O poder de fala e o direito de fazer-se ouvir do sujeito subalterno

July 18, 2017 | Autor: Rosiane Gonçalves | Categoria: Estudos Literários
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS










Rosiane Pereira Gonçalves Boina











QUANDO O SUJEITO SUBALTERNO FALA: ESPECULAÇÕES SOBRE A RAZÃO PÓS-COLONIAL





















Vitória/ES
2015
Rosiane Pereira Gonçalves Boina



















QUANDO O SUJEITO SUBALTERNO FALA: ESPECULAÇÕES SOBRE A RAZÃO PÓS-COLONIAL













Resenha apresentada para a disciplina
Literatura, gênero e discursos marginais –
Enunciação e discursos minoritários, no
curso de Mestrado do Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Federal do Espírito Santo – UFES.


Professora Júlia Almeida











Vitória/ES
2015

RESENHA

ALMEIDA, SANDRA REGINA G. QUANDO O SUJEITO SUBALTERNO FALA: ESPECULAÇÕES
SOBRE A RAZÃO PÓS-COLONIAL. RIO DE JANEIRO: VIVEIROS DE CASTRO, 2013 – P.
139.


O poder de fala e o direito de fazer-se ouvir do sujeito subalterno


O artigo abordado aqui foi escrito pela professora Sandra Regina
Goulart Almeida, mineira, graduada em Letras pela Universidade Federal de
Minas Gerais (1986), possui mestrado em Literatura pela University da
Carolina do Norte em Chapel Hill (1990), doutorado pela mesma instituição
(1994) e pós-doutorado em Literatura Comparada pela Columbia University, em
Nova Iorque. Atua na área de Literatura Comparada e Literaturas de Língua
Inglesa, com pesquisas direcionadas para temas tais como: literatura
contemporânea, crítica literária feminista, estudos de gênero, literatura
pós-colonial, tradução cultural, estudos da diáspora e do espaço na
literatura contemporânea.
O texto da autora tem como objetivo fazer relevância a questão da
falta de possibilidades do sujeito subalterno se auto-agenciar, diante de
tantos movimentos migratórios e de mobilidades globais que vêm acontecendo
em tempos atuais, onde ainda predomina o poder e a influência do
colonizador sobre o outro colonizado. O seu trabalho evidencia o empenho da
crítica indiana Gayatri Chakravorty Spivak em não só defender o poder de
fala do subalterno, mas principalmente o direito de ser ouvido. Falamos e
ouvimos falar sobre intelectuais e período pós-colonialista,
descolonialismo, vozes silenciadas e tantos outros termos, mas será que
realmente estamos fazendo a coisa certa? Segundo a autora, já é hora de
pensar em um novo modelo de crítica pós-colonial, o qual nos instigue a
pensar e ler as sínteses históricas e culturais de uma forma a abrir
possibilidades de fala e escuta do sujeito subalterno. Ao citar Walter
Mignolo, enfatiza o quanto ainda a matriz colonial de poder recoloca-se
através dos deslocamentos correntes, e ainda, como a pós-colonialidade é um
fracasso da descolonização.
Dessa forma, despertamos para uma atitude constante de vigília, no
sentido que é dado por Spivak, que é não somente estar atento às forças da
matriz colonial de poder, mas também à ilusão que criam no campo político e
ético, tanto quanto ao posicionamento dos intelectuais pós- (e des-)
coloniais. O papel desses intelectuais não é o de apropriar-se do discurso
silenciado do subalterno, mas estar aberto a um aprendizado a partir do
"outro". Um exemplo que Sandra Almeida usa para mostrar que nem sempre o
que o subalterno fala, quando fala, é devidamente ouvido, é a obra da
poetiza Carolina Maria de Jesus – Quarto de despejo (1960) – que como
outros de seus trabalhos ainda possui uma escuta tímida e enviesada. Quando
ela sugere uma leitura da obra Pode o subalterno falar? (1985) de Spivak, é
justamente para refletir sobre o que acontece quando, como no caso de
Carolina, o subalterno fala e não lhe é concedido o direito de se fazer
ouvir em toda sua essência.
Basicamente o trabalho realizado por Spivak através de sua escrita, é
uma forma de desconstruir os discursos pós-colonialistas hegemônicos
eurocêntricos e dar esse espaço que o subalterno necessita para ser ouvido.
A autora menciona a complexidade do texto crítico de Spivak, que acaba se
tornando uma tarefa árdua e desafiante ao tentar traduzi-lo, o que
demonstra sua preocupação em produzir um discurso crítico que nos incentive
a mudar nossa forma de ler. O que Sandra Almeida propõe é que desenvolvamos
a capacidade, através de tal leitura e tradução cultural, de aprender o
mundo contemporâneo de uma forma desestabilizadora e decisiva refletindo
sobre histórias legíveis e alternativas. Spivak, que se tornou conhecida
primeiramente como sendo a tradutora do texto em inglês da Gramatologia de
Derrida e depois pelo seu atual trabalho desconstrucionista, é capaz hoje
de transitar por várias áreas do conhecimento, aliando-se assim a posturas
teóricas relacionadas ao feminismo contemporâneo, pós-colonialismo, e mais
atualmente, multiculturalismo e globalização. Sua obra Pode o subalterno
falar? parte de uma crítica aos intelectuais ocidentais, em específico
Deleuze e Foucault, proporcionando assim uma reflexão sobre a prática
discursiva do intelectual pós-colonial. Foi capaz até de fazer críticas ao
grupo de estudos subalternos ao qual pertence e à ênfase do teórico
italiano Antônio Gramsci na autonomia do sujeito subalterno como uma
premissa essencialista, demonstrando a sua insatisfação relacionada a um
discurso idealista, o qual não condiz com seus princípios discursivos
desconstrutivos. Spivak, em sua escrita, questiona a posição do intelectual
pós-colonial que julga poder falar pelo outro e, por meio dele, construir
um discurso em seu nome, o que seria indubitavelmente continuar oprimindo a
classe subalterna, como fazia o colonizador de uma época. Tal
questionamento é um alerta para o perigo de uma construção pouco fiel do
discurso do outro, levando assim a mascarar a realidade social do
subalterno para que seja entendida de forma equivocada.
Sandra enfatiza que a argumentação de Spivak também é baseada pelo
dialogismo bakhitiniano, quando analisa o termo "representação"
distinguindo-o em seus dois sentidos: "falar pelo outro" (como uma
representação política) ou "representá-lo" (como uma encenação). Em ambos
há a necessidade de um falante e um ouvinte, ou seja, um espaço dialógico
que para o subalterno nunca se concretiza, visto que sua fala não é ouvida
(como deveria). A escrita de Spivak tem sido mal interpretada, como se esse
sujeito subalterno ou marginalizado não pudesse realmente falar e tivesse
que recorrer ao discurso hegemônico para fazê-lo, mas sua postura, na
verdade refere-se à intermediação constante, especialmente de intelectuais
do Primeiro Mundo, da voz do outro, que pensa estar em posição de
reivindicar algo em nome deste. A tarefa do intelectual pós-colonialista
contemporâneo, em especial aquela aqui referenciada, é não eternizar ou
exotizar o termo subalternidade, pois o objetivo é o sujeito subalterno não
permanecer nesse estado de exclusão, privado do poder de agenciamento. Para
isso, é necessário fazer com que as pessoas estejam preparadas para ouvir,
sair da situação de privilegiados e aprender com o "outro" subalterno,
possibilitando um espaço para um diálogo entre as duas partes, onde aceitem
abrir mão do privilégio da fala e se dispõem a ouvir. Tudo isso requer um
trabalho contínuo, já iniciado por Spivak, de questionamento e intervenção
teórica e prática em discursos cotidianos.
Sandra faz questão de lembrar também que os trabalhos da crítica
indiana dão constante ênfase ao silenciamento feminino, como nesta obra em
especial, na qual relata dois episódios em que a mulher subalterna não
consegue ser ouvida: O primeiro é a história do ritual sati - ritual de
sacrifício das viúvas na pira funerária de seus falecidos maridos – que por
motivo da coibição deste ato pelos ingleses, por ser considerado uma
barbárie, o ritual que antes não era praticado em todo lugar, passou a sê-
lo como forma de repúdio contra a proibição. Além de ser uma prática
cultural de algumas regiões, passou a ser uma forma geral de contestação às
intervenções ocidentais nas tradições daquele povo, construindo-se assim um
discurso nacionalista anti-colonial. O outro episódio trata do relato de
vida de Bhubaneswari Bhaduri, de um ato de rebeldia, ou apenas sua
impossibilidade de cometer um assassinato em nome do movimento pela
independência da Índia, do qual participava. Tal ato, como aconteceu de
verdade, é suprimido da história da nação, não sendo jamais reconhecido,
sendo seu nome apagado dos registros históricos e culturais. Bhaduri
decidiu se suicidar após o fracasso da missão, mas esperou seu período
menstrual para fazê-lo, assim seu suicídio não seria visto como um caso de
amor ou de gravidez ilícitos, mas de nada adiantou, pois sua fala foi
silenciada, sendo de qualquer forma, seu suicídio, considerado como tal.
Consolida-se assim o silenciamento da mulher subalterna, onde a escuta não
é qualificada e acontece em um espaço carente de responsabilidade ética e
tradução cultural solidária. No caso de Carolina Maria de Jesus, poetisa
citada por Sandra Almeida, a que tipo de escuta está submetida a sua
poesia? Essa é a pergunta que se faz a autora quando, através dos estudos
sobre a poetisa e sua biografia, percebe que sua escrita é muito mais
conhecida nos Estados Unidos que no Brasil. Além de sua obra ter
permanecido em grande parte inédita, dado que tanto incomodou a sociedade
pelo seu conteúdo e forma, que preferiu não saber da miséria e sofrimento
pelo qual aquelas pessoas passavam. Sua obra, Quarto de despejo, foi
escrita em forma de diário, e nele revelava a realidade que vivenciava na
favela e tinha certeza que se fosse publicado, atingiria muitas pessoas.
Quando foi publicado, porém, não lhe foi dado o direito de fazê-lo na
íntegra, mais uma vez evidenciado o silenciamento de uma voz que desejava
falar por sua classe. É justamente o sentido proposto por Spivak, quando o
editor "traduziu" a fala da poetisa, sua preocupação foi a ética e a
responsabilidade diante da sociedade. Todo esse contexto elaborado pela
autora traz questionamentos os quais servem de alerta para que os
intelectuais contemporâneos avaliem sua postura diante de discursos
realizados como forma de silenciamento do outro ao qual se pretende
"representar".
A leitura deste artigo nos faz reavaliar toda a questão do poder de
fala do sujeito subalterno, não somente a fala por si só, mas como se dá a
sua escuta. É algo positivo que emerge de sua escrita, pois nos faz pensar
em como estamos lendo, avaliando e criticando discursos de intelectuais
influentes do pós-colonialismo. Ou será que somente estamos aceitando
aquilo tal e qual nos é imposto? Esse novo modelo de leitura que Spivak, e
também Sandra Almeida ao escrever este artigo, nos instiga a desenvolver é
necessário para que comecemos a fornecer o espaço que o subalterno precisa
para falar e ser ouvido, não como algo torcido, mas a mensagem que
realmente deseja transmitir. Mudar a forma de pensar nunca foi algo fácil,
nem nas coisas mais cotidianas, no caso de pensar e ler diferente torna-se
ainda mais difícil, mas o intelectual contemporâneo precisa começar a fazê-
lo, pois é dessa forma que será possível desconstruir o discurso hegemônico
que foi construído ao longo dos séculos, esse árduo trabalho já teve início
com Spivak e outros intelectuais terceiro-mundistas, mas ainda é só o
começo, precisa-se de maior força, e é justamente o que Sandra Almeida nos
incita a fazer com seu discurso. É hora de preparar um espaço de escuta
para que o subalterno fale e seja ouvido, é hora de sair do lugar de
privilegiado e permitir que o outro fale, permitir-se aprender com o outro,
é a única maneira de começar a mudar o cenário ao qual estamos acostumados.
Quando a autora nos faz pensar a escrita de Carolina Maria de Jesus,
descobrimos que aquilo que sugere uma realidade ávida, pode ter revelado
muito mais em sua escrita original, e poderia ter colaborado muito mais
para diminuir tanta injustiça, que para comodidade da sociedade, o editor
achou melhor privar o leitor de alguns fatos. Muitas vezes o incômodo e o
desconforto são necessários para abrirmos os olhos para algo real, que
acontece bem próximo de nós e que, se tivermos acesso a isso talvez
possamos colaborar para alguma mudança de tal realidade. Carolina Maria de
Jesus é um exemplo claro de mulher subalternizada que tentou falar e que
até hoje é pouco ouvida, uma mulher que em sua época quis representar a sua
classe de uma forma a fazer com que as pessoas, principalmente os
políticos, enxergassem o sofrimento daquela gente através de sua poesia.
Nós, no papel de pesquisadores, propagadores do pensamento intelectual,
temos o dever de tentar mudar esse quadro, de fazer com que as pessoas
tenham acesso a escritores e obras marginalizadas, pois dessa maneira
estaremos contribuindo para que as vozes não sejam silenciadas para ser
conivente com uma pequena parcela da sociedade.


Referência Bibliográfica

ALMEIDA, Julia; MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia Maria; GOMES, Heloísa (Org.).
Crítica Pós-Colonial "Quando o sujeito subalterno fala: especulações sobre
a razão pós-colonial" por Sandra Regina Goulart Almeida. Panorama de
leituras contemporâneas. Rio de Janeiro: Faperj/7Letras, 2013.





Humanidade

Depôis de conhecer a humanidade
suas perversidades
suas ambições
Eu fui envelhecendo
E perdendo
as ilusões
o que predomina é a
maldade
porque a bondade:
Ninguem pratica
Humanidade ambiciosa
E gananciosa
Que quer ficar rica!
Quando eu morrer...
Não quero renascer
é horrivel, suportar a humanidade
Que tem aparência nobre
Que encobre
As pesimas qualidades

Notei que o ente humano
É perverso, é tirano
Egoista interesseiros
Mas trata com cortêzia
Mas tudo é ipocresia
São rudes, e trapaçêiros




Carolina Maria de Jesus, em "Meu estranho diário". São Paulo: Xamã,
1996. (grafia original)


Trechos do diário de 
Carolina Maria de Jesus

Estes são trechos do diário de Carolina Maria de Jesus, moradora da
favela do Canindé, em São Paulo, catadora de lixo e mãe de três filhos.
Transcrevemos suas palavras letra por letra, desconsiderando o fato de que
ela escreve fora da norma culta e no ano de 1955, antes da Reforma
Ortográfica. Todo o diário está publicado no livro Quarto de Despejo, que
nomeia a coluna.


20 de julho de 1955

Deixei o leito as 4 horas para escrever. Abri a porta e contemplei o
céu estrelado. Quando o astro-rei começou despontar eu fui buscar água.
Tive sorte! As mulheres não estavam na torneira. Enchi minha lata e zarpei.
(...) Fui no Arnaldo buscar o leite e o pão. Quando retornava encontrei o
senhor Ismael com uma faca de 30 centimetros mais ou menos. Disse-me que
estava a espera do Binidito e do Miguel para matá-los, que êles lhe
expancaram quando êle estava embriagado.
Lhe aconselhei a não brigar, que o crime não trás vantagens a ninguem,
apenas deturpa a vida. Senti o cheiro do alcool, disisti. Sei que os ébrios
não atende. O senhor Ismael quando não está alcoolizado demonstra sua
sapiencia. Já foi telegrafista. E do Circulo Exoterico. Tem conhecimentos
bíblicos, gosta de dar conselhos. Mas não tem valor. Deixou o alcool lhe
dominar, embora seus conselho seja util para os que gostam de levar vida
decente.
Preparei a refeição matinal. Cada filho prefere uma coisa. A Vera,
mingau de farinha de trigo torrada. O João José, café puro. O José Carlos,
leite branco. E eu, mingau de aveia.
Já que não posso dar aos meus filhos uma casa decente para residir, procuro
lhe dar uma refeição condigna.
Terminaram a refeição. Lavei os utensílios. Depois fui lavar roupas. Eu
não tenho homem em casa. É só eu e meus filhos. Mas eu não pretendo
relaxar. O meu sonho era andar bem limpinha, usar roupas de alto preço,
residir numa casa confortável, mas não é possivel. Eu não estou descontente
com a profissão que exerço. Já habituei-me andar suja. Já faz oito anos que
cato papel. O desgosto que tenho é residir em favela.
... Durante o dia, os jovens de 15 e 18 anos sentam na grama e falam de
roubo. E já tentaram assaltar o empório do senhor Raymundo Guello. E um
ficou carimbado com uma bala. O assalto teve inicio as 4 horas. Quando o
dia clareou as crianças catava dinheiro na rua e no capinzal. Teve criança
que catou vinte cruzeiros em moeda. E sorria exibindo o dinheiro. Mas o
juiz foi severo. Castigou impiedosamente.
Fui no rio lavar as roupas e encontrei D. Mariana. Uma mulher agradavel
e decente. Tem 9 filhos e um lar modelo. Ela e o espôso tratam-se com
iducação. Visam apenas viver em paz. E criar filhos. Ela tambem ia lavar
roupas. Ela disse-me que o Binidito da D. Geralda todos os dias ia prêso.
Que a Radio Patrulha cançou de vir buscá-lo. Arranjou serviço para êle na
cadêia. Achei graça. Dei risada!... Estendi as roupas rapidamente e fui
catar papel. Que suplicio catar papel atualmente! Tenho que levar a minha
filha Vera Eunice. Ela está com dois anos, e não gosta de ficar em casa. Eu
ponho o saco na cabeça e levo-a nos braços. Suporto o pêso do saco na
cabeça e suporto o pêso da Vera Eunice nos braços. Tem hora que revolto-me.
Depois domino-me. Ela não tem culpa de estar no mundo.
Refleti: preciso ser tolerante com os meus filhos. Êles não tem ninguem
no mundo a não ser eu. Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um
homem no lar.
Aqui, todas impricam comigo. Dizem que falo muito bem. Que sei atrair
os homens. (...) Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro
escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo.
 
 

 
 
Esse texto foi publicado no plástico bolha nº21: download PDF
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