as unificações são introduzidas ou alcançadas seria fundamental: “prefiro uma forma de vida em que as unidades surjam de uma fusão fortuita de elos temporários e em que elas possam decair no momento em que os elos já não forem mais populares (p. 328).

4.5.1. A utopia da ‘superciência’287 Os principais programas de Unidade da Ciência conceberam seus projetos em nível metateórico e os materializaram (em museus, enciclopédias etc.).288 Várias metáforas foram empregadas no sentido de representar os modos de configurar a estrutura e a classificação da ciência. Algumas das imagens mais utilizadas para ilustrar

Uma posição típica feyerabendiana, expressa na fórmula: “Não penso que esse problema possa ser solucionado de uma vez por todas” (TS, p. 89). 287 TS, p. 69. 288 Retomamos, aqui, a tese de Pombo (2011). 286

326

a integração, coesão e harmonia do saber são estas: círculo, mapa, árvore, dentre outras. Conforme sintetiza Pombo (2011, p. 291):

A [unidade da ciência] deixa-se ver de forma permanente naquilo que designamos como as suas figuras. Em cada biblioteca, em cada museu, em cada enciclopédia, cada escola e cada republica dos sábios, a ciência realiza-se, materializa-se como unificação dos conhecimentos.

Explicitamos que as posições básica e avançada de Feyerabend quanto à desunidade da ciência também se deixam “ver de forma permanente” através de “suas figuras”: coleção, supermercado ou sacos de coleta, oceano e monstro (4.2.2). Originalmente, a metáfora oceânica foi citada por Leibniz para destacar o caráter “contínuo, ininterrupto ou sem divisões” do conhecimento (4.1.3). A visão dessa “massa aquática infinita” acenaria para a dimensão fluida e interconectada da Enciclopédia neurathiana. No corpus feyerabendiano, no entanto, o sentido dela se transforma (4.1.3.1). Associada, em primeiro plano, à proposta de uma metodologia pluralista interessada na ampliação da testabilidade e do conteúdo empírico das teorias, ela surge em meados dos anos 1960 e permanece até a edição final do Contra o Método. A ocorrência inicial da metáfora oceânica de Feyerabend reflete o Prinzip des Pluralismus que recomenda a invenção de novas alternativas e a preservação de teorias antigas refutadas (4.1.3.1.1). As variações da metáfora oceânica no Contra o Método, então, conduzem essa proposta pluralista no sentido de confrontar certos ditames empiristas para formulação e aceitação de hipóteses rivais, além de salientar a necessidade de propor novos sistemas conceituais para operar uma crítica das teorias estabelecidas (4.1.3.1.2). Em suma, as versões inicial, intermediária e final da metáfora oceânica de Feyerabend expressam uma concepção pluralista do conhecimento i) contrária ao ideal do progresso como a convergência de teorias coerentes ou autoconsistentes em direção a uma visão ideal ou em um “gradual aproximar-se da verdade”; e ii) favorável ao “processo de competição” entre alternativas “mutuamente incompatíveis” como mecanismo de “maior articulação” do conhecimento. Já a imagem do Monstro aparece no corpus feyerabendiano já no final dos anos 1960, porém, adquire mais relevo a partir dos anos 1980. A figura fragmentada e desarmônica ilustraria a falta de coesão, coerência, regularidade e homogeneidade da ciência

327

(4.2.2.1). Feyerabend recorre àquele inusitado ícone como meio para expressar diversas ideias, tais como: a ciência possui “muitas caras” (4.2.2.1.1), incorpora abstrações capazes de inibir a “liberdade de pensamento” (4.2.2.1.2), não é ‘monolítica’ (4.2.2.1.3) e deve sua “alta reputação” à sua “popularidade” junto ao “público geral” (4.2.2.1.4). Logo, a posição avançada de Feyerabend advoga que a existência de um monstrum “uniforme denominado ‘ciência’” não seria outra coisa senão um ideal metafísico e um projeto ideológico de “mestre-escolas e políticos” (4.2.3). Portanto, o austríaco alarga sua crítica ao ideal de Unidade da Ciência no sentido de atacar a hegemonia de uma idealizada Visão Científica de Mundo harmônica, coesa, coerente, regular e homogênea. Nesse passo, as tentativas de vincular o pensamento de Feyerabend às suas raízes vienenses ou ao enciclopedismo neurathiano parecem ter limitações: não há estabilidade nas opiniões de Feyerabend sobre o Círculo de Viena (4.3.2.1 e 4.3.2.4.1), o pensamento de Feyerabend não coincide com epistemologia naturalista de Neurath (4.3.2.2 e 4.3.2.4.2) e o pluralismo de Feyerabend discorda do estabelecimento de um jargão universal para a comunicação científica (4.3.2.3 e 4.3.2.4.3.2). O pluralismo de Feyerabend introduz no debate epistemológico a possibilidade de pensarmos uma ciência sem harmonia – afinal, ele enfatiza a existência e as vantagens inerentes à heterogeneidade, fratura e diversidade (históricas, estilísticas, teóricas, metodológicas, epistêmicas etc.) do saber científico. Em oposição à “imagem congelada da ciência” (CM3, p. 21) vemos um confronto a modelos pedagógicos que sedimentam a ideologia monista através de uma educação científica dogmática (4.4.1 e 4.4.2). Inversamente, o autor de Contra o Método argumenta que uma ética humanitarista deveria estimular a “variedade de opiniões”, ao invés de fomentar a “unanimidade de opinião”. Nesse sentido, percebemos que a preocupação básica de Feyerabend com a unidade da ciência abarca a forma tirânica e totalitária como, usualmente, a noção de ciência como uma tradição coesa é estabelecida. Mas a proposta feyerabendiana pretende estimular os cidadãos a “achar o seu caminho” através do debate de diversas tradições. A mentalidade científica não surgiria como o “resultado inevitável” de uma pedagogia comprometida com o racionalismo científico (4.4.3). Para encerrar, relembramos que o desacordo mais básico de Feyerabend com o modelo unitarista concerne aos prejuízos éticos decorrentes da uniformização de ideias, práticas, formas de vida e cosmovisões – ou seja, a “redução de consciência crítica”. Uma posição pluralista consistente, como a de Feyerabend, não poderia objetar, a 328

priori, casos em que unificações evoluem a partir de processos deliberados ou que refletem organizações temporárias. Com efeito, em Feyerabend, a unidade não encarnaria uma noção intrinsecamente nociva; assim como, inversamente, a fragmentação não ilustraria algo benéfico em si. Afinal, consoante as próprias páginas do corpus feyerabendiano:

Não há uma única ideia, por mais absurda ou repulsiva, que não possua um aspecto razoável, e não uma única concepção, ainda que plausível e humanitária, que não encoraja, e assim dissimila, nossa estupidez e nossas tendências criminosas (TDK, p. 50).

329

CONCLUSÃO Notas para um Pluralismo Humanitário “Tenha grande desconfiança do espírito humanitário abstrato que parte de uma ideia e procura comprimir dentro dela o mundo […] Uma ideia de humanidade que não esteja fundada sobre sólidas relações pessoais produz retórica vazia, que pode ser combinada com as ações mais atrozes” (DC, p. 110).

Dispomos em dois conjuntos algumas das mais influentes leituras sobre o autor de Contra o Método:

Estudos Primários George Couvalis John Preston Robert Farrell Hoyningen-Huene & Eric Oberheim

Estudos Secundários Porfírio Silva E. Malolo Dissakè G. Munévar Luca Tambolo

Esses leitores concordam quanto ao caráter pluralista da filosofia de Feyerabend. Contudo, as leituras deles divergem profundamente entre si quanto à compreensão da natureza pluralista do corpus feyerabendiano. Logo, a Feyerabendiana abarca diferentes perspectivas referentes à produção do pensador austríaco:

Leitor George Couvalis John Preston Robert Farrell Hoyningen-Huene & Eric Oberheim Porfírio Silva E. Malolo Dissakè G. Munévar Luca Tambolo

Leitura Pluralismo Restrito Pluralismo Bipartido Pluralismo Axiológico Pluralismo Filosófico Pluralismo Radical Pluralismo Antifundacionista Pluralismo Generalizado Pluralismo Libertário

Os Estudos primários analisam o pensamento de Feyerabend prioritariamente no âmbito do pluralismo teórico e do pluralismo metodológico. Por sua parte, os Estudos secundários adicionam a tal par as noções de pluralismo cultural e pluralismo ontológico. Entretanto, os Estudos primários e os Estudos secundários não edificam uma imagem consistente do pluralismo de Feyerabend a qual englobe esses níveis de 330

teses pluralistas em um programa unitário e orientado pelos leitmotifs do projeto de Crítica da Razão Científica: a estrutura (teórica e metodológica) e o valor (cognitivo e cultural) da ciência.

Pluralismo Restrito Pluralismo Bipartido Pluralismo Axiológico Pluralismo Filosófico Pluralismo Radical Pluralismo antifundacionista Pluralismo Generalizado Pluralismo Libertário

Pluralismo Teórico X X X X X X X X

Pluralismo metodológico X X X X X X X

Pluralismo cultural

Pluralismo ontológico

X

X X

X X

X X

A nova hermenêutica do corpus de Feyerabend como um Pluralismo Global apreende a consistência teórica e a coerência conceitual da produção do autor de Contra o Método (especialmente ao longo das décadas de 1960 a 1990) mediante a ideia de expansão irrestrita do conceito de proliferação aos âmbitos das teorias (3.3.1), métodos (3.3.2), culturas (3.3.3) e ontologias (3.3.4). Com base nisso, exploramos também as críticas de Feyerabend à concepção monista da Concepção Científica de Mundo. A metáfora oceânica e o ícone do monstrum elucidam, pois, as ideias do filósofo quanto ao caráter fragmentário da ciência. Não obstante, é preciso complementar essa leitura com apontamentos acerca dos alicerces morais do pluralismo feyerabendiano.289 Feyerabend compreende que a reflexão moral envolve a “melhoria da vida” dos seres humanos (PP3, p. 50).290 Nesse sentido, considera que a busca pelo “bem-estar” das pessoas, pela “felicidade do ser humano individual” e pela ampliação da “liberdade” seriam preocupações filosóficas primárias (mesmo em relação a tópicos epistemológicos ou científicos).291 Conforme ele mesmo asseverou: “a felicidade e o pleno desenvolvimento de um ser humano é agora, como sempre foi, o mais alto valor

289

A falta de estudos especializados sobre as bases éticas do pluralismo de Feyerabend parece ser um efeito direto da difusão da segunda dicotomia do corpus de Feyerabend (que criticamos em 2.2), a qual foi introduzida pela Visão Padrão e endossada pela Escola de Hannover. Molina (1995) e Comincini (2004) elaboram leituras introdutórias que, contudo, não impactaram na literatura especializada. 290 Em TDK, pp. 77-78, 80; DM, pp. 35, 37 Feyerabend aborda a questão da proteção de animais não humanos. 291 Oberheim (2006, p. 276) sugere que as preocupações feyerabendianas com a ética são tardias, ao passo que consideramos que elas já ocorrem em trabalhos anteriores ao Contra o Método, como “Science, Freedom, and Good Life” (1968).

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possível” (PKF 1979, p. 260; PP2, p. 143). O próprio livro de 1975 considera que o objetivo do pluralismo é desenvolver a individualidade, e não fomentar o progresso da ciência: “O pluralismo de teorias e concepções metafisicas não é apenas importante para a metodologia; é, também, parte essencial de uma perspectiva humanitarista” (CM3, p. 69).292 Essa ideia segundo a qual valores morais possuem primazia sobre ideais epistemológicos e científicos é nitidamente explicitada na instrutiva entrevista que Feyerabend concedeu a Joachim Jung (3.3.2.4.10):

J.J. Se essa afirmação for generalizada, seria possível dizer: se a felicidade e o desenvolvimento pleno consistem no maior valor possível, então, você considera a ética a disciplina filosófica mais elevada. F. O quê? J.J. A Ética. Isso significa que a ética é mais valiosa do que a epistemologia… F. Muito mais. A moral é muito mais valiosa do que o mero conhecimento abstrato porque a moral deriva de um longo processo de desenvolvimento de ajustamento das pessoas umas às outras. J.J. Mas veja bem: é moral, não ética. F. Ética é uma teoria da moral. É filosófica demais para o meu gosto. A moral depende do tempo, da história. É mais importante do que um conhecimento abstrato como a ética, voltada para questões como ‘O que é ‘o bem’? J.J. Me pergunto por qual razão você nunca ou muito raramente discute questões de ética, de moral? F. Porque a maior parte das coisas que li me entediaram ao extremo… Porém, questões relacionadas à política e ao conhecimento – sobre as quais falei frequentemente – são questões morais. Se o conhecimento de um grupo fosse considerado objetivo e, por isso, imposto a todos. Isso é uma questão moral. Também o é o que deveria ser ensinado nas escolas. O que deveria ser propagado por todo o mundo é uma questão moral. O que deveria ser ensinado e discutido nas escolas” (PKF 2000, pp. 166-167).

A constatação do primado da moral na filosofia de Feyerabend acena para a existência de alguns valores intimamente associados à noção de proliferação irrestrita

292

Portanto, diferentemente do proposto pela Escola de Hannover, o pluralismo feyerabendiano não se circunscreve ao domínio epistemológico. Enfim, trata-se de uma limitação adicional à Escola de Hannover não explorada em 2.1.2 e 2.1.3. Oberheim (2006) descreve o pluralismo de Feyerabend tinha em vista encorajar a crítica e aprimorar o conhecimento, sem considerar o papel prioritário do humanitarismo do pluralismo de Feyerabend: “[A concepção de filosofia de Feyerabend] não é um conjunto coeso e estável de doutrinas ou de princípios. Na verdade, é um método que clama pelo pluralismo na ciência e na filosofia buscando o progresso” (p. 287). Ou ainda: “Ao longo de sua carreira, ele [Feyerabend] foi um oportunista pronto para e disposto a adotar quaisquer teses ou métodos que melhor servissem para seu propósito: promover o progresso […]” (p. 280).

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de ideias, procedimentos, tradições e visões de mundo.293 De maneira esquemática, podemos dizer que i) o pluralismo teórico remete à autonomia de pensamento294; ii) o pluralismo metodológico à liberdade de ação295; iii) o pluralismo cultural ao respeito às várias formas de vida296; e iv) o pluralismo ontológico à abundância de cosmovisões.297 Todavia, esse esboço de axiologia mínima em Feyerabend não manifesta preceitos éticos universais. “Minhas sugestões”, frisa o autor, “não são ‘princípios’” (DC, p. 103; ver também AR, pp. 365 e a seção 2.2.1.2). Pelo contrário, ele afirmou que ideias e práticas orientadas para a proteção da diversidade de opiniões e práticas não seriam absolutas.298 Uma perspectiva pluralista consistente não poderia admitir concepções, ações, tradições ou visões de mundo que impliquem uma sistemática restrição da própria liberdade.299 É por isso que Feyerabend repele o modismo intelectual que acolhe as “muitas maneiras de pensar e viver” sem converter o pluralismo em algo “melhor ou mais humano” (MT, p. 179). Em meados dos anos 1960, Feyerabend se empenhou em realizar uma genealogia da autoridade da tradição científica a partir da ascensão do racionalismo grego (PP2, cap. I; CM3, pp. 353-356; AR, cap. II; ver também 3.3.3.2).300 Ele também condenou as práticas de exclusão de visões de mundo não ocidentais e elaborou uma “solução intelectual” para a preservação da diversidade de ideias e culturas (CSL, p. 140; CM2, p. 361; CM3, p. 354): “Conjecturei uma nova espécie de educação que iria viver de um rico reservatório de diferentes pontos de vista, permitindo a escolha de tradições mais vantajosas para o indivíduo” (ver 4.4.1 e 4.4.3).301 Em seguida, porém,

293

Como escreveu Farrell (2003, p. 215), a defesa feyerabendiana da proliferação converge com uma atitude humanitária. 294 Ver PP3, p. 77. 295 Ver PP2, pp. 143-144. 296 Ver AR, p. 7. 297 Ver CA, p. 215. 298 Ver CM3, p. 17. Recuperamos uma vez mais a afirmação de Feyerabend com a qual encerramos a seção 4.5.1, segundo a qual qualquer ideia – “ainda que plausível e humanitária” (TDK, p. 50) – pode acarretar efeitos nocivos de interpretada de forma absoluta. 299 Sobre o conceito de liberdade em Feyerabend, considere-se especialmente este trecho: “a libertação da fome, do desespero, da tirania de sistemas de pensamento emperrados e não a ‘liberdade da vontade’ acadêmica” (CM3, p. 215). 300 O material postumamente compilado e publicado como Naturphilosophie sintetiza os estudos de Feyerabend realizados entre 1971 e 1976 sobre o tema (OBERHEIM & HEIT 2009, 2013). No entanto, o próprio Feyerabend citou versões desse projeto inacabado e inédito – inicialmente intitulado Einführung in die Naturphilosophie – algumas vezes (por exemplo: Pnp, p. 144 n. 50; CSL, p. 203 n. 28; CM1, p. 75 n. 7, p. 94 n. 10, p. 329 n. 75, p. 446 n. 1). 301 “A educação geral deve preparar o cidadão para escolher entre os padrões ou para encontrar seu caminho na sociedade, onde se incluem grupos dedicados a padrões vários, mas ela não deve, em condição alguma, desvirtuar seu propósito, de modo a acomodá-lo aos padrões de um grupo determinado.

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descreveu essa posição como um “exemplo da presunção e da tolice intelectualista” (CSL, p. 150; CM2, p. 362; CM3, p. 356). A arrogância residiria na tentativa de solucionar (abstratamente) problemas (reais) experienciado por indivíduos situados em contextos específicos. Diante disso, julgou insensato o “exercício de humanitarismo distante” como mecanismo de lidar com situações alheias. Então, a perspectiva moral de Feyerabend se distancia tanto do ‘humanismo’302 como do ‘humanitarismo abstrato’. No caso desse último, o trecho a seguir – retirado do “Diálogo sobre o Método” (1976) – explicita uma crítica ao humanitarismo ideológico, abstrato ou intelectual bem como à imposição pedagógica de filosofias humanitárias:

A. Você contesta o ensino da atitude humanitária? B. Se o humanitarismo não é visto em perspectiva, se as pessoas não são protegidas dele enquanto o aprendem. […] A. Você se opõe ao humanitarismo? B. Me oponho a transformar o humanitarismo uma parte da ideologia social […] E me oponho ainda mais veementemente à tentativa de o impor a tribos e nações que vivem de uma forma própria. De todo modo, deixemos que falem dele, deixemos os pregadores do humanitarismo tentar convencê-los de que tal é a única posição respeitável… A. E, de resto, há alguma outra? B. […] Os humanitaristas ocidentais estão dispostos a maltratar animais para elaborar remédios que curem a si mesmos, ao passo que pessoas que respeitam todo o reino da natureza rejeitam o direito de seres humanos de subjugar outras espécies para seus interesses, ainda que isso possa significar uma grande desvantagem para si. […] Ao passo que sua postura – e me refiro a você e seus amigos intelectuais – envolve elaborar teorias, sistemas éticos, filosofias humanitárias e outras coisas que estão no seu escritório, e as impor a outros sob a máscara de uma ‘educação’, desejo que as pessoas encontrem sua direção própria. Tudo o que faço consiste em remover os entulhos que os intelectuais espalham pelo caminho. Ao contrário, você anseia mudar o comportamento alheio de forma que coincidam com suas preconcepções. Naturalmente, você precisa de um plano, ao passo que eu deixo a estruturação da sociedade nas mãos das próprias instituições. Segundo entendo, uma educação apropriada é uma instrução que informe as pessoas acerca do que está se passando, ao mesmo tempo em que busca protegê-las de serem esmagadas por Os padrões serão examinados, serão debatidos, as crianças serão estimuladas a conseguir domínio das matérias mais importantes, mas tão somente no sentido de alguém que alcança proficiência em um jogo, isto é, sem comprometimento sério e sem roubar ao espírito a capacidade de também entregar-se a outros jogos. Preparado segundo esse esquema, o jovem poderá decidir devotar o resto de sua vida a certa profissão, começando imediatamente a tomá-la a sério. Esse ‘comprometimento’ deve ser o resultado de uma decisão consciente, com base em conhecimento razoavelmente completo das alternativas e não uma conclusão precipitada” (CM1, pp. 338-339). 302 Isso nos distancia da pioneira leitura proposta por Molina (1995). No Contra o Método, por exemplo, o termo ‘humanismo’ aparece uma única vez e, mesmo assim, em uma citação de uma fonte secundaria. O trecho remonta a uma passagem do livro The Medical Man and the Witch (1935), de G. Zilboorg, referente à ineficiência dos argumentos dos humanistas em reaproximar domínios do conhecimento separados na “assim chamada revolução científica” (CM3, p. 120 n. 2). Ressaltamos, a propósito, a falha de tradução da edição brasileira, que verte o termo original “humanism” (AM, p. 78 n. 2) em “humanismo” (CM3, 120 n. 2), algo que não ocorre nas traduções brasileira da 1ª edição de 1975 (CM1, p. 160 n.1) e portuguesa da 2ª edição de 1988 (CM2, p. 108 n.1).

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essa mesma estória. Por exemplo, informa as pessoas de que existe uma coisa como o humanitarismo, contudo, que tenta deixá-las fortes para serem capazes de reconhecer os limites dessa ideia” (TDK, pp. 77-78, 80; DM, pp. 35, 37).

Feyerabend criticou a postura de “solucionar problemas concretos” a partir de concepções (políticas ou epistemológicas) abstratas ainda no final dos anos 1970: “Querem se converter em educadores do gênero humano e impõem suas ideias, graças ao poder do qual dispõem nas escolas etc., a pessoas que não possuem qualquer interesse nelas” (PnP, pp. 154-155). Essa rejeição da atuação dos intelectuais como educadores ou serviçais da Humanidade penetrou nos escritos dos anos 1980.303 No Adeus à Razão, emergiu com a tese de que a organização da diversidade cultural deve ser realizada pelos próprios participantes (“as pessoas que criaram a diversidade e que agora estão vivendo nela”), não por sistemas teóricos abstratos (AR, p. 326). Para ilustrar o caráter tirânico das pregações intelectuais, o autor recorreu à passagem na qual o fenomenólogo alemão Edmund Husserl descreve os filósofos como “funcionários da humanidade” cuja responsabilidade e vocação natural incorporaria o “ser verdadeiro da humanidade”.304 “Essas pessoas falam de ‘cultura’ ou de ‘Homem’ – mas o que querem dizer são eles próprios e as poucas criaturas escolhidas que conseguem entender seus trabalhos” (p. 329), Feyerabend constatou.305 As preocupações filosóficas básicas de Feyerabend se orientavam para o bemestar, a felicidade e a liberdade dos indivíduos. A premissa feyerabendiana de proliferação irrestrita de ideias, métodos, culturas e cosmovisões envolvia valores pluralistas como autonomia de pensamento, liberdade de ação, multiculturalismo e diversidade de visões de mundo. Mas, gradualmente, ele criticou a imposição de ideias humanitárias como princípios morais. Soluções abstratas para a preservação da diversidade ilustrariam um arrogante e potencialmente tirânico “exercício de humanitarismo distante”. Nesse sentido, o perfil humanitarista do pluralismo de Feyerabend não emerge da tentativa de enfrentar problemas reais a partir de concepções Na Questão 8 da ‘miscellanea de Quinze Questões’ que, em de 1981, Teresa Ordunya encaminhou a Feyerabend (3.3.2.4.2), ele respondeu: “Me entristece quando intelectuais tentam ‘educar’ o restante da população como se eles, os intelectuais, tivessem encontrado o caminho certo para o paraíso (muitos marxistas agem dessa forma – são anti-humanitários ainda que constantemente falem da humanidade)”. 304 Trecho presente em “A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental” (1936). 305 Para a permanência dessa crítica aos intelectuais nos últimos escritos de Feyerabend, recomendamos a leitura de “Os intelectuais e os fatos da vida” (1993) (CA, cap. XI) e “A respeito de um apelo pela filosofia” (1994) (CA, cap. XII), no qual o autor critica a universalização de “conceitos novos e altamente técnicos, sem nenhuma obvia relação com os problemas cotidianos das pessoas comuns” (p. 358). 303

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(políticas ou epistemológicas) gerais. Pelo contrário, salienta que os próprios participantes deveriam se organizar (de forma esclarecida e responsável) no sentido de enfrentar as situações concretas que os afetam (ver 2.2.1.2.2): “As ações democráticas surgidas de pequenos grupos […] apresentam consideráveis vantagens políticas. Afinal, os problemas são conhecidos, se vive com eles” (PnP, pp. 186-187; ver também CM3, p. 21). Ademais, esse pluralismo humanitário definiu a vida humana como algo “muito mais importante do que palavras que pretendem representar ideias” (DC, p. 84). Ao elaborar esse limite, então, distanciou-se da perspectiva não intervencionista característica do relativismo democrático (3.3.3.1 e 3.3.3.3). Portanto, mesmo que interpretes de Feyerabend descuidem desse ponto (o qual o próprio austríaco não analisou minuciosamente), é crucial evidenciar que ele admitiu a possibilidade de “intervenções drásticas”.306 Em linhas gerais, o pluralismo humanitarista de Feyerabend preserva a noção (pluralista) segundo a qual conhecimentos baseados em “alternativas locais” deveriam ser comparados com a ciência (AR, p. 38) e mantém o princípio (democrático) segundo o qual os cidadãos devem participar em debates sobre questões (inclusive científicas) que afetam a sociedade (CM3, p. 21; CSL, pp. 120122), porém, assinala limites (humanitários) para esses procedimentos pluralistas e democráticos. Então, situações de difusão endêmica de enfermidades, surtos epidêmicos, supressão de direitos humanos, crimes contra as pessoas, acidentes ecológicos etc. não poderiam se submeter ao “acaso do debate democrático” (DC, p. 109).307 O filósofo não explorou de forma extensa em sua produção essa concepção da intervenção não democrática emergencial, entretanto, discutiu claramente o tema em

No Prefacio à Segunda Edição (1988) do Adeus à Razão ele escreve: “Intervenções drásticas não estão excluídas, contudo, deveriam ser usadas somente após amplos contatos não somente com uns poucos ‘líderes’, mas também com a população diretamente envolvida” (FRT, p. viii). 307 Encontramos dois trechos bastante explícitos nos quais Feyerabend admite a intervenção baseada em valores humanitários. Primeira: “O procedimento, como qualquer um, tem exceções. A ocorrência de doenças generalizadas e que se disseminam muito rapidamente pode exigir uma ação rápida e tirânica por parte daqueles que têm o poder e acham que têm o conhecimento para lidar com aquela emergência. Mas o ponto é que tais casos devem ser tratados como exceções. A consulta local deve ser levada a cabo sempre que possível e deve recomeçar no momento em que o perigo retroceder. A coerção e os assassinatos em massa são outros exemplos em que a interferência pode ser necessária” (AR, p. 38 n. 11). Segunda: “Uma tal intervenção parece requerida, por exemplo, no caso de uma moléstia cuja natureza não pode ser explicada com a velocidade que parece ser necessária, ou no caso de catástrofes ecológicas (pode acontecer que, um belo dia, os exércitos ocidentais decidam acabar com o incêndio das florestas tropicais e, ao mesmo tempo, pode acontecer que terroristas resolvam agir contra fabricas poluentes dos Estados Unidos: a vida dos animais, das árvores, de nossas crianças é demasiado preciosa para ser deixada ao acaso do debate democrático)” (DC, pp. 108-109). Em STA, p. 140, Feyerabend comenta o caso das ameaças nucleares. 306

336

uma entrevista concedida a Renato Prascandolo e Vittorio Hösle, em 15 de maio de 1992, em Roma, publicada em 1995 na revista Telos:308

Pessoas estão morrendo de fome ao redor do mundo, estão sendo baleadas, não possuem acesso mínimo à medicação, sequer há o mínimo de água potável e assim vai. Pode até ser que algumas pessoas digam ‘Não podemos interferir, afinal, se trata de uma cultura em si mesma e não devemos mexer em culturas que se firmaram com uma história própria e tal’. Por mim, digo 'Não!'. Onde há miséria, deve haver interferência, e ocasionalmente mesmo intervenção militar. O limite com o qual trabalho é quando pessoas começam a sofrer. Uma das versões de relativismo que não anseio diz: ‘Existem diferentes culturas, cada qual consiste em uma entidade autêntica fechada. Elas podem ser abordadas com reverência, contudo, jamais com violência’. Penso que esse é um princípio perigoso [...] Diria mesmo que há um limite para esse tipo de princípio – o sofrimento humano. Nesse caso, penso que a interferência deveria começar o quanto antes (PKF 1995, p. 129).

Alguns trechos contidos no Contra o Método apontam que o pluralismo humanitarista consiste em uma motivação filosófica básica de Feyerabend309; que ampara a onipresente crítica feyerabendiana à doutrinação científica310; que sustenta o posicionamento epistemológico geral do austríaco311; e que expressa a própria inspiração programática da abordagem pluralista dele.312 Contudo, o corpus feyerabendiano não evidencia qualquer teorização mais robusta acerca dos fundamentos morais do pluralismo humanitário. Ao fim e ao cabo, a consecução mais evidente de tal concepção aparecerá, de maneira consistente, nas ações humanitárias promovidas pela Paul K. Feyerabend Foundation, instituição não governamental (constituída em março de 2006) com o objetivo de fomentar a solidariedade dentro e entre comunidades de forma exemplar, inovadora e sustentável. Sediada na Suíça e

Como parte do projeto ‘Enciclopedia Multimediale dele Scienze Filosofiche’, patrocinado pelo canal radiotelevisivo italiano RAI (Radio Audizioni Itália). 309 “Meu principal motivo para escrever esse livro foi humanitário, não intelectual. Eu queria dar apoio às pessoas, não ‘fazer avançar o conhecimento’” (CM3, p. 22). 310 “[…] uma educação científica, como antes descrita (praticada em nossas escolas), não pode ser conciliada com uma atitude humanitarista. Está em conflito ‘com o cultivo da individualidade, a única coisa que produz ou pode produzir seres humanos bem desenvolvidos’” (CM3, p. 35). 311 “[…] a unanimidade de opinião pode ser adequada para uma igreja rígida, para as vítimas assustadas ou ambiciosas de algum mito (antigo ou moderno), ou para os fracos e voluntários seguidores de algum tirano. A variedade de opiniões é necessária para o conhecimento objetivo. E um método que estimula a variedade é também o único método compatível com uma perspectiva humanitarista” (CM3, p. 60). 312 “Uma apresentação e uma defesa verdadeiramente humanitária dessa posição encontram-se em Sobre a Liberdade, de J. S. Mill […] A filosofia de Popper, que algumas pessoas gostariam de apresentar como o único racionalismo humanitarista existente hoje, não passa de um pálido reflexo das ideias de Mill” (CM3, p. 64 n. 2). Para Feyerabend, então, Mill oferece uma base filosófica para a expansão da pratica liberal para além dos limites da epistemologia (SLUGA 2006). 308

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presidida por Grazia Borrini-Feyerabend, Fundação Paul K. Feyerabend tem como meta promover

a justiça social, os direitos humanos, a diversidade biocultural e o fortalecimento e bem estar de comunidades humanas através da solidariedade comunitária e ajuda mútua, bem como através da reflexão, organização e ação coletivas. 313

***

A nova hermenêutica do corpus feyerabendiano como um Pluralismo Global compreende a obra do austríaco como uma aplicação irrestrita do princípio de proliferação ao âmbito das teorias, métodos, culturas e ontologias. Esse conceito permite, ainda, vislumbrar uma crítica singular ao ideal de Unidade da Ciência expresso no programa unitarista da Concepção Científica de Mundo. Assim, Feyerabend desponta como um pensador central para a reflexão contemporânea acerca da imagem da ciência como uma prática fragmentada e sem homogeneidade. No entanto, salientamos que o físico e filósofo austríaco não concebe os valores pluralistas como princípios absolutos: autonomia de pensamento, liberdade de ação, multiculturalismo e diversidade de visões de mundo encontrariam seu limite em preocupações de natureza humanitária – acerca das quais, efetivamente, o autor não deixou uma produção escrita substancial. Destarte, consideramos que o legado filosófico do autor de Contra o Método para a “longa e interessante história” do “debate filosófico entre monismo e pluralismo” (PP1, p. 108 n. 14) excede os superficiais rótulos usualmente empregados para caracterizar a controversa filosofia de Feyerabend.

313

Disponível em: http://pkfeyerabend.org/en/accueil/objectifs/. Desde de 2005, a PKF Foundation já subsidiou mais de 30 iniciativas, dentre as quais: o apoio de gestão de recursos minerais à Central Indígena do Pueblo Leco de Apolo, Bolívia (2014), a ajuda emergencial à comunidade da ilha Coron, Filipinas, após o tufão Haian (2013) ou o apoio jurídico ao povo Ayoreo, Paraguai, relativo a direitos territoriais de sociedades ancestrais (2010). Também criou o Paul K. Feyerabend Award para recompensar ações individuais ou projetos grupais de fortalecimento local e entre comunidades pautados pelo respeito aos direitos humanos e pela diversidade cultural e biológica. O prêmio já foi entregue a mais de 13 ganhadores, dentre os quais: Damodar Kash, pelo trabalho junto à comunidade Bhatra de Sandh Karmari, Chhattisgard, India (2014); a Dario Novellino, pelo suporte aos indígenas da ilha de Palawan, Filipinas; ao Povo Ogiek do Monte Elgon, Kenya (2012); e ao advogado Arjun Singh Nag, pela assistência ao distrito de Bastar, Índia Central (2011).

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