O Poder de Mudar. Autonomia, Crise e Mudança - draft livro

June 4, 2017 | Autor: Gustavo Cardoso | Categoria: Sociology, Social Movements, Development Economics, Political Science
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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso

Draft O Poder de Mudar Autonomia, Crise e Mudança Gustavo Cardoso

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso

Dedicado a quarenta anos de liberdade (1974-2014) e às próximas quatro décadas de luta contra as desigualdades.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Agradecimentos

Parte I O Poder de mudar Uma análise sociológica do poder de mudar Perigosas cegueiras civilizacionais As nossas erradas certezas sobre os outros É preciso escolher para mudar (mas cuidado!) O “mal” e a geografia pouco explicam...mas são utilizados Juntos numa jangada em rede Falta-nos algo (mas importa não perder o que temos)

Parte II Soberba e rescaldo da economia financeira A Economia Somos Nós O Tempo, o espaço e o simbolismo financeiro O Zero absoluto da economia financeira Economia financeira zombie? Europa financeira ou dos cidadãos? Os Mercados não são desculpa Eurozona proibida a sul? Dívida, Capitalismo e Insubmissão Da crise financeira às crises políticas europeias

Parte III A Crise da governação e da legitimidade política O violento desaparecer da confiança Portugal, terra da desigualdade Das Ruas aos Votos: Os Novos Conflitos Sociais Indignados? Todos! Resgatar os resgates Só agora chegámos ao "pós-Troika"?

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Podem os Estados ter medo? Medo, Raiva, Esperança Sem confiança não há mudança (com consensos não há solução) Alemanha século XXI, nem medo nem esperança! Uma cura para a austeridade? Continuamos cercados ou não? Diferentes, iguais e desobedientes Para lá da crise?

Parte IV A saída é igual a mudança política, económica e social Os valores da saída Alternativas? Claro que as há, basta escolher! O país das desigualdades (e não o das reformas) estruturais Keynes 2.0: redes, energia, transportes, hackers, agricultores urbanos (e ciclistas) O défice da desigualdade Uma Estratégia para a Classe Média Uma vontade de prosperidade democrática São os 100% de nós que importam (e não só 1% de nós) Mudar

Um principio e não uma conclusão

Bibliografia

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Agradecimentos

Este livro começou a ser escrito em 2013 quando, a convite de Michel Wieviorka, colaborei na Fondation Maison des Sciences de L’Homme (FMSH) em Paris. No entanto, as reflexões que me trouxeram até à sua escrita remontam a 2007 e ao início de uma crise, conhecida hoje nos meios económicos e políticos como a “Grande Recessão”. Tudo começou com um artigo escrito junto com dois amigos, João Caraça e Sandro Mendonça. Esse artigo, mais tarde publicado na revista Futures, debruçava-se sobre a força dos sinais fracos e a sua capacidade de antecipação de fenómenos económicos, sociais e políticos. No fim de contas, tratava-se de um artigo sobre a necessidade de fazer valer a prospectiva, a capacidade de ler tendências futuras, para poder antecipar soluções e informar as escolhas da acção política. E este é um livro que procura dar corpo a essa forma de agir e pensar. Ou seja, prospectivar caminhos e convidar mais a juntarem-se áqueles que os querem percorrer e mudar para melhor. Este é, também, um livro produto de uma reflexão ancorada nos muitos artigos de opinião que nos últimos anos escrevi em jornais, revistas ou no facebook e nas discussões e comentários sobre eles – ficando aqui o agradecimento a todos os meus amigos e família pelas discussões e críticas, as quais me ajudaram a pensar melhor o que é mudar e o que é preciso para mudar. Este é, igualmente, um livro sobre a necessidade de compreender tanto a origem dos problemas como antecipar as suas soluções, logo é um livro sobre como compreender o mundo de hoje, analisando Portugal no contexto europeu e global, olhando para o passado para melhor poder projetar o nosso futuro. É um livro sobre a crise da política de gestão de crises, no contexto daquilo que é assumido pela União Europeia como uma das últimas linhas de defesa de um modelo de soluções baseado na austeridade e reformas estruturais como forma de tentar resolver a crise política europeia através da reforma económica (mas não da reforma financeira). É, portanto, um livro sobre o estudo de porque é que a crise política europeia, a qual nos acompanha intermitentemente há pelo menos década e meia,

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso antecipando a criação do Euro, e que continua a descredibilizar, numa progressão diária e exponencial, os políticos, os partidos e, por último, a própria forma de fazer política em democracia na Europa. É, também, um livro sobre o elo mais fraco da globalização, a União Europeia. A única

entidade

que,

perigosamente

convivendo

com

o

risco

real

de

desagregação política e monetária, pode transformar radicalmente o mundo onde até hoje vivemos. Esta é uma reflexão sobre o “poder de mudar”, ou seja, aquele poder que cada um de nós detém em si e que, individualmente mobilizado e colectivamente articulado, nos permite progredir social, económica e políticamente, mudando o que consideramos errado através da nossa acção e pensamento. No entanto, é e será sempre um livro incompleto porque a realidade se move mais rápido do que a escrita e, porque, se acreditarmos no poder de mudar teremos de acreditar que onde há pessoas há uma vontade permanente de mudar e transformar a realidade. E, por tudo isto, é um livro de análise sociológica que, não pondo de lado a vontade de contribuir para transformar a realidade, procura reunir o conhecimento necessário sobre a actual crise, portuguesa e europeia, para melhor pensar a acção em Portugal e na Europa e fazer face à “Grande Recessão”.

Gustavo Cardoso

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso

Parte I O Poder de Mudar

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso

Uma análise sociológica do poder de mudar

Há muitas formas de iniciar uma análise pelo que podia ter escolhido uma frase célebre ou um acontecimento marcante para o fazer. Ao contrário dessas formas épicas de iniciar as análises escolhi alguém que poucos entre nós conhecem para nos ajudar na análise da mudança e do poder que nos confere a vontade de mudar ou, se preferirmos, o poder da autonomia. Esse alguém dá pelo nome de Earle Edward Eubank e foi um sociólogo americano. A razão que nos leva a solicitar a ajuda de Eubank foi o seu trabalho realizado ainda no rescaldo da “Grande Depressão” dos anos trinta do século XX. Earle Edward Eubank embarcou para a Europa no dia 15 de Junho de 1934. O que o animava era realizar durante esse verão, em diferentes cidades europeias, um conjunto de entrevistas a sociólogos. Esse propósito levou-o, nesse verão que anunciava a chegada ao poder de novos regimes totalitários, até cidades europeias como Londres, Paris, Praga, Varsóvia, Viena ou Berlim. O trabalho de Eubank ficou quase sete décadas perdido em diversos arquivos até que um outro investigador, Dirk Käsler, reencontrou os originais e o trouxe de novo à luz. Essa obra perdida, foi publicada com o título “Sociological adventures: Earle Edward Eubank's visits with European sociologists”. A questão que estará na mente do leitor é, provavelmente, qual o interesse de uma obra realizada no verão de 1934, quase à beira de se tornar centenária? O argumento que utilizaria para responder seria que o seu interesse reside, precisamente, em nos mostrar como uma Europa também em crise, no contexto do rescaldo da “Grande Depressão”, também não conseguia entender os sinais da crise nem como lidar com ela. Ou seja, reler Eubank, neste outro século, confronta-nos com o velho problema de viver um momento histórico e não conseguir interpretar os sinais de mudança que ele comporta - excepto quando é já tarde de mais para os moldar e transformar em algo diferente. Eubank entrevistou, há mais de oitenta anos, cerca de três dezenas de sociólogos, dos quais alguns nomes estão hoje já esquecidos da memória social ou apagados, por diferentes razões (umas porventura boas outras más), da

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso história do pensamento sociológico que ensinamos nas nossas universidades. Mas, de maior interesse para nós é a passagem de Eubank pela Alemanha, onde a chegada ao poder do Nacional-socialismo em 30 de Janeiro de 1933 marcava o clima quer no país quer nos seus vizinhos próximos (ou mais distantes como Portugal). Nas entrevistas realizadas então por Eubank, o espectro de reacções à chegada ao poder dos Nazis, e as mudanças políticas sentidas também nos sistemas de ensino, podiam ser caracterizadas, tal como o faz Dirk Kasler na sua introdução à obra de Eubank, como de confusão (Tonnies), de pessimismo (Sombart), de comentários positivos sobre a pessoa de Hitler (Mannheim e Vierkandt) e de algumas condenações mas, também, da minimização dos excessos até então cometidos (Vierkandt, Freyer). De todos os Sociólogos entrevistados, só Oppenheimer parece estar fora do padrão experimentado e apresentar uma visão crítica e desafiante dos acontecimentos. O que é curioso é o facto de uma grande parte, dos entrevistados, os quais tinham como objecto científico o estudo das suas sociedades, aparecerem desfasados do que mais tarde viemos a compreender serem factores marcantes das sociedades europeias do século XX e de implicações globais. É possível que esses sociólogos tenham sido vítimas de um viés comum à análise social, política e económica, isto é, o mitigar da leitura da realidade por via do que se deseja que seja o resultado dessa análise. Tal erro ocorre, não por uma falha metodológica, mas porque o desejo de acreditar que as coisas não podem ser tão más, quanto à primeira vista aparentam, se sobrepõe à análise. Ou, por vezes, porque se acredita que o primado da razão implica

sempre

uma

normatividade

de

comportamentos

e,

que

essa

normatividade, nunca se afasta de dados valores socialmente partilhados. Ou, por último, porque a proximidade para com as pessoas e dinâmicas em estudo tolda a capacidade crítica e substitui a ciência pela crença. Ler Eubank hoje é saudável precisamente porque nos ajuda a tentar responder à pergunta: o que correu tão mal na década de trinta, na Europa, que tenha impedido aquelas pessoas de lucidamente compreender o que os sinais fracos e “Wild Cards” perceptíveis indicavam como um possível futuro?

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Será que outros, olhando para nós a partir da segunda metade do século XXI, pensariam

de

nós

o

mesmo

que

nós

pensamos

hoje

de

Eubank?

Conseguiríamos imaginar a chegada à Europa, num qualquer verão desta última década, de um Sociólogo vindo de um outro continente, não em crise (isto é qualquer outro que não a Europa), e o seu encontro com os pensadores deste início de século? O que lhe diriam? Seriam capazes de racionalizar os perigos produzidos pelo grande descrédito que hoje colocamos nas instituições da política e dos negócios? Seriam eles capazes de identificar o interregno vivido e antecipar o novo que irá substituir o que é já hoje velho e ineficaz? Por ser um optimista creio que sim. Acredito que seriam mais aqueles que conseguiriam mapear o que se passa e o que isso poderia implicar para o nosso futuro. Mas, para tal servir para algo, e não apenas ser alvo de um livro dentro de 80 anos, os nossos políticos, homens de negócios e diplomatas, deveriam estar hoje a fazer as mesmas perguntas de Eubank àqueles que os podem ajudar a compreender, isto é os cientistas sociais e das humanidades, os sociólogos, economistas (e não os econometristas), os juristas, os cientistas políticos, os historiadores, os psicólogos sociais, etc. E é sobre se isso irá acontecer que nos devemos interrogar. Pois, os líderes económicos e políticos da Europa parecem não querer ainda acreditar que esta é uma crise económica global, de impacto local, isto é, Europeia, cujas razões radicam numa prolongada e intermitente crise política. A escrita que deu origem a este livro radica na mesma vontade de questionar os porquês que trouxe Eubank à Europa: procurar dar respostas às perguntas necessárias de serem feitas. Como sugere Wieviorka (2008, p. 87), também é minha convicção que não devemos tentar posicionar o papel das ciências sociais em geral, e da sociologia em particular, apenas enquanto uma oposição entre intelectuais e profissionais – um pretenso paradoxo no qual aos intelectuais caberia o papel de pensadores militantes nos movimentos e aos investigadores caberia dar aulas, pesquisar, ensinar e publicar, sem se preocupar com a intervenção no espaço público. Recuso aqui essa visão eminentemente dual dos papéis dos investigadores sociais e que deve muito às abordagens marxistas desenvolvidas no século XX. Na tradição de pensamento ancorada na abordagem marxista, transporta-se

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso para a análise do papel dos investigadores os conceitos de luta de classes, colocando o cientista social como estando perante um campo dividido, no qual o investigador tem de escolher um dos lados da luta. Wieviorka (2008, p. 99) sugere que é tempo de abandonar a concepção política da militância intelectual sociológica, sob pena do investigador estar sempre em risco de perder a sua “alma”. No sentido em que, só muito dificilmente, não acabará por se ver perante forças que o condicionam a se ter de subordinar à vontade do poder ou à vontade do contrapoder. Respondendo às interrogações de Wieviorka, também penso que se deve adoptar uma visão analítica, e de posicionamento, na qual o papel do intelectual contemporâneo se deve centrar na tentativa de elevar o nível de conhecimento do público com o intuito de criar autonomia individual e social. Como define Cornelius Castoriadis (2010, p. 16), uma sociedade autónoma é uma sociedade que sabe que as suas instituições, as suas leis, são produto do seu trabalho e que, portanto, podem ser postas por si próprio em causa e mudadas. Por, sua vez, um indivíduo é autónomo quando é capaz de alterar de forma lúcida a sua própria vida – algo que é diferente de conceber alguém como dono e senhor da sua vida. Ser autónomo é ter presente o que nos prende, o que nos molda e, portanto, termos consciência do que é preciso fazer para mudar. Regressando à análise de um dos pais fundadores da sociologia, Max Weber, énos proposto por Wieviorka (2008) retomar a distinção entre “ética da responsabilidade” e “ética da convicção”. No princípio organizativo e estruturante deste livro procurou-se guiar a exposição e análise pela complementaridade entre responsabilidade e convicção. Propõe-se assim ao leitor, partir de um foco centrado nos princípios analíticos radicados numa “ética da convicção”, mas sem esquecer que a análise dos meios nunca está isenta de consequências sobre os fins visados. O trabalho aqui apresentado é uma análise que assenta nos princípios da análise sociológica, os quais nos dão a capacidade de não tomar partido prévio por nenhum dos diferentes sujeitos envolvidos nos processos sociais e comunicativos geradores de poder. O convite que faço, aos que decidirem continuar a leitura nas próximas páginas, é o de julgarem as conclusões apresentadas enquanto produto do trabalho de alguém, cuja interpretação do seu papel social o leva a não ter certezas, mas

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso apenas hipóteses. Hipóteses, cuja validação depende tanto dos métodos utilizados, quanto da capacidade do próprio “objecto de estudo”, isto é, todos nós, enquanto “sujeitos” das nossas hipóteses, sermos capazes de criticar e validar esta análise, fazendo ouvir os nossos raciocínios e o debate em torno dos mesmos. O papel do sociólogo deve ser assim entendido enquanto “interventor”, aquele que se propõe a desenvolver o seu trabalho numa abordagem em permanente construção, procurando articular em rede as lógicas de militância e de produção do saber, mas sem nunca as fundir (Wieviorka, 2008, p. 109). Seguindo estes princípios procurarei, nesta primeira parte, listar um conjunto de premissas que julgo serem-nos necessárias para analisar a mudança e a sua construção.

Perigosas cegueiras civilizacionais

O primeiro passo consiste em questionarmos que cegueiras podem toldar a nossa capacidade analítica e impedir a mudança. Pois, não é possível abordar o poder da mudança sem nos debruçarmos sobre a nossa capacidade de nos relacionarmos ou imaginarmos o “outro”, aquele ou aqueles que nos são diferentes, ou o “diferente” das nossas ideias. Numa época em que o “outro” e o “diferente” convivem connosco nas nossas casas através da televisão produzida nos EUA, no Golfo Pérsico, na Europa, na América do Sul, na China ou, ainda, através das pesquisas realizadas na Internet, parece ser quase incompreensível como as novas ideias propostas por pessoas diferentes têm tanta dificuldade em chegar até nós, mas essa dificuldade, essa barreira que nos impede de dar atenção ao diferente existe e tem de ser levada em conta por todos nós. Provavelmente, parte do porquê dessa dificuldade passará pela nossa humana fixação em preferir escolher pessoas, ou melhor os seus rostos, mas, raras vezes, assumir o caminho mais difícil de primeiro aceitar ideias e depois procurar quem lhes possa dar corpo, ou rosto, para as possa assumir. No entanto, para mudar, é preciso assumir que temos de dar primazia às ideias e só depois as podemos personalizar. Como lembra Martine Aubry, no livro “Pour changer de

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso civilisation” (XXXX) o mundo de hoje necessita, não de novas lideranças, mas de novas ideias sobre como criar novos equilíbrios, novos desenvolvimentos económicos e sociais e como manter a vida num planeta em esgotamento de recursos. As lideranças são precisas, mas só funcionarão se atraírem quem possa trazer e debater ideias que dêem corpo a políticas e a políticos. Entre os autores que contribuem para a obra “Pour changer de civilisation” (XXXX) surge o sociólogo alemão Ulrich Beck (XXXX), o qual disserta sobre a necessidade de uma politica interna global que rompa com as cinco cegueiras associadas à política nacional nesta era global. A primeira das cinco cegueiras políticas, segundo Beck, é a “cegueira global” (XXXX). Beck sintetiza a sua formulação na expressão “não se pode fazer política contra os mercados”, uma afirmação que esconde o facto de serem as próprias acções dos homens políticos que criam essa pretensa impotência política. A segunda é a cegueira “nacional”, a qual repousa no excesso de confiança na acção ao nível nacional. Uma cegeuria nacional assente na ideia de que será possível regressar a uma gestão interna com sucesso para os países, através de políticas dirigidas exclusivamente ao espaço nacional – uma segunda cegueira e um segundo erro de gestão política. A terceira cegueira é aquela que podemos chamar de “neoliberal”, ou seja, acreditar que com o fim da guerra fria a globalização neoliberal seria a solução para tudo – algo de profundamente arrogante e errado e que os riscos globais de mudança climática, crises financeiras, terrorismo e catástrofes ecológicas, como as surgidas, por exemplo, no golfo do México, demonstram ser um erro de proporções bíblicas. A quarta cegueira reside no “neomarxismo”, ou seja, na defesa de algo que nos impede de ver o “novo”. Novo como, por exemplo, a transferência de poder do norte para o sul do planeta, do atlântico para o pacífico, do dólar para o euro e da perda de autoridade moral e de exemplo do velho centro euro-americano. E, por último, uma quinta cegueira, que para Beck reside a da ilusão tecnocrática, de trocar resultados pelos processos e de menorizar a importância da democracia e da liberdade. Discutir a possibilidade de construir a mudança

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso implica, antes de mais tomar consciência do que nos impede de ver para lá do que parece evidente. Estas são algumas das cegueiras que nos impedem de ver a mudança civilizacional que necessitamos de empreender. Pois, embora muitos de nós não vivam para ver o final deste século, os inícios de século são sempre os momentos que moldam o tempo em que iremos viver. Se queremos genuinamente mudar, porque não nos agrada o rumo que intuímos e observamos, há que romper as cegueiras que nos impedem de pensar a civilização em que queremos viver. Porque é de civilização que se trata, o nosso acervo civilizacional baseia-se na escolha pela liberdade, igualdade e fraternidade.

As nossas erradas certezas sobre os outros

Uma outra barreira à mudança centra-se nas certezas que trazemos connosco. Embora pudessemos achar que esta afirmação seria auto-evidente no seu conteúdo, talvez valha a pena introduzir um exemplo vivido, mas não decidido, por dez milhões de portugueses num passado não muito longínquo. Regressemos ao ano de 2011, deveriam todos os portugueses antes de se ter decidido pela intervenção externa da Troika em Portugal ter perguntado: o olhar dos “outros” sobre “nós” será melhor do que o nosso para a resolução dos nossos problemas? Ou reformulando, poderão técnicos e burocratas governar melhor do que nós (entendendo o “nós” o delegar da nossa soberania individual em representantes políticos por quatro anos)? Quando se pensa em mudança esta pergunta faz todo o sentido. Tem sentido perguntá-lo porque a mudança real e duradoura, só ocorre quando somos nós a fazê-la e não quando os outros nos impõem a sua vontade. O argumento pode talvez ser melhor demonstrado se, por um momento, abandonarmos a geografia da Europa e nos movermos até à Ásia através do livro de Henry Kissinger “On China” (XXXX). Esse é um livro sobre os “outros”. Ou melhor, é um livro sobre como “nós”, neste caso um americano de origem alemã que chegou à administração da Casa Branca, olhamos para os “outros”

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso sendo eles, neste caso, a China e a sua governação. O livro é uma interessante compilação de quatro décadas de encontros entre Kissinger e a estrutura dirigente da China, mas é também o olhar de alguém exterior a tentar compreender as razões daqueles que partilham um outro país e outra cultura. No entanto, é também verdade que sempre que os “outros” olham para “nós” fazemno com um olhar diferente daquele que teríamos sozinhos. Regressemos até à Europa, o FMI, o BCE e a UE, ou se preferirmos, a Troika, estiveram (e estão ainda de diferentes formas) formalmente em intervenção na Grécia, Irlanda e Portugal e, informalmente, em Espanha e em Itália. O olhar dos “outros” sobre “nós” será melhor do que o nosso para a resolução dos nossos problemas? Neste momento, surge normalmente a ideia de que se “nós” não somos capazes de prevenir os problemas, então porque não necessitaríamos da ajuda de “outros” para ver melhor? Mas é duvidoso que tal seja uma verdade cientificamente comprovada em todas as dimensões da vida. Até porque neste caso esse raciocínio levaria a questionarmo-nos sobre para que servem os nossos governos - e logo para que servimos nós os cidadãos. Durante o período quente da crise do Euro, quatro governos caíram na Europa, quase sempre com o intuito de acalmar os mercados e não de fazer aquilo para que os governos servem. Isto é, os governos não servem para acalmar os mercados, mas sim para administrar a vida dos cidadãos de uma dada geografia, dando contexto para a criação de riqueza, de saúde, educação, protegendo-os das ameaças e criando as condições para a maior igualdade em liberdade. Naturalmente, neste contexto, é importante questionarmo-nos porque haveriam os outros que nos visitam saber mais do que nós. E se sabem mais, para que precisamos dos “nossos” governos e dos “nossos” ministros? Não bastará uma burocracia organizada, que pode nem ser “nossa”? Não bastará um bom livro ou relatório escrito por outrem para sabermos o que fazer? Não, porque a vida não é um livro de instruções. Por isso, é que a nossa vida necessita das “nossas” certezas e das dos “outros”, a isso chama-se democracia. Por exemplo, William Beckford, no século XVIII, viu o Portugal do seu tempo com o seu olhar, viu coisas que os portugueses de então não seriam tão propensos a captar – mas há uma diferença entre um olhar totalitário que se impõe como

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso superior aos outros e um olhar diferente que, em partilha e respeito, nos ajuda a nos conhecermos melhor. O olhar que a Troika trouxe até nós é um olhar do “outro” de características totalitárias e que, junto de olhares nacionais redutores, e igualmente totalitários, decidiu que a razão estava do seu lado, contra tudo e todos. Sabemos que todos os olhares são diferentes, a questão é portanto saber se o olhar dos outros é melhor que o nosso. A resposta é depende dos características abertas ou fechadas desse olhar. E se acreditamos que a autonomia é fundamental, a resposta tem de ser “Não”! Para haver mudança económica, social e política necessitamos de democracia, de mais democracia não de mais técnicos-burocratas cujo cartão de visita é saberem de antemão as soluções – o que é normalmente mentira.

É preciso escolher para mudar (mas, cuidado!)

A vontade de mudar manifesta-se sempre que se percebe que as “coisas” não funcionam. As “coisas” são as instituições das nossas sociedades, mas a vontade de mudar normalmente não coincide temporalmente com a mudança. Tal sucede porque, nos regimes democráticos, há que aguardar por eleições agendadas ou que alguém as convoque antecipadamente. E nos regimes totalitários, embora haja a certeza que a toda a repressão se responde com rebelião, a construção de revoluções depende de muitos mais factores do que a difusa partilha da certeza que algo deve mudar. A segunda década do século XXI tem sido profícua em passagens de regimes ditatoriais para democracias, em exigências de maior democracia onde ela formalmente é o sistema de governo e também por movimentos de sesseção organizados democraticamente, ou não, como o da Crimeia, Escócia ou Catalunha. Nos últimos anos na União Europeia temos assistido a eleições em que a única certeza parece ser que quem está no poder perde as eleições. Mudanças às quais, provavelmente, continuaremos a assistir – pelo menos enquanto os cidadãos não virem concretizada a melhoria dada pela mudança a que aspiram.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso No entanto, a questão fundamental que move a escolha é hoje a procura de mudança, o que existia deixou de funcionar mas o que o substituirá ainda se está a formar. O momento de interregno é isso mesmo, o que é velho ainda não morreu e o novo ainda não nasceu. No entanto, precisamente porque não é ainda claro que mudança é essa a que aspiramos (sabemos apenas que o que temos não nos agrada), e porque é preciso escolher para mudar, nem todas as escolhas podem ser as mais positivas – e essa noção é fundamental para a continuidade da democracia e do seu aprofundamento na Europa. Como temos observado, os últimos anos têm sido pródigos na prática de escolhas: se está a esquerda no poder vota-se na direita, se já esteve a esquerda e a direita no poder juntas vota-se nos extremos da esquerda ou da direita, se já experimentámos tudo vota-se nos que sugerem não ser políticos mas que vão a votos. Todos estas possibilidades são os exemplos de escolhas não positivas, pois são escolhas que não trazem mudança, visto que os seus próprios protagonistas se posicionam como “melhores” e não como “diferentes”. Para se ser politicamente diferente é necessário pensar e propor diferente e não apenas mostrar ser capaz de ser mais apto – e este é precisamente o problema das nossas escolhas. Se não houver diferente continuamos no interregno que dá lugar aos “melhores” e não ao novo que é “diferente” e nos traz mudança. No entanto, mesmo perante a oferta limitada de opções que reside apenas nos que prometem “fazer melhor”, a escolha não está livre de nos afastar ainda mais da mudança e da diferença. Isto, porque a escolha em democracia, ou o acto de votar, não é desplicente nos seus possíveis resultados. Por exemplo, James Gilligan em Why Some Politicians Are More Dangerous Than Others (XXXX) sugere que os momentos em que aceitamos delegar temporariamente a nossa soberania individual nos políticos podem representar perigo – obviamente com a condição de que a mesma nos seja devolvida dentro de 4 ou 5 anos para que possamos emitir o nosso veredicto sobre a sua capacidade governativa. Trata-se de uma análise radicada nos Estados Unidos, mas, apesar de todas as diferenças entre sistemas políticos, enquadramento legislativo, sistemas de media e os próprios atores

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso políticos, os temas abordados não deixam de nos colocar questões sobre a nossa política nacional. O argumento de Gilligan (XXXX) é chocante mas simples: a escolha de políticos e do processo político, mesmo em países democráticos, pode ter consequências mortais. James Gilligan (XXXX) demonstra que quando o partido conservador dos EUA, os republicanos, ganha a presidência, o país tem repetidamente vivido epidemias de morte violenta: as taxas de suicídios e homicídios disparam. As razões são para Gilligan evidentes: as taxas de todas as formas de sofrimento social e económico, a desigualdade e a perda – o desemprego, a recessão, a pobreza, a falência e a falta de habitação também subiram para proporções epidémicas. Quando isso acontece, o número de pessoas mais vulneráveis aumenta, com trágicas consequências para todos. Essas epidemias de violência mortal permanecem, em níveis epidémicos, até que o partido promotor da equidade social, os democratas, recupera a Casa Branca e reduz drasticamente a quantidade de violência, através da diminuição do sofrimento económico que havia sido a sua causa. Gilligan documenta esta análise com base em recolhas estatísticas desde 1900 nos EUA – mas no Reino Unido e na Austrália um padrão semelhante foi também descrito em torno do suicídio. Os perigos associados à escolha política vão para além da dimensão epidemiológica de Giligan (XXXX) e centram-se também na profusão de falsos paradoxos. Um falso paradoxo é algo que identificamos como um paradoxo, ou seja, é o oposto do que alguém pensa ser a verdade e, de facto, não é mesmo verdade. O falso paradoxo não é defendido por ninguém em particular, apenas se deixa intuir que assim é. E, normalmente, só aparenta ser um paradoxo por crença ideológica de quem o apresenta como tal – não queremos pensar neles, mas rodeiam-nos. Os paradoxos parecem ser, ao mesmo tempo, algo que pretendemos evitar (pelo que colocam em causa), mas a que ao mesmo tempo não podemos fugir (porque nos atraem). No entanto, actualmente predominam entre nós os falsos paradoxos da economia global perceptívieis nos discursos dos governos de direita e nos comissários europeus oriundos desse espectro político. A crise é global, mas por agora é essencialmente europeia. Como é possível então que seja global?

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso A economia global deveria recuperar assente nos países emergentes, mas só funcionava bem quando era global. Como pode funcionar bem de novo só com metade dos participantes – agora que a Europa e os EUA não consomem? Os altos níveis de desemprego parecem ser produto da crise, mas será que são conjunturais, já que só são baixos quando se consome em alta escala? Haverá espaço para duas moedas globais, o dólar e o euro, mas os euros estão a ser devolvidos à Europa, portanto tornando o Euro uma moeda europeia? Se com a actual política europeia só pode haver um país a crescer e vinte e seis em relativa estagnação, será essa política europeia? Será que só se pode gastar o que se tem? Mas na economia global a regra é sempre gastar mais do que se tem, pois gere-se em função do permanente crescimento

económico.

Será

então

a

austeridade

uma

política

anti-

globalização? É possível gerar crescimento quando sistematicamente se prevê (e se aposta a dinheiro em mercados de futuros) que não se vai crescer? E, já que estamos a privatizar o futuro, por via de mercados de futuros e opções, quererá isso dizer que só nacionalizando o presente se pode ter futuros? Se as pessoas não têm emprego nem crédito como se pode regressar ao modelo de crescimento de 2008 assente em 2/3 de consumo na Europa e em ¾ de consumo nos EUA, quer isto dizer que o capitalismo assente no consumo terminou? Se, por agora, temos mais tempo do que dinheiro, será que já estamos experimentar novos modelos económicos assentes na produção individual e cooperativa pós-capitalista? E, por último, se os mercados existem (pois há compra e venda de produtos, moedas e acções) mas se nunca pensamos que são pessoas que decidem o que vender e comprar, será que não estamos a dar uma dimensão divina a algo que é meramente produto das emoções e desejos humanos – medo, ganância, instinto sobrevivência, poder, segurança, etc.? O que importa, ao pensar a actual crise e a possível mudança social, económica e política, é que mudar não é igual a trocar de protagonistas políticos e que ao escolher podemos sempre escolher mal, pelo que as consequências podem ser

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso nefastas – em particular quando na troca proposta em voto tudo aparenta querer dizer destruição da equidade social e o aumento das desigualdades.

O “mal” e a geografia pouco explicam...mas são utilizados

Pensar a mudança implica igualmente colocar de lado as simplificações extremas e as teorias conspiratórias. Aquilo a que assistimos enquanto políticas indutoras de desigualdades e concentração da riqueza em poucos não são produto do “mal” encarnado em alguns governantes nem de uma conspiração de um qualquer banco global. As políticas experimentadas em todos os países intervencionados e utilizadas, primeiro em nome da austeridade e depois da necessidade de reestruturar algo, são fundadas em ideologias que não privilegiam nem a liberdade nem a igualdade, não são erros nem conspirações. Como Wieviorka ilustra em “Evil“ (XXXX) o estudo daquilo a que vulgarmente designamos como “Mal” não está para lá das competências da sociologia e, portanto, não se limita às abordagens filosóficas ou religiosas. Como refere Wieviorka, se o nosso objectivo é continuar a viver em sociedades abertas e democráticas, num mundo onde cada um de nós pode construir a sua própria experiência e orientar a sua vida pelo respeito e solidariedade para com os outros, torna-se fundamental compreender os processos que nos podem levar até caminhos totalmente opostos, onde a negação da subjectividade individual, da moral e da integridade física predominam. O bem e o mal são temas subjacentes a todas as preocupações humanas desde tempos imemoriais – ou pelo menos desde que aprendemos a registar pela escrita as nossas dúvidas e perplexidades. No entanto, durante muito tempo considerámos o bem e o mal categorias de origem quase divina ou oriundas de espaços cinzentos e incipientemente trabalhados da mente humana. Ou seja, foram sempre mais “natureza”, isto é dados ou prescientes, do que “cultura”, o que é outra forma de dizer socialmente construídos. Wieviorka não nos apresenta o mal como uma força sobrenatural, nem como uma explicação para a má fortuna humana, pelo contrário desenvolve uma

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso análise sociológica do fenómeno em busca de explicar as suas fontes sociais, politicas e culturais e fazer luz sobre os processos através dos quais as formas contemporâneas do mal – terrorismo global, racismo, ódio generalizado pelo “outro” – são constituídas. Como sugere Castells em “Networks of Outrage and Hope: Social Movements in the Internet Age” (XXXX), os tempos em que vivemos estão a alastrar as sementes de crise social, política, económica e financeira e consequentemente do protesto por quase todo o planeta. No entanto, há caminhos a percorrer diferenciados, tanto podemos escolher os caminhos analisados por Wieviorka em torno do mal, como podemos procurar a mudança em torno da esperança, a qual está normalmente conotada com o bem. Tudo depende, como sugere Alain Touraine, se pretendemos descobrir o sujeito em nós e nos outros ou se pretendemos matar o sujeito nos outros e em nós próprios. Compreender a formação do “mal” contemporaneamente, como faz Wieviorka (XXXX) é um importante contributo para a nossa forma de nos posicionarmos num mundo onde as grande narrativas que davam segurança à nossa vida em sociedade – a confiança nos bancos e banqueiros e a crença na eficácia dos mercados para a criação de riqueza – são cada vez mais socialmente observadas como ineficazes em cumprir esses papeis e individualmente rejeitadas pela sua incapacidade de continuar a gerar futuros de mobilidade social entre gerações – i.e. que os nossos filhos viverão melhor do que nós, independentemente da definição de “melhor “ a que individualmente almejávamos. Esperança ou medo são as duas grandes forças em acção no cenário político actual. Uma análise das práticas e do discurso dos diferentes actores políticos europeus e portugueses mostra claramente que a direita elegeu o medo – cujo extremar pode efectivamente degenerar no “mal” tal como analisado por Wieviorka, a negação do sujeito – enquanto que a esquerda decidiu mover-se pela esperança buscando as razões fortes onde ancorar a mudança. Onde está Portugal? No norte da África? No sul da Europa? Esta é uma pergunta carregada de duplos sentidos. Duplos sentidos, pois hoje a geografia é o centro dos estereótipos políticos e dos extremismos que também procuram ser alternativa de mudança – embora uma mudança ainda mais negativa do que o

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso panorama em que vivemos. Sabemos que o Sul é um ponto cardeal, o espaço geográfico oposto para quem habita o Norte Europeu ou Americano e, também, um espaço mítico de desejos e medos. E para quem habita no Sul, este é um espaço de lugares, pessoas e experiências – aliás basta trocar nesta frase “Sul” por “Norte” e, também, o hemisfério onde habitamos para percebermos como esses dois pontos cardeais nos dizem mais do que a mera relação com o campo magnético do planeta. Em todas as épocas a divisão “Norte-Sul” entre continentes, dentro de países ou dentro de áreas políticas e económicas está sempre na ordem do dia. Até 2008 o “Norte” era o local desenvolvido e o “Sul” o local em desenvolvimento social e económico. Depois da crise de 2008 e da “Grande Recessão” tudo mudou nessa acepção de palavras e, entre continentes, hoje o “Norte” (pelo menos o Europeu) é o local da estagnação económica e o “Sul” o do crescimento económico. Mas, porque as experiências nunca são iguais para todos os lados, no continente Europeu para muitos que habitam na Eurozona do “Norte” esse é o local onde se se trabalha e onde vive quem é sério e a Eurozona do “Sul” o local onde se é preguiçoso e onde nada é sério. Mas, se se vive na Eurozona do “Sul” é a Eurozona do “Norte” que é arrogante, xenofóba e disfarça as suas fraquezas apontando o dedo à Eurozona do "Sul” e o “Sul” é que é civilizado, tolerante e aberto ao mundo. É óbvio que este é o problema dos estereótipos: simplesmente não colam na realidade quando viajamos e conhecemos as realidades e as pessoas, mas as instituições económicas, políticas e sociais vivem hoje de fazer uso deles. Pensar a mudança implica igualmente recusar os estereótipos pois eles são prejudiciais não só a convivência em sociedade como à mudança. Os estereótipos enganam quem deles faz uso, criando a ilusão de que se está a resolver algo quando, pelo contrário apenas estamos a nos afastar mais da possibilidade de mudança e a entrencheirarmos-nos nas nossas próprias imobilidades.

Juntos numa jangada em rede

Ao contrário da jangada de pedra de Saramago (XXXX), que era geologicamente ancorada, a mudança social, económica e política que necessitamos está

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso assente nas nossas redes. Nas redes de relacionamentos que possuímos e no seu potencial aumentado pelo uso das redes sociais e da comunicação em rede contemporânea. Como alguns milhões de portugueses sabem, as redes sociais podem ser utilizadas para a gestão das nossas redes pessoais, numa lógica de gestão de capital pessoal (Cardenas, 2010) ou então serem utilizadas para a gestão da autonomia, tal como identificado por Castells (Castells et al., 2003). Autonomia em dimensões tão diversas das nossas vidas como são os: projectos de desenvolvimento profissional; projectos de autonomia comunicativa; projectos de empreendedorismo; projectos de autonomia corporal; projectos de participação sócio-política; ou projectos de autonomia individual. Autonomia, no contexto que lhe é dado aqui nesta análise, deve ser entendida enquanto projectos individuais ou colectivos construídos em torno de uma definição cultural individual ou partilhada. Isto é, projectos construídos a partir de uma dada imagem ou representação da sociedade por nós construída (Touraine, 2004). Autonomia construída, não apenas em torno de uma autonomia trabalhadora ou profissional, correspondendo a um espaço ou tempo autónomos, mas sim a partir do reconhecimento da prioridade à criação de uma autonomia moral. Uma autonomia de escolhas, construída em torno do indivíduo enquanto actor, ou sujeito (Touraine, 2004). As esferas de autonomia aqui discutidas remetem para objectivos, por vezes associados a lógicas conflituais, que se desenrolam essencialmente em níveis simbólicos. Ou seja, opções entre diferentes formas de mudar o que são as nossas vidas. Como sugere Stalder (2010) a autonomia é cada vez mais criada a partir de redes semi-públicas que se estruturam a partir das diferentes dimensões da comunicação em rede e por encontros face a face mais ou menos frequentes. Ou seja, redes, mas não apenas aquelas em que em diferentes locais nos são propiciadas,

pois

a

mediação

constitui-se

hoje

como

central

para

o

desenvolvimento de redes e, consequentemente, da autonomia. A criação de autonomia, ou se preferirmos a capacidade das pessoas viverem a sua vida de acordo com os seus próprios planos, é algo que ocorre em diferentes escalas e com a diversidade inerente à nossa condição humana de criatividade e

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso diferença. Os projectos de autonomia vão desde campanhas globais em busca de justiça, ao reactualizar de identidades locais e de campanhas de pressão política pouco coordenadas até à formação de grupos para ajudar as pessoas a lidar com traumas pessoais, sendo na sua lógica tanto de esquerda quanto de direita, tanto destrutivas como inspiradoras do nascimento de algo (Stalder 2010). Estes projectos de autonomia, sendo voluntários, são facilitados por protocolos de comunicação que se alicerçam na confiança estabelecida entre os participantes. Por sua vez, a confiança é fornecida pela informação pessoal disponível nas redes de pertença horizontais (Stalder, 2010), conferindo assim aos projectos de autonomia uma ligação fundamental às redes sociais mediadas, que permitam a criação dessa base de confiança, sem a qual os projectos de autonomia partilhada colectivamente não podem ser efectivamente activados. O poder das redes sociais enquanto instrumentos de mudança surge quando as deixamos de usar apenas como media e as apropriamos como elementos de comunicação em rede, ligando-as às redes que já possuímos e potenciando-as em estruturas de comunicação em rede. As redes sociais pré-figuram a criação de espaços de partilha que podem dar origem a espaços de acção e intervenção destinados à mudança social. Mas essa concretização depende do papel que lhes atribuirmos dentro de uma estratégia mais larga conduzente à acção. Se nas redes sociais mediadas geramos tanto capital social criador pontes como de laços gregários, como se gere o poder dentro das redes aí criadas? Castells (2009) define rede como um conjunto de nós interligados que são simultaneamente estruturas de comunicação e sujeitos, construídos em torno de objectivos comuns que asseguram a unidade de fim e flexibilidade de execução. Igualmente, Castells argumenta que na sociedade em rede os discursos são gerados, aplicados e difundidos através de redes de comunicação, influenciando o comportamento individual e colectivo através do moldar do pensamento público. Dentro dessa matriz organizativa as redes têm objectivos e regras de performance que são programadas e (reprogramadas sempre que necessário)

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso em função dos interesses e valores dos “programadores”- i.e. os sujeitos individuais ou colectivos que constituem a rede. As programações das redes são geradas pelos programadores através das suas ideias, visões, projectos e enquadramentos. Mas, Castells aponta ainda um segundo mecanismo através do qual a rede é moldada na sua estrutura, o switching. Esse processo é operado pelos switchers, actores na rede que conectam e desconectam várias redes com o intuito de criar alianças estratégicas através de cooperação (Castells 2009). Estes dois tipos de detentores de criação de poder nas redes podem não ser indivíduos, sendo por definição posições nas redes assumidas pelos actores sociais ou por uma rede destes. Embora essas redes não se estruturem em lógicas hierárquicas há nelas processos de criação de poder em rede onde actores – os programadores e switchers (Castells, 2009) - assumem papéis de estruturação e moldagem das redes, suas estratégias e objectivos. Quando esses actores regem a sua actuação de criação de poder em rede seguindo um modelo de comunicação em rede1 (Cardoso, 2010) então ocorre a possibilidade de mudança social no quadro da sociedade em rede. No processo de criação de mudança as redes sociais mediadas, possibilitadas pelas ferramentas de mediação social contemporâneas, desempenham um processo fundamental de criação de pontes sustentáveis entre actores sociais com interesses partilhados e dando visibilidade entre si aos mesmos. As redes sociais mediadas são um dos instrumentos passíveis de apropriação para a mudança social, ou para a metáfora de “revolução” tal como descrita por Gladwell (2010) e Zhang (Zhang et al., 2010), mas não são por si mesmas indutoras de mudança social. As redes sociais mediadas encerram em si a possibilidade de mudança social se forem apropriadas para a gestão de capital social ponte, procurando incluir grupos heterogéneos, e desde que a lógica organizativa de rede tenha presente o contexto de apropriação de instrumentos de comunicação, numa lógica de 1

i.e. combinando a articulação entre comunicação interpessoal multimédia, comunicação mediada de umpara-muitos, auto-comunicação de massa (Castells, 2009) e comunicação de massa – criando, através do poder das ideias partilhadas, pontos de conectividade entre comunicação mediada e o face a face.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso modelo de comunicação em rede. Para que tal aconteça, é fundamental que os programadores e os switchers criadores de poder em rede – i.e. os actores que conferem lógica organizativa e eficácia à rede – tracem estratégias que têm em conta a acção através de discursos e ideias tendentes à mudança e o realizem numa lógica de comunicação em rede (Cardoso, 2010). Há novas redes sociais no nosso quotidiano e elas estão listadas de A a Z na Wikipedia, mas elas só serão novas redes sociais dirigidas à mudança social se as apropriarmos para esse fim, isto é, se lhes dermos uma lógica organizativa de rede, as usarmos num modelo de comunicação em rede e as colocarmos ao serviço das lutas simbólicas de ideias sobre a sociedade que pretendemos construir. Sem jangadas em rede é hoje muito difícil antever a possibilidade de mudança nas nossas sociedades.

Falta-nos algo (mas importa não perder o que temos)

Porque a mudança parte de acreditar no que pensamos e nas ideias que passamos a escrita, a perguntas seguintes constituem um importante diagnóstico. Podem os livros expostos nas prateleiras das livrarias dizer-nos algo sobre o ar do tempo e a alma que flui num determinado país? Pode um autor, ou os autores, de um livro dizer-nos pela sua escrita por onde passa o futuro, as opções de escolha de uma dada nação ou Estado-rede, como a União Europeia? Pessoalmente, gosto de pensar que sim. Ou pelo menos é essa a sensação que tenho quando olho para as prateleiras e para os livros escolhidos para serem vistos em destaque nas prateleiras de uma determinada livraria. Numa livraria de encontrei há alguns anos atrás a seguinte escolha de livros: Poor Economics, de Esther Duflo e Abhijit Vinayak Banerjee; Poorly Made in China, de Paul Midler; The End of the Euro: The Uneasy Future of the European Union, de Johan Van Overtveldt; Currency Wars: The Making of the Next Global Crisis, de James Rickards; e por fim The Fat Years por Chan Koonchung e That Used to Be Us: How America Fell Behind in the World It Invented and How We Can Come Back, de Thomas L. Friedman e Michael Mandelbaum – ao lado é claro das biografias

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso não autorizada de Julian Assange, criador da WikiLeaks, e autorizada, de Steve Jobs, fundador da Apple. Os livros de Koonchung e Friedman, respetivamente sobre a China e sobre os EUA, mostram-nos a partir de dois estilos literários – a ficção e o ensaio – como autores

podem

catalizar

anseios,

dúvidas

e

esperanças

e

tornar-se

representativos e, eventualmente, voz do contexto vivido por uma grande parte dos que habitam o mesmo espaço e o mesmo tempo. A China de Koonchong é a China do poder económico global, a qual inclusive comprou o Starbucks, mas é também o país onde algo de terrível aconteceu e um mês inteiro foi apagado do calendário e das memórias do povo. A América de Friedman é uma nação hoje frustrada, mas que conseguirá em breve voltar a ganhar a capacidade de fazer coisas grandes e em grande, através da acção colectiva das pessoas e do Estado – relançando a indústria americana através de maior regulação, novas lógicas fiscais e cortando nas emissões de carbono. Ou seja, a China tem o poder económico promovido pelo Estado e busca individualmente tornar-se mais completa questionando o poder desse mesmo Estado. Já a América perdeu o poder do Estado de transformar a economia e anseia pelo seu regresso como a única forma de catalisar as energias individuais da população, para um regresso ao poder económico. E sobre a Europa ou sobre Portugal? Escrever sobre a Europa e ser capaz de reflectir sobre ela e catalizar anseios, dúvidas e esperanças europeias parece ser uma não-possibilidade, para o não definir como impossibilidade. A identidade europeia não existe por si própria, mas sim como súmula de vários contributos. Daí que se escreva sobre a França, sobre a Alemanha, sobre a Itália, a Espanha, a Suécia, etc. e nesses livros se encontrem caminhos, dúvidas e esperanças sobre esses países e que seja depois necessário um ou, vários, outros livros que unam essas diferenças e semelhanças numa narrativa de anseios, dúvidas e esperanças europeias – o qual por enquanto nos falta. E sobre Portugal? Faz-nos falta um livro que, para além de nos mostrar de onde vimos e o que cada um acha que pode fazer falta, seja capaz de catalisar o que queremos ser e o que é preciso fazer para o sermos. Mas tal como para a Europa, precisamos não apenas de um livro, mas de múltiplos livros sobre como

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso pensar com ambição, porque para ser algo é preciso primeiro pensar no que se quer ser. Nos últimos quarenta anos Portugal transformou-se radicalmente, derrotámos ou contivemos, em múltiplas frentes, a ignorância, a doença, a intolerância, mas não conseguimos derrotar as desigualdades e, por consequência, criar uma dinâmica de criação de riqueza permanente e a sua redistribuição justa. Só a procura de tornar a nossa sociedade mais justa, mais livre e com maior igualdade, pode motivar as forças transformadoras adormecidas em Portugal para a mudança. Não derrotámos as desigualdades na nossa sociedade porque também não combatemos o suficientemente as ideias que fazem da manutenção das desigualdades a motivação ideológica nº1 para que 1% da população continue a deter uma proporção tão elevada da riqueza e perpetue a inexistência de um mercado livre de múltiplos condicionamentos. Importa procurar a mudança, mas fazendo-o sem esquecer que sem a igualdade e a liberdade já conquistadas não há mudança futura real. As próximas páginas são um possível contributo para a descoberta desse querer continuar dono da liberdade e igualdade que se já conquistou a par da mudança para melhor que sempre buscamos.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso

Parte II

Soberba e rescaldo da economia financeira

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso

A Economia Somos Nós

Há factos, há mentiras e há o grau de razoabilidade da mentira. Em todos os acontecimentos que presenciamos ou que nos são relatados há factos e interpretações – logo há espaço para errar, mas também para mentir. A mentira é a crítica que vezes sem conta uma larga faixa da população faz aos políticos eleitos, mas também às elites com maior poder, sejam aquelas constituídas por gestores ou proprietários, como por exemplo as elites do sector financeiro e as que em Portugal se encontram em contextos de monopólio ou quase

monopólio



da

transformação

da

cortiça,

aos

combustíveis,

telecomunicações, distribuição, etc. Isto é, seja por via das promessas eleitorais proferidas por candidatos, pela via da construção de orçamentos e das políticas que os acompanham, pelas campanhas publicitárias aos seus produtos ou pelas análises da “situação do país” ou sobre “o que se deveria fazer”, proferidos por grandes empresários ou banqueiros portugueses, a maioria das pessoas tem a sensação de que aqueles que proferem essas análises ou desenham essas políticas vivem noutro “universo”, noutras “realidades” e que portanto lhes mentem. Não pretendo aqui discutir a especificidade das soluções propostas por políticos e gestores, nem se sofrer cura, ou se é importante perder hoje muito para ganhar algo depois, se não há alternativas ou se o que nos dizem é mentira ou verdade, nem se é justo dizer que se mente quando se fala nesses momentos, mas antes colocar uma outra hipótese. Essa hipótese é a de que uma grande parte dos discursos que as diferentes elites portuguesas produzem hoje e que informam as suas decisões políticas e económicas possam não estar assentes em interpretações racionais dos factos e sim em diferentes graus de crenças. Crenças essas, que toldam as suas análises e que levam a que precisamente uma grande parte da população os critique e a que as suas soluções tenham deixado de parecer razoavéis para o todo, pois tendem apenas a melhorar a vida

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso de cada vez menos pessoas no conjunto dos cidadãos – menos quer dizer talvez apenas 1% de todos nós. O que se espera no contexto da prática de negócios ou política é que os actos e o discurso obedeçam a uma certa racionalidade. É precisamente por isso que as pessoas dizem “não há nenhum governante que queira mal ao seu povo”, espera-se que no exercício do poder politico e económico haja racionalidade. Por isso, nos custa tanto acreditar que alguém não possa querer o nosso bem, mas pode-se querer o bem dos outros e viver num contexto de razoabilidade da mentira. A razão, a capacidade analítica, a liberdade de crítica são alguns dos instrumentos fundamentais para nos proteger da razoabilidade da mentira. A meio caminho entre o facto e a mentira situa-se aquilo que podemos denominar a mentira razoável, que é algo que parece verdade, produto aparente de uma análise racional, até que procuramos analisar os factos em que a mesma, aparentemente, se alicerça. A razoabilidade da mentira é a razoabilidade que se produz quando na raiz da fundamentação dos nossos actos está a crença em algo e a recusa da sua crítica. Por exemplo, Zygmunt Bauman em “Does the Richness of the Few Benefit Us All?” (XXXX) questiona até que ponto grande parte do nosso discurso político e económico não se encontra balizado por mentiras que, por sua vez, produzem o resultado à vista na Europa (incluindo Portugal), nos Estados Unidos e na maioria dos países da OCDE, isto é, o enriquecimento de um pequeno número, implicando a erosão do que era conhecido em muitos países durante as décadas do pós-guerra como “classe média” e uma crescente desigualdade. Há nesse contexto algumas perguntas incómodas para todos nós mas que necessariamente temos de colocar se queremos inverter a longa marcha em que, quase todos, estamos incluídos, rumo a uma maior desigualdade. São perguntas simples como: Qual o benefício para a sociedade em ter numa empresa alguém que ganhe 100, 1000 ou 10.000 vezes o salário de outra pessoa na mesma empresa? Qual o benefício de reduzir impostos a empresas e aumentar a indivíduos? Qual o benefício de taxar as casas dos cidadãos e não taxar as casas na posse das empresas financeiras? Qual o sentido de cortar

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso despesas com os cidadãos para obter descidas de juros para as empresas financeiras? Provavelmente as nossas respostas serão diferentes conforme queiramos partir de uma análise racional ou de uma análise assente em crenças, ou nas palavras de Bauman em presunções comummente aceites como óbvias (não precisando de prova) e, portanto, levando-nos a percorrer o curso da razoabilidade da mentira. Como elenca Bauman, podemos acreditar que o crescimento económico é a única maneira de lidar com os desafios do nosso tempo e resolver todos os problemas que a coabitação humana gera. Podemos, igualmente, crer que o crescimento perpétuo do consumo ou o acelerar da rotatividade de novos objectos de consumo é a única, principal e mais efectiva forma de atingir a busca de felicidade humana. Que a desigualdade social é natural e que o ajustar da nossa vida humana a essa condição nos beneficia a todos, enquanto que tentar alterar os seus pressupostos é algo de negativo. Ou, ainda, que a rivalidade (na sua dupla face do louvar dos ganhadores e a exclusão/degredo dos perdedores) é a base da justiça, sendo simultaneamente uma necessidade e condição suficiente de justiça social e reprodução da ordem social. Mas acreditaremos nisso porque julgamos que podemos ter alguma hipótese de escapar dos 99% e ser recebidos de braços abertos entre os 1% que lucram com essas decisões? Ou porque temos uma crença inabalável em que é mesmo assim, que o mercado (que somos nós todos também) nunca pode errar e, por isso, como o sucesso das medidas é óbvio não necessitam de ser provadas, que basta acreditar? Ou porque nunca questionámos, mesmo: será que “eles” (seja quem “eles” sejam) realmente sabem o que fazem ou acreditam apenas que estão certos? Se nos sentirmos bem num mundo onde podemos desprezar a cooperação, o mutualismo, a partilha, a confiança recíproca, o reconhecimento e respeito, então não podemos chamar mentiroso a quem nos oferece precisamente o que pretendemos, um mundo onde a salvação de 1% está garantida e onde o sonho da nossa vida é lá chegar e deixar pelo caminho todos quantos pudermos. Mas

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso muito provavelmente um mundo assim irá rapidamente autodestruir-se pondo fim a esses “sonhos”. Para lá das ideologias e da sua razoabilidade da mentira há (felizmente) a liberdade, a esperança e a percepção adquirida pela análise científica de que “Economia é cultura”. E em épocas de crise ainda mais. A nossa visão de economia tende a ser construída em função de um número de actores, em particular, de quem desenha políticas públicas (Ministros e Comissários Europeus), de quem gere interesses empresariais (gestores, administradores), de quem negoceia (consultores, advogados, sindicalistas, presidentes de associações), em função de quem intermedeia essas narrativas (via televisão, jornais e rádio) e de quem as comenta e interpreta e transforma (seja em blogues, no facebook, no twitter, via colunistas de opinião ou comentadores de TV). A economia é um produto das nossas escolhas, das nossas crenças, valores, representações e práticas diárias. No entanto, a economia é um produto que nenhuma das partes interessadas controla totalmente. É por isso que surgem boas surpresas, como a inovação tecnológica, mas também más, como a recalcitrante crise em que estamos imersos. No entanto, não nos podemos esquecer que já conhecemos noutros tempos e lugares, não muito distantes, ambição, sonho e luta suficiente para superar contradições sistémicas. O capitalismo já teve muitas fases, e essas formas anteriores foram rejeitadas. Daí a rejeição do trabalho infantil, a emancipação feminina, a emergência dos direitos de bem-estar e o fim dos impérios coloniais. Sobre o sistema económico no qual ainda vivemos: é tempo de parar de lhe continuarmos a dar indefinidamente crédito. Basta de conformismo intelectual. É altura de reconhecer os verdadeiros problemas e conceber novas soluções estruturais. Se entretanto deixarmos de lhe chamar capitalismo, por tal ter deixado de fazer sentido, assim será. Não chega mudar, é preciso mudar para melhor. Economia é cultura e o actual modelo económico está bloqueado. É tempo de pararmos de lhe chamar “crise”, temos de trabalhar sob o princípio da “mudança”. É isso que temos de procurar (mudança para uma configuração socio-económica diferente) e não apenas tratarmos uma febre passageira num

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso organismo económico que antes era saudável. Não, o sistema já não estava bem. No entanto, nem os políticos, nem a análise económica convencional, nem os diferentes comentadores parecem ser capazes de nos dizer o que se está a passar connosco e para onde estamos a ir. Daí que, talvez, a única forma de obter respostas seja a de devolver a economia a todos nós e começar por fazer perguntas. Nesta análise pretende-se fazer justamente isso: levantar questões. Começamos por testar perspectivas e oferecer alternativas de leitura. Acima de tudo convidar ao debate quantos estiverem disponíveis para retomar a economia nas suas próprias mãos e mentes. Nos últimos anos na Europa há sinais característicos de mudanças em curso, mas mais visíveis nas escolhas políticas, na dispersão de votos no arco político (seja da Direita extrema à Esquerda radical), na novidade de movimentos com potencial para realizarem mudanças culturais (por exemplo, as manifestações indignadas, as iniciativas cidadãs de auditoria à dívida, o Partido Pirata, etc.). O desperdício destrutivo das capacidades produtivas e dos sonhos da maior parte das pessoas começou no ano de 2007 fora da Europa, mais precisamente nos EUA, e alastrou lenta mas resolutamente até nós. Não foi a onda passageira ou a flutuação transitória que muita opinião económica previu. Se começou no sector privado norte-americano, foi em finais de 2009 empurrada para o sector público europeu e depois contagiou todo o globo pelo abrandamento da actividade económica nos BRIC. Para uns aquilo que vivemos é crise económica, produto da inadaptação das condições da procura e da oferta ou da relação entre capital e trabalho, para outros é conflito opondo partes com interesses políticos divergentes. Trata-se de uma bolha (uma disfuncionalidade técnica) ou de uma burla (um deliberado embuste)? Mera crise ou conflito resultado de antagonismos? Temos perante nós um modelo específico de actuação que nos trouxe, primeiro, um sector gerador de crédito imensamente imaginativo e ambicioso e, depois um sector governativo recheado de perdões aos ganho de capital e dependente de dívida por mimetismo e má cópia de fórmulas privadas. Ou seja, uma arquitectura de funcionamento alicerçada na hegemonia do sector financeiro

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso (banca, gestores de fundos, etc.) e dos instrumentos complementares (consultoria económica e jurídica, canais de informação, etc.). E são estes ainda, talvez mais que nunca, os interesses instalados que constrangem a forma de gerir a crise orçamental nos estados europeus. A contrapartida de se criar “ambientes de negócio” com risco mínimo para os investidores é criarem-se arenas de risco máximo para todos os outros detentores de interesse na economia. Eliminar “custos de contexto” é uma mensagem cifrada que significa abandonar as conquistas da civilização a troco de nada em economias que não crescem. Nesta comunidade de práticas construída pelos actores financeiros europeus, o capital financeiro não está apenas contra os conceitos clássicos de sociedade de bem-estar, está também contra o capital produtivo, o investimento fabril, a provisão de bens públicos infra-estruturantes por parte dos Estados. Há um conflito em curso, um conflito que foi alimentado pela supervisão privada (agências de notação) e pública (autoridades monetárias) que, por via da partilha de princípios ideológicos, se aliaram à máquina de negócios especulativos livre de risco. A prática da alta finança actual não se opõe apenas aos interesses da economia real, sejam elas PME ou empresas líder. O capital especulativo já descolou do próprio mundo real. Não se reforma por si próprio nem se deixa reformar sem custos elevados para o Estado - pois precisa de manter as regras que lhe permitem explorar e praticar uma especulação livre de risco para si (mas que sobra para os demais). E agora? Não é possível encontrar uma solução repetindo de novo o mesmo ponto de partida que nos trouxe até ao problema. Já deveria ser claro que desequilíbrios herdados não se combatem gerando novos desequilíbrios. É preciso pensar diferente, dando mais poder aos Estados para que estes possam reequilibrar poderes e reduzir até níveis controláveis o poder especulativo (e, atenção, os especuladores têm caras e marcas nacionais e internacionais, não são reduzíveis à expressão desculpabilizante de “mercados”, pelo que nada poder fazer não é uma fatalidade mas sim uma escolha de alguns políticos). Por exemplo, um grupo de economistas, académicos e analistas europeus publicou, durante um dos muitos picos da “Grande Recessão” em que vivemos,

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso um documento intitulado “Breaking the deadlock: A path out of the crisis.” (2012). Aí se falava já de uma crise “sem fim à vista” onde só se exigem condições aos países deficitários (do sul europeu, por exemplo) e às populações em geral (como até na Holanda). Ao invés disso a prioridade política, dizem estes economistas, deveria ser aliviar o “sofrimento humano”. A acção deve ser dirigida de imediato para estabilizar os custos de financiamento público (no curto prazo: parar as recessões auto-induzidas pelas políticas fiscais contracionistas e parar as obscuras penalizações do valor dos títulos do tesouro) e em seguida caminhar-se para uma mutualização dos ganhos e das perdas (no longo prazo: aplicar controlos ao comportamento disfuncional dos operadores financeiros e garantir que os governos nacionais têm a capacidade de implementar políticas fiscais democraticamente deliberadas). Ou seja, é tempo de resgatar a política num quadro de justiça económica. Não são apenas os economistas a dizê-lo, pois pensadores oriundos de outras áreas da ciência, entre eles o alemão Jürgen Habermas, defendem também novas direcções para o futuro (Habermas et al, 2012). Para estes a reestruturação económica, para ser eficaz e duradoura, tem de significar uma reestruturação política. Primeiro, é preciso desinstituir “as práticas maliciosas dos bancos de investimento e dos fundos obscuros” (XXXX). Para isso a Europa tem de surgir como a referência global ao dar o exemplo definitivo de como domesticar estas práticas. Em segundo lugar, os europeus precisam de desenvolver uma inovação institucional de soberania partilhada. Só uma diferente integração política (a qual não inclui o federalismo) permitirá escapar às garras da fragmentação continental e da irrelevância global quando a atenção transita do Atlântico para o Pacífico. Em resumo, o que estávamos a viver era a latência de um conflito que agora explodiu abertamente. Era uma corrida pelos famosos rating AAA para garantir 95% de probabilidade de que não haverá risco nos investimentos em acções ou em títulos da dívida pública – uma impossibilidade, ou melhor, uma fantasia desejada mas que rege a notação. Não é, nem nunca foram, possíveis actividades de mercado “livres de risco”. Esta miragem só resultou numa degradação de bens sociais, de democracia política, e da redução das despesas de gestão e manutenção de equipamentos públicos de

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso suporte à economia real - isto é a educação, a saúde, a regulação laboral e o poder local. É preciso fazer crescer o valor da produção verdadeira e fazer diminuir a negócio da desestabilização especulativa, porque o actual modelo é produto de uma alucinação consensual (até ao momento em que rebenta com o sistema) e, não, de uma verdade inquestionável ou de uma qualquer lei da física. Uma economia onde se ganha o pão sem perder a dignidade só pode ser uma economia justa. Só essa funcionará e suportará uma sociedade onde vale a pena viver. Neste processo de escolhas convirá também que se saiba de que lado está a Europa. O moderno projecto europeu surgiu há sessenta anos de um pretexto relacionado com a política industrial do carvão e do aço. A Europa, se nada continuar a fazer, arrisca-se a acabar num trágico erro de política monetária nas mãos pouco transparentes de um sistema financeiro fora de controlo.

O Tempo, o espaço e o simbolismo financeiro

O tempo e o espaço são onde nos movimentamos na nossa vida, é onde tudo é construído, mas essa construção de algo é, simultaneamente, produto e resultado da nossa experiência, ou melhor, da nossa cultura partilhada produto do que somos e da interacção e transformação da natureza que nos rodeia. Daí, que compreender a soberba e o rescaldo da economia financeira, que nos levou até à “Grande Recessão”, necessite de interrogar que tempo, que espaço produziram que cultura financeira em que deixámos as nossas instituições, e nós próprios, ser capturados. Num artigo intitulado “Time, Communication and Finantial Colapse” (XXXX) Wayne Hope escreve que estamos habituados a pensar no tempo como avançando progressivamente do passado para o futuro mas que é provável que hoje tal já não seja verdade. Hope (XXXX) argumenta que, na nossa vida contemporânea, podemos muitas vezes experimentar o fluxo do tempo como sendo originado no futuro, passando pelo presente e posteriormente avançando para o passado. Tal acontece, porque as formas como o passado é evocado, preservado e seleccionado estão abertas à mudança e a variações entre diferentes grupos sociais em diferentes épocas. E também é verdade que as

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso nossas

percepções

do

passado,

em

relação

ao

presente,

moldam

antecipadamente as nossas imagens do que o futuro poderá ser. Ainda, segundo Hope (XXXX), a nossa crescente dependência de análise de como o futuro se irá desenrolar (i.e. que preços de matérias primas, que valor de produtos financeiros derivados, que resultados financeiros, que rentabilidade e que défice teremos no futuro?) está a orientar a nossa perspectiva de tempo para um tempo real em rede, que impede que o passado actue, como tradicionalmente, sobre o presente, colonizando as nossas discussões sobre as possibilidades abertas no futuro. A nossa concepção de tempo é assim cada vez mais de um tipo de miopia temporal que, até certo, ponto nos incapacita de aprender com a experiência passada. Daí, que seja fundamental tomarmos consciência que vivemos num mundo em que, para além do tempo do relógio e do tempo dos fusos horários, há também tempos sociais que precisamos conhecer para podermos melhor compreender as nossas decisões e opções. De um mundo onde o passado influenciava o presente, passamos a ter também em conta que o futuro influencia o nosso presente e também as nossas alternativas de futuro. Se no dia a dia somos impelidos pelos media a construir o nosso presente em função do que o futuro nos condiciona, torna-se fundamental que nos imponhamos a necessidade de olhar o passado como campo de influência do presente, como facilitador de alternativas de futuro(s). No mundo das redes financeiras que permeiam todas as nossas actividades e nos induzem um tempo instantâneo, com origem no futuro, é fundamental que nos lembremos que o tempo flui sempre em mais do que uma direcção e que é das nossas escolhas que o futuro se constrói – não está pré-construído sem opções de mudança mesmo que lhe tenha sido atribuído um valor de transação no mercado de futuros. Um exemplo, de escolhas erradas quanto ao futuro, mas que precisamente por tal, merece a nossa análise é a introdução do Euro – não porque Portugal não deve-se ter aderido à “moeda única”, mas porque no processo de adesão se afastaram hipóteses e as mesmas regressaram anos mais tarde com uma força extrema e vingativa na reposição de uma realidade não antecipada em 2001, mas possível de ser imaginável.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Recordando uma edição do semanário italiano L'Espresso de 2007, o então presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso, numa entrevista sobre a inflação referia que "em Itália a inflação é hoje cerca de 2%, quando antes era mais de 10%. Não nos podemos esquecer de que hoje o preço do petróleo é muito mais alto e que o estamos a adquirir com uma moeda forte" (XXXX). O euro é ainda hoje a moeda da Europa e a, já antiga, afirmação do presidente da Comissão Europeia poderia passar sem grande atenção, não fosse o facto de ele antes ter sido um chefe de Governo de um país do Sul da Europa que aderiu ao Euro. Portugal, tal como a Espanha e a Itália, viveram, e vivem, uma estranha dualidade de personalidade monetária. Aderimos ao Euro, tanto por necessidade de cumprir um objectivo da política europeia, a sempre maior integração, quanto pela vontade de aderir a um símbolo que possibilitava imaginar ser igual a tudo o que de melhor se imaginava existir no norte europeu, como se viver esse símbolo nos permitisse, como no jogo do monopólio, atingir um objectivo sem seguir as regras, ou seja, passar pela casa de partida, receber, sem ter de passar várias vezes pela cadeia. No início da adopção da “moeda única”, ao mesmo tempo que as taxas de inflação oficiais demonstravam a baixa da mesma, o dia-a-dia de todas as pessoas (incluindo os que produzem os indicadores de inflação, os governantes que os usam, os sindicatos que os contestam e os empresários que os usam também) que viviam no Sul da Europa demonstravam o contrário. Várias notícias publicadas na imprensa internacional demonstravam que em Portugal, Itália e Espanha os preços, desde a entrada do euro, em muitos produtos e serviços considerados essenciais pelas pessoas, haviam subido entre 60% e 100% quando comparadas com os preços praticados na moeda antiga (em escudos liras ou pesetas). Os negociadores dos países do Sul não perceberam, ou não souberam, antever algo que é mais pertença da sociologia económica do que da economia monetária: o comportamento social dos agentes económicos face à moeda. Ou seja, em Portugal preços de cem escudos converteram-se em preços de um euro (ou seja, duzentos escudos), em Espanha preços de 500 pesetas converteramse em preços de cinco euros e em Itália cinco mil liras em cinco euros.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso As implicações dessa evolução, não reflectida nas taxas de inflação de alguns países europeus, tornaram-se, alguns anos mais tarde, óbvias e negativas para todos, excepto para os que comercializavam produtos em que o aumento ocorreu. Para os cidadãos uma menor actualização salarial, para o Estado menores receitas de impostos sobre vastos sectores da economia (que terão declarado valores abaixo do real) e para a comparabilidade estatística internacional o questionar até que ponto os cabazes utilizados para calcular o índice de preços do consumidor têm algo a ver com as escolhas médias que a população faz para a sua vida. Com esta análise não pretendo argumentar que a “Grande Recessão” e o pacto faustiano entre os Estados e os Bancos (Thompson XXXX) se deve ao episódio atrás relatado, mas que há sempre opções e que, afirmar que não há outro caminho possível (como o fizemos então|), tem consequências práticas na vida de todos. Este episódio serve-nos apenas para focarmos a soberba de certezas com que a entrada do Euro a sul foi realizada, num ambiente de crença na inevitabilidade de um caminho induzido na política pelos próprios bancos centrais e bancos de investimento de todos os países. Os símbolos são produto da cultura, e a moeda é tanto um símbolo como um instrumento de garantia simbólica nas transacções. É na análise dos símbolos, e não em fórmulas econométricas, que muitas das respostas podem ser procuradas. A cultura toma forma em espaços, por sua vez, esses espaços são onde as lógicas de funcionamento e os valores das diferentes organizações se manifestam, pelo que compreender a cultura financeira é também visitar o espaço onde a cultura se define. Por exemplo, na edição da Harvard Magazine de Junho 2010 surgia um artigo intitulado “The Pay Problem” (XXXX) no qual se discutia a necessidade de um novo paradigma para a remuneração dos executivos. Não são apenas as organizações financeiras que se constituem como um espaço de formação de símbolos e cultura financeira, a universidade é também um espaço de experiência e moldar das culturas e símbolos financeiros. Daí que faça sentido questionar, tal como induz a leitura do artigo “The Pay Problem” (XXXX) se a Universidade é capaz de prever o que deveremos ganhar se formos um membro do conselho de administração de um banco ou de uma

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso seguradora, ou mesmo de uma agência de rating ou consultora financeira? A resposta é, muito provavelmente, não. A universidade não é capaz de prever quanto deve ganhar um executivo ou outra pessoa. No entanto, isto é diferente de dizer que a Universidade não conseguirá prever a probabilidade de ocorrerem problemas com uma dada forma de calcular remunerações. E desde há muito que na Universidade, quer Norte-Americana quer Europeia, sabíamos que o contexto era propício para o surgimento dos problemas que todos viemos a conhecemos, da Enron à AIG, não esquecendo também grandes empresas de Portugal e dos nossos vizinhos europeus. Mas porque são os salários dos executivos tema de interesse? Como sugere Michael Porter, na Bloomberg BusinessWeek (XXXX), o alto desemprego, a pobreza em crescimento e o desencanto com a ganância no contexto empresarial estão a lançar um desafio, como não se via há muitas décadas, ao sistema de mercado e a legitimidade cultural de fazer negócios. O argumento de Porter é que esse desafio só pode ser vencido através de uma acção positiva do mundo dos negócios sobre a sociedade (XXXX). Porter sugere que só com a criação de valores partilhados pelas empresas e pela sociedade se poderá inverter a actual desconfiança (XXXX). E isso quer dizer procurar novas práticas centradas na dimensão de negócios que permitam melhorar a produtividade e simultaneamente beneficiar a comunidade, isto é, aumentar os salários dos trabalhadores, reduzir a poluição ou melhorar a remuneração dos fornecedores e produtores locais (XXXX). No entanto, não é apenas actuando nas empresas que se resolvem as questões de desconfiança, como sugere Rakesh Kurana, um dos autores do artigo da Harvard Magazine (XXXX), e também autor do livro “From Higher Aims to Hired Hands” (XXXX). As nossas escolas de gestão têm uma responsabilidade social a assumir. Khurana argumenta, que as Business Schools capitularam na batalha do profissionalismo e tornaram-se meros fornecedores de um produto, nos quais os estudantes são equiparados a consumidores. As ideias de profissionalismo e moral que no passado inspiraram a sua formação, no início do século XX, foram conquistadas pela perspectiva de que os gestores são meros agentes dos accionistas, apenas existindo como facilitadores da partilha de lucros (XXXX). Daí, que Khurana sugira que não nos devamos surpreender pelo surgimento de

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso práticas questionáveis no seio da gestão, mas que igualmente este é o momento de rejuvenescer intelectual e moralmente a formação dos futuros líderes empresariais, para que não tenhamos novamente que antecipar que algo irá correr mal. Precisamos de mudar de perspectiva para poder prever que não podemos prever e que não teremos problemas de maior. As análises de Porter (XXXX) e Khurana (XXXX) parecem indicar que a dado momento da “Grande Recessão” se criou um certo consenso sobre a soberba em que a economia financeira assentou práticas e resultados, mas terá essa análise produzido resultados nas nossas sociedades? Para tentar responder a esta pergunta, uma lógica de observação participante torna-se necessária. Em Janeiro de 2009 participei, em Davos, na 40ª reunião anual do Fórum Económico Mundial. Embora as notícias publicadas sobre esse encontro de Davos dessem uma visão de falta de acordo entre os participantes, quanto às medidas e modelos de implementação de regulação à escala global de mercados e sector bancário, na realidade Davos não é uma cimeira de Chefes de Estado nem de Empresários. E, como tal, não é suposto existir um acordo final entre os participantes. Arriscaria a dizer que o que de importante acontece em Davos não acontece no palco principal, mas sim nas sessões paralelas onde os temas da actualidade são discutidos pelos participantes e onde, aí sim, ideias são lançadas e consensos são procurados. No que toca às questões da ética e de Corporate Governance o mundo académico e, mesmo os reguladores actuais, e passados, têm liderado a discussão pública sobre “como não repetir os erros do passado, que nos levaram a esta crise global”. Do mea-culpa de Greenspan, enquanto responsável pelo FED, às análises de Trichet, enquanto responsável pelo BCE, passando pelas iniciativas da Harvard Business School e do MBA Oath, os apelos a que algo se aprenda com os erros multiplicavam-se em 2009. Menos visível, ou disponível, para discutir estas questões parecia estar o mundo empresarial, isto é os próprios gestores. Se é normal pensarmos que médicos e advogados, na sua relação com os seus pacientes e clientes devem ter comportamentos regidos por uma ética profissional, porque não pensar o mesmo dos gestores? A questão pela qual um código ético-profissional não acompanhou a institucionalização da

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso profissão de gestor nas nossas universidades é, na realidade, semelhante à razão pela qual o jornalismo foi profissão antes de ter um dia assumido um código deontológico. Tanto advocacia quanto medicina foram profissões que evoluíram dentro da universidade, jornalismo e gestão cresceram fora e só mais tarde entraram no circuito universitário. No entanto, a gestão influi na vida de todos nós e, quase sempre, na vida dos países. Daí, que a dado momento, eu próprio, tenha decidido estender a discussão sobre a criação de um código, de adopção pessoal e voluntária, dirigido aos gestores portugueses, das empresas cotadas no PSI20 com o intuito de fazer da gestão um espaço onde o interesse global dos accionistas e clientes não se sobreponha aos interesses individuais e onde a responsabilidade pelo bem-estar das gerações futuras se equipare ao bem-estar das actuais. Contar a história dessa viagem antropológica ao seio das organizações portuguesas poderá ter lugar noutro contexto, para registo nesta nossa análise fica a interpretação do sucedido. Dos envios feitos para as vinte empresas, dirigidos aos seus membros de Conselho de Administração, Conselhos Fiscais e Assembleias Gerais, resultou que apenas uma empresa levou avante esse processo de evolução da responsabilidade deixar de estar apenas assente na responsabilidade da empresa (“Corporate Governance” e Responsabilidade Social) e passar a ser partilhada pelos próprios, os gestores, assumindo publicamente que têm poder e que com grande poder vem uma grande responsabilidade perante a sociedade. Pouco pode mudar quando nos refugiamos nas regras que temos, regras feitas por outros, e no descanso que tal oferece aqueles que, estando bem em termos de riqueza e bem-estar, mais do que mudar procuram apenas perder pouco do muito que possuem.

O Zero absoluto da economia financeira

O que é o "Zero Absoluto"? Segundo a Wikipedia, o Zero Absoluto é a menor temperatura teórica possível, mas as leis da termodinâmica afirmam que o zero absoluto não pode ser alcançado utilizando-se apenas métodos termodinâmicos.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Tal como o Zero Absoluto não é atingível também algumas ideias económicas simplesmente não são praticáveis. Um exemplo de ideia atraente para o cidadão individual pode não o ser para um país: quem deve tem de pagar e não se deve endividar mais, certo? Errado, lamento mas a realidade histórica demonstra precisamente o contrário, pelo menos se se num país se pretender crescimento e emprego. A austeridade pode funcionar como princípio que oriente a vida de alguns indivíduos mas não passa no teste da aplicabilidade social ao nível de milhões de pessoas e de vários países em simultâneo – nem hoje nem no antes histórico. Ou seja, é uma ideia que não consegue cumprir o que promete. O que é a austeridade? Para além de uma ideologia ou de uma orientação espiritual (para os que acreditam no seu poder redentor) pode ser definida, como o faz Mark Blyth (XXXX), como uma forma voluntária de deflação na qual a economia se ajusta pela redução de salários, preços e despesa pública para restaurar competitividade, a qual é (supostamente) mais bem atingida através de cortar o orçamento do estado, dívida e défices. Façamos agora um pequeno apontamento histórico que nos pode ajudar a perceber porque a austeridade simplesmente não consegue dar-nos o que nos promete. Já ultrapassámos, há algum tempo, o ano quinto da “Grande Recessão” pelo que podemos, com confiança, apontar o que coloca no mesmo plano Portugal, Irlanda, Itália, Grécia, Espanha (e agora Chipre): uma dica, não é a dívida do Estado o problema que os une, ou melhor não era antes dos resgates formais e informais, pois desde que foram sendo resgatados as dívidas públicas cresceram ainda mais – se o leitor tiver dúvidas basta ler o “McKinsey Global Institute, Debt and deleveraging” (XXXX) e ver a divisão de responsabilidades destes países às datas dos resgates relativamente às percentagens das dívidas das famílias, empresas não financeiras, financeiras e Estado. Na realidade o que torna similar estes países (excepto a Grécia) é que neles a crise não foi gerada por se gastar demais no sector público (nem em Portugal, nem na Espanha, nem na Irlanda, nem na Itália, nem em...Chipre). O elemento verdadeiramente unificador é que, em todos, os seus problemas começaram na

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Banca (pelo excesso de crédito que acumularam e pelas debilidades, por vezes quase criminosas, que assumiram) e hoje na banca continuam devido às responsabilidades que todos os governos tiveram que assumir pelos erros cometidos no sector bancário. Durante uma década os bancos dos países centrais (e periféricos) da União compraram e alavancaram com base em "imensa" dívida da periferia do Euro que agora vale imensamente menos. Ora quando começaram a variar as percentagens de juro, mesmo por muito pouco que fosse, muitos bancos viramse em risco de insolvência (é esta a história de onde estamos). Como sugere Mark Blyth (XXXX), salvar o sistema financeiro global custou-nos (aos governos e seus contribuintes) entre 3 milhões de biliões e 13 milhões de biliões de dólares e como teve de ser absorvido proporcionalmente pelos diferentes orçamentos de estado acabámos por chamar à crise uma "crise de dívida soberana" quando de facto foi e é uma encapotada e bem camuflada "crise bancária". Resumindo, não é que não haja dinheiro para pagar o estado social, não há é dinheiro para salvar o sistema financeiro e pagar o estado social. Isto porque, pelo menos no caso Europeu, o sistema financeiro continua ainda muito debilitado e necessita que os orçamentos de estado baixem os défices de modo a criarem almofadas que podem, ainda no curto e médio prazo, vir a ser necessárias para suportar os ainda periclitantes dezassete sistemas financeiros dos dezassete países da zona Euro. Enquanto essa almofada não for criada há, como consequência, continuar a ter que pagar taxas mais elevadas aos "mercados" para financiar os países do Euro (excepto a Alemanha, porque é o vórtice de segurança que é financiado pela migração das poupanças da insegurança dos outros Estados da Zona Euro). Em cinco anos passámos do mote "demasiado grande para falhar" para o "demasiado grande para salvar" – lembram-se de Chipre e dos depósitos? A redução do défice já não chega só por si para salvar bancos. Ou seja, porque os bancos europeus possuem demasiados problemas para que possam ser resolvidos pelos Estados Europeus do Euro (que nem sequer podem – por enquanto - imprimir dinheiro como os Ingleses, Americanos e Japoneses) quem

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso paga são os Estados que vêm a sua taxa de juro crescer ou não baixar (não porque devam ser penalizados por não aplicar bem a austeridade, mas porque não tendo capacidade para salvar o sistema financeiro são penalizados pelo perigo de um problema que existe com a sua banca nacional, mas que não conseguem ainda resolver). Daí que "Austeridade" seja o preço que convém ao sistema bancário, pois é um preço para “outro” (que não os bancos) pagar. Neste caso o “outro” somos nós e os nossos impostos, os nossos salários e os nossos empregos - porque há quem acredite que a austeridade faz o que promete, o problema não está em acreditar nela, mas sim em não aceitar que simplesmente não funciona – pois mesmo os processos históricos apresentados como sucessos ocorreram em momentos em que um país em processo de austeridade apanhou a boleia de todos os outros que se encontravam em crescimento (é este o paradoxo da austeridade como instrumento económico, só funciona em modo parasitário).

Economia Financeira Zombie?

A nossa experiência contemporânea com o sector bancário da economia merece uma nota de registo para que de novo se possa dizer: não esquecer para não permitir que volte a suceder. Importa não esquecer como o sector bancário da economia se transformou e chegou, em situações limites, a transformar as nossas democracias em democracias zombie, ou democracias mortas-vivas. A experiência pessoal pode, por vezes, ser um importante acrescento para o dissecar analítico dos processos e talvez o momento retratado de seguida possa assumir esse papel. Um conjunto de jovens académicos, entre os quais eu próprio, jovens empreendedores e jovens quadros da administração pública, originários de todo mundo, estavam reunidos na Harvard Kennedy School para uma conversa de almoço com David Rubinstein, um dos gestores de uma das maiores firmas de Private Equity, o Carlyle Group. O nosso orador, também financiador do evento, comentava que na opinião pública dos EUA as empresas de Private Equity eram demonizadas de tal modo que nem no Capitólio os congressistas as queriam receber, quase obrigando-as

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso a juntarem-se aos lobbies das empresas de jogo de Las Vegas para fazerem valer as suas posições – parecia então que efectivamente tudo se conjugava para compreender que para além da metáfora da crise como casino global, a realidade era mesmo a de como a indústria de investimentos encontrava o seu próprio semelhante na indústria do jogo. Mas nem tudo era mau, pois como Rubinstein explicava – deixando-nos algo atónitos – a crise era boa para as firmas de Private Equity. Ou seja, elas haviam obtido fundos dos bancos para investir e, com a crise de 2008 e a fragilidade da banca, agora as firmas de Private Equity, que tivessem liquidez, estavam a comprar ao preço da chuva as dívidas por si contraídas aos bancos. Permitindolhes, assim, ficar proprietárias em pleno das empresas por menos de metade do seu valor. Tal sucedia, pois os bancos precisavam urgentemente de realizar dinheiro vivo. No meio da crise quem efectivamente estava mal (e mal continua) eram as pessoas em geral. Mas os bancos também não estavam em bom estado, tanto os de investimento como os outros. Se o Estado não falava com as empresas de Private Equity e estas também não precisavam de ser salvas, já com os bancos a questão era diferente – estes haviam-se tornado em grande medida zombies, incapazes de se salvarem sozinhos. Os “Bancos Zombies” eram os que embora ainda de porta aberta perante o Mercado, na realidade encontravam-se carregados de activos tóxicos. Mas o que tornava o sector bancário verdadeiramente zombie, no contexto de crise, era o facto de necessitar de se alimentar dos nossos impostos, como forma de se revalorizar de novo. Em Espanha chamam-lhes “Bancos Maus”, mas eu prefiro Zombies, porque não se trata de qualificar a bondade ou não das suas práticas, mas as escolhas de quem os gere e as suas consequências. John Thompson (XXXX) designa a relação entre o Estado contemporâneo e os Bancos, num livro a publicar em Março em Portugal, como um pacto Faustiano. Referindo-se, assim, ao Fausto de Goethe, personagem que, conforme o contrato assinado com seu próprio sangue, serviria o diabo, em troca da sua

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso alma. O pacto a que Thompson (XXXX) se refere é aquele que Estados e Sector Bancário construíram na Europa nos últimos quatro anos. Durante grande parte da história o empréstimo de dinheiro por parte dos bancos aos Estados, assegurava a solvabilidade destes últimos. Em troca os Estados deveriam assegurar inflação reduzida e a recolha de impostos que permitissem, em simultâneo, não desvalorizar o dinheiro emprestado e pagar juros e capital obtido. Mas, a prática mais recente introduziu outras perspectivas. Os bancos continuaram a emprestar dinheiro aos Estados, mas estes últimos têm de assegurar não só a não desvalorização e a obtenção de receitas por via de impostos, mas também a garantia da solvabilidade dos bancos. Pois, caso os bancos entrem em situação de pré-falência os Estados terão de ser os seus fiadores. Essa mudança introduziu uma nova condição económico-financeira na qual a sobrevivência de Bancos e Estados passou a estar intimamente ligada entre si. Em teoria estas alterações poderiam não ter perturbado o funcionamento das nossas democracias, mas a realidade é que perturbaram. Pois, hoje em dia as democracias da crise, isto é as europeias, entraram numa fase de impossibilidade democrática da qual necessitam ser urgentemente resgatadas. Essa impossibilidade democrática resulta da alteração de prioridades do Estado. Pois, da preocupação central na gestão das suas receitas com o intuito de assegurar o bem-estar das suas populações, passámos a ter em igualdade de prioridades o bem-estar dos cidadãos e o bem-estar de um dado tipo de empresas, os bancos. Algo que poderia não ser um problema em si, não fora a incompatibilidade entre esses objectivos, por via da oposição entre os valores do interesse próprio associados em geral à cultura empresarial financeira (embora com algumas, mas infelizmente poucas, excepções) e os interesses de pertença social na génese da gestão do Estado. Os bancos sempre necessitaram de Estados fortes, capazes de obter receitas para remunerar os empréstimos, e os Estados sempre necessitaram de bancos fortes capazes de prestar a sua função central nas economias. Mas há hoje algo mais no ar.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso A existência de bancos que assegurem o investimento e o aforro nas sociedades é uma necessidade fundamental para as economias, a existência de governos de Estados fortes que sejam capazes de gerir o bem social também. Mas também necessitamos de democracias capazes de hierarquizar o interesse das pessoas acima do interesse das organizações e isso faz-se com políticos, políticas, partidos políticos e movimentos sociais que tenham como valor primordial a pertença social e não o interesse próprio. Essa forma de privilegiar a defesa do interesse próprio perante o social está, melhor do que em qualquer outro lado, visível no paradoxo seguinte. Aquilo que é criticável na dimensão da relação entre individuo e Estado deixou de ser criticável na relação daquele com as empresas, ou pelo menos entre as empresas do sector bancário e o Estado. Embora não concordando com essas generalizações, é comum ouvirmos afirmar, em certas franjas do pensamento político, que quem tem um subsídio de desemprego elevado ou o aufere durante um longo período não tem motivação para mudar a sua situação. No entanto, poucos são os que questionam se os apoios continuados e a certeza de que sempre existirão apoios financeiros do Estado para salvar as empresas do sector bancário não produzirá efeitos semelhantes. Isto é, se algum dia seremos capazes de erradicar as más práticas do sector financeiro e a dependência deste para com os nossos impostos, bem como, o permanente aumento das dívidas que os Estados terão de continuar a contrair para assegurar a boa saúde dos possíveis futuros ou reincidentes bancos zombies. Neste momento em países próximos, mas também em outros longe de nós, estão em curso exemplos demonstrativos de que sabemos evitar continuar a viver em democracias zombie. Há locais e experiências que demonstram saber contrariar as lógicas assentes no interesse próprio. Na Islândia, os partidos mais progressistas souberam entender as aspirações das pessoas e foram eles próprios a validar um procedimento constituinte de cariz diferente experimentando um novo tipo de política, conduzindo a uma nova constituição e novas formas de envolvimento político, regenerando assim os próprios partidos e concedendo-lhes futuro. Por oposição, em Espanha os partidos políticos parecem não conseguir muito mais

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso do que escândalos e o consolidar da sua incapacidade regenerativa, levando a que sejam cidadãos e experiências como as do Partido do Futuro, ou Partido X, a dar cartas na experimentação e reconstrução das instituições políticas.

Europa financeira ou dos cidadãos?

Se já percebemos porque estamos a aplicar um pouco por toda a Europa políticas de austeridade (porque os Estados da União acreditam que necessitam de continuar a tentar salvar o sistema bancário Europeu e que para fazê-lo cada país tem de fazer a sua parte), se também percebemos - por experiência própria - que tal não é capaz de trazer solução para as empresas e para as famílias mas apenas “potencialmente” para o sector bancário, porque continuamos a insistir nela? Para compreender esta confusa situação temos de olhar para os diferentes interesses nacionais em jogo no continente da austeridade: isto é a Europa. Para o sociólogo alemão Ulrich Beck a actual Chanceler alemã Angela Merkel prática um princípio de orientação político que pode ser designado por “Merkiavelismo”(XXXX). Há quatro componentes que orientam a prática do Merkiavelismo como política na relação entre a Alemanha e os restantes Estados Europeus. O primeiro reside em posicionar-se entre os adeptos da ortodoxia do Estado nação e os da construção Europeia, mas sem tomar posição por nenhum dos dois. O segundo princípio assenta em gerir por via da arte da dúvida e da hesitação, utilizando esses posicionamentos como meio de coerção perante os restantes países, ora dando a entender que poderá ou não intervir e deixando espaço para que os outros interpretem o que devem fazer para que seja feito o que é pretendido. A elegibilidade nacional é o terceiro princípio de actuação do Merkiavelismo e funciona como posicionamento face à construção europeia, isto é, só se pode fazer na Europa o que for aceitável fazer em casa (isto é na Alemanha). E, por último, a adopção da cultura alemã da estabilidade alicerçada em tudo sacrificar (cortar e poupar) em nome da estabilidade como um valor em si. Como refere Beck (XXXX) o que vemos no final da crise do euro é a construção europeia de uma Europa Alemã. No fim de contas, a defesa da austeridade

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso constitui um pilar da própria prática do Merkiavelismo na construção e uma Europa Alemã pós-crise financeira e do Euro. Mas, como o Presidente do Conselho de Ministros Espanhol Mariano Rajoy referiu, tomando como exemplo Portugal, a austeridade não basta (XXXX). Pelo menos, não basta se o objectivo for o crescimento e a recuperação do emprego. Como se depreende das palavras de Rajoy, já não se está a discutir se a austeridade funciona (não funciona) mas sim se se mantém a estabilidade política Europeia da Zona Euro assente nas políticas de austeridade e defendida pelo país mais forte da zona, terceiro exportador mundial de armamento, líder industrial global e porto de destino do aforro dos euros dos restantes dezasseis países da zona euro – isto é a Alemanha. Houve muitos comentadores e políticos na Europa que acreditaram que após as eleições alemãs do segundo semestre de 2013 a austeridade se tornaria mais leve e que tudo mudaria para melhor, que era uma questão de tempo, mas o problema é que o Merkiavelismo é uma prática em permanente adaptabilidade e perdurará para além das eleições alemãs e, possivelmente, de Angela Merkel, porque não se trata de um projecto pessoal mas de uma corporização num indivíduo de uma percepção cultural do lugar de um país desigual face ao resto da Europa – o país economicamente mais forte e mais beneficiado por essa força. Com base nesta análise, a única saída para continuarmos a ter uma União Europeia e não uma Europa Alemã é aumentar o conflito de posições e extremar as escolhas disponíveis na mesa entre membros da União, ou como sugere Paul Krugman (XXXX) a Portugal Italianos, Eslovenos,

Irlandeses, Suecos,

e, como nós podemos sugerir a Espanhóis,

Ingleses, Gregos,

Franceses, Cipriotas,

Dinamarqueses, Lituanos,

Holandeses,

Eslovacos,

Polacos

(basicamente todos os cuja opinião pública apoia mudanças claras de política nas opções austeritárias dos seus governos e da política europeia): Just Say Nao (e é mesmo sem acento, porque é uma mensagem que vem de um teclado do outro lado do Atlântico). Um mundo perfeito é impossível mas um mundo melhor (começando por Portugal e a Europa) é claramente possível e apressadamente necessário.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso

Os Mercados não são desculpa

Se há algo que a história dos últimos anos demonstra é que os actores políticos não devem atuar em função do que acham que podem conseguir obter dos mercados financeiros. Pois, no actual contexto Europeu, independentemente do comportamento dos políticos e das democracias, os mercados podem nunca acalmar. Ou se preferirmos, é um artigo sobre como gerir em antecipação o que poderá caracterizar politicamente este verão, as duas crises governativas da península ibérica, as suas consequências e a sua interação com o Euro. Muitos de nós concordarão que o estado normal dos mercados é o movimento, nos mercados parar de transacionar é literalmente fazer morrer o investimento. No entanto, não se devem gerir actuações políticas em função de uma dada expectativa de resposta por parte dos mercados, simplesmente porque os Governos agem (ou devem) agir em função da salvaguarda do bem-estar dos seus cidadãos e os mercados agem

sempre (mesmo quando erram na

apreciação de risco) em salvaguarda do lucro de quem aplica o seu dinheiro. Mas, passemos a exemplificar, o mundo está carregado de liquidez e as oportunidades de aplicação rentável são escassas, os juros são baixos nos depósitos, as matérias primas estão em baixa, o ouro já não sobe à mesma velocidade (por vezes já baixa), o petróleo igualmente tem tido pequenas variações face ao preço elevado a que já se encontra, as bolsas de acções têm lentas evoluções positivas (quando não estão em queda), o consumo baixou em muitos pontos do planeta (embora cresça algo noutros), a China tenta sustentar o seu crescimento interno e resolver o seu problema da dívida interna e, no quadro mundial, a globalização económica não consegue funcionar da mesma forma que funcionava antes de 2008 - pois uma das rodas, a Europa, deixou de ter capacidade de contribuir do mesmo modo para o crescimento global. Esta é a paisagem que os investidores têm perante si mas, por outro lado, olham para a Europa, na sua articulação política em rede, com dívidas soberanas nacionais e com uma moeda única sustentada por um Banco Central Europeu (BCE) que tudo fará para a salvar. E é aqui que surge a pergunta (não a de 1 milhão de

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso dólares, mas de muitos mais milhões de euros): se quisermos ganhar dinheiro investindo nos mercados globais qual é o comportamento de um agente racional? Mas, antes de responder importa partilhar um exemplo: houve um momento em países como o Ruanda colocavam dívida a 10 anos a 6.875% enquanto Portugal o fazia a 5,669%, a Itália a 3.94% e a Espanha a 4.20% (XXXX). Como se pode explicar este comportamento dos mercados? Por um lado, podemos argumentar que os mercados penalizam sempre mais os países que têm políticas de austeridade contrárias ao crescimento – no curto prazo a austeridade é “amiga” do credor pois coloca-o à frente dos cidadãos na linha de pagamento do Estado, mas no médio/longo prazo é o crescimento que é amigo do “credor” por conseguir gerar riqueza. Por outro lado, existem diferentes “tonalidades” de risco pelo que estes três países Europeus estão mais longe do Ruanda do que as taxas poderiam fazer supor - pois os modelos de risco das agências não lidam com o risco absoluto mas sim relativo, ou seja, Portugal é comparado relativamente ao seu AAA, isto é a Alemanha, mas o Ruanda não. Mas há ainda uma outra razão fundamental. Para o típico investidor global, a dívida Europeia é hoje “a escolha racional de investimento”, pois permite criar juros altos e oferece risco baixo, numa zona Euro sustentada pelo BCE. Escrevi que a zona Euro permite “criar juros altos” pois é efectivamente isso que se passa. Atualmente, temos uma zona monetária onde, porque temos uma moeda única e dívidas nacionais, é possível ter risco baixo e juros elevados – ao contrário dos Estados Unidos da América. O atual formato político e económico da União Europeia possibilita, aos investidores globais, os incentivos e os mecanismos para utilizar em seu proveito qualquer notícia que permita variar o diferencial da taxa da dívida pública para maximizar os seus lucros – mas atenção, se não houver notícias para serem utilizadas isso não garante a melhoria da taxa do país. Esta situação só ocorre porque há um ganho racional inerente, isto é, o que se ganha em conseguir juros altos num mercado global onde a maioria dos juros são baixos. Que reflexão podemos tirar destas leituras para a gestão da dívida e para a governação de Portugal? Em primeiro lugar que se deve relativizar a utilização

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso de argumentos políticos do tipo "vejam os mercados", pois a reacção dos mercados será sempre baseada na sua “natureza” oportunista e, mesmo resolvendo a actual crise de incerteza política com eleições ou com a continuação de governos, continuará a não haver qualquer controlo quanto ao comportamento dos mercados por parte dos governos nacionais. Em segundo lugar, que se pode argumentar que os países da zona Euro com intervenções formais, como Portugal, devem-se manter afastados de se financiarem diretamente nos mercados pelo tempo necessário até se alterarem as condicionantes que impedem a capacidade de autonomia dos governos face aqueles. Ou, pelo menos enquanto não conseguirmos implementar a nível europeu a hipótese mais plausível de entre as seguintes ainda “impossibilidades políticas”: a criação de uma entidade política única na União, uma União Bancária, o fim do Euro ou a titularização comum de parte da dívida soberana dos países do Euro. No atual registo de uma moeda única e num espaço político europeu articulado em rede com múltiplos governos e dívidas nacionais, nada que os governos intervencionados façam

sozinhos vai alguma vez ser capaz de influir num

qualquer controle do valor pago em remuneração da sua dívida. Por isso, os mercados não podem ser usados como desculpa, nem como arma política interna, pois para poderem ser uma arma alguém a tem de a poder controlar e neste momento ninguém os controla. No entretanto, na Península Ibérica temos de negociar novos memorandos e cartas de intenções das quais se retirem as formulações ideológicas para os aproximar daquilo que a maioria dos cidadãos europeus pretende, isto é, emprego, solidariedade, saúde, educação, liberdade de experimentar e criar e um Estado e políticos que queiram (e saibam) resolver problemas, em suma, aquilo que é normal aspirar em todas as épocas pelos cidadãos.

Eurozona proibida a sul?

No ano de 1937, em plena Grande Depressão e antes de escrever o famoso As Vinhas da Ira, John Steinbeck escreveu Ratos e Homens. Tratava-se de um livro

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso no qual os personagens se sentiam muitas vezes impotentes face às circunstâncias económicas e sociais que os impedem de concretizar os seus sonhos e onde se manifesta a luta com a solidão, o valor da solidariedade e a ânsia por uma vida digna. Tal como em 1937 os personagens de Steinbeck eram impelidos para a impotência da sua acção pelo contexto da grande depressão, também na Eurozona a sul esperança foi proibida. E essa proibição resulta não das condições materiais (económicas e financeiras de partida nos países do sul) mas sim das ideias que nos proíbem a acção. Curiosamente, as mesmas ideias que nos proíbem a esperança não são produto de uma crença qualquer mas sim da própria ciência económica. Sejamos claros, as ciências não são infalíveis, pois quem pratica ciência sabe sempre que o erro espreita na investigação, mas as pessoas em geral encontram conforto em imaginar que na medicina, no direito, nas engenharias, nas ciências sociais (onde incluo a economia) não se falha. Como normalmente acreditamos na infalibilidade da ciência, esta torna-se uma arma de combate político extremamente eficaz – que político deitaria fora a oportunidade de utilizar um argumento infalível para fazer valer a sua posição e os seus objectivos eleitorais? Foi isso que aconteceu com as análises de Keneth Rogoff e Carmen Reinhart (XXXX) e com os adeptos da política de austeridade na Eurozona. Mas pode a Ciência Económica destruir o desejo de uma vida digna? Que a ciência pode destruir os sonhos matando através das armas baseadas no seu saber é algo que sempre aconteceu – basta pensar no temor global que causa a retórica de guerra da Coreia do Norte e das suas armas nucleares. Mas que a ciência, apenas fazendo uso das suas ideias, possa destruir os sonhos e desejos é algo menos esperado. No entanto, foi isso mesmo que se passou connosco nestes últimos três anos. Tal como os terrenos de Chernobyl continuam impregnados de radiações, também as análises de decisores e comentadores da Eurozona continuam contaminadas pelo desejo de acreditar que aquilo que foi dito por Rogoff e Reinhart (e que lhes foi útil) poderá continuar a fazer lei, mesmo estando errado.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso O que Rogoff e Reinhart concluíram – mas que se veio a constatar que partia de dados errados – era que diferentes países com diferentes políticas fiscais obteriam diferentes níveis de dívida e que a dívida alta levava obrigatoriamente ao crescimento baixo (XXXX). Tal afirmação tornou-se uma verdade incontestável – pois não falavam os dados por si próprios? E tendo surgido no momento em que diferentes correntes políticas em diferentes países abraçavam a ideia da austeridade como ideologia política, ofereceu-lhes o argumento perfeito para publicamente assegurarem a sua vitória incontestável: só havia um caminho e esse era marcado pela ideia de que para crescer tinha que se cortar gastos, reduzir défices até que a actividade económica regressasse. No entanto, como se descobriu mais tarde (XXXX), a ciência estava errada e os autores (embora nos seus trabalhos académicos nunca tivessem afirmado directamente que “dívida alta = baixo crescimento”) haviam repetidamente actuado nas suas intervenções sobre política económica como se existisse causalidade na análise. E uma parte substancial dos actores políticos europeus simplesmente adorou poder repetir tal mantra, porque ela ia de encontro às suas crenças, ideologias e práticas políticas. Mas, tudo bem, este é um artigo sobre a Eurozona, etc., pode ser interessante para algumas pessoas falarem disto, mas o que interessam Rogoff e Reihardt, o excel errado, as séries "manipuladas" e as suas análises a Portugal? A resposta é, porventura, muitíssimo. Mas para o compreender temos de regressar a 2010, criticá-los pela contribuição que tiveram para o desastre do resgate português mas também agradecer-lhes, porque o que escreveram nos oferece uma outra opção de saída para os nossos problemas actuais. Em Dezembro de 2010, alguns meses antes do resgate de Portugal, Rogoff publicava um artigo de opinião traduzido para várias línguas intitulado “O Euro a Meio da Crise” (XXXX). Nesse artigo, Rogoff declarava que “há mais resgates a caminho, Portugal está no topo da lista. (…) os níveis de dívida portuguesa são ainda muito problemáticos face aos comparativos históricos (baseado na minha pesquisa com Carmen Reinhart). Com um cenário de recessão ou crescimento

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso muito fraco e orçamentos de austeridade nos anos vindouros, Portugal irá provavelmente procurar ajuda mais cedo que tarde.” Ora, um economista de renome, que se havia distinguido profissionalmente à frente do FMI e oriundo de Harvard, que havia pela sua opinião baseada numa pesquisa – lembrem-se, errada – legitimado práticas políticas de austeridade, possuía uma credibilidade e capital social tremendos, as suas palavras em 2010 eram vistas pelos mercados e, consequentemente, pelos media e pelas populações, como previsões para lá de qualquer do erro. Este foi o contributo de Rogoff para o desastre do resgate português, ajudou a que a profecia do resgate se tornasse inevitável fruto das suas visões avalizadas, como as difundidas em artigos de opinião como aquele, e reforçadas pelos políticos europeus. O problema com Rogoff foi, ao mesmo tempo, científico e político. É certo que temos o erro científico mas, por outro lado, temos a sua opinião pessoal sobre os resultados do seu trabalho como estando para além de qualquer dúvida. Tal, reforçou as certezas dos que antes de conhecerem a sua pesquisa já acreditavam no ideal da austeridade e legitimou o banir da opinião pública e a proibição tácita – pela sua irrelevância científica – de todas as visões científicas produtoras de outras opções económicas e políticas na Eurozona. Como costuma lembrar João Caraça (XXXX), quando a ciência deixa o seu domínio e entra na esfera do político (e dos media) perde o seu carácter de interrogação sobre o mundo e adquire o de uma afirmação, como se fosse uma verdade absoluta. Mas, pode-se também dizer que Rogoff foi vítima da sua própria retórica, um pouco como Fausto que vendeu a sua alma ao diabo (só que neste caso foi vendida aos decisores políticos e financeiros que eram já fiéis da austeridade). Isto, porque Rogoff não possuía obrigatoriamente as mesmas visões fundamentalistas dos políticos que usavam as suas ideias. Pois, no mesmo artigo onde dissertava sobre o resgate de Portugal, Rogoff sugeria que o que havia a fazer com a dívida era perdoá-la, uma vez que “(Portugal, Irlanda, Grécia, e Espanha) estão face a 'uma década perdida' da mesma maneira que a América Latina a viveu nos anos oitenta. (…) O renascimento e a dinâmica de crescimento só começou depois de 1987 e do

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso 'Plano Brady' com o seu perdão massivo da dívida. O cenário de uma reestruturação similar é sem dúvida também o mais plausível para a Europa.“ (XXXX). E Rogoff não está(va) sozinho, Mark Blyth (XXXX), George Soros (XXXX) e, também, Carmen Reinhart (XXXX), dão pontos de partida semelhantes: só podemos resolver os nossos problemas taxando-os. Mas, atenção, taxando onde o problema está e não onde os salários e reformas das pessoas estão, ou onde os serviços públicos necessários estão. A resolução está nas taxas inteligentes e não na austeridade estúpida. Às opções que temos pela frente, se não quisermos continuar o caminho do precipício austeritário, aplica-se a mesma máxima de Churchill (XXXX) sobre a democracia: as opções não são boas, mas são as melhores quando comparadas com todas as outras. Para além de actualizar o 'Plano Brady' há outras opções à disposição para convencer os diferentes actores políticos a pensarem de modo economicamente diferente a resolução da Crise Europeia e o desastre do resgate português. Por exemplo, temos os instrumentos de “Repressão Financeira” sugeridos por Blyth e Reinhart (XXXX), ou seja, os Estados encorajarem, através de controlo sobre os capitais, imposição de tectos nas taxas de juro e outros mecanismos, para que os bancos, fundos de pensões e outros detentores de dívida de longo prazo a mantenham nas suas mãos. A repressão financeira é basicamente uma taxa sobre os detentores de dívida e que funciona bem quando o próprio sistema bancário nacional está dependente da ajuda do Estado – como é o caso actual em Portugal e na Europa toda. Aliás, relembra Blyth (XXXX), foi assim que similar problema foi resolvido nos EUA e Reino Unido após a Segunda Guerra Mundial. Há igualmente que quebrar o tabu e assumir que temos de deixar os bancos nacionais em má situação falhar, passar os activos de qualidade (depósitos e outros) para novos bancos, abandonar os de má qualidade nos bancos falidos e introduzir os controlos de capital que pudermos – mas definitivamente não continuar a pagar os seus problemas que são endógenos e não sistémicos.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso E, também, prosseguir com uma política expansionista seguida de uma política de consolidação fiscal que distribua por todos as contribuições justas para o bem comum (incluindo nessas, por exemplo, as contribuições das empresas detidas por portugueses que gerem os seus impostos sobre os lucros de forma criativa através de empresas sediadas na Holanda, Malta e Irlanda). Uma política que também, por outro lado, se centre nos apoios às famílias de médios e baixos rendimentos. Tornando-nos, assim, numa sociedade mais saudável e com rendimento distribuído de forma mais justa pelos seus dez milhões de habitantes. Se quisermos ir ainda mais longe no quebrar de tabus, temos os instrumentos necessários para pesquisar os paraísos fiscais onde há muito dinheiro que não pode regressar legalmente a Portugal. E há igualmente áreas cinzentas absurdas, como o muito dinheiro que está hoje em outros países na Eurozona do norte – sim há liberdade de movimento de capitais, mas se as dívidas na Eurozona continuarem nacionais os depósitos de cidadãos da Eurozona do sul feitos em outros países da Eurozona do norte têm de ser repensados fiscalmente de forma a não beneficiarem o norte em detrimento do sul da Eurozona. E convenhamos, estar sempre a taxar os salários e reformas é fiscalmente aborrecido, para além de injusto, pois como em 2009 não tivemos um crash bolsista, como o de 1929, os rendimentos financeiros provenientes dos mercados para os particulares e empresas não contribuíram nos últimos três anos grande coisa para o que devia ser a responsabilidade equitativa de todos. Por fim, no mundo das opções temos ainda as tomadas colegialmente por todos ou quase todos (se não convidarmos a Alemanha a juntar-se a nós) como as protagonizadas por George Soros (XXXX). Ou seja, os problemas estruturais do Euro só podem ser resolvidos colectivamente, pois não se pode diminuir o peso da dívida através do diminuir o défice dos orçamentos nacionais – quanto mais se corta nos orçamentos, menos procura há, menos riqueza, logo mais dívida. Daí que para Soros (XXXX) a opção colegial para abandonar a crise seja a introdução de Eurobonds – a emissão conjunta de dívida pelos 17 ou 16 países do Euro, pois talvez tenhamos de prescindir dos alemães nesta parte da construção europeia.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso No entanto, os Eurobonds não serão uma panaceia, nem sozinhos serão capazes de assegurar a recuperação económica, pelo que estímulos fiscais e monetários serão necessários. No entanto, terá de haver também mudanças estruturais na Eurozona do sul, pois os Eurobonds não eliminarão as divergências de competitividade, pelo que só com uma união bancária poderá haver acesso ao crédito em igualdade entre o norte e o sul da Eurozona. É verdade que a Alemanha é fortemente contrária aos Eurobonds, mas também não pode impedir os restantes países de se juntarem e emitirem-nos. Ou seja, a Alemanha também pode ter de abandonar o Euro – o que aliás resolveria o problema da Eurozona do Sul criando uma desvalorização da nossa moeda e aumentando a competitividade do resto da Europa. Como vemos, seja a partir da periferia (Portugal) ou do centro (Alemanha) da União Europeia, a ciência económica derrotou a intolerância económica política, pois roubou-lhe em definitivo o poder de nos fazer aceitar que só há uma verdade económica. No fim de contas fez renascer o desejo e a possibilidade de voltar a viver uma vida digna na até agora Eurozona proibida.

Dívida, Capitalismo e Insubmissão

A conclusão parece, portanto, evidente: precisamos de deixar o actual “Estado de Submissão” e adoptar um novo “Estado de Insubmissão”. Precisamos primeiro definir os valores que queremos defender e depois as acções políticas a desenvolver - e não o contrario. No ano novo são precisas ideias novas com urgência absoluta. Vivemos num curioso momento histórico, como lembra David Graeber no seu “Debt. The First 5000 years” (XXXX). Um momento em que a crise financeira nos mostrou que o capitalismo não pode operar num mundo onde as pessoas acreditem que ele existirá para sempre. Pois acreditar que o capitalismo será um modelo económico eterno implica que exista sempre a possibilidade de se obter facilmente crédito. E nós –pelo menos no sul europeu – sabemos em primeira mão que o crédito abundante tem limites.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Na sua análise Graeber (XXXX) também lembra uma outra curiosa evolução no contexto do capitalismo: o desenvolvimento de uma moral de culpa para os devedores e o abandono do questionar da moral daqueles que, noutros contextos históricos, seriam considerados agiotas pelos juros praticados e que incorreriam num pecado de usura excessiva. Procurando um contexto histórico similar ao que actualmente vivemos na Europa, em termos da primazia do mercado e da legitimidade do comércio sobre outros valores morais, só me ocorre uma analogia com as Guerras do Ópio travadas no século XIX pelo Império Britânico contra a proibição de comércio daquela mercadoria no então Império Chinês. O que é interessante para nós hoje relembrar é que também na Guerra do Ópio pouca atenção tiveram as questões morais numa guerra pela liberdade comercial de venda do ópio inglês aos chineses - e ao qual se opunha o governo chinês. A questão não era se o comércio do ópio devia ser considerado como lícito ou não, mas sim que a liberdade comercial de transacionar bens se sobrepunha a considerações morais sobre a mercadoria. Hoje estamos de algum modo em situação similar no sul da Europa. Há uma discussão moral sobre o dever do sul “honrar” os pagamentos das dívidas aos mercados do norte, mas não se questiona se moralmente o sul deveria pagar ou não – e se pagar quer dizer mais tempo e menos juros ou deixar de pagar parte directamente e passar a pagar indirectamente, mutualizando a dívida ao nível europeu. Tal como no comercio do ópio, também quem nos mercados a norte emprestou ao sul sabia que o excesso de crédito era nocivo, pois criava adição e não seria possível pagá-lo. Nem com as taxas de crescimento de então nem com aquelas que as tendências futuras observáveis previam. No entanto, continuouse a oferecer financiamentos a taxas baixas, pois uma vez viciado em consumir bens, provenientes na sua maioria também do norte, o sul não pararia tal prática - quer no consumo dos agregados familiares quer no investimento empresarial e público. O que está em causa nesta análise não é o incentivar algum país do sul a não pagar as dívidas, pois no actual sistema da União Europeia tal seria suicidário. Mas George Soros tem razão quando propõe o perdoar da dívida a todos os

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso países do Euro, desde a Alemanha até Grécia, na proporção dos erros económicos nacionais derivados das fragilidades de criação do Euro – algo em que os países do Euro partilham culpas em parcelas iguais. E agora? Sabemos hoje quais as causas da crise e vemos os diferentes governos europeus com um consenso sobre que ferramentas e instrumentos são necessários para prevenir que o sucedido não se repita - em particular no sistema bancário. No entanto, ao mesmo tempo que olhamos para essa concordância –por vezes mascarada de discordância por conveniência negocial e gestão de interesses nacionais de curto prazo –verificamos que todos os governos (sem excepção) perderam totalmente a capacidade de iniciativa política. Deixaram de ser capazes de se questionar sobre em nome de que ordem mais elevada agem. A resposta recorrente entre todos tende ser simplesmente “agimos assim porque necessitamos de agir desta forma”. A uma inquirição mais aprofundada ser-nos-á respondido que tal é o produto do acordado com instituições internacionais - onde curiosamente quem tem mais poder de decisão são também os países do norte, pois são os que mais contribuem com verbas para os orçamentos ou para as linhas de crédito dessas instituições. Mas como reagiriam os nossos governantes europeus à seguinte pergunta: visto ser impossível manter a capacidade de crescimento perpétuo num planeta finito, podemos assumir que, dentro de uma geração ou 25 anos, o capitalismo (o modelo actual de capitalismo ou talvez mesmo o próprio modelo cultural económico, isto é o Capitalismo com “C” grande) não existirá mais? É certo que poderemos continuar a ter capitalismo sem crescimento perpétuo. Mas o problema reside em que sem crescimento perpétuo não é possível anunciar às populações europeias que um dia retomaremos os consensos quebrados. Ou seja, que havendo aumentos de produtividade tal implicará um regresso aos aumentos de salários generalizados. Sem crescimento perpétuo, quanto muito, continuaremos a assistir a que apenas quem gere empresas e quem é accionista maioritário recolherá os louros dos lucros. Nem quem possuía propriedade dos bens de produção –sob a forma de capitalismo popular, sendo pequeno accionista - nem quem é "trabalhador-colaborador" pode esperar

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso retomar essa dimensão da justiça social - e ainda muito menos aqueles que tardiamente chegaram ao mundo do capitalismo global em países como a China ou o Brasil. No mundo que estamos actualmente a gerir, haverá lugar para alguns mas não para todos. É por isso que este é actualmente um modelo impossível de prática capitalista. Na governação ninguém sabe bem o que fazer, por isso faz-se o que se acha ser necessário para se voltar ao mesmo que se fazia antes, na vã esperança que tudo volte a ser como foi. Mas não voltará. Porque as condições necessárias para se ser o que já se foi deixaram de existir. Do consenso quebrado entre mais produtividade equivaler a maiores salários, à segunda quebra de consenso quando terminou a capacidade de distribuir crédito para aquisição generalizada de propriedade, não há mais consensos para serem partilhados entre quem trabalha e quem controla o acesso ao capital financeiro. E no meio estão os governos que, sem começarem a olhar em volta para os novos valores sociais a despontar, não conseguirão por muito mais tempo manter a paz social. No documentário “Aftermath of a Crisis” (XXXX), do canal televisivo holandês VPRO, Wieviorka lembra-nos do porquê de usarmos a palavra “sistema” para descrever algo. Se pensarmos nos seus usos no espaço mediático, associaremos quase de imediato a sua utilização ao mundo do futebol e a expressões como “é o sistema”, tentando definir algo cujo funcionamento não se compreende bem. O “sistema” é algo que não conhecemos mas do qual temos a certeza da existência: pois como pode ser de outro modo se vemos os seus resultados? Ou seja, no futebol acha-se que determinadas situações são produto do “sistema”, isto é, de algo difuso, mas que manobra por detrás das cortinas. Se um dado clube tem melhores arbitragens ou melhores resultados, então é porque alguém controla o “sistema”. Utilizamos “sistema” mesmo quando não nos é possível explicar como ele funciona, quem são os seus atores, que tipo de instrumentos são utilizados. Wieviorka, falando da atual, mas já velha, crise global (pois todos sentem os seus efeitos) mas não global (pois ainda é maioritariamente europeia), afirmava que, porque não sabemos exatamente quem fez o quê, como funciona a interação entre os diferentes atores das novas

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso elites das nossas sociedades globais, os gestores financeiros de topo, dizemos que o sistema financeiro está em crise, que tem de ser alterado. No entanto, não somos capazes de verdadeiramente definir o que está mal, pois não o conhecemos no seu todo. Há uma assimetria de conhecimento, em que as novas elites financeiras compreendem o funcionamento e os processos em jogo na economia mundial, mas onde os decisores políticos não compreendem o que se passa. Não lhes restando outro apoio possível para a decisão, resta-lhes acreditar no que as novas elites financeiras mais próximas lhes dizem ser a realidade. Tal sucede, também, por culpa das ciências sociais, pois ciências como a sociologia e a antropologia social não prestaram ainda a atenção suficiente às elites profissionais emergentes da gestão financeira. Por isso, as ciências sociais não são ainda capazes de funcionar como contra-poder na sua máxima força. Não detêm ainda a extensão de conhecimento sobre as motivações das classes profissionais financeiras, dos seus valores, das suas práticas e das suas representações sobre si mesmas e sobre o mundo que querem construir para si e para o que os rodeia – seja essa identidade geográfica, o país, o continente ou o globo. No entanto, há já vários contributos que devem ser levados em conta. Por exemplo, um contributo para um maior conhecimento do “sistema” é dado por Emil Royrvik na sua etnografia da gestão e da economia global em crise intitulada “The Allure of Capitalism” (XXXX). Royrvik argumenta, através do estudo da multinacional norueguesa Hydro, do setor dos alumínios, que a financialização da economia (isto é, a necessidade de apresentar sempre altas taxas de remuneração dos investidores que detêm ações das companhias industriais) criou um “sistema” que contaminou a grande maioria das práticas de gestão (XXXX). Essa contaminação passa pela necessidade de apresentar não apenas lucros, mas também de optar por os não reinvestir nas empresas para poder pagar sempre altos dividendos aos acionistas. Noutra esfera de decisão, essa contaminação da gestão leva a que se tenha sempre de atuar com o intuito de baixar os custos do trabalho numa lógica anual, podendo para tal tomar duas opções: despedir localmente ou deslocalizar a produção para outras zonas de salários mais baixos – a atual crise introduz a legitimação de uma terceira opção, a qual era antes tabu, a baixa de

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso salários. O que é singular nesta descrição é que não se trata de decisões motivadas pela necessidade de viabilidade económica das empresas, mas sim de decisões motivadas pela necessidade de remunerar os acionistas em percentagens, senão de dois dígitos, pelo menos acima dos 5%. Ainda para Royrvik (XXXX), este triunfo de uma nova moda da gestão, a da gestão financeira da produção, tornou-se também num modelo para a prática política, naquilo que é designado por democracia de gestão – por oposição à tradicional democracia política. Democracia de gestão é, no fim de contas, simplesmente a adoção dos valores da prática financeira empresarial à gestão dos bens públicos e da democracia. Este é um “sistema” vazio porque ao olhá-lo, de forma analítica e científica, ele perde a sua aura nebulosa e ganha contornos claros nas práticas dos seus atores e nos seus desejos. O nosso sistema atual está vazio, ou tão despido como no conto das novas roupas do imperador, pois basta olhar para ele com outros olhos, os olhos das ciências sociais, para o ver na sua crua natureza. Não teremos na União Europeia novas guerras entre países no médio prazo, mas talvez venhamos a ter velhas guerras de classe, opondo todos aqueles que querem ver melhorada a sua vida e os que querem melhorar a sua vida a custa de não melhorar a de todos os outros. É por isso que precisamos de deixar o actual Estado de Submissão e adoptar um novo Estado de Insubmissão. Precisamos primeiro definir os valores que queremos defender e depois as acções políticas a desenvolver - e não o contrario.

Da crise financeira às crises políticas europeias

No dia 6 de Julho de 2012 a Ministra das Finanças Finlandesa afirmou que preferia preparar-se para sair do euro do que pagar as dívidas dos outros países. Foi também nesse mesmo dia que foi lançado o livro “Rescaldo e Mudança” (XXXX), coordenado por mim, João Caraça e Manuel Castells, sobre as culturas económicas da crise. Na abertura desse livro alerta-se o leitor para a possibilidade de, quando estiver a lê-lo, a crise se ter de novo metamorfoseado. E é esse o caso. O dia 6 de Julho de 2012 será lembrado como um daqueles marcos temporais que a “Grande Recessão” tem vindo a acumular ao longo dos

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso anos. A crise pós Julho de 2012 passou para um novo patamar, o de passar a ser abertamente institucional colocando em causa a própria natureza do que virá a ser o futuro da União Europeia. Nós estamos a viver num rescaldo continuado da crise. O rescaldo a que nos referimos é a paisagem social, económica e institucional que está a surgir dos escombros do colapso e da tentativa de salvamento – com uma manta de retalhos -- do capitalismo financeiro global e informacional que transformou as sociedades nas últimas três décadas. O que nos reserva o futuro, ninguém o sabe, porque, entre outras coisas, uma das características do poderoso sistema financeiro no coração da crise foi a privatização do futuro, substituída por um mercado de futuros a ser comercializado segundo os ganhos de curto prazo. O resultado, como sabemos, tem sido a imprevisibilidade sistemática e a quebra da solidariedade inter-geracional. Mas se não sabemos quais serão os contornos do futuro, sabemos algo de muito importante: não podemos regressar ao nosso passado recente. A virtualização do capital; a securitização de tudo num ambiente não regulado; o desligar da produção de bens e serviços da sua valorização; a separação entre as moedas e as políticas fiscais; a ficção da integração total das economias europeias com diferentes níveis de produtividade e défices públicos divergentes; o financiamento da dívida das economias no centro da rede global com empréstimos dos capitais acumulados no que outrora era a periferia; tudo isto chegou aos limites da sustentabilidade. O que está a ser debatido não é a necessidade de reestruturar o sistema, mas o que deve ser feito e como. Em particular, quem paga pelo quê e quanto, quem fica com os benefícios e quem suporta o sofrimento da transição para um novo conjunto de instituições e regras. Tal será decidido segundo as relações de poder na base dos valores, interesses, estratégias e políticas que estão a ser debatidas na economia global em rede, nos estados-nação e em cada sociedade em rede específica. De facto, os sistemas sociais não colapsam em resultado das suas contradições internas. A crise, os seus conflitos e o tratamento que lhes é dado são sempre um processo social. E este processo social é implementado e moldado pelos interesses, valores, crenças e estratégias dos actores sociais. Isto

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso para dizer que, quando um sistema não reproduz automaticamente a sua lógica, existem tentativas de o restaurar tal como era, bem como projectos para reorganizar um novo sistema com base num novo conjunto de interesses e valores. O resultado final é, muitas vezes, resultado de conflitos e negociações entre os actores que são os porta estandartes destas diferentes lógicas. O sistema capitalista financeiro global que induziu a crise foi a expressão de um determinado conjunto de interesses, bem como a manifestação de uma cultura económica específica. Estes interesses e esta cultura ainda dominam na economia e na sociedade. Assim, o primeiro esforço para reestruturar o sistema, caracterizou-se pela tentativa de restaurar as mesmas regras do jogo num enquadramento institucional mais apertado, menor redistribuição de riqueza e maior vigilância na implementação da lógica do sistema sobre os excessos dos seus gestores sem regras. Em termos de políticas económicas, depois do falhanço financeiro de Setembro de 2008, foram considerados um conjunto de estratégias, e algumas foram implementadas, por governos, empresas e instituições internacionais. No novo ambiente de produção de políticas, o Estado, tanto o Estado-nação como a redes de diferentes Estados, recuperou o seu papel de direcção na gestão do capitalismo através de múltiplas medidas. Na base destas medidas para lidar com a crise estava um crescente debate político entre os que defendiam o restabelecimento da saúde financeira do sistema e depois deixar o mercado fazer o seu papel, e os que duvidavam da capacidade do mercado se restabelecer dada a forte quebra da procura e de crédito disponível. Deste

modo,

propuseram

uma

nova

forma

de neo-

keynesianismo temporário, enfatizando os gastos públicos despendidos para induzir a criação maciça de empregos a curto prazo. A tentativa neo-keynesiana, que implicava um aumento substancial nos gastos públicos, durou pouco tempo nos países que a tentaram implementar. Existiam limites fiscais e, à medida que o rápido aumento da dívida pública aumentava o preço da estratégia, os mercados financeiros reagiam, desvalorizando as obrigações dos países sobreendividados e desvalorizando os “ratings” das suas economias. À medida que as forças mais conservadoras se opunham tanto ao aumento dos impostos para os maiores rendimentos como aos gastos públicos, também existiram limites

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso políticos que impossibilitaram qualquer projecto neo-keynesiano, fazendo do sonho de um Estado-providência informacional um ideal utópico. País após país, as elites políticas envolveram-se em batalhas pela atribuição da culpa, tentando retirar vantagens das dores da crise para destruir os seus adversários políticos. A conclusão destas batalhas foi a ausência de coerência na gestão da crise, tanto a nível nacional como internacional, e a deslegitimação dos governos na mente dos seus cidadãos tornados desconfiados. Assim, o rescaldo imediato da crise de 2008 caracterizou-se pela incapacidade dos governos em gerir a crise, induzindo o agravar da crise económica em 2010, da crise financeira a partir de 2011 e da crise institucional a partir de meados de 2012. Enquanto as empresas financeiras recuperaram os seus lucros, o mercado imobiliário colapsou; os incumprimentos em empréstimos para habitação dispararam por todo o lado; as linhas de crédito para as PME foram drasticamente reduzidas, provocando falências em massa; o desemprego disparou; a procura ainda se deprimiu mais; e os cidadãos fecharam-se nos seus países expressando de todas as maneiras a sua falta de solidariedade com outros povos e outras nações, mesmo quando os seus governos afirmavam a necessidade absoluta de partilharem a dor. De facto, a visão das elites empresariais a satisfazerem os seus elevados padrões de vida e das elites políticas a manterem a sua arrogância face à população desinformada, aprofundou a distância entre o povo e os poderes e abriu caminho para a raiva descontrolada, reacções populistas e movimentos sociais alternativos. Assim, este é o rescaldo da crise: os resíduos disfuncionais de um modelo económico baseado num sistema financeiro incapaz de se reformar; a mudança da acumulação de capital dos velhos centros que se virtualizaram até à morte para as novas periferias que possuem e produzem a economia real, sem ainda terem o poder para a gerir; na maioria dos países um sistema político em ruínas, produto da sua auto-destruição e dos ataques das multidões privadas de direitos que deixaram de acreditar nos seus líderes; uma sociedade civil em desordem, à medida que as velhas organizações sociais se esvaziaram e os novos actores da mudança social ainda são embrionários; e a mais importante característica desta paisagem: as velhas culturas económicas que garantiam a segurança, como a crença no mercado e a confiança nos

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso bancos, perderam o seu poder comunicativo, enquanto as novas culturas baseadas na tradução do sentido da vida em sentido económico ainda estão a ser criadas. Tendo percorrido, desde 2008, o longo caminho que nos levou da crise financeira dos mercados até à crise institucional da União Europeia, e por arrasto dos estados Europeus, tornou-se fundamental abrir uma nova etapa de reconstrução das nossas sociedades, mercados e estados. Este é o nosso ponto de partida. O “rescaldo” é aquilo que nos induziram até agora a viver; o futuro, teremos de criá-lo, pois ninguém deverá poder antecipá-lo por nós.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso

Parte III

A Crise da governação e da legitimidade política

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso

O violento desaparecer da confiança

Que os governos nacionais e as instituições europeias perderam há muito a nossa confiança é um dado estatístico do Eurobarómetro. Que as agências de rating perderam a confiança dos estados e dos mercados é uma notícia sempre. Que tenhamos perdido a confiança nos ultra-ricos e na sua capacidade de criarem riqueza para todos os outros pode ser considerada uma novidade no pensamento das nossas sociedades europeias. A violência pode ser física, como quando alguém carrega numa manifestação sobre nós, ou sentida simbolicamente, quando as palavras ou as decisões de alguém nos atingem nas nossas mentes ou no nosso dia-a-dia pela diminuição do amparo social. A violência em que mergulhámos na Europa nos últimos três anos, desde que a austeridade foi generalizada como política de Estado, é essencialmente desse último tipo, é simbólica. No entanto, esta violência é essencialmente dirigida para os mais desfavorecidos e para as classes médias, poupando a ela os muito ricos e os ultra-ricos. Anthony Giddens (XXXX) referia, há 14 anos atrás, numa conferência realizada na Fundação Gulbenkian em Lisboa, que vivíamos numa época que necessitava de radicalismos, de cortes com o passado. Giddens, argumentava que numa sociedade aberta, onde a

informação é global – e eu acrescentaria onde a

informação circula em rede – os cidadãos partilham o mesmo ambiente informativo dos seus governos e a proximidade destrói a confiança (XXXX). Ou melhor, a proximidade coloca à vista desarmada as antigas e viciadas formas de legitimação política. Isto porque, ainda nas palavras de Giddens (XXXX), grande parte da política das democracias assenta em acordos de bastidores, simbolismos tradicionais, redes de interesses com origem em diferentes grupos de pertença e o uso de recursos do Estado para premiar indivíduos pelo seu apoio eleitoral.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso A resposta dos partidos políticos a essa perda de confiança, trazida pela maior proximidade entre eleitos e eleitores, não poderia ter sido encarada com a leveza com que o foi ao longo das últimas duas décadas em Portugal e na Europa. E o insustentável preço dessa leveza é hoje reflectido nas apreciações de falta de confiança dos cidadãos sobre as instituições políticas e sobre os políticos europeus. Essas estratégias de leveza aparentaram funcionar, política e economicamente, durante alguns anos, até que em 2007/2008, fruto da conjugação de incapacidade de fazer política democrática e substituição do Estado por novos actores privados, a finança implodiu e a economia teve de ser sacrificada para salvar a causa da crise – isto é, o próprio sistema financeiro. As escolhas e a experimentação activa dos actores políticos à esquerda e à direita produziu na Europa uma paisagem financeira sem regulação e que nos colocou, já por vários momentos, à beira da capitulação económica. Uma paisagem financeira, que foi culturalmente baseada na confiança da maioria dos cidadãos na melhoria de vida baseada no acesso ao crédito de consumo, na redução da sua propensão para poupar e na expectativa de crescimento económico ancorado nos mercados bolsistas. O Estado, as suas instituições e os políticos, tanto à esquerda como à direita, aceitaram esta via como boa, como única e inevitável. O óbvio contraponto, ou mesmo condição necessária, foi também que, culturalmente, a confiança fosse sendo retirada ao Estado e à sua capacidade de resolver problemas, bem como, se introduzisse a crença generalizada na incapacidade dos políticos nacionais em lidar com o que lhes era externo, os mercados globais. A política foi ganhando assim uma aura, não de representação do poder delegado pelos cidadãos, mas apenas de gestão do resto que precisava de ser gerido. Sendo esse resto entendido como tudo aquilo que não estivesse já na esfera financeira, ou aquilo que fosse ainda necessário integrar nessa esfera. Ou seja, tudo o que na dimensão económica pública pudesse ser rentável, privatizável, financializável ou contratualizado em parcerias público/privadas.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Quando o sistema financeiro Europeu esteve à borda do colapso em 2008, foram os próprios ideólogos e praticantes do Estado mínimo que pediram o socorro do Estado, como única entidade capaz de mobilizar activos financeiros capazes de impedir o fim do mundo como o conhecíamos. Mas, após ano e meio de investimentos públicos nacionais e europeus para salvar o sistema financeiro, chegou-se à conclusão que tal não era suficiente. Foi, então, necessário acelerar a transferência de activos financeiros, actuais e futuros, do sistema de propriedade e gestão pública para a dimensão financeira, e fazê-lo acompanhar de parte substantiva da propriedade e rendas privadas particulares dos cidadãos, isto é, aquilo a que se convencionou designar por política de austeridade, com diferentes graus de aplicabilidade conforme o país europeu. A austeridade na Europa traduziu-se, assim, em tentar salvar a confiança no sector financeiro à custa da destruição de todas as outras formas de confiança individual ou organizacional. O problema reside em que, se perdemos a confiança no sistema político, nos governos, nos partidos, na dimensão administrativa e burocrática europeia e se o substituímos por uma crescente confiança nos mercados e, agora, percebemos que não só não devemos confiar no sistema bancário europeu (basta pensar no escândalo Libor), como também não podemos confiar nos que nos pedem para confiar na sua avaliação dos mercados, pois as agencias de rating falham até nas avaliações da ESMA (XXXX), então em quem devemos confiar? A prática de observação, e a dimensão histórica, dizem-nos que, quando não confiamos mais nas instituições, buscamos confiar em pessoas. Mas se os políticos são hoje geralmente mal apreciados (o que é um erro porque não há nem mais nem menos pessoas honestas na política do que no mundo dos negócios), será que podemos confiar nos que sabem gerir os seus negócios, os ultra-ricos, para nos ajudarem a gerir as nossas vidas? Provavelmente não, pois os ultra-ricos são aparentemente a última etapa, numa série longa de embates, a ser atingida pela desconfiança. E a razão é aparentemente simples, pois nas nossas sociedades a ideia da existência de gestores brilhantes e eficazes convive com a percepção de que, enquanto a maioria da população perde riqueza, em paralelo assiste-se ao surgimento de

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso mais desigualdades e do aumento do número de ultra-ricos tanto em riqueza acumulada quanto em número, quer em Portugal quer na Europa. A desconfiança da sociedade torna-se endémica face aos ultra-ricos quando damos conta que a riqueza não se cria apenas com oportunidade, esforço e boas ideias. Para a criação de riqueza o acesso ao crédito é sempre um elemento fundamental. Ora, numa época de escassez de crédito na Europa, por via da necessidade de canalizar activos para recapitalizar a banca, o crédito flui essencialmente para aqueles que detém a confiança do sistema financeiro. Ou seja, para os que têm ideias, esforço e a oportunidade, porque fazem parte do próprio sistema financeiro. Fazem parte daquele porque detêm parte do mesmo, ou porque estando no Estado garantem o aval do sistema financeiro através da mesma lógica de política democrática de favores mútuos que Giddens (XXXX) criticava em Lisboa em 1999. A essa lógica, os sociólogos Michel e Monique Pinçon denominam a “ Violência dos Ricos” (XXXX). Uma lógica que produz uma democracia assente numa aristocracia do dinheiro. Uma nova aristocracia financeira, de prática oligárquica e que, para assegurar o seu poder, controla culturalmente, e por vezes activamente, o essencial das forças políticas à esquerda e à direita, através de um pensamento assente na trindade: livre circulação de capitais, menos Estado e cada um por si. O violento desaparecer da confiança, introduzido pelo novo século e produzido pelas suas novas elites, é assim o produto de um capitalismo irresponsável e da, até agora, ainda impotente busca da responsabilização deste tipo de capitalismo.

Portugal, terra da desigualdade

As próximas linhas não são um plágio mas antes uma proposta de jogo. Esse jogo consiste em adivinhar sobre que país estamos a falar nas frases seguintes: “Nada ilustra melhor o que tem acontecido do que o apuro que vivem os que hoje têm vinte e poucos anos. Em vez de iniciarem uma nova vida, cheia de entusiasmo e esperança, muitos deles confrontam-se com um mundo de ansiedade e medo. Esmagados com o custo dos estudos e empréstimos, que sabem lhes ir custar muito a pagar e que não se reduzirão mesmo que se

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso declarem

insolventes,

procuram

empregos

num

mercado

de

trabalho

disfuncional. Se tiverem sorte de encontrar um emprego, os salários serão um desapontamento, na maior parte das vezes tão baixos que terão de continuar a viver com os seus pais. Enquanto os pais de cinquenta e tal anos se preocupam com os seus filhos, também se preocupam com o seu próprio futuro. Irão perder a sua casa? Serão obrigados a reformar-se antes do tempo? Será que as suas economias, em grande parte depauperadas pela grande recessão, serão suficientes para continuar a viver? Eles sabem que face à adversidade pode não ser possível voltarem-se para os seus filhos em busca de ajuda. Do governo vêm ainda piores notícias: são discutidos cortes no sistema de saúde, que tornarão o acesso de algum grupos aos cuidados de saúde não suportáveis. Na segurança social, também parece estarmos numa onda de cortes”. A que país nos estaremos a referir? A semelhança é extraordinária com o que se ouve falar nas ruas, transportes e na comunicação social em Portugal. Mas não é Portugal. São os Estados Unidos da América nas palavras de Joseph Stiglitz, prémio Nobel da economia e autor do livro The Price of Inequality (XXXX) e onde nas páginas 265-266 se encontra escrito o que, em tradução livre, aqui foi reproduzido. Tal como é apresentado no relatório da OCDE “Divided We Stand” (XXXX) ou se preferirmos, "Divididos Nos Mantemos", a crescente desigualdade é um problema de muitos países, ou melhor, de quase todos os países da OCDE nas últimas duas décadas - honrosa excepção feita ao Brasil. Portugal não escapa a essa tendência e, porventura, merecerá na Europa, dos 24 países sob olhar da OCDE, o epíteto de “Terra da Desigualdade”. A vida em Portugal é tão desigual, entre quem tem mais rendimentos e quem menos possui, que os nossos coeficientes de desigualdade do rendimento disponível nos colocam sempre pior que o Reino Unido (o país mais desigual da Europa do Norte) e logo atrás dos EUA (o país só destronado na desigualdade pela Turquia, México e Chile). Mesmo quando pensamos na desigualdade de rendimentos oriundos do chamado capitalismo popular, ou seja, da suposta “democratização” dos ganhos em bolsa, também aí conseguimos ser tão maus

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso quanto o Reino Unido e ainda piores do que os EUA na concentração de riqueza nos mais ricos. O que assistimos em Portugal, e nos restantes países da OCDE para os quais há dados, são duas décadas de aplicação da regra "Jesse James" (ou pelo menos como foi retratado o famoso fora-da-lei na história do cowboy que dispara mais rápido que a sua sombra, Lucky Luke). Isto é, “roubar muitos pobres equivale a roubar um rico” ou, adaptando esse dizer da BD à nossa análise, para que a concentração de riqueza nuns poucos continue a aumentar é necessário que muitos percam o seu pouco dinheiro. Pois, como sabemos, a evolução do modelo de mercado de capitais tem vindo cada vez mais a aproximar-se da lógica dos casinos em que para alguns ganharem é necessário que muitos percam, num jogo de quase soma nula. No relatório da OCDE “Divided We Stand” (XXXX) é apontada a razão do crescente aumento da desigualdade nas sociedades estudadas, e também da portuguesa: a razão reside na crescente desigualdade de salários. Os dados sugerem que a desigualdade salarial entre cidadãos assenta no facto de o progresso tecnológico ter tido impacto salarial maior nos trabalhadores com mais competências e escolaridade; que as reformas laborais, introduzindo maior flexibilidade, criaram mais empregos, mas substituíram empregos mais bem pagos por empregos mais mal pagos; que o aumento de trabalho part-time e de contratos precários contribuiu também para maior desigualdade salarial; que as novas famílias tendem a ser constituídas por pessoas com o mesmo nível de rendimentos, em vez de demonstrarem diversidade salarial, criando menor mobilidade social e de rendimento; que os rendimentos oriundos de fora dos salários, nomeadamente os obtidos nos mercados de capitais, aumentaram ainda mais desigualmente do que os com origem em salários, concentrando-se ainda mais em menos pessoas; e que, por último, a redistribuição de rendimento via actuação dos Estados tem sido diminuída em muitos países pelos cortes de benefícios sociais, pelo apertar das regras de acesso e pelas falhas na capacidade da administração de efectuar transferências para quem mais delas necessita – embora em Portugal tais práticas tenham sido temperadas nas duas

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso últimas décadas até à crise de 2008, pelos governos de diferentes cores, as mesmas foram depois aceleradas a partir do acordo com a Troika. Tal como o Portugal de hoje, os Estados Unidos da América deixaram de ser a terra da oportunidade para todos e passaram a ser a terra das oportunidades de uns poucos. Daí que a população norte-americana se tenha manifestado (alguns) e apoiado (a grande maioria) o grito de que nós somos os 99% espoliados pelo 1% dos mais ricos – algo que seria inimaginável nesse país há duas décadas atrás. Como Robert Reich mostra no seu documentário “Desigualdade para Todos” (XXXX), premiado no festival de Sundance, os desequilíbrios económicos estão agora a um nível histórico sem precedentes. A desigualdade de rendimentos na América só no ano de 1928 foi tão alta como em 2007 – isto é, os anos que antecederam os dois grandes desastres económicos dos dois últimos séculos foram também os mais desiguais de sempre. Em 1978 o trabalhador típico dos EUA ganhava em média anualmente 48,302 dólares enquanto o 1% dos mais ricos ganhava, em média, 393,682 dólares ano. Saltemos para 2010. Há três anos atrás, o mesmo trabalhador típico ganhava o equivalente a 33,751 dólares enquanto o 1% do topo da pirâmide salarial atingia a casa do milhão de dólares – mais concretamente 1,101.089 dólares. Ou seja, quem menos ganhava perdeu cerca de 30% do salário auferido na década de setenta, enquanto os detentores de salários mais elevados mais do que duplicaram o seu salário. Como Reich explica, hoje os 400 americanos mais ricos têm mais riqueza do que 150 milhões de norte-americanos juntos. Mas o que tem a ver connosco, os portugueses, o que se passa nos EUA e no resto da Europa? Eu diria tudo, pois nós não nos limitamos a copiar estilos de vida, práticas de consumo e formas de estudar. Também copiamos formas de organizar a nossa sociedade, o nosso Estado e a forma como gerimos organizações. Para Portugal os Estados Unidos da América, em primeiro lugar, e depois a União Europeia, constituem o nosso benchmarking, ou se preferirmos, numa linguagem mais crua, são aqueles que copiamos. E isso é hoje terrível para nós. Pois estamos entalados entre a cópia de uma sociedade cada vez mais desigual, a americana, e sociedades obcecadas pelos cortes e a submissão

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso de tudo o resto ao “corte” orçamental, ou seja, as sociedades da União Europeia, contribuindo assim ainda mais para aumentar as desigualdades. Na União Europeia, quer na Comissão quer na maioria das práticas governativas nacionais, a grande preocupação é a estabilidade do euro – mesmo para os que estão fora dele. Isso faz com que, por exemplo, se considere que as grandes ameaças à estabilidade dos mercados possam ser as generalizadas suspeitas de corrupção em Espanha, que colocam em causa a credibilidade do actual primeiro ministro Rajoy e da restante cúpula directiva do Partido Popular ou a incerteza eleitoral em Itália quanto aos resultados das próximas eleições – no entanto a leitura política, de quem está no poder, não é que o problema se tenha que resolver mas antes que não se deve falar no problema para não desestabilizar os mercados. Ou seja, estamos a chegar a um ponto onde podemos imaginar que alguém (um funcionário da Comissão ou um representante de um país da União) poderá afirmar em off, a outrém, que há um preço a pagar pela estabilidade do euro e que esse preço será pago em democracia! Pagar-se-á através do fazer de conta que não se liga às suspeitas de corrupção em Espanha, na crença de que é preferível tolerar a corrupção do que colocar em causa a estabilidade do euro, ou que se houver possibilidade de manipulação eleitoral da opinião publica em Itália, tal será desculpável desde que seja para o bem da estabilidade política no resultado de maiorias claras – a bem da estabilidade do euro, é claro. O problema reside no facto de ser precisamente o Estado a única entidade que pode reduzir as desigualdades mas que hoje se auto-limita nesse papel ora com medo da hipotética reacção dos mercados ora por ter adoptado genuinamente, sem ter a noção das suas consequências, práticas de gestão indutoras de desigualdades. Portugal vê-se hoje colhido por este modo de pensar Europeu – por enquanto maioritário – ao mesmo tempo que foi adoptando, ao longo de duas décadas, um modelo de gestão importado das melhores escolas (pois foi oriundo das Business Schools dos EUA e dos seus MBA), causador das piores práticas de gestão (com resultados à vista na viabilidade de muitos dos nossos bancos e empresas) e produzindo a financialização da nossa economia. Ou seja, uma forma de praticar a gestão que implica a necessidade de apresentar sempre altas

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso taxas de remuneração dos investidores que detêm acções das companhias industriais e de serviços. Criando, assim, uma “lógica” que contaminou a grande maioria das práticas de gestão portuguesas. Essa contaminação passa pela necessidade de apresentar não apenas lucros, mas também de optar por os não reinvestir nas empresas para poder pagar sempre altos dividendos aos accionistas. Noutra esfera de decisão, essa contaminação da gestão leva a que se tenha sempre de actuar com o intuito de baixar os custos do trabalho numa lógica anual, podendo para tal tomar duas opções: despedir localmente ou deslocalizar a produção para outras zonas de salários mais baixos – introduzindo a actual crise a legitimação de uma terceira opção, a qual era antes tabu, a baixa de salários. O que é singular nesta descrição é que não se trata de decisões motivadas pela necessidade de viabilidade económica das empresas, mas sim de decisões motivadas pela necessidade de remunerar financeiramente os acionistas em percentagens, senão de dois dígitos, pelo menos bastante acima do valor dos juros bancários. Este triunfo de uma nova moda da gestão, a da Gestão Financeira da Produção, tornou-se também num modelo para a prática política, naquilo que é hoje designado por Democracia de Gestão – por oposição à tradicional Democracia Política. A Democracia de Gestão é, no fim de contas, simplesmente a adopção dos valores da prática da gestão financeira da produção à gestão dos bens públicos e da democracia, algo retratado nas diferentes práticas governativas nacionais na Europa e que levaram à aprovação de um orçamento europeu de cortes – aumentando ainda mais as desigualdades europeias. O mais curioso é que, na maioria dos casos, os próprios actores políticos não têm a consciência de estarem a agir segundo esta lógica. A análise aqui realizada não é uma declaração de ataque a quem mais ganha ou à diferenciação salarial ou ainda ao empreendedorismo, pois só com diversidade e liberdade há criatividade e inovação e se cria riqueza. No entanto, também sabemos que quando a desigualdade atinge certos patamares cerceia a capacidade criativa, o empreendedorismo, a democracia e a própria liberdade de negócio. Eu não quero viver num mundo assim, nem creio que a maior parte dos

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso que lerem este artigo o desejem, porque já viveram em mundos melhores, ou porque já experimentaram mundos piores, ou porque simplesmente acreditam na nossa capacidade individual de fazermos coisas fantásticas em conjunto. Perceber que vivemos em “Portugal Terra da Desigualdade” e quais as suas causas são apenas um princípio para darmos juntos o próximo passo na sua resolução - pois mesmo na Europa há outros modelos menos desiguais à espera de serem experimentados - e quem o sugere é o liberal The Economist (XXXX). As nossas escolhas não são entre "austeridade" (ou no novo neologismo "consolidação orçamental") e "crescimento". Ou seja, temos de libertar o discurso e acção da existência de apenas duas escolhas: ou se é pelos que acreditam que para haver equilíbrio orçamental temos de baixar custos do Estado e dos salários em geral para depois ser competitivo e crescer (a linha da austeridade); ou se é pelos que acreditam que sem se promover primeiro o investimento privado e público e consumo não pode haver equilíbrio orçamental (a linha do crescimento). Embora o debate em Portugal e na Europa esteja polarizado entre essas duas posições, não podem ser essas as nossas escolhas, sob pena de no processo perdermos o que nos deve mover, ou seja, nós as pessoas, nós os cidadãos, o nosso futuro. A Europa continua em crise e as crises sucedem-se a toda a nossa volta. Talvez, como sugere Rosalind Williams (XXXX), tenhamos que encarar o progresso não como uma marcha triunfal mas mais como uma série de redes de crises que nunca

são

totalmente

resolvidas

e

contra

as

quais

temos

de

lutar

independentemente de onde quer que elas surjam. Essas crises não são resolúveis apenas com os instrumentos herdados do passado, pois interligam-se, são financeiras, económicas, sociais, políticas, ambientais e, por vezes, humanitárias ou mesmo de cariz militar. Como sabemos, as actuais Primaveras não são ainda comparáveis às primaveras de 2011 e 2012, aquelas que entre outros juntaram a primavera árabe, os protestos por habitação condigna em Israel, pela mudança de sistema político através da indignação espanhola e portuguesa, pela mudança no sistema educativo no Quebec e no Chile ou pelo fim da desigualdade para os 99%

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso desencadeados pelos movimentos Occupy no mundo anglo-saxónico. Ou, ainda, na Primavera de 2013 quando na Turquia vimos surgir o que parecia ser um movimento oriundo da metade do país que não votou em Erdogan na última década em conjunto com os que votaram, unindo-os o receio de uma deriva para uma política centrada na permanência no poder ao invés de uma política centrada no servir as aspirações dos cidadãos. Mas temos também um fenómeno de revolta em curso na Europa, talvez ainda menos visível a olho nu, mas presente. Uma revolta de características particulares, mas que não deixa de ser analiticamente importante para todos os europeus e para os portugueses em particular. Que revolta é essa? É uma revolta de governos, não envolvendo todos, é certo, mas isso não a torna menos importante devido ao factor contágio. Mas também é uma revolta palaciana entre comissários europeus com diferentes visões e, mesmo, um mal-estar face a atitudes já tomadas e que se revelaram erradas - e cujo custo político alguns comissários não estão dispostos a pagar em particular quando se aproximam eleições europeias. Para compreendermos melhor o que se passa temos de aceitar dois pressupostos, hoje já profusamente difundidos: nem as entidades internacionais (CE, FMI, BCE) são donas de soluções testadas; nem há já hoje qualquer convicção partilhada entre os seus membros de que o que é por si sugerido, como política económica e financeira, tenha obrigatoriamente de produzir resultados. Depois de muitos anos de lidar com a crise e os seus efeitos parecemos ter atingido uma nova etapa da gestão da crise financeira e fiscal do euro e que é caracterizada pela assunção pública da quebra de confiança entre um número significativo de Estados e as entidades internacionais (CE, FMI, BCE) - mais significativo ainda pelo facto de os Estados envolvidos não serem aqueles formalmente intervencionados. Num primeiro momento, desorientados por uma crise cujos fundamentos e implicações desconheciam, os Governos de então e os futuros protagonistas políticos nacionais - ávidos de ajuda e financiamento - aceitaram e negociaram diferentes memorandos, sempre enquadrados pela visão expressa pelos

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso organismos da troika e pela confiança de que eles (CE, FMI, BCE) saberiam o que estavam a fazer - em particular porque eram "especialistas", embora nunca tivesse havido um evento similar ao sucedido na zona euro do qual se pudessem tirar ilações. Essa confiança, ou crença, levou a um estranho, mas compreensível, encontro de vontades, entre quem desejava ser ajudado e ser visto pelos seus concidadãos como quem venceria as adversidades da crise, e técnicos internacionais que viam no sucedido a possibilidade de abandonar os seus gabinetes, testar teorias na prática e encontrar governantes eleitos que depositavam em si a confiança na solução dos problemas. É claro que nada correu como planeado, pois a realidade é mais complexa do que os modelos e a sua aplicação depende tanto de conhecimento técnico, como de conhecimento baseado na experiência, de capacidades políticas e de rasgos de génio sobre como e quando arriscar ou esperar. Os passos descritos nos parágrafos anteriores trouxeram-nos até aqui, até um momento que parece, curiosamente, poder vir a breve trecho ser apropriada pelos povos europeus. No fundo, são os Governos nacionais não formalmente intervencionados que antecipando revoltas (seja no voto contrário em eleições, seja pela necessidade de gerir a possibilidade de descontentamento prolongado face às instituições) atacam as posições e recomendações das entidades internacionais. Mas são, porventura, mais do que simples reacções dos governos nacionais europeus. Pois, como afirmava o Presidente francês, François Hollande, se os governos não puderem decidir que políticas seguir para atingir objectivos como os do défice - mesmo que estes sejam produto de acordos na União - o que restará da soberania dos Estados? E eu acrescentaria, que será do poder dos governos? Curiosamente, não é apenas a França que se posiciona deste modo. A Alemanha também respondeu, a dado momento, de modo semi-irado às recomendações do FMI sobre a sua política económica e fiscal, sobre a emigração, sobre a maior incorporação de mulheres no mercado de trabalho ou

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso sobre os riscos do sector bancário alemão, com a sua exposição a sectores instáveis como o marítimo, imobiliário internacional e activos estrangeiros. E a lista poderia estender-se aos espanhóis e italianos na sua política dúplice de dizer sim sempre que necessário e não aplicar sempre que tal possa colocar em causa o interesse nacional. Ou ainda a Holanda, que manifestou publicamente a recusa de baixar ainda mais o défice por entender que tal poderia colocar em causa a protecção social e os rendimentos dos cidadãos. No geral algo está a mudar, mas talvez não pelos melhores motivos. Ou seja, não parece ser o interesse dos cidadãos que faz com que esta movimentação dos governos ocorra -e, aliás, os resultados desta mudança podem tornar-se bastante negativos para a Europa. Mas talvez, também, se possa argumentar que se a Europa é isto que temos vindo a observar talvez não valha a pena salvar a Europa - o que, por sua vez, também constitui um princípio para podermos mudar para algo que achemos que valha a pena construir. Os governos estão a revoltar-se contra os organismos internacionais com o intuito de manter o seu poder. Pois, como o poder de base democrático está assente em eleições nacionais, esta é uma "revolta" dirigida à manutenção do status quo nacional. O que, dada a actual situação, poderá ser positivo, pois obriga os governos a distanciarem-se da embriaguez induzida pelas discussões e propostas assentes nas escolhas de "Austeridade vs. Crescimento", abrindo, assim, espaço para de novo se olhar para os cidadãos enquanto pares dos governantes. Tanto em Portugal como na Europa precisamos de nos libertar desse sequestro intelectual promovido pela eterna necessidade do discurso político em gerir opostos porque se não, de tanto centrarmos a nossa atenção nos meios e não nos fins últimos da governação, perderemos as pessoas. Não podemos manter eternamente - e ainda menos em tempos de crise - uma agenda política centrada na luta entre "Austeridade vs. Crescimento" porque ela promove essencialmente a centralidade dos interesses dos Estados e das empresas e só indirectamente estabelece uma ligação à melhoria das condições de vida dos indivíduos.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Precisamos urgentemente de uma agenda política centrada na autonomia dos indivíduos e na liberdade de criar, realizar e ter uma vida melhor. E na Europa muitos já o perceberam – só que, infelizmente para todos nós todos, perceberam-no tarde. Após cinco anos de diariamente repetirmos as virtudes e bondades da consolidação orçamental e das reformas estruturais centradas nas vantagens para o Estado ou para as empresas, necessitamos de nos centrarmos na melhoria das vidas dos indivíduos e das sociedades europeias. E, portanto, precisamos de nos centrar em questionar os povos da Europa sobre qual é o seu desejo de progresso económico para os seus países e as suas vidas pessoais ou o que importa conquistar em termos de maior justiça perante a desigualdade de rendimentos e perante as desigualdades de tratamento por parte das instituições do Estado. Mas também questionar como numa sociedade de risco podemos adquirir segurança, tendo empregos que permitam aspirar à segurança de ter que comer, onde habitar e de desejar sempre melhor. É isto que nos faz humanos, que nos faz vencer a adversidade e não a austeridade ou o crescimento, que mais não são do que instrumentos políticos e que pouco ou nada dizem às nossas vidas. A política parte do que faz sentido para as pessoas, não do que nas pessoas pode fazer sentido para a política. Porque os instrumentos e as instituições de ontem nunca conseguem resolver os problemas por si criados, temos de pensar o futuro e colocar em causa o passado para poder obter respostas. Qualquer que seja a visão do futuro que queiramos adoptar, só há futuro para lá da austeridade e do crescimento. Só há futuro se soubermos que progresso, que justiça, que pão e habitação são as nossas?

Das Ruas aos Votos: Os Novos Conflitos Sociais

Mais de meia década passada sobre os primeiros sinais de crise parece ser tempo de assumirmos que esta crise não é idêntica às que vivemos desde o choque petrolífero dos anos setenta. Esta é diferente, porque ocorre num

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso momento em que o mundo das transacções se tornou global, em que a China se tornou central na economia e na diplomacia e em que a Europa e os Estados Unidos estão enfraquecidos. Esta crise é também diferente das anteriores porque o poder dos estados Europeus e dos EUA foi em grande medida consumido por duas guerras e por um sector financeiro que primeiro, por acção própria, implodiu e que a seguir, para continuar a sobreviver, secou as capacidades financeiras dos Estados. Por último, e esta é a razão fundamental da diferença, esta é uma crise em que a retoma e criação de riqueza deixaram de querer dizer emprego. Criar emprego deixou de ser um meio para gerar riqueza para ser muitas vezes uma obrigação moral do investidor - quanto ele acredita ser esse o seu papel. Todas as crises têm os seus conflitos, mas poucas vezes esses conflitos são liderados pelas “massas”. Talvez essa seja a razão pela qual Habermas refere não perceber porque é que as pessoas não se revoltavam na Europa (XXXX). Não se revoltam porque, em geral, estão preocupadas em resistir, em defender os benefícios que possuem e não estão a lutar por algo que gostassem de ter – pois não há um discurso ideológico que unifique um desejo comum de alcançar algo melhor do que o que hoje se tem. Os conflitos são normalmente produto das elites em potência, das que possuem a aspiração a exercer algum poder e que são deixadas de fora pela elite actual. De algum modo é uma eterna luta entre os que estão e os que almejam estar. Em momentos de crescimento económico, os mecanismos de mobilidade social e a democracia são os instrumentos que permitem esvaziar essa luta. Mas, quando as crises se instalam, esses mecanismos tendem a perder a sua eficácia. A nossa sociedade é uma sociedade assente no domínio do conhecimento e da informação, uma sociedade em rede que interliga todos os domínios da vida social, económica e política com valor para o sistema económico global. Logo, os que podem exercer o poder, mas que são deixados de fora pela crise, são os profissionais especializados com formação superior, os que não conseguem emprego condizente com as suas expectativas ou simplesmente não têm emprego. É entre esses que iremos encontrar os actores dos novos conflitos sociais. E quem serão os seus alvos de contestação? É fundamental comparar

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso os acontecimentos do final de 2010 e início de 2011, na Europa, EUA e no Norte de África, à luz do que sucedeu no passado noutro contexto geográfico, o do final dos anos sessenta. As contestações às propinas universitárias no Reino Unido ou à austeridade na Grécia, a desconfiança face às políticas dos governos na Europa e nos Estados Unidos, a consciencialização no sul do continente Europeu de que as gerações abaixo dos 35 anos poderão não ter mobilidade social ascendente, as revoltas populares desorganizadas na Tunísia e organizadas no Egipto têm entre si infelizmente mais coisas em comum do que aquelas que, provavelmente desejaríamos encontrar. No final da década de sessenta o que assistimos foi a uma oposição de valores sobre como viver e desenvolver o mundo, por uma coincidência histórica também foi uma oposição geracional que se verificou entre os que exerciam o poder e os que o contestavam – uns nas universidades e outros no estado e empresas. O que assistimos hoje é uma oposição entre aquilo que podemos designar pelos “vossos privilégios” e as “nossas reivindicações”, não tanto baseadas numa oposição entre formas de pensar e desenvolver o mundo, mas de escolha entre o que se considera ser uma situação sem perspectivas de mobilidade social e a necessidade de fazer algo para que ela seja possível. No entanto, novamente por um acaso histórico, desenha-se também uma oposição geracional. Num contexto de crise económica, a que se junta o aumento da esperança de vida e o aumento da idade legal da reforma e a generalização do uso da comunicação em rede estamos a criar um cocktail político tão explosivo quanto os próprios cocktails molotov que enchem os nossos ecrãs televisivos. As gerações mais novas pura e simplesmente não vêem como poderão aspirar a ter a mesma vida dos seus pais ou a ter uma vida melhor que a deles, pois as oportunidades de emprego esperadas pura e simplesmente não surgem no actual modelo económico e político. Mas se temos repetição, não temos também novidade? A resposta é claramente sim. Por via de termos construído uma comunicação em rede e abandonado a comunicação de massa introduzimos o novo. A comunicação da TV, Jornais e Rádio das últimas quatro décadas era uma comunicação destinada a transmitirnos como vivermos nas instituições da nossa sociedade, mas a comunicação em

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso rede é baseada em permitir-nos reconstruir as instituições e organizarmos-nos informalmente - daí o seu poder mobilizador para a mudança social desde o facebook e twitter até às ruas. Mas, infelizmente o que se grita nas ruas de Londres ou Cairo e se ouvirá futuramente noutras, isto é a saída de protagonistas políticos de cena, não poderá trazer por si só mudanças, pois o problema não está só nos actores políticos, mas no próprio modelo político e económico global escolhido, que como todos os antes dele, terá também de mudar para se adaptar à realidade social do seu tempo. No entanto, Não parece credível que a lógica dos anos setenta de contestação, violenta ou não, do Estado se repita. Pois, a contestação faz-se onde o poder reside e hoje os Estados estão bastante mais enfraquecidos – excepto quando fazem a guerra. Onde o poder parece ser visível a olho nu é na gestão das grandes empresas. Essa é uma mudança radical e deve-se essencialmente à percepção pública de que grande parte da possível mudança passa por esses actores. Os gestores são olhados como quem pode decidir ou não criar emprego, os que escolhem entre criar emprego ou remunerar investidores. Creio que iremos assistir a um crescente culpabilizar dos gestores, enquanto classe profissional, dos problemas de não criação de emprego, será nessa forte ideia que iremos encontrar a explicação para aquilo que alguns designarão por sabotagem e outros por conflito social. Os novos conflitos sociais serão produto da acção individual e não organizada. As suas acções serão anónimas mas serão apresentadas publicamente em busca de apoio nas redes sociais da Internet . O objecto da sua acção será a perturbação da imagem de sucesso dos gestores e o embaraço de accionistas e proprietários. Serão essencialmente perpetrados em torno da divulgação de informação privilegiada, uso de sistemas de bases de dados e de quebra de redes centrais ao funcionamento e prestação de serviços das empresas. E os seus actores serão aqueles que detendo as capacidades de exercício do poder estarão nas suas margens. Serão acções de quem tem acesso a informação privilegiada dentro da empresa ou de quem estando fora dela decide atingir os que, na sua opinião, agem erradamente e a quem se culpa pela situação individual, pelo estado da economia e pelo estado do mundo em geral. Os sinais estão presentes em muitos dos acontecimentos do

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso mundo que nos rodeia, da utilização do Wikileaks, às fugas de informação para os media, nos vírus criados para atingir determinadas instituições, às grandes fraudes

de

cariz

informático,

etc.

Os

novos

conflitos

sociais

serão

desencadeados por aqueles que cresceram num modelo que lhes ensinou que é no poder da informação que reside a gestão da nossa vida e que, de repente, se sentem traídos e perdidos. No entanto, nem tudo são más notícias pois há sinais de que algo pode mudar. Num país como Portugal, onde predominam estilos de gestão de cariz absolutista, há grandes empresas que assumem publicamente modelos de gestão de cariz liberal e de preocupação com o emprego. Há também da parte das elites sem poder, a noção de que podem existir alternativas, que se podem criar pequenos negócios cujo objectivo não é o lucro mas a sustentabilidade salarial que podem propiciar aos seus proprietários. E há também aqueles que pura e simplesmente procuram modelos alternativos que normalmente levam em conta a ecologia e a troca em vez da economia monetária. Como sempre não há um modelo único mas sim múltiplas soluções para problemas complexos. Mas provavelmente, enquanto não mudarmos as lógicas de gestão e não surgirem novas visões políticas que ofereçam objectivos de longo prazo para largas parcelas da população, estaremos a arriscar cada vez mais viver novos conflitos sociais que colocarão em causa aquilo que consideramos adquirido e normal no nosso dia a dia, da energia às telecomunicações, da banca aos transportes. Será daí que virão os novos actos de conflitualidade social desencadeados individualmente em protesto contra quem detém poder mas atingindo-nos a todos nas suas nefastas consequências.

Indignados? Todos!

Quando se ouve a palavra “indignados”, para caracterizar as diferentes manifestações em curso, surge muitas vezes o comentário de que são um grupo residual entre a população nacional ou mundial. No entanto, esta representação não poderia estar mais errada. Os “indignados” são a maioria da população mundial, tal como o demonstram os inquéritos de opinião ao longo da última década. Inquéritos, onde as opiniões expressas sobre partidos políticos e sobre a

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso democracia são, no mínimo, de desconfiança e, no máximo, de rejeição dos actuais líderes partidários ou representantes eleitos. Indignados em casa há muito que os temos, a diferença está em que, desde há alguns meses, passámos também a tê-los na rua. Os indignados nas ruas têm seguido muitos tipos de protestos com maior ou menor grau de inovação, como sejam constituir partidos políticos como o Partido Pirata, com eleitos para parlamentos na Europa e membros de governo no Norte de África, a opção por organizações não governamentais como o WikiLeaks, protestos como os do 15 de Outubro a nível global, a ocupação de locais públicos como o “Occupy London”, a Praça Tahir no Egipto, “Occupy Wall Street” ou a “Tent City” de Telavive. Ou ainda manifestações como a da Geração à Rasca ou dos Estudantes e famílias no Chile. Todas estas formas de manifestar indignação têm em comum a crise global não global. Global na desconfiança face aos sistemas políticos democráticos (e não democráticos) e, também, na crise dos mercados financeiros. Não global nas dívidas nacionais, na crise de empregos e na quebra produtiva. Mas o que têm em comum, para além da crise, esses movimentos? Na sua maioria são jovens que os lideram, pois eles são as elites potenciais das sociedades, aqueles que poderiam liderar a política e os negócios, porque têm todas as condições para o fazer, mas que são colocadas em pausa pelo contexto. O contexto quer dizer diferentes coisas, contexto político quando falta a democracia, contexto económico quando não há empregos disponíveis. Ou seja, quando surgem fortes barreiras à mobilidade social e à intervenção política é quando a indignação sai à rua e esse é o padrão em que estamos actualmente envolvidos. Porque quando não há esperança de mudança, acabamos sempre por tomar a mudança nas nossas mãos. O mais difícil de entender para os actuais líderes não é tanto a normalização da desconfiança nas instituições mas o facto de não compreenderem a cultura na génese destas manifestações de indignação. Essa cultura foi formada no uso da comunicação em rede na Internet e numa muito maior compreensão de como se pode utilizar a comunicação de massa em favor de um protesto. Quando ao face a face juntamos as redes sociais e a estas a cobertura noticiosa da TV, rádio e jornais, o sucesso pode ser enorme – basta pensar na elevada cobertura do 15

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso de Março e na elevada participação e a menor cobertura do 15 Outubro de XXXX e a menor mobilização. A cultura de indignação nas ruas é o produto da recusa das culturas de interesse pessoal, que marcaram os anos oitenta e noventa, e a adopção das culturas de pertença do início de século. Culturas de pertença construídas em torno da socialização em rede, da forma diferente como se olha para a posse e propriedade em nuvem, como se valorizam as culturas de partilha (ou se preferirmos culturas de pirataria) e de como se produz em abertura sem esperar que algo tenha fim. Quando se muda, ainda que lentamente, numa sociedade a forma como encaramos a posse, a partilha e a produção, essa sociedade muda inevitavelmente (ou pelo menos tem uma grande probabilidade de gerar mudança). O que quer isto dizer para os governos e instituições da democracia? Os indignados na rua têm propostas concretas sobre muitas questões e se os líderes e as actuais instituições da democracia querem inverter o seu rumo de declínio devem aceitar isso e começar a pensar o mundo de modo diferente. A cultura de quem está na rua (e também cada vez mais dos que estão em casa) está a ficar mais distante de quem nos representa e quem nos lidera. Os líderes das democracias que não souberem ouvir de forma diferente e mudar a sua forma de pensar estarão condenados a um ciclo vicioso de derrota, de quem estiver no poder, e vitória de quem estiver na oposição. Sem que isso se traduza em algo de importância para a vida das pessoas. Esse caminho só leva ao desgaste da democracia e abre o caminho às tentativas de regresso aos diferentes passados de decadência. Normalmente as análises oriundas dos meios de comunicação social esquecem uma dimensão fulcral do protesto nas nossas sociedades: a necessidade fundamental de protestar na Era da Informação. Pois, o protesto está hoje para a política assim como a inovação está para a economia. Ou seja, sem inovação a economia não cresce, sem protesto a política é incapaz de formular soluções. Gene Sharp (XXXX) publicou há algumas décadas uma lista de 198 tipos de protestos pacíficos que incluem as seguintes categorias: actos Públicos Simbólicos: "(...)18. Mostra de bandeiras e cores simbólicas; 19. Uso de

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso símbolos; 20. Oração e prece; 21. Entrega de objectos simbólicos; 22. Despir como protesto; 23. Destruição de propriedade própria; 24. Luzes simbólicas; 25. Mostra de retratos; 26. Pintar como protesto; 27. Novos sinais e nomes; 28. Sons simbólicos; 29. Reclamações simbólicas; 30. Gestos rudes. Pressões Sobre Indivíduos 31. "Assombração" de entidades oficiais; 32. Insultos a entidades oficiais; 33. Confraternização; 34. Vigílias (...)". O protesto é, portanto, muito mais complexo, quer na diversidade de formas quer no contexto das suas práticas, do que aquilo que a nossa convivência episódica com ele nos deixa antever. No entanto, o seu papel vai para além do que na maior parte das vezes lhe é conferido, o de escape social e paliativo para a não profusão de práticas violentas. Hoje em dia navegar na Internet está na base de todas as dimensões do exercício do poder, seja ele cultural, económico ou político. Pois é aí que sempre se começa a responder à pergunta: E agora, o que fazer? Esta é a pergunta que se faz quando se tem um qualquer problema, seja ele na gestão de uma empresa, na condução de países ou nas nossas vidas pessoais. Normalmente poderíamos pensar que, após colocar a pergunta a nós mesmos, o melhor seria conversar primeiro com os que nos são mais próximos e tal continua a ser verdade. Só que hoje, com a Internet, o mais próximo pode mesmo não ser aquele que está connosco na direcção da empresa, ao nosso lado no Governo, na nossa família ou no nosso círculo de amigos, mas sim aquele que está numa rede social ou aquele que deixou um testemunho ou uma ideia numa página ou num blogue. Os problemas que nos extravasam individualmente e influenciam o nosso destino colectivo, tendem a entrar nas nossas vidas através da comunicação social e dos protestos que se geram em torno desses problemas. Mas de seguida, pelo menos para os mais de 50% de portugueses que usam a Internet, o próximo passo para responder ao que fazer para lidar com o que foi definido como "problema", pode bem passar por ler primeiro algo que alguém escreveu, depois querermos aproximar-nos dessa pessoa e do grupo de pessoas que partilham textos, imagens e sons sobre essa temática, tornarmo-nos seus amigos de rede, estar atento à partilha de ideias ou de acções e algures no caminho chegar a

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso formular uma solução que para nós faz sentido para lidar com o problema. O que aqui argumento, é que se a inovação para as empresas é cada vez mais orquestrada e iniciada por aquilo que Eric Von Hippel (XXXX) denomina “Lead Users”, ou seja, os utilizadores que criam soluções para que as empresas depois as apropriem, também a capacidade de na política os seus actores (no quadro dos partidos e nos "quadros" dos líderes de opinião) encontrarem soluções para os problemas que assolam hoje os países e as populações só pode ser encontrada na evolução dos protestos e já não apenas em reuniões de trabalho ou congressos – ou seja o pensamento colectivo em rede, promovido pela autonomia individual, é hoje a ferramenta base para abordar os problemas na sociedade em rede. Os protestos são, por definição, actos e como tal podem parecer desprovidos de propostas. Mas, porque a realidade que vivemos tende sempre a criar viés na nossa apreciação (pois enquanto humanos classificamos os que nos rodeiam em quem gostamos e em quem desgostamos), a exemplificação é sempre mais fácil quando nos colocamos noutro ambiente. Viajemos até Barcelona, bairro @22, no mês de Outubro de 2012, um encontro com várias pessoas que estiveram, pela sua persistência e competência no uso das redes sociais, na origem da experimentação que levou ao movimento que veio, mais tarde, a ser designado pelos jornais como "Os Indignados" e que culminou nas acampadas na Praça da Catalunha, Portas do Sol e centenas de outras praças em Espanha e fora dela. Nesse encontro aprendi muito sobre o processo de génese do movimento 15M e como, de Espanha, chegou até ao movimento Occupy nos Estados Unidos. Aquilo que aí compreendi é que, por um lado, os nossos estereótipos baseados na primazia dos partidos políticos na acção nos impedem de compreender um movimento que agrega militantes partidários e ateístas partidários – para dizer o mínimo da opinião de alguns sobre a política organizada. Por outro lado, o nosso hábito de achar que tudo tem de desembocar em organizações estruturadas com lideranças hierarquizadas também nos impede de pensar que movimentos aparentemente desorganizados podem eficazmente atingir soluções que os mais organizados não conseguem. E por último, que movimentos e partidos não devem nem ser percebidos como extensões de uns e outros, nem competidores

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso por um mesmo espaço, porque na realidade estão em redes diferentes que ora se conectam quando há objectivos comuns ora se desconectam quando são adversários comuns e, portanto, apenas possuem lealdades e oposições circunstanciais entre si. Mas mais importante, aprendi que o protesto pode mudar aquilo que os partidos não podem ou não conseguem mudar, oferecendo soluções para problemas concretos. O caso dos despejos de famílias e pessoas endividadas e do movimento contra tal, em Espanha, é um exemplo disso. A Plataforma de Afectados por la Hipoteca (PAH) conseguiu que o Governo Espanhol mudasse o sentido de voto e admitisse a Iniciativa Legislativa Popular que promove a quitação da divida por entrega do imóvel. Demorou quatro anos a trajectória da PAH, um movimento de cidadãos estruturado em assembleias regulares e mobilizações que utiliza uma fórmula simples, transformar os afectados pelas hipotecas em activistas – tendo conseguido parar mais de 500 despejos e colocar o problema do sobrendividamento na agenda. Hoje em dia basta um post no Facebook para dezenas de pessoas se deslocarem até um imóvel e impedirem a polícia e os bombeiros de realizar um despejo em qualquer parte de Espanha. Mas conseguir actuar por via de protesto não chegou para os envolvidos, pois a PAH conseguiu levar até ao Parlamento espanhol a discussão do problema e da necessidade de discutir a legislação – partindo de um protesto tornou-se num actor complementar do processo político. Este é um exemplo de como no contexto da política em rede, partidos e protestos podem cooperar. Mas, mesmo correndo o risco de entrar no viés da proximidade, vale a pena olhar o protesto realizado em Portugal e construído em torno da apropriação dos NIF dos governantes portugueses para facturas de compras realizadas por outros cidadãos. Aquilo que surgiu como um "Movimento Anti Factura" acaba por, através da demonstração da facilidade do acesso aos NIF via www.nif.pt e da sua utilização imprópria, mostrar as falhas de um sistema. E como tal é, ao mesmo tempo, uma acção de protesto e um contributo para uma solução de algo que possui falhas mas cuja percepção pública – e por parte da administração fiscal – não existiria excepto perante um fenómeno massificado de subversão das regras estipuladas administrativamente. Pois, tanto os livros de reclamações das entidades públicas quanto as suas caixas de sugestões, embora parentes

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso próximas do protesto, nunca têm o mesmo impacto na solução dos problemas e não estão ligadas à Internet. A percepção de que não há solução para os nossos problemas e que nos temos de resignar a aceitar uma só solução possível é algo que normalmente cria as condições para o falhanço social e das organizações. Para que as sociedades e as organizações sejam capazes de singrar necessitam de ser colocadas em questão, porque depende dessa função social a capacidade de criar – não há dúvida que não é nada agradável ser colocado em causa, mas há sempre um ganho pessoal inerente, o de nos questionarmos e, caso necessário, tentar superar o até então feito. A sociedade em rede em que vivemos necessita, na gestão política, da capacidade dos actores institucionais, os políticos, buscarem permanentemente inspiração no que se passa à sua volta e à volta dos protestos, pois será aí algures que as tendências que darão origem à solução se estarão a formar. Valermos-nos, na política, apenas dos conselhos oriundos dos nossos pares partidários, dos assessores, dos académicos, daqueles que partilham connosco os mesmos corredores (pertençam ou não às mesmas organizações políticas) não assegura nem a inovação nem a solução. Pelo menos não na sociedade em que hoje vivemos. Sem protesto não há inovação política nas soluções e a nossa época, pela aceleração da economia e da comunicação, impõe a necessidade de permanentemente questionar as soluções, até porque, a capacidade de sucesso da solução depende da sua permanente adaptabilidade às condições em mudança. Daí, que hoje navegar na Internet seja preciso, mas se não existirem protestos não se criarão soluções, porque aqueles que elegemos nas eleições são poucos e não chegam para lidar com a complexidade dos problemas. No entanto, para compreender o papel e força do protesto na criação de mudança é preciso desmontar algumas ideias feitas sobre os movimentos de protesto e esperança que nos acompanham há já vários anos. Porque, por vezes, se torna mais fácil ver ao perto olhando para longe, olhemos para os acontecimentos ocorridos em 2013 na Turquia e no Brasil e para um artigo de Moises Naim intitulado “Turquía, Brasil y sus protestas: seis sorpresas”

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso (XXXX). A minha discordância com Naim resulta do facto de ele sugerir que há surpresas nestes acontecimentos e eu entender que não as há. Há sim cegueiras analíticas no poder político e na cobertura jornalística face ao descontentamento - algo normal num mundo em radical mudança de paradigma como aquele em que estamos viver nesta década. Optei por aqui rebater ponto por ponto as seis surpresas apontadas por Naim, questionando-as e dando respostas que procuram mostrar um outro olhar sobre os acontecimentos na esperança de nos afastar do senso comum e das ideias feitas que parecem imperar em muitos meios de comunicação de massa e também em posts e tweets que circulam na rede. Terão os protestos origem em pequenos incidentes que se tornam grandes? Na realidade não se trata de pequenos incidentes que se tornam grandes. É o sentimento claro de injustiça que está na origem dos protestos. Pode parecer à primeira vista que não o é, pois tentamos dar sentido à diversidade contida nos protestos e é mais fácil, mas menos exacto, assumir que se parte do pequeno para o grande protesto. Aquilo a que assistimos nas avenidas do Brasil (e que já antes vimos em praças de muitos países) resulta do somatório de múltiplas vozes que tomam o espaço público da cidade - mas já antes estavam presentes nas conversas de café ou em família. O que ocorre é que o elemento mobilizador é normalmente percebido como pequeno, mas é pequeno apenas porque na realidade é a gota de água que faz transbordar o copo do descontentamento. Quando muitas gotas de água se juntam altera-se a percepção individual, a injustiça passa a ser sentida e partilhada em conjunto e o resultado é que os indivíduos tomam consciência de que estão a fazer parte de um movimento de protesto. O que junta então as pessoas? Primeiro, um pequeno grupo de pessoas altamente mobilizadas perante uma causa e depois o mimetismo da acção. Um mimetismo associado à mera cobertura do evento pelos meios de comunicação de massa que possibilitam que surja na mente de muitos a pergunta "e se eu me juntasse a eles? Não será já hora de sermos ouvidos?". Quando a TV e a Rádio não fazem o seu papel, ou são percebidas como controladas pelo poder, são as redes sociais, via Twitter e Facebook, que fazem

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso o passa palavra necessário para quebrar o receio e induzir a confiança baseada no número – “nós já aqui estamos, vem ter connosco à praça!”. Não há nada de surpreendente em as pessoas quererem mais justiça e dizerem publicamente na rua aquilo que vêm dizendo em maioria absoluta nos inquéritos de opinião. Desde há uma década que, em países em desenvolvimento ou desenvolvidos, os inquéritos realizados por sociólogos, por institutos estatísticos ou por empresas de sondagens mostram que a desconfiança nos partidos e nos políticos é galopante – “não acreditamos nestas políticas e nestes políticos” é a afirmação comum aos diferentes estudos. Algo que está anunciado globalmente há mais de uma década não constitui uma novidade, mas as instituições e os actores políticos têm preferido manter-se em negação acreditando que o descontentamento passa - um erro crasso, como podemos hoje percepcionar pelo que assistimos. Será

que

os

governos

reagem

mal

perante

os

protestos?

Não podemos generalizar quanto à reacção dos governos. É verdade que todos se sentem mal com a crítica e o desafio ao seu poder. É verdade que podemos agrupar os governos em termos de democracias e não democracias. É também verdade que quase todos, através de um qualquer nível de governo, acabam por colocar a polícia na rua. Mas também é verdade que as polícias não reagem sempre do mesmo modo e se há confronto e provocação em muitas situações, também há respeito mútuo e distância pacífica em muitas outras – aliás, o confronto desencadeado por poucos é a excepção que confirma a regra pacífica dos movimentos. Provavelmente, o principal problema dos governos é a incapacidade comunicativa. Marcelo Branco, activista e analista social brasileiro, captou bem esse fenómeno quando afirmou que o Governo brasileiro não sabia comunicar nas redes sociais. E eu adicionaria que os governos não sabem nem comunicar nas redes sociais nem comunicar em rede - a subjectividade (isto é, o olhar sobre a realidade) dos governos está moldado pela comunicação de massa. É muito difícil para qualquer governo assumir que governa mas perdeu a capacidade de falar com muitos dos seus cidadãos, porque deixou de conseguir pensar como eles e, consequentemente, não sabe comunicar em rede. A maioria

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso dos governos contemporâneos ainda não compreendeu que vive na era em que "A mensagem são as pessoas" e já não naquela em que “A mensagem são as políticas”. Será que os protestos não têm nem líderes nem cadeias de comando? Quem olha para os protestos a partir do olhar das lutas de classe ou da oposição de interesses entre sindicatos e associações patronais vê protestos sem líderes e sem cadeias de comando. Logo, ou os descarta como protestos sem interesse ou, quando se vê empurrado para ter de lidar com eles, busca caras e nomes na tentativa de recuperar o modelo que lhe dá segurança, por ser aquele com que sabe lidar. Essa lógica não é apenas aquela em que está imbuído o poder político, é também a do jornalismo tradicional na sua busca de rostos e pertenças ideológicas ou associativas. Quem está na rua não representa ninguém excepto a si próprio - que é o belo ideal de pensamento e acção na base da democracia. O que se pede ao jornalismo e aos que gerem instituições de poder hierárquicas é que sejam capazes de interpretar as críticas e as perguntas feitas nas ruas e, aos governantes no poder, que as traduzam em propostas e políticas de acção. A quem está nos gabinetes das prefeituras, dos governos estaduais, das câmaras municipais ou nos governos nacionais ou federais cabe olhar para os que se representam a si próprios nas praças e saber ouvir. É claro que o problema reside no facto de nesses gabinetes raras vezes se compreender a sociedade em rede, o seu funcionamento e que a autonomia do sujeito é a matriz de intervenção e de vivência da maior parte daqueles que tomam as ruas para protestar - e não se tem de ter um telemóvel com ligação à Internet para o fazer e pensar diferente. O que assistimos é a um conflito cultural em que quem governa não compreende quem protesta e em que quem protesta espera que quem o representa tenha a mesma percepção cultural da realidade - algo que nada tem a ver com esquerda nem direita, mas sim, por um lado, com a busca do uso da autonomia pelos actores individuais e, por outro, com a tentativa de manter o controlo da acção por parte do poder político.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Não há com quem negociar nem quem encarcerar nestes protestos? Há de certeza quem encarcerar, como se nota pelas imagens e descrições com que somos brindados a partir do teatro da acção nas ruas e praças. Já quanto a não haver com quem negociar essa é a pergunta errada, pois o que se deveria perguntar é o que é negociar na sociedade em rede? Se entendermos a negociação como pessoas que se sentam à mesa para expor reivindicações e tentar atingir um ponto de entendimento, temos de assumir que os movimentos de protesto são na sua estrutura o oposto desse modelo. Há de facto plataformas organizadas que podem negociar questões claramente identificadas, sejam elas o travar a destruição de um parque ou o aumento do preço dos transportes. Mas essa é apenas uma das partes do movimento e sempre minoritária. Sendo essa uma das características deste movimento, negociar implica também os poderes interpretarem as queixas dos milhões que autonomamente se representam a si mesmos. Ou seja, implica compreender que o poder tem de agir politicamente tal como quando usamos um motor de busca na Internet. Perante uma questão posta na rua, cabe ao poder encontrar a resposta certa para essa questão. Ou seja, o poder político tem de interpretar, dar sentido ao que ouve e vê e apresentar possíveis listagens de resposta - entre essas possíveis respostas estarão as que servem as diferentes questões colocadas e a vontade das pessoas que as fizeram. Neste modelo de negociação não há lugar à reunião à volta da mesa, pois a negociação só termina quando a potencial resposta à crítica se transforma em política e acção governativa concreta - entretanto, os governos têm de ser menos opacos e mostrar que estão a fazer algo no sentido que lhes é solicitado, pois só assim se cria confiança. Na sociedade em rede não são só as sondagens que são permanentes no escrutínio das opiniões dos cidadãos sobre o que pensam sobre dado assunto e dado actor político. São também os protestos e reivindicações que são permanentes e que necessitam de ser pensadas e trabalhadas por parte do poder do mesmo modo que permanentemente estão a inquirir a opinião pública - a comunicação é em rede, já não flui num só sentido. É claro que tal não se coaduna com a lentidão dos gabinetes, dos parlamentos ou senados, mas se há tantos a criticar essa lentidão e aparente ineficácia

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso (quando não acção dolosa para impedir a resolução dos problemas) talvez valha pena os governos questionarem-se sobre se a negociação não passa também pela mudança estrutural do entendimento sobre o que é negociar e governar na sociedade em rede. É impossível prognosticar as consequências dos protestos? Não é impossível, pois todos nós, os que estudamos estes fenómenos, temos vindo a analisar que na sociedade em rede a máxima de que “onde há injustiça percebida há revolta” tem outras nuances e conotações quando à sua forma, o seu desencadeamento e a sua acção. Sabemos que no contexto de abundância de informação e comunicação, a noção de injustiça está muito mais latente e é partilhada por muitos mais - mesmo que não seja experimentada na primeira pessoa, há a percepção de solidariedade face a algo que é percebido como errado. Sabemos também que há sempre sinais fracos que antecedem os eventos e, em todas as situações até agora vividas, os mesmos foram perceptíveis para muitos dos que estudam movimentos sociais, só que políticos e governantes decidiram desvalorizar a probabilidade de os mesmos ocorrerem. Quando hoje estudamos movimentos sociais sabemos que mal um sinal fraco de protesto é visível, deve ser percebido como potencialmente mobilizador. Sabemos que a probabilidade de se transformar em protesto efectivo é hoje muito maior. É uma forma diferente de lidar com a antecipação, mas também ela é produto da nossa sociedade em mudança. No entanto, é verdade que os governos lidam mal com a leitura de sinais fracos, preferem quase sempre acreditar mais que estão certos do que assumir que podem estar errados e dar o benefício da dúvida aos cidadãos. Quanto ao prognóstico sobre para onde nos levam os protestos, a prática diz-nos que há vários padrões. Nos regimes democráticos, os partidos dos governos perdem sempre algo - esse algo vai da queda em sondagens à perda de eleições, dependendo da confluência do momento do protesto com o ciclo eleitoral. As oposições tendem sempre a ganhar menos do que o que é perdido por quem está no poder e, por sua vez, muitos cidadãos retiram-se da participação eleitoral para a busca individual de soluções em rede com outros que partilham o mesmo

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso problema ou visão - ou então colocam-se à espera de que a mudança se torne mais visível no seio da política tradicional e que nos aproximemos de uma democracia mais próxima do nosso tempo. Nos regimes não democráticos ou demo-autoritários o resultado é o desgaste lento até à implosão violenta (ou não) e a chegada de novos actores governativos - mas sem certeza de mudança radical do que se buscava no protesto. No cômputo geral, para os cidadãos há sempre um ganho, algo muda, algo é atendido. Mesmo que no processo algo que se dava por adquirido seja colocado em causa, percebe-se que o actor individual pode ter autonomia, que pode influenciar o rumo de algo e essa é uma dimensão iminentemente gratificante para o ser humano - uma vez experimentado o poder de contar para algo, o ser capaz de influenciar a prática passa também a moldar a nossa identidade. Será

verdade

que

a

prosperidade

não

compra

estabilidade?

A relação entre estabilidade e prosperidade não é causal. Ou seja, não se trata de quanto mais prosperidade mais reivindicação e, consequentemente, como os poderes não podem responder tão rápido quanto o desejado, daí resultar incompreensão entre eleitores e eleitos, o que, por sua vez, provoca protestos e quebras de estabilidade. A relação é muito menos causal e muito mais assente na generalização de um menor grau de tolerância dos indivíduos face quer às assimetrias de poderes, que limitam a autonomia individual, quer quanto à desigualdade de rendimentos que alimenta as injustiças. O que se passa, mas que escapa a muitos que não estejam directa ou indirectamente envolvidos na acção de rua ou empatia com os movimentos a partir de casa, é que aqueles que estão em protesto estão efectivamente em ruptura com as normas e instituições que temos. E estão-no, porque efectivamente estão a olhar o mundo de forma diferente e a dizer "estamos a afundar-nos, já todos vocês o viram, mas nós não iremos junto convosco, iremos lutar por algo diferente!". Pela sua acção, pelo dizerem basta, estão também a mudar a nossa forma de pensar e a tornar-nos menos tolerantes e mais exigentes para com o (mau) funcionamento da democracia e para com os que não sabem governar em rede com os seus cidadãos. É claro que o poder, seja ele de direita ou esquerda, não

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso convive facilmente com a crítica mas tem de aprender rapidamente o que é a crítica em rede e é isso que lhe está a ser dito há três anos nas praças e avenidas por quem se junta pelas redes sociais, formando redes sociais nas ruas. Não há surpresas nos protestos, há é cegueiras políticas e acima de tudo uma incapacidade comunicativa entre o poder e os cidadãos, porque estão a viver mundos diferentes. Da Turquia ao Brasil (e outros) vivemos o nosso descontentamento com o que temos, mas estamos a demonstrar – a quem souber ouvir – que o mundo muda quando queremos que mude. Para mudar não é preciso ter um programa de governo, basta saber o que é injusto. As medidas e os programas surgirão da experimentação. Pois, nem sempre é preciso saber que caminho seguir, basta saber para onde se quer ir.

Resgatar os resgates

O modelo está esgotado e precisa de ser refeito e isso só pode ser realizado com pessoas que o assumam, que conheçam porque falhou e que estejam dispostos a criar os seus futuros e não por quem se sinta mais confortável com o regresso ao passado, porque isso não vai acontecer. A maioria das pessoas está a ficar farta de ouvir falar em crise porque está a vivê-la. Por isso, porque alguém haverá de querer ler, ver ou ouvir notícias sobre a crise? Um argumento possível reside na frase seguinte: o que pode motivar as pessoas em Portugal e no resto da Europa - sim, não estamos sozinhos, mas já regressaremos a este ponto - é que um qualquer indício de solução seja apresentado. No entanto, como essa solução não se materializará por intervenção divina, mas sim por acção dos homens, mulheres e crianças que habitam este território de mais de 500 milhões de indivíduos, resta a cada um de nós contribuir à sua maneira para encontrar as soluções. E este é um artigo sobre os primeiros passos para sair da crise a partir do contributo que posso dar, o contributo de um sociólogo formado gestor e que acha que há que compreender as razões da crise, para de seguida tomar opções e depois passar às soluções que,

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso entretanto, foram sendo formuladas e experimentadas. Em primeiro lugar deixem-me partilhar algo que decorre de ter participado, tal como centenas de milhares de portugueses, nas manifestações de 2 de Março de 2013: estou farto de estar sequestrado! E é assim também que a maioria da população portuguesa (e também a europeia) se sente. Sequestrada pelas decisões políticas e económicas sobre as quais não possui controlo mas que se fazem sentir nas suas vidas. Em segundo lugar, deixem-me partilhar uma análise sobre o momento que vivemos a partir do final de 2012, porque acho que o primeiro passo para abandonar este estado de crise passa por ajudar a União Europeia a sair do erro em que entrou, ou seja, resgatar o resgate, para salvar a Europa e, no caminho, salvar também Portugal. Esta análise passa, assim, por assumirmos o evidente, ou seja, que em primeiro lugar os representantes da Troika que nos visitam não contam para grande coisa pois estão ao nível de um embaixador (com todo o respeito pelas suas funções) quando se reúne com um líder de um dado país, pois a sua autonomia e capacidade limita-se às instruções que lhe foram dadas e qualquer mudança, inovação ou alteração implica ir perguntar à casa-mãe se ela dá licença para o fazer. É, também, igualmente necessário assumir uma outra coisa que comporta algum desconforto, ou seja, que as instituições políticas e do sector financeiro europeu e nacional não sabem o que fazer e que, portanto, estão num processo de experimentação. Ou seja, estamos em desgoverno continental na Europa, onde quem lidera não sabe se o que tem feito leva ao que se pretende, ou se o que se passa tem algo a ver com as acções que se tomaram – estamos assim no campo do desconhecido e incerto (faço aqui nota que disse “instituições” e não governantes ou gestores, pois há na governação e gestão ainda pessoas que têm noção do desacerto em que nos encontramos e que tudo pode ainda acontecer entre a melhoria e o desastre). Passemos ao nível das evidências que nos permitem argumentar que é necessário ajudar as instituições europeias a serem resgatadas. As instituições europeias e nacionais do campo da economia não são capazes de resolver a

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso crise porque ainda não decidiram realizar um mea culpa e em definitivo assumir que a economia é – todas as economias são –cultura. Isto é, determinadas opções de práticas inseridas em processos de produção, consumo e troca de bens e serviços. É a cultura que molda a economia. Quando há uma crise sistémica, há um sinal de uma crise cultural, de não sustentabilidade de certos valores como princípios orientadores do comportamento económico humano. Assim, apenas quando, e se, mudarem valores culturais fundamentais, podem emergir novas formas de organização económica e instituições para assegurar a sustentabilidade da evolução do sistema económico. A hipótese que aqui se partilha é a de que podemos estar num período desses, de transição histórica. Chegados a este ponto, onde estão as evidências de erros de resgate e por que necessitamos nós de resgatar os que nos quiseram resgatar e que – não tendo aparentemente outra forma de lidar com o assunto – tentam ganhar tempo continuando a exercer o resgate de Portugal (sim estou a falar da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu). Como tive ocasião de escrever no livro “Mudança e Rescaldo. As Culturas da Crise Económica” (XXXX), poderia a União Europeia ter apoiado Portugal em alternativa ao resgate? A resposta é sim, poderia ter sido feito de outra maneira. Mas não foi. Entretanto, as instituições europeias perceberam o erro e pela prática o próprio BCE o admitiu. O BCE poderia ter comprado os títulos portugueses, como fez poucos meses depois com a Itália e a Espanha, em igual situação, liderando uma intervenção que evitou o resgate em perspectiva. O resgate de Portugal mostra, assim, o erro cometido pela UE e como as perspectivas de cenários futuros sugeridas pelas agências de notação financeira e postas em prática pelas instituições políticas e bancárias da União Europeia minaram a recuperação económica e a soberania política nacional. O resgate de Portugal também mostra como a esfera política da União Europeia sucumbiu aos mercados financeiros desregulamentados. Mostra como o regresso da predominância da política sobre a finança parece cada vez mais difícil de alcançar, dentro do actual cenário.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso É por tudo o que, atrás, foi exposto que o resgate tem de ser resgatado sob pena de todos sucumbirmos neste continente à impreparação que levou ao erro e à forma errada de raciocinar institucionalmente e que os últimos anos demonstram ser inadaptada. Não parece mais ser possível ninguém querer admitir erros e portanto preferir continuar em modo resgate, auto-sequestrando-nos pelas próprias instituições que não se reformam, nem se deixam revolucionar por via da inovação que ainda resta dentro delas, ou pela que se está a formar nas redes e nas praças públicas, à procura de caminhos para a supremacia da política. Pode-se sempre argumentar que tudo isto não corresponde à realidade, que esta análise está errada, que tudo corre como devia correr e que as pessoas e as instituições reflectem isso. Eu contra-argumentaria que as instituições na Europa se encontram num estado de nervosismo intermitente, ora acham que tudo está a ir para o melhor, ora se sentem à beira do colapso quando uma qualquer variável política, económica ou social não segue o caminho expectável –pode ser o resultado de uma eleição, um comportamento dos mercados, um protesto mais veemente, uma actuação de um país externo, uma flutuação de uma moeda. E as pessoas o que pensam disto tudo? Acreditando nos dados do Eurobarómetro2 (e eu acredito na veracidade científica dos mesmos tal como o Eurostat e a Comissão Europeia acreditam) o que a seguir se descreve é a Europa e o Portugal onde hoje nos movimentamos - e o cenário não é agradável. No final de 2012, e entretanto a tendência não se alterou de forma significativa, 80% dos cidadãos da União Europeia não confiavam nos partidos políticos e só33% confiava na União Europeia. Quanto à confiança na Comissão Europeia só40% dos cidadãos europeus manifestava confiança nela e, em média, na Europa (com excepção da Suécia, Finlândia e Luxemburgo) não há nenhum governo em que mais do que metade dos cidadãos confie –na realidade a média Europeia de confiança nos governos está em 27% dos cidadãos e em Portugal é de 22%. Por sua vez, o Banco Central Europeu tem apenas a confiança de 37% dos Europeus (na Alemanha 52% não confiam no BCE, um valor só superado pela desconfiança dos Espanhóis, Irlandeses ou Gregos). 2

Ver Eurobarómetro YY (XXXX) em....

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Ao mesmo tempo, 75% dos cidadãos da União classifica a situação económica da Europa como má ou muito má e 62% acha que o pior para o emprego está ainda para vir (variando entre os 59% da Alemanha, os 68% da França ou os 79% de Portugal) e quanto à avaliação da capacidade das actuais politicas em acção estarem no bom caminho, para nos fazer sair da crise, apenas 41% da população dos 27 países manifesta uma opinião positiva. Se pensarmos que a Democracia é constituída a partir da assumpção de que "Eu" sou soberano e que delego temporariamente a minha soberania nos meus representantes, o TOP dos países onde mais de 50% dos cidadãos acha que "a sua voz não conta no seu país" - e que portanto onde delegar não vale a pena leva-nos à seguinte conclusão sobre a zona euro: em todos os países com resgate informal e formal (à excepção da Irlanda onde só48% acha que não tem voz) mais de metade da população não acredita que seja ouvido pelos decisores políticos. Na Europa há apenas 49% de cidadãos que se encontram satisfeitos com a democracia que têm, o que quer dizer que a sociedade europeia está dividida exactamente ao meio, polarizada entre duas visões (e tal varia entre os 70% de Alemães satisfeitos e os insatisfeitos que, por exemplo, são 74% dos Portugueses, 72% dos Italianos ou 66% dos Espanhóis). Mas há também boas notícias, os cidadãos europeus parecem saber que caminho seguir para sair da crise. Pois 89% dos cidadãos está em acordo com a necessidade de introduzir mudanças, só que esse caminho parece não estar a ser praticado pelos governos e pela União. Senão vejamos, 90% dos cidadãos acha que os Estados devem trabalhar em conjunto, 81% acham que o défice público e a dívida devem ser reduzidos mas que, para a melhoria das economias europeias, se deve em primeiro lugar dar prioridade à melhoria da educação e formação profissional, facilitar a criação de empresas, aumentar a investigação científica e facilitar o crédito às empresas. Os cidadãos da zona Euro apoiam a criação de Eurobonds na União Europeia, sendo a Bélgica o país mais a favor e a Alemanha o mais contra - os únicos países em que há mais de 50% de cidadãos contra são a Finlândia e a Alemanha, e o “não” ganha apenas com 47% na Áustria e na Estónia. Entre taxar

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso as operações financeiras e taxar os lucros dos bancos, os cidadãos escolhem esta última com 81% de aprovação. Se fosse pedido aos cidadãos para desenharem cinco políticas económicas para sairmos da crise eles responderiam pela seguinte ordem: modernização do mercado de emprego (81%); economia verde (74%); ajudas à indústria (72%); melhoria da qualidade do sistema de ensino superior (71%) e aumento das verbas de investigação científica (63%). Por isso, o repto a todos nós (mesmo assumindo o perigo da análise) é assumir que as instituições que herdámos já não funcionam, pois só assim a crise pode ser ultrapassada. As pessoas na Europa sabem-no, as populações dos países em resgate informal e formal sabem-no, as pessoas nas instituições de governo e financeiras sabemno. O modelo está esgotado e precisa de ser refeito e isso só pode ser realizado com pessoas que o assumam, que conheçam porque falhou e que estejam dispostos a criar os seus futuros e não por quem se sinta mais confortável com o regresso ao passado, porque isso não vai acontecer. O primeiro passo é mesmo resgatar o resgate, para se poder resgatar a economia e a política e agindo já para que tal possa ainda ser feito em democracia na Europa.

Só agora chegámos ao "pós-Troika"?

Há quem sugira que o Pós-Troika está associado ao final do primeiro semestre de 2014. No entanto, gostava de argumentar o contrário. O Pós-Troika ocorreu a partir do momento que se conheceu a temática da convocação de um Conselho de Estado, ainda durante 2013, no qual se debateu se seria adequado discutir já então o "pós-troika. Para pensar sobre o "pós-troika" não temos, efectivamente, de nos concentrar só numa data pós-2014. Isto, porque há vários sinais que nos indiciam que, começamos, de facto, muito antes de 2014 um período "pós-troika". Com isto quero dizer que as condições, os entendimentos e os pressupostos criados na ligação entre os diferentes actores do sistema político português e a

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso população portuguesa se alteraram há já bastante tempo. Ou seja, os actores que são os partidos, o Governo, a Assembleia da República e a Presidência da República continuam a ser protagonistas principais, mas a relação por eles estabelecida com a população portuguesa, seja na opinião expressa em sondagens ou nas opiniões expressas individualmente por cidadãos nos media e na Internet (sem esquecer ainda as escolhas e análises dos nossos comentadores partidários), indiciam que houve algures após o final de 2012 uma mudança de “tempo”. Essa indicação de mudança de “tempo” decorre de os pressupostos em que assentava a relação estabelecida entre o sistema político e os cidadãos não serem já os mesmos que existiam quando da negociação inicial com a troika e que perduraram nos meses decorridos entre 2011 e fins de 2012. Daí, que seja fundamental questionarmos como tudo mudou tão rapidamente? Sabemos que as épocas de crise têm uma medida de tempo diferente, ora tudo parece lento de mais, ora tudo parece acelerar-se para além do expectável. Esse é o tempo do interregno, ou seja, o tempo que Gramsci (XXXX) definiu ao caracterizar estes momentos como aqueles onde o que é velho ainda não morreu e o novo ainda não pode nascer. Como chegámos então ao "pós-troika"? Em primeiro lugar, pelo intenso e omnipresente debate público nas famílias e nos espaços públicos sobre a crise, pelas repetidas comunicações mediáticas de responsáveis políticos ao país, pela multiplicação da análise política de comentadores político-partidários nos media e pela resposta na rua, na Internet e pelos manifestos sobre a situação do país, que criaram as condições para que o pouco tempo que se passou desde a data da intervenção da Troika pareça um tempo muito mais longo – temos hoje a percepção psicológica de que estamos sob a presença da Troika há mais de 3 ou 4 anos, quando, na realidade, passou muito menos tempo. E, portanto, vivemos a percepção pública tanto por parte dos cidadãos, como dos actores políticos, de que, após ano e meio de Troika, já deveríamos estar para lá de 2014 – o resultado dessa percepção, é óbvio, é a chegada da fadiga. Uma fadiga política que toca, de forma transversal, muitos dos actores políticos de todos os

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso quadrantes face às suas próprias actuações e uma fadiga da maioria dos cidadãos face aos políticos e à política. Em segundo lugar, há uma percepção pública generalizada de que não deveríamos ter feito o que foi feito. Isto é, não devíamos ter solicitado o resgate do país – já quanto ao que se passou antes do resgate as opiniões dividem-se, pois não existe uma visão unificadora das razões. Há quem acredite que a culpa foi do endividamento do Estado e dos cidadãos e há quem afirme que tudo se ficou

a

dever

às

políticas

financeiras

de

risco

do

sector

bancário.

Provavelmente, nenhuma das duas está correcta e a questão é mais complexa e implica Governos não capazes de ter invertido um modelo económico assente na criação de riqueza baseada nas rendas de investimentos financeiros e imobiliários e um sistema financeiro que deixou de saber viver com a criação de riqueza produtiva. A opinião de que não deveria ter havido lugar à intervenção da Troika surge, porque há uma percepção generalizada que nada funciona – isto é, os resultados são sempre os contrários aos previstos e a maioria da população associa governação com a Troika apenas a más notícias – sendo o dano colateral a política transformar-se, ao olhar dos cidadãos, cada vez mais, não numa arte de resolver problemas ou apontar soluções, mas sim numa arte de dar más notícias aos cidadãos e de colocar o país numa situação de deriva – uma posição sem dúvida injusta, mas é essa que sobressai das leituras da opinião pública. Exemplificativo dessa percepção foi o facto de a sondagem realizada pelo Instituto de Estudos Europeus da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (XXXX) ter mostrado que, na opinião expressa pelos inquiridos, Portugal já em 2013 deveria renegociar profundamente ou denunciar o memorando de entendimento com a Troika e procurar alternativas - essa posição é defendida por mais de 80% dos inquiridos nesse estudo de opinião (XXXX). Nessa sondagem, questionados sobre o que Portugal devia fazer face às negociações/imposições da Troika, 41,5% dos inquiridos defenderam a denúncia do memorando, 41% a renegociação do memorando e apenas 10,8% entenderam que deveria ser cumprido o acordo (XXXX). Também, nessa mesma sondagem (XXXX), quase metade dos inquiridos (47,8%) considerava que o

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso acordo não devia ter sido assinado e 45,4% entendiam que o relacionamento entre a Troika e o Governo se caracteriza por uma cedência excessiva do executivo. Ora, o que tal demonstra é que passámos, efectivamente, de uma maioria de opiniões a favor do status quo de 2011 – isto é, anuência face à intervenção da Troika em Portugal como algo de necessário e positivo - para uma maioria de opiniões contrárias ao status quo de 2013 – isto é, a contra permanência da política da Troika em Portugal. Ou seja, fizemos uma viagem entre pólos opostos da opinião pública em menos de dois anos. E, por último, temos a percepção – através das sondagens regulares publicadas pelos meios de comunicação social - de que as percepções públicas sobre o posicionamento dos partidos políticos se alterou também. Tudo isto, explicável também pelo facto de aparentemente existirem mudanças rápidas de discursos e isso se dever em parte às mudanças e spin das narrativas que os políticos europeus em Bruxelas e Berlim têm vindo a usar nas últimas semanas e o seu reflexo na nossa realidade nacional – a primavera do discurso alemão, para consumo europeu, não mudará no essencial o outono eleitoral alemão, nem mudará a nossa condição de intervencionados, mas produz algumas pequenas mudanças a nível nacional. A juntar a tudo isto (e a contribuir para essa noção de ‘"pós-troika") a percepção de que até mesmo a Troika já não é a mesma Troika. Mas antes de explicar o porquê convêm relembrar a história das Troikas. As Troikas, historicamente, sempre estiveram associadas a momentos de interregno, seja na União Soviética ou nas ditaduras sul-americanas da segunda metade do século XX e, quase sempre, quiseram dizer que os três protagonistas estavam em luta permanente pelo predomínio do exercício do poder, procurando, em último lugar, a eliminação dos dois outros parceiros. Conclusão, o estado normal da Troika é o conflito intestino, permanente ou intermitente, até ao domínio de um sobre os restantes. Essas lutas intestinas, pela interpretação e pelo predomínio, também acompanham esta Troika actual. Pois, é transversal a ideia de que esta Troika já não é consistente entre as afirmações públicas dos seus responsáveis de topo, destinadas a manter a luta pelo poder simbólico do comando da intervenção, e

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso as decisões pragmáticas tomadas à mesa nas avaliações pelos seus técnicos intermédios e representantes no terreno. Essa dissonância leva a que se assuma que esse conjunto de entidades parece não compreender o que fazer e como o fazer – estando muitas vezes a negociação presa a intrincados jogos que se desenrolam no campo das avaliações no terreno e que nem sequer traduzem qualquer reflexo institucional oriundo nas sedes do FMI, BCE e UE. Resumindo, o panorama da percepção pública do que se passa a partir de quem olha de fora (ou seja, de quem não está nem nas reuniões do Conselho de Estado, nem na AR, nem no Governo ou na Presidência, nem directamente ligado às instituições políticas) é a de que estamos já no "pós-troika", pois o período em que se associava a chegada da Troika, e a sua relação com o Governo Português, como de esperança numa solução para um problema, transformou-se na noção que o problema está na solução que agora temos e que precisamos de um "pós-troika". Isto não quer dizer que o que está a acontecer na percepção da opinião pública esteja errado ou certo, apenas expressa que quando as pessoas acreditam numa determinada visão é impossível governar contra esse credo. E, hoje, estamos no "pós-troika" também no sentido em que os cidadãos estão mais nacionalistas e menos europeístas - ou melhor, são ainda europeístas, pois acreditam que uma mudança na Europa possa trazer mudanças a Portugal, mas já não acreditam na solidariedade europeia. Exemplo dessa viragem, visível nos resultados da sondagem atrás referida, é o facto de acreditarem que os governos nacionais não se sabem impor e que, para além, disso o que se aceitou fazer está errado ou não é possível de ser feito, dando mais uma vez azo a carregar contra os políticos, desta vez apostando na dimensão técnica – ou seja, os políticos são aqueles que não sabem decidir bem, porque não possuem o conhecimento necessário para tecnicamente saber fazer bem. O que há a reter do momento onde estamos agora é que a dimensão fundamental para a resolução de qualquer problema, a confiança, se alterou profundamente. Se tínhamos confiança na solução proposta pela ajuda

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso internacional em 2011, a desconfiança na dimensão política nacional e na ajuda internacional tornou-se geral e normalizada muito rapidamente.

Podem os Estados ter medo?

Precisamente, por causa da desconfiança instalada em muitos países face à capacidade política nacional e da ajuda internacional, há perguntas que se afiguram fundamentais fazer porque, sem as responder, dificilmente podemos aspirar a compreender os possíveis contextos de mudança. A primeira pergunta é o que caracteriza hoje a relação entre estados na Europa no pós-Tratado de Lisboa? E a segunda é qual é hoje a característica comum entre as populações dos estados europeus? As respostas são, respectivamente, o medo de um estado se tornar devedor e o medo dos cidadãos de perder o emprego e não mais o recuperar. Há efectivamente um medo no ar que atravessa todas as chancelarias e gabinetes ministeriais do Atlântico às fronteiras da União a leste e do Báltico ao Mediterrâneo. Esse é o medo de perder o poder que se tem e isso é o equivalente ao medo de deixar de ter créditos sobre outros países da União e passar a fazer parte dos “Países Devedores” e assim perder o assento entre os “Países Credores” – os que comandam a União. De algum modo, é esta mesma ideia que defende George Soros, especulador e filantropo. Soros (XXXX) discute o futuro da Europa e o seu argumento é pertinente pois mostra-nos uma outra visão, bem menos benevolente, da actualização do ideário europeu. Uma actualização que não foi procurada, nem arquitectada, mas que resultou dos erros, das omissões e das decisões tomadas nos últimos anos. Soros (XXXX) argumenta que, embora a UE tenha sido pensada e concretizada enquanto uma associação voluntária de Estados iguais, que cediam parte da sua soberania para o bem comum, na realidade a actual Europa transformou-se em algo diferente do previsto. A relação projectada de associação de iguais transformou-se numa relação entre credores e devedores, a qual é, por natureza, compulsória e desigual. Quando um país entra em dificuldades, o país credor fica

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso na mó de cima. E as novas regras, entretanto, estabelecidas no quadro da Comissão, BCE e do Eurogrupo apenas perpetuam este estado de coisas. Algo que é politicamente inaceitável e tem o potencial de destruir a União Europeia. O poder dos Estados europeus neste momento mede-se em função não da sua diplomacia, da sua proximidade e benevolência, de visões comuns de futuro ou do conquistar das opiniões públicas dos outros países, mas sim no poder do seu portfolio de dívida ou do seu poder de influência na gestão de futuros empréstimos e taxas aos restantes países. Podemos argumentar que esta é uma evolução positiva do exercício do poder associado ao “Hard Power” das armas e das balas enquanto material de influência das opiniões e acções de outrem, e é-o sem dúvida. No entanto, também não é o desejável “Soft Power” subjacente a uma relação entre iguais (Nye, XXXX). Esse poder é tanto mais perigoso quanto fomenta a arrogância, pois só os próprios credores estão hoje em posição de mudar o curso da União e, não estando nisso interessados, apenas há a esperar a prevalência de posições que tenderão a ser tanto mais extremadas quanto mais tempo passar na institucionalização desta forma de exercício do poder na relação entre estados. Ainda seguindo o raciocínio de Soros (XXXX), a solução só existirá, obviamente, se de entre os “Estados Credores” se gerar a percepção de que, enquanto há tempo, há que reconhecer os erros e os preconceitos que criaram a actual situação e, depois, trabalhar na sua correcção. Neste momento os “Estados Credores” têm duas hipóteses: ou deixar continuar a actual estrutura de poder institucionalizar-se e corromper as instituições europeias ou buscar, nas palavras de Soros, “a gratidão eterna” dos restantes países europeus. Temos observado, que a crise do euro parece ter terminado apenas enquanto assunto político e jornalístico, pois a crise continua por quase toda a Europa. E a solução não pode passar por apenas um país, embora apenas dois ou três possam iniciar esse processo de cura que pare a destruição em curso. Os países europeus, independentemente de hoje serem credores ou devedores, não possuem culpa individual em se terem transformado em semelhantes próximos dos países que durante as décadas anteriores às generalizações de

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso perdões de dívidas, ao denominado terceiro mundo, se endividaram em moeda estrangeira – a este propósito e enquanto manual sobre como lidar com a Europa endividada vale a pena consultar o documento do FMI intitulado “Sovereign Debt Restructurings 1950–2010: Concepts, Literature Survey, and Stylized Facts” (2012). Como relembra Soros (XXXX), os países do euro ao terem cedido a sua capacidade de criar moeda ao BCE colocaram-se no papel dos países em desenvolvimento que pediam emprestado em moeda estrangeira – e nem os mercados nem os estados anteciparam esta falha, ou mais directamente um disparate agora totalmente evidente. Os maiores países da União, os grandes credores, detentores dos ratings mais elevados e das maiores capacidades financeiras, industrial e de serviços terão de dar o primeiros passo e seria importante lembrarem-se que na Europa todos os que o pretenderam usufruíram de um Plano Marshall e que, por exemplo, a Alemanha obteve três perdões de dívida, um em 1924, outro em 1929 e outro também ao abrigo do Plano Marshall. E em nota de rodapé, importa lembrar que foi a capacidade de perdoar e incentivar a retoma europeia no pós-guerra que estabeleceu a solidariedade entre os dois lados do Atlântico. Talvez copiar essa ideia fosse uma boa estratégia para uma Europa que não queira morrer, pois podemos estar às portas de uma “Era do Crescimento sem Emprego”, um momento histórico em que as sociedades mais desenvolvidas deixaram de conseguir manter em equilíbrio os dois lados da equação do desenvolvimento.

Medo, Raiva, Esperança

No contexto histórico de intervenções externas nas economias do euro, o medo constituí uma estratégia em uso generalizado – nomeadamente pelas instituições internacionais, como as presentes na Troika, que o exercem ora sobre os Governos ora sobre as populações em geral, tal como sucede em Portugal. Este é um livro sobre como é que se constrói a mudança em épocas de crise. E, para tal, temos de regressar a Junho de 2002, dez meses após os ataques de 11 de Setembro às Torres Gémeas e ao Pentágono, quando me encontrava em

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Washington junto com outros colegas europeus numa sessão com um membro do partido Democrata. Estava então na Casa Branca George W. Bush e o foco na segurança interna dos EUA e a intervenção militar no exterior eram o centro da agenda política. Entre o ingénuo e o provocador, inquiri o nosso interlocutor sobre porque razão é que o partido Democrata não criticava os excessos da política de então. A resposta foi a de que havia uma atmosfera de receio no ar e, portanto, não valia a pena dizer coisas diferentes, porque quem quer que falasse seria directamente acusado de não proteger os interesses fundamentais da nação. O que este episódio ilustra é que, em situações de excepção, até mesmo as sociedades democráticas podem ficar paralisadas pelo medo. E o medo é uma forte arma política, como lembra Castells no livro “Redes de Indignação e Esperança” (XXXX), o medo, é a emoção paralisante da qual os poderes dependem, a fim de prosperarem e se reproduzirem, pela intimidação e desencorajamento. No entanto, há um problema com o uso excessivo do medo como arma política. É que ele tende a sair fora de controlo. Pois, rapidamente uma sobredose de instrumentalização do medo se transforma em indignação, seguida de uma qualquer situação que provoca sentimentos de injustiça, sendo depois vencido pela raiva, a qual muitas vezes se transforma em esperança numa melhor sociedade – ou pelo menos é o que nos ensina a história desde sempre. O mundo pós-2008 viveu (e vive) múltiplas situações que nos demonstram como a raiva e a indignação têm vencido o medo e sido transpostas em esperança. A esperança tem brotado na Islândia, em Israel, no mundo Árabe, nos múltiplos movimentos Occupy e de Acampadas, nos movimentos estudantis do Canadá e do Chile, nas recentes mobilizações populares na Índia e, também, em tudo aquilo a que temos assistido nas redes e nas ruas de Portugal ao longo dos últimos quatro anos. Iniciei este livro declarando que esta era uma análise sobre a mudança e, muito provavelmente, chegado a este ponto o leitor pensará algo de parecido com “tudo muito bem, mas nada daquilo que vimos desde 2010 até agora mudou nada!”. Se for essa a sua questão, deixe-me contra-argumentar, dizendo que

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso nem hoje nem antes nada mudou de repente. Não há nem ideias, nem pessoas, nem acções, nem políticas providenciais. Há sim pessoas que se juntam, que estão indignadas e que a dado momento dizem basta! E a partir daí ocupam os espaços públicos (na rede e fora dela) em busca de outros que pensem como eles e que queiram juntos encontrar soluções. O poder da mudança reside em surgirem pessoas que dizem coisas diferentes, que apontam preocupações diferentes e, a dado momento, soluções diferentes. Mas acima de tudo o seu poder deriva de surgirem e terem a capacidade de provocar a diferença, pelo mero acto de existirem. Pois, por muito reduzido que seja o seu número, eles possuem uma característica fundamental, não almejam tomar o poder, mas sim mudar as mentes das pessoas, para assim mudar as instituições do poder. Um caminho que pode parecer longo, mas que sabemos que dá os seus resultados. Tal como muitos outros, acredito que estamos a viver um momento que demonstra que a crise do capitalismo global financeiro, e o subsequente ataque aos estados europeus numa tentativa daquele restabelecer a sua boa saúde, não é necessariamente um beco sem saída – pode até ser o sinal de um “recomeço inesperado”. No entanto, esse recomeço não será encontrado nem nos relatórios do FMI nem nos comunicados das instituições da União Europeia sobre o futuro da Europa. Porquê? Porque a indignação generalizada nas sociedades intervencionadas europeias está centrada na humilhação provocada pelo cinismo e arrogância dos que assumem o poder, seja ele financeiro, político ou cultural – quer a nível nacional quer a nível das instituições europeias e multilaterais. Mas de onde vêm então a esperança? Ela vem das pessoas que se decidem juntar de forma informal e em momentos em que possam experimentar, sem limitações institucionais, o futuro que querem construir. Dando origem a diferentes movimentos sociais. São esses os movimentos de pessoas que através da história são os produtores de novos valores e novas metas, em torno das quais as instituições da sociedade se transformam para a criação de novas normas que organizem a vida social. E onde estão essas pessoas? Quando não estão nas ruas ou nas salas ao nosso lado, basta a qualquer um de nós navegar na web ou no facebook para as

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso encontrar. E como aqueles que incorporam o exercício do poder nas sociedades democráticas, isto é os partidos políticos, ajudar a romper com a actual maldição de perda de confiança, que no extremo está a levar a que os contratos sociais se dissolvam, podendo transformar-nos num conjunto de individualistas lutando apenas pela própria sobrevivência? A resposta reside, muito provavelmente, na capacidade de os partidos deixarem de ser estruturas inspiradas no modelo hierárquico burocrático e assumirem a sua identidade de redes (reprogramáveis) com as ideias que germinam por entre aqueles que sempre mudaram as sociedades, as pessoas e não as instituições – pois estas últimas são “apenas” meros instrumentos para levar avante a mudança. No geral, ao contrário do que alguns pensarão, o cenário parece hoje mais encorajador em Portugal, na medida em que os partidos ensaiaram e, estão a praticar, essa tentativa de busca de novas ideias que desencadearão novas formas de agir – o futuro, como sempre, nos dirá com que grau de sucesso. E agora? Agora, falta assumir-se que a sociedade já está a mudar (e começou-o sem esperar pelas instituições políticas), ir ao encontro das pessoas que já se juntaram em busca de mudar o sentido da sua vida e não o sentido do poder, e ajudar-nos a todos nós através, não da reforma do Estado, mas sim primeiro da reforma dos modos de pensar para além do individualismo e do interesse próprio. O resto virá por arrasto sem precisar de memorandos ou relatórios – os quais de qualquer forma passarão para a história como meros documentos – pois o que importa é a vida que queremos ter e o sentido que queremos dar-lhe.

Sem confiança não há mudança (com consensos não há solução)

Por via da adopção das políticas de austeridade, os governos e os cidadãos encontram-se hoje em locais muito diferentes. Os governos mais próximos de se isolarem nos paraísos idealizados e fornecidos à medida pelas elites ancoradas no sistema financeiro (que compreensível e naturalmente desejam manter o status quo pré-crise, embora tal seja uma impossibilidade) e os cidadãos num purgatório, cada vez mais próximo do inferno da crescente desigualdade, por via da diminuição de rendimentos e da produção de riqueza.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Embora seja possível acreditar que as políticas de austeridade começaram por ser um instrumento estratégico para diferentes partidos desalojarem outros do poder, na realidade transformaram-se em prisões para os governos que lhes sucederam, ao retirar-lhes toda a margem de manobra política e impelindo-os apenas para um único caminho de entre os múltiplos sempre possíveis – mas, atenção, a austeridade não tem uma cor ideológica e pode ser apropriada por diferentes partidos, dos verdes aos liberais e dos sociais-democratas aos conservadores (como se vê, por exemplo, na Alemanha). Mas o que interessam os consensos para as políticas de austeridade? Para responder é preciso primeiro olhar para de onde surgem os pedidos de consenso e qual o papel institucional de cada actor político na sua disseminação. São as instituições transnacionais, como o FMI, o BCE e a CE, que continuam a colocar a ênfase na necessidade de consensos para sair da crise e os seus destinatários são os diferentes governos nacionais dos países em crise – ou seja, a quase totalidade da zona euro do Norte e da zona euro do Sul e outros (muitos) países europeus. Porque essas estratégias, de busca de consenso, são úteis aos governos para a sua permanência no poder, a exigência ou o pedido de consensos têm sido assumidos como se fossem seus. No entanto, os consensos não são uma solução mas sim um instrumento e, como tal, um consenso que não permita o dissenso limita as possibilidades de escolha, de alternativa e no fim de contas encerra em si uma dimensão alargada de intolerância. No contexto do que Wolfgang Streeck e Armin Schafer (XXXX) designam por Política na Era da Austeridade, o “consenso” é apenas mais um instrumento necessário à aplicabilidade das políticas de austeridade. Pois, a austeridade para poder ser aceite num contexto nacional e ter sucesso enquanto estratégia política tem de, obrigatoriamente, conseguir eliminar a vontade de propor alternativas nos restantes discursos políticos. A estratégia política de consenso sobre a austeridade é assim uma estratégia de terra queimada, ou mais propriamente de ideias queimadas, pois necessita de descredibilizar todas as restantes possibilidades para prosperar como única

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso possibilidade política. E, enquanto convence as populações, é um terrível instrumento político, pois cria um vazio total de ideias em seu redor. O que se observa no discurso político em defesa da austeridade é que nada que se proponha de diferente é possível de executar. Pois, diz quem propõe a austeridade, qualquer alternativa implica sempre diminuir ainda mais as receitas ou aumentar ainda mais a dívida. E, mais, quando a ideia alternativa não carece de orçamento ou défice para triunfar, declara-se que a mesma é contrária ao consenso em torno da austeridade e portanto não deve ser adoptada, sob pena de fazer pôr em risco o esforço já desenvolvido. A política na Era da Austeridade, segundo Streeck e Schafer (XXXX), é assim assente no discurso do consenso sobre a necessidade de redução da dívida pública, por via dos cortes no modelo de Estado criado após a II Guerra Mundial. Mas assenta também noutros dogmas como a impossibilidade da utilização, para a redução da dívida, do aumento dos impostos sobre os lucros ou sobre os dividendos dos accionistas e do aumento de impostos sobre os rendimentos ultra-elevados. Como nada mais é possível senão a política num só sentido, a política na Era da Austeridade é cada vez mais centrada numa democracia de espectáculos, em detrimento da acção política. Bem como, pela mesma razão, os cidadãos são cada vez mais empurrados pelos governos para a utilizar os seus salários e poupanças para comprar no mercado aquilo que outrora recebiam do Estado, como seja a saúde, a educação ou a segurança – mas, mantendo os níveis de impostos já pagos. Num regime de austeridade institucionalizada, desaparece a capacidade dos Estados de exercerem o livre arbítrio de decisão política. Mas, mesmo assim, por forma a manter a confiança dos investidores financeiros, os Estados são impelidos a preservar ou reforçar a desigualdade social na sociedade civil – ou seja, a manter o primado do pagamento dos juros sobre o pagamento das reformas e outros rendimentos sociais. As implicações para a política entre nações são também evidentes, ou seja, as complexidades da política monetária e fiscal vão sendo tratadas pelas

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso populações, e pelos próprios intervenientes políticos, como um conflito entre nações em que umas são mais e outras menos produtivas economicamente – algo que é transversal ao discurso tanto da direita, que se constrói em torno de uns serem pecadores colectivos e outros possuírem a racionalidade económica e a prudência fiscal, como da esquerda, que vê o desenrolar dos acontecimentos na perspectiva do dever das nações mais ricas em ajudar as menos ricas. Mas, mesmo para a política – ainda que na Era da Austeridade – há esperança. Pois há fortes contradições internas neste contexto actual. Os investidores em dívida soberana parecem ter requerido políticas de austeridade para obter a segurança de que os seus direitos de saque perante os estados teriam prioridade face aos direitos dos pagamentos devidos aos cidadãos. Mas os mercados também sabem que a austeridade sozinha não conseguirá produzir dívida pública baixa, o crescimento económico é também necessário. E onde há contradição há esperança. A pergunta óbvia a fazer é: então por que precisaremos de consensos em torno da austeridade se eles servem para aumentar as desigualdades (fazendo ao mesmo tempo todos os cidadãos perder muito), para fazer os credores temer pela inviabilidade da rentabilidade dos seus empréstimos, para dar pequenos passos para amparar o sistema financeiro (que não pode ser salvo na totalidade do seu buraco) e para comprometer o futuro das próximas gerações? A resposta sincera no quadro político é, como já vimos, que o consenso é necessário para a manutenção no poder de quem o conquistou num determinado momento histórico. E, por outro lado, economicamente a resposta reside na ideia partilhada de que o colapso do sector financeiro poderia ainda ser pior do que aquilo que hoje temos. E, como tanto accionistas quanto os políticos têm demasiado medo de fazer diferente, pelo menos assim sabemos para onde vamos, ou seja, para um purgatório que esperamos (muito provavelmente em vão) não nos leve até ao inferno. Quando quase todos se sentem sem capacidade de ter esperança ou a caminho de ficarem sem ela, nem o sonho dúbio de um acesso ao paraíso dos poucos e poderosos (que mesmo assim continuam a aumentar na desigualdade de rendimentos) ajuda a temperar a máxima de que “onde há repressão, há sempre

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso revolta”. Continuamos a acreditar que essa revolta seja possível de canalizar em votos em eleições e não em fogueiras infernais, mas neste momento tudo indica que o consenso só alimentará as fogueiras e não a esperança numa vida melhor.

Alemanha século XXI, nem medo nem esperança!

Nas eleições alemãs de 2013, houve cores que ganharam, cores que perderam e também um novo partido ainda sem cores oficiais. Mas o que realmente importa é que passado o Verão, passadas as eleições alemãs (e as autárquicas portuguesas no próximo fim-de-semana) a Europa e Portugal parecem ir regressar de novo à ideia de história como uma sucessão de crises, nunca resolvidas na totalidade, abandonando a ideia de história enquanto progresso. Para a historiadora Rosalind Williams (XXXX) encontramos-nos hoje envolvidos numa luta pela tentativa de reconciliar dois conceitos muito diferentes de história: a história enquanto progresso, onde de forma lenta, mas segura, nos encaminhamos para melhores condições de vida humana; e a história enquanto um Apocalipse incessante, onde as crises, também de forma lenta mas segura, se transformam em centros de desastre, intersectando-se e reforçando-se mutuamente. Porque a actual crise europeia é ainda financeira, económica, política e social e a sua génese se encontra no modelo de relações de produção e poder que escolhemos dar à sociedade em rede neste início de século, as eleições no último Estado europeu com rating de AAA despertam natural interesse. Segundo o Der Spiegel (XXXX), nas eleições alemãs de 2013 ganhou a cor preta da CDU/CSU de Merkel e apenas sobreviveram o vermelho do "Centro Esquerda" do SPD, o verde dos “Ambientalistas” e o rosa da “extrema-esquerda” do Die Link. Por sua vez, o laranja do Partido Pirata não se conseguiu afirmar, o amarelo do partido “Pró-negócios“ Liberal deixou de estar representado e o perigoso medo face aos ”outros” países do euro foi contido pela não entrada no Parlamento do partido “antieuro”, a Alternativa para a Alemanha (ainda sem cor definida), impedindo assim a institucionalização de um novo partido à direita dos “conservadores” de Merkel.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso As eleições alemãs de 2013 foram também singulares de outro ponto de vista, o dos não alemães. Pela primeira vez, os cidadãos de países europeus olharam para as eleições alemãs com o tipo de expectativa que antes só possuíam para com as eleições americanas da última década e meia. No entanto, estas eleições alemãs foram muito diferentes dos confrontos Bush vs. Kerry e dos Obama vs. McCain ou Romney. A diferença não reside apenas no facto de haver um vencedor antecipado nas eleições alemãs, Angela Merkel, mas também porque, como refere Mark Schieritz (XXXX) jornalista do Die Zeit e analista

económico

do

German

Marshall

Fund

(GMF),



diferenças

fundamentais entre a Alemanha e os EUA na forma como é entendida e praticada a política económica. E, portanto, também há diferenças nas potenciais consequências para os cidadãos de outros países. A principal diferença reside em que, para a Alemanha, o focus na política económica deve ser a redução da dívida do sector público e o retirar de cena de incentivos monetários e, para os Estados Unidos e para os restantes G18, a prioridade deve ser manter a economia a funcionar (XXXX). Na busca de paralelos entre a prática política alemã e a norte-americana, Schieritz (XXXX) traça um arriscado, mas possível, paralelo entre a política intervencionista americana dos mandatos Bush e a política económica alemã. Como ainda recordamos, a intervenção americana no Iraque assentou numa visão neo-conservadora apoiada na crença na universalidade e supremacia cultural de determinados valores. Nas palavras de Schieritz (XXXX), para o neoconservadorismo o interesse nacional é definido em termos do poder que se detém (e não do mero interesse pessoal), dando à política externa uma orientação eminentemente moral – e é aqui que para o analista do GMF se encontra o paralelo com as raízes da política económica alemã. Schieritz (XXXX) recorda que, enquanto último grande Estado detentor de um rating AAA, a Alemanha teria muito a perder se fosse englobada, junto com nações mais fracas, em eventuais eurobonds. Além disso, para o alemão médio a rentabilidade das suas poupanças está muito mais relacionada com obrigações do que com acções ou com o imobiliário, daí que não seja do seu interesse um ciclo de juros excessivamente baixos – mesmo que tal seja útil para nos

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso restantes países promover o investimento. No entanto, porque o sistema financeiro alemão é credor de múltiplos países da zona euro também tem todo o interesse em manter os seus devedores em condições de poderem remunerar as suas dívidas. Esta é a difícil equação em que se move a política económica alemã na Europa do euro. Detenhamos agora a nossa atenção sobre um exercício proposto pela análise do GMF (Schieritz, 2013) e que nos pode ajudar a compreender o paradoxo do posicionamento político alemão. Para os analistas de mercados parece ser claro que uma diminuição da capacidade de crescimento norte-americano, por via da alteração da política monetária de incentivos, levaria a que ocorresse uma quebra de exportações alemãs para aquele país e, consequentemente, desemprego e quebra económica na Alemanha. Então por que é que a Alemanha defende este tipo de medida para os EUA, quando tal lhe seria prejudicial no imediato? A análise do projecto EuroFuture do GMF (Schieritz, 2013) argumenta que, tal como na política externa neo-conservadora, a política económica alemã possui uma forte dimensão moral, promovendo regras e regulação que nem sempre podem ser justificadas apenas com base no argumento da defesa do interesse próprio. Tal pode parecer estranho, mas como salienta Schieritz (XXXX), “moral” aqui não quer dizer altruísta, quer sim dizer a implementação de regras e incentivos que, embora estejam para lá do mero interesse imediato de um Estado, reforçam o seu poder no longo prazo. É esta dimensão moral que justifica a aceitação de que, em última análise, a dor no curto prazo será positiva para todos, incluindo para a Alemanha. Há assim lugar à justificação do combate aos perigos morais do curto prazo e, consequentemente, da pressão sobre os decisores políticos, com recurso aos bancos centrais ou às Troikas, no sentido de criar uma dada ordem indutora de estabilidade de longo prazo. De algum modo, trata-se da tentativa de instaurar a possibilidade do impossível, isto é, a ideia de que é possível criar uma dada ordem que permita um capitalismo sem crises, sejam estas de crédito bancário, de sobreprodução ou de sobrendividamento dos estados ou das famílias. No entanto, a actual crise financeira demonstrou os limites desta visão e as suas debilidades nos países periféricos da zona euro, razão pela qual inclusive deu

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso origem a um certo pragmatismo político alemão, embora com manifestações reduzidas, que levou a que se apoiasse discretamente a compra de dívida pelo Banco Central Europeu e que, mais importante, em ano de eleições alemãs se tenha optado por um orçamento relativamente expansionista. Mas, mesmo em tempo de eleições e coligações, este pragmatismo moderado não tem obrigatoriamente que se traduzir em mudanças de atitude generalizadas na Alemanha. Pois, a dimensão moral que influencia as ideias económicas na base da acção política, não é apenas um acervo da CDU, faz também parte da generalidade do sistema político alemão (com excepção, talvez do Die Link). Embora Ulrich Beck (XXXX) tenha sugerido que a política europeia alemã teria de mudar com a entrada do SPD no Governo, não certezas de que os programas de Governo adoptados ou a própria realidade europeia tenham força suficiente para destronar, no curto prazo, as crenças assentes na necessidade de uma “ordem” económica de longo prazo que se sobrepõe à realidade imediata. Se assim continuar a ser, continuaremos ainda por algum tempo à espera da Alemanha, pelo que é finalmente tempo de assumir que a resolução das crises nunca esteve só com os “outros” países, nem apenas com os alemães. É, provavelmente, tempo de abandonar o “Estado de Emergência Moral” que aceitámos viver, deixar de esperar, deixar de aceitar medidas avulsas ditadas pela busca da criação de uma impossível nova “ordem” económica em Portugal e perceber que só podemos contar connosco e com a nossa visão. É tempo de assumir que enquanto povo não somos culpados de nada (há alguns que o são, mas nunca os dez milhões), assumir que somos “nós” os que melhor sabem o que fazer connosco e assumir que tal não quer dizer que estejamos sozinhos face ao problema europeu. É tempo de assumir que é fundamental que as lideranças nacionais compreendam que a “união faz a força” e que em 28 países da União há muitos aliados potenciais à espera de melhores lideranças para disputar o actual vazio e que construir alianças é mais fácil agora que quase todos estão a passar pela “sua” crise. O Apocalipse incessante das crises nacionais e da crise europeia continuará a menos que decidamos que o não queremos, assumamos que o destino passa, em Portugal, pela mão de dez milhões e não por apenas meia-

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso dúzia delas e que um pensamento minoritário, que não tem aqui nem em qualquer outro lugar aplicabilidade, não pode reger o nosso progresso.

Uma cura para a austeridade?

Quanto vale uma baixa de défice de 0,1% em vidas humanas? 500, 1000, 2000 pessoas? Essa é a interrogação que David Stuckler e Sanjay Basu (XXXX), dois investigadores da área da saúde, colocam a propósito da economia americana quando perguntam se uma baixa de 0,3% no défice norte-americano vale, ou não, a vida de 2000 americanos. E o que responderíamos se tal pergunta nos fosse feita em Portugal? Para que as democracias funcionem correctamente, temos de saber quais as consequências das escolhas políticas feitas por aqueles a quem emprestamos a nossa representação por um período determinado – isto é, os políticos eleitos. Pois, o crescimento económico é um meio para atingir um dado fim, um meio para alcançar uma dada visão de país, e não um fim em si mesmo. Perguntar a quantas mortes corresponde um dado corte percentual no défice pode parecer, e parece, uma pergunta demagógica, mas certamente é o tipo de pergunta que nos ajuda a introduzir a dimensão das consequências humanas das políticas quando, por exemplo, se escolhe um dado orçamento ou se desenha uma dada política. Para além disso, ajuda-nos também a recentrar-nos na realidade em que vivemos. Pois, como se demonstra na análise de Stuckler e Basu (XXXX), não é a austeridade e o refinanciamento dos sistemas financeiros que teve, ou tem, a capacidade de criar crescimento, pois é precisamente na saúde, e também no investimento em educação e protecção social, que se encontram os maiores multiplicadores fiscais de crescimento económico – e são, segundo os autores, os próprios dados do FMI que o demonstram. Stuckler e Basu (XXXX) mostram-nos que sem investir na saúde pública não pode haver crescimento económico sustentável, mas que pode haver crescimento económico não sustentável no curto prazo, ou mesmo até crescimento sustentável até ao próximo ciclo eleitoral – qualquer que ele seja.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Sabendo que no longo prazo estamos todos mortos, mas que entretanto nos cabe decidir se as sociedades devem ser salvas, e como as salvar, temos de nos questionar se uma sociedade pode ser democrática quando a recuperação é apenas para os que lucram dos juros baixos da dívida pública e das subidas nos mercados de valores, ou se a recuperação só é, verdadeiramente, democrática quando se tem emprego. A saúde e a educação estão no centro do funcionamento de qualquer país, pois indivíduos com bons níveis de saúde e com bom níveis educativos criam forças de trabalho com maior capacidade de trabalho e inovação. "A saúde e a educação estão no centro do funcionamento de qualquer país, pois indivíduos com bons níveis de saúde e com bom níveis educativos criam forças de trabalho com maior capacidade de trabalho e inovação." Stuckler e Basu centram a sua análise no estudo das recessões, das batalhas orçamentais e do que denominam de políticas de vida e morte, e para tal recorrem à análise da grande depressão de 1929 nos Estados Unidos, à crise pós-comunista no leste europeu e na Rússia, à crise asiática dos anos 1990, à crise financeira islandesa e à crise europeia do euro no pós-2010. O que nos é sugerido nesta análise é que as políticas económicas erradas não se traduzem apenas no tipo de decisões que os ministros das Finanças da zona euro fazem ao escolher inícios e fins de assistência financeira a países. Políticas erradas são também as “causas das causas” da deterioração da saúde das populações. Tal como é analisado no livro “Why Austerity Kills” (XXXX), as escolhas económicas também determinam quem é mais provável que fique sujeito a problemas de álcool, quem é mais provável de entrar em depressão ou apanhar tuberculose, etc. E também quem terá maior probabilidade de ser protegido através de maior apoio social, ter abrigo ou recuperar a sua saúde mental. Na saúde e nas outras áreas de governação, as escolhas políticas sobre como lidar com a Grande Recessão resumem-se, no fim de contas, a opções entre medo e esperança. O medo e a esperança política não são propriedade de partidos mas antes de pessoas. Pelo que, no plano global, o medo tanto pode dominar práticas à

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso esquerda como à direita e vice-versa para as políticas radicadas na esperança. No entanto, o medo está intimamente ligado a uma ideologia neo-liberal, enquanto a esperança, mesmo por estranho que possa parecer, está mais associada

às

dimensões

conservadoras,

para

além,

obviamente,

das

progressistas. O medo político desemboca na austeridade, ou seja, o medo de que se não se fizer tudo para salvar o anterior sistema poderá ser-se condenado pela história e pelo presente, porque de qualquer modo nunca houve, nem haverá, alternativa. Só com austeridade haverá dinheiro para manter os países a funcionar. E para haver dinheiro emprestado aos países, tudo deve ser feito para salvar o sistema financeiro, e tudo deverá ser feito para criar almofadas financeiras através da redução de custos com pessoas (salários, reformas, prestações sociais variadas, saúde e educação). A política de austeridade ancorada no medo diz-nos, simplesmente, que o bem estar da sociedade depende do bem estar do sistema financeiro. Estamos aqui no campo dos multiplicadores associados aos cortes no défice e quanto é que os mesmos impactam na redução da actividade económica. Por sua vez, a esperança política está associada à ideia de que o sistema financeiro é produto da sociedade. E que, como o motor das energias da inovação humana é a busca por uma vida melhor, se acharmos que o actual modelo está errado, só temos de dar os primeiros passos na resolução do actual problema e da criação do próximo modelo. A política de estímulos ancorada na esperança coloca o sistema financeiro, não no centro da vida, mas sim como um instrumento para a vida ser vivida com dignidade e menor desigualdade. E, por isso, estamos aqui no campo dos multiplicadores associados aos investimentos na saúde, educação, na inovação e criação e de como os mesmos podem impactar no aumento da actividade económica. E em Portugal a austeridade e a redução do défice custou já quantas vidas? Não podemos responder ainda, mas podemos intuir que dependerá de, até que ponto, o medo e não a esperança, comandar a acção política e se conseguimos, ou não, curar-nos da austeridade.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso

Continuamos cercados ou não?

O fim da recessão da “Grande Recessão” foi anunciado em Portugal e na Europa durante o segundo semestre de 2013. Por exemplo, o Financial Times(XXXX) escrevia que parecia claro que a pior crise económica em tempo de paz –desde a Grande Depressão – estava terminada para a Europa. Ou seja, havia-se atingido na Eurozona um crescimento de 0.2% e no Japão e Reino Unido de 0.6% (ou seja três vezes mais, mostrando o quanto a Europa ainda está debilitada). O crescimento na Eurozona é pequeno, mas parece portanto ser boa notícia, no geral é uma boa notícia, mas boa para quem? Para poder responder de forma concreta, precisamos de primeiro olhar para uma capa do Le Monde, (XXXX), o título que sobressai dizia “Os bons resultados das grandes empresas mundiais”e lendo percebe-se que em média as 2600 maiores empresas mundiais apresentam um aumento das suas vendas no último ano na casa dos 2% e de lucros acima dos 12%. No global, segundo a Bloomberg, nos Estados Unidos os 500 primeiros grupos norte-americanos atingiram margens de 9.3% face ao seu valor de negócios e, assim, regressaram ao tipo de resultados do período précrise de 2008. Não há dúvida que as notícias são boas para os Governos Europeus da zona euro, sejam eles de esquerda ou de direita ou coligações de identidade difusa no espectro ideológico, pois todos os governos podem reclamar para si as boas notícias - apesar de na maioria dos casos a média de crescimento do conjunto depender tanto ou mais do parceiro europeu do lado do que si próprios. E, as notícias são também boas para as grandes empresas Europeias que disputam mercados dentro e fora da Europa. No entanto, as boas notícias não resolvem por si só duas dimensões estruturais dos problemas de cada país da zona Euro. Esses problemas são as dívidas nacionais dos países (todos, mesmo a Alemanha, têm uma gestão da dívida pública que terá futuramente de ser feita de forma diferente da actual) e o que fazer a todos os bancos (todos, mesmo os alemães) e ao facto, confirmado pelas

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso instituições de regulação europeias e internacionais, de a sua debilidade ser ainda extrema, apesar de quase seis anos de injecções financeiras de dinheiro público e de múltiplas tentativas de resolução negociada de novas formas de regulação a nível nacional e europeu. As boas notícias não resolvem também, o maior problema de todos, maior porque é-o em número de actores individuais e colectivos neste processo que assumiu o nome técnico de “Grande Recessão”e que na gíria se denomina “crise”, ou seja, os problemas dos cidadãos europeus e das pequenas e médias empresas europeias. Porque governar só faz sentido se for feito para as pessoas e não para grandes organizações (as quais poucas pessoas envolvem) e porque a riqueza e o emprego sóse gera (pelo menos na Europa) por via dos milhões de pequenas empresas, esta indicação de crescimento que alegra Governos e grandes empresas não deve trazer grande felicidade a todos nós, pois não resolve ainda os nossos problemas. O crédito continua a não fluir em quantidade suficientes e atractividade de taxas praticadas, porque ninguém no sistema bancário confia ainda o suficiente nos outros bancos seus parceiros. E, não havendo crédito, não se gera riqueza porque as pequenas empresas não podem investir. Há de facto dinheiro a circular no sistema, mas é aplicado no empréstimo aos Estados da zona euro que, seguros pelo BCE, oferecem taxas de juro que permitem lucros certos e garantidos ao sistema bancário europeu. Ou seja, estamos todos a trabalhar para o médio prazo, que é quando se espera que tudo fique mais ou menos como estava antes de 2008. Mas, no entretanto, há outro problema não resolvido, o do emprego. Porquê? Porque todos os analistas e gestores financeiros sabem (embora acredite que nem todos os governantes europeus o tenham presente) que é perfeitamente possível, no curto prazo, crescer o lucro das empresas despedindo pessoas –ou reduzindo salários quando possível - e que esse é o manual de gestão utilizado na maioria das grandes empresas globais para apresentarem resultados aos seus accionistas mesmo em tempo de recessão. E, também, deveríamos saber que produto da introdução das tecnologias de informação e no moldar das

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso nossas sociedades em sociedades em rede, háuma clara transformação da relação entre emprego e geração de riqueza numa série de actividades das nossas indústrias e dos nossos serviços - simplificando, podemos dizer que são hoje precisas menos pessoas para garantir uma dada rentabilidade empresarial em certas actividades. E, ainda, que o experimentalismo europeu de e com as Troikas não fez apenas erros com multiplicadores, errou também no grau de disrupção do know how industrial existente, pois o downsizing/ajustamento é muito difícil de fazer com pequenas e médias empresas e, consequentemente, leva à destruição total e não parcial do emprego. Ou, que todos os analistas das estatísticas de emprego sabem que, quer na Eurozona do Sul quer na do Norte, os períodos de férias de praia, neve ou campo geram contra-ciclos, aumentando a criação de emprego em ciclos de crescimento económico e, em ciclos de crise, promovem a redução da destruição de emprego. Ficar

contente,

mesmo

que

contente

com

cautela

e

precaução,

por

regressarmos, no actual contexto, àperformance das grandes empresas no pré2008 e às taxas de crescimento de “0.qualquercoisa%”é mau, muito mau mesmo. É mau, porque para todos os cidadãos e para todas as pequenas e médias empresas europeias (e espero que para os Governos atentos também o seja) quer dizer viver num cenário onde, por um lado, há menos riqueza para ser distribuída e, por outro, hámaior desigualdade de rendimentos para os cidadãos e redução de capacidade de alavancagem para gerar riqueza pelas pequenas e médias empresas. Ou seja, se nada mais fizermos (e contentes ficarmos) com o que está a surgir no radar apenas podemos esperar que em Portugal e na restante Eurozona, tenhamos menor capacidade de criar riqueza, assistamos ao incrementar da tendência de concentrar a riqueza num cada vez menor número de pessoas e de grandes empresas, diminuindo assim a capacidade de criação de emprego e criando uma sociedade assente em cada vez maiores desigualdades, no medo de deixar de pertencer às classes médias (cada vez mais

frágeis)

e

no

condicionamento

de

facto

do

livre

acesso

ao

empreendedorismo e àliberdade empresarial.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Se acharmos que tudo está bem se todos os que eram fiéis à crença na austeridade passarem a professar agora o crescimento, se acharmos que os que desde sempre acreditaram no crescimento não precisam de combater a desigualdade para conseguirem gerar riqueza, então continuaremos, em Portugal e na Europa (incluindo na Alemanha), cercados numa sociedade que se contenta com tentar gerar riqueza, sem perceber que sem melhor repartir aquela, para além do 1% que a acumula actualmente, não será possível retomar nem a riqueza de ontem, nem o emprego que os que hoje têm 40 anos conheceram no final do século XX e no início do século XXI.

Diferentes, iguais e desobedientes

Entre muitos dos actores políticos e económicos portugueses existe a crença de que se houver crescimento e equilíbrios orçamentais haverá paz social e estabilidade porque as pessoas terão o que precisam, isto é, emprego e consumo. Mas, provavelmente, não há nada de mais falso. Se assim fosse, porque veríamos pelo mundo fora, dos Estados Unidos ao Quebéc, no Chile e agora na Turquia e Brasil, tantas pessoas protestando e tendo o apoio de largas faixas da opinião pública, quando ao mesmo tempo os seus países crescem e as finanças públicas são percebidas como em equilíbrio pelos "mercados"? A resposta reside, provavelmente, no que Alain Touraine sintetizava há treze anos num artigo no Journal of World Systems Research (XXXX). Ou seja, quanto mais alguém se sente atingido ou ameaçado na sua autoestima mais as normas e as instituições da sociedade em que vive lhe parecem injustas ou ilegítimas. E, como tal, perante essa ameaça ou realidade decidem agir e tornar-se actores na construção do seu destino em vez de meros destinatários das decisões de outrem. É claro que é neste ponto que muitos leitores dirão que a acção só vale a pena se soubermos o que alterar e que solução aplicar a um dado problema, seja ele a governação do país, os espaços verdes de uma cidade, a política de preços de transportes públicos ou, simplesmente, as políticas de educação.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso No entanto, eu argumentaria que não é assim. Pois, primeiro surge a ideia de que “isto” ou “aquilo” é injusto, que não pode ser assim e que tem de mudar, só depois no próprio processo de acção se formam as soluções que dão origem a novos ciclos institucionais e de criação de normas. No fim de contas, a pergunta a que todos procuramos responder é o que queremos da nossa vida e tentar compreender o que querem os outros que partilham os mesmos espaços geográficos e culturais connosco. E o que queremos então? Talvez o mais fácil seja primeiro dizermos o que não queremos e o que não nos satisfaz. Eu sugeriria, em concordância com Wieviorka (XXXX) e Castells (XXXX), que não nos satisfaz sermos reconhecidos apenas como actores políticos ou cidadãos e menos ainda como actores económicos, membros de uma classe ou grupo de interesses. Esses reconhecimentos são passageiros, efémeros e assumem uma dimensão colectivizante que pouco nos diz, pois ser definido como pertencendo a uma categoria social ou a um princípio universalista é fechar a capacidade de acção e limitarem-nos as escolhas individuais. O que pretendemos, enquanto parte da sociedade em que vivemos e que construímos, é sermos reconhecidos como actores autónomos com capacidade de definir o que queremos ser e como o queremos cumprir. O que pretendemos é ter a liberdade de agir, escolher e possuir a capacidade de incorporar qualquer nova situação numa experiência de vida com sentido. Ou seja, se é verdade que não controlamos a maioria dos processos sociais, económicos e culturais em que estamos envolvidos, é também verdade que o que pretendemos é que em todos os momentos da nossa vivência possamos dar sentido à nossa vida. E para isso, mesmo que não possamos controlar os processos, há sempre espaço para os influenciar através da nossa acção - tome ela as formas que tomar. Neste tempo, e neste espaço, o que de mais importante há a perguntar em defesa da nossa autonomia individual e capacidade de escolha, para que possamos dar sentido à nossa vida, são perguntas como as seguintes: o que queremos ser depois destes anos de crise? Quais são os nossos desejos individuais? Quais são as nossas vontades partilhadas? Que instituições

131

O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso precisamos de mudar e desmantelar? Que normas inventar e que normas rasgar? Mas para fazer estas perguntas e para que as mesmas nos façam sentido temos de assumir que o que devemos buscar é o conflito e não a ordem. Só compreendendo o conflito e as suas oposições e tensões poderemos abandonar a nossa obsessão mediática pelos actores políticos e pelo que dizem em detrimento do que queríamos que eles fizessem e do que faríamos nós se fossemos eles. Temos, efectivamente, de assumir que para compreender como agir nas nossas sociedades é preciso entender que a mudança social está dependente da comunicação e da acção. E esta máxima é tanto aplicável ao poder e às suas instituições quanto aos contra-poderes que as procuram mudar. A comunicação de ideias cria a partilha que faz com que os nossos desejos se transformem em vontades partilhadas por mais pessoas. E a acção funciona como criador de laços de união entre as pessoas, cria a percepção de que a mudança é possível quando muitos estão juntos em algo. Aliás, é essa característica de aliança entre comunicação e acção que as redes sociais do Facebook e Twitter permitem que amedronta tanto os poderes instituídos - sejam eles democraticamente eleitos ou não. Pois, o que faz o poder recear o uso das redes sociais não é a expressão de ideias mas sim o apelo ao mimetismo da acção. Quando alguém escreve "Todos à Praça" ou "Na Praça" está a convidar outros para a acção e não para a reflexão e tal quebra a capacidade da persuasão dos poderes. Pode parecer descabido dizer que o emprego e o consumo não bastam na vida das pessoas, quando estas habitam hoje num país económica e socialmente deprimido como Portugal. Mas o momento que vivemos é apenas um momento histórico e transformar-se-á em breve noutro momento histórico possuidor de outras características mais positivas. Para que abandonemos o actual círculo vicioso e depressionário há que compreender que é necessário primeiro subverter as regras de comunicação e acção vigentes. Isto é, vivemos num círculo vicioso comunicativo no qual predominam as ideias feitas de que se está a fazer o que é possível ser feito, que não é possível ser feito diferente, que a culpa é nossa porque não somos empreendedores (mas

132

O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso curiosamente o crédito falta e a economia é cada vez mais feita de oligopólios) ou que devemos expiar más práticas e jejuar das mesmas porque consumimos demais (mas estranhamente, praticámos porque nos disseram que não havia crédito para investimento, mas que havia para consumo). Um ciclo comunicativo vicioso porque não consegue produzir perguntas simples sobre o que está errado e porque as instituições e as normas que temos passaram a ser percebidas como injustas e ilegítimas - perguntas que obviamente necessitam de quem as faça nas aberturas de telejornais e nas capas de jornais para que cheguem também aos representantes eleitos. Pois, nas redes sociais essas perguntas já circulam entre quem elege os eleitos. Por outro lado, vivemos num círculo vicioso de acção que faz com que apenas nos centremos no que acreditamos que somos (ou fomos) capazes de negociar em termos de memorandos de entendimento com organismos internacionais e de discutir com os seus funcionários - viciosamente auto-limitamos-nos na nossa criatividade e ambição de nos superar. Quando o actual círculo vicioso se quebrar tal sucederá não por via das políticas económicas definidas no quadro nacional ou internacional, mas por via dos actores políticos e sociais, isto é todos nós, os que tomarem o palco da acção e das novas visões e que sejam capazes de simultaneamente as produzir, as remisturar com as acções e visões dos outros e as partilhar entre si. E o palco será daqueles que nos forem capazes de ajudar a ser o que queremos ser, isto é, diferentes e iguais - culturalmente diferentes e economicamente iguais. Porque as empresas, o Estado, as organizações e associações desde há década e meia se têm vindo a dotar de computadores ligados em rede, porque mais de 90% dos cidadãos têm telemóveis e porque já mais de 50% da população portuguesa está ligada à Internet, a lógica de organização em rede tem vindo a moldar não só as nossas relações de poder, como a vida familiar, o trabalho e os negócios. Essas são apenas algumas das razões pelas quais a nossa sociedade é uma sociedade onde a maior parte do que é importante para nós se desenrola em rede e onde apenas aquilo que é menos importante tende a manter-se inalterado nas suas lógicas hierárquicas, pouco flexíveis e pouco readaptáveis a qualquer mudança.

133

O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Mas o facto de vivermos numa sociedade em rede molda também a nossa forma de actuar perante a injustiça, o tipo de protesto e, mais importante, a nossa percepção de quando é que é justo desobedecer a todos os tipos de poder. A desobediência à lei é um terreno tabu para as instituições do poder democrático – sejam elas os partidos, parlamentos, governos, presidentes, sindicatos ou tribunais. A razão do tabu é simples, em democracia as leis são justas porque são produto da deliberação, da negociação, dos consensos possíveis. Logo, não faz sentido desobedecer às leis, não há moral na desobediência. Mas o protesto em democracia existe e a desobediência acontece quando tem de acontecer – o que é o mesmo que dizer que quando há injustiça há protesto e que quando se retira margem de mudança há desobediência. Como refere Douzinas no seu recente livro “Philosophy and Resistance in the Crisis” (XXXX), é a percepção de extrema injustiça, radicada numa série de humilhações sucessivas, que exaure a tolerância moral de uma sociedade e leva à desobediência. Pois, como bem sabemos, as humilhações também podem ser sociais, ao radicar nas leis, e não apenas nos comportamentos individuais. Sabemos que nas sociedades democráticas os conflitos entre moral e lei são normalmente resolvidos em favor da lei. Mas o dever de obedecer à lei é absoluto apenas quando acompanhado pelo livre pensamento de que a lei é moralmente correcta e democraticamente legítima. A moralidade e a legalidade são duas faces da mesma moeda. Quando a lei coloca em causa a nossa concepção de bem é a nossa própria autonomia que é colocada em causa e a desobediência à lei torna-se moral. As nossas sociedades precisam de ser autónomas para serem democráticas. E, por isso, não podem ser as instituições da democracia a destruir a noção de que as leis, cuja origem está sempre nos cidadãos, não podem ser postas em causa e mudadas por si próprios. Quando a liberdade de mudar uma injustiça moral legislada é vista como impossível, então a desobediência deixa de ser ilegal e torna-se numa resposta moral e cívica às incapacidades governativas de criar alternativas à disrupção da vida em grupo ou à deficiente regulação social. Sabemos hoje, pela experiência na primeira pessoa nas praças e ruas, ou indirectamente pela televisão, que os protestos na sociedade em rede (a nossa

134

O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso sociedade) estão, como sempre estiveram, ligados à forte percepção de injustiça e que o uso de telemóveis, da Internet são características da organização informal contemporâneas, seja ela presencial ou em rede. Mas há mais duas dimensões que devemos ter em atenção se queremos compreender as desobediências em gestação nas mentes dos cidadãos dos diferentes países da Europa, Américas, Ásia e África. Elas são, respectivamente, a desobediência individual simbólica, ou seja aquela praticada pelos analistas de informação, e a desobediência

em

rede

quer

nas

administrações

públicas

quer

nas

administrações privadas em detrimento de outros tipos de protesto como as greves. Os analistas de informação como Bradley Manning com a divulgação para o Wikileaks de informação sobre a Guerra do Iraque, Afeganistão e Diplomacia Norte Americanas; Edward Snowden com a denúncia e divulgação de documentos da NSA ou ainda ex-empregados do sector bancário suíço com a divulgação de contas de clientes em processo de evasão fiscal, constituem um exemplo do poder do individuo com acesso à informação e como a sua percepção de injustiça pode marcar as sociedades. Mas as redes não são apenas as que lidam com a análise de informação e iremos, porventura, assistir ao poder dos “gestores” noutros contextos de rede (das informáticas às financeiras, das eléctricas às de tráfego e águas) e à sua capacidade para mostrar publicamente, através da desobediência, o seu desagrado e repulsa pelas injustiças percebidas à sua volta na sociedade. E se tal nos parece ainda algo descabido, será muito provavelmente porque ainda não temos exemplos públicos para dar nomes a pessoas e actos e menos porque o julguemos impossível de acontecer. Esta é a evolução “natural” porque a percepção do funcionamento em rede da sociedade e das organizações é cada vez mais intuída pelos indivíduos e também porque, à medida que a informatização avança nos processos, pode ser mais fácil controlá-los mas também é mais fácil bloqueá-los. Em sociedades onde o valor social da greve é desvalorizado pelos governos e onde uma grande parte da conflitualidade está transposta para as questões do trabalho e da remuneração do mesmo (impostos, salários, reformas, benefícios

135

O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso na saúde, precariedade, etc.) a natural evolução do protesto é a desobediência quer nas administrações públicas, quer no domínio das empresas privadas. Por isso mesmo, importa salientar a importância da existência de tribunais constitucionais e dos seus equivalentes nos diferentes países democráticos. Eles são as instituições que, através das suas interpretações das leis fundamentais, um último anteparo antes da desobediência generalizada perante leis aprovadas em sistemas democráticos mas percebidas, pela generalidade de indivíduos, como moralmente injustas. Na sociedade em rede, a desobediência individual inspirada na percepção da injustiça moral do funcionamento das instituições democráticas é algo que já interiorizámos como possível e assumindo uma certa normalidade no contributo para a mudança institucional. Mas a desobediência colectiva parece cada vez mais afigurar-se como um caminho possível nos contextos em que vivemos estejam as nossas democracias em crise ou crescimento económico, isto porque a injustiça nada tem a ver com a riqueza produzida mas sim com a sua distribuição, uso e objectivos. Como Douzinas sugere, no contexto actual das sociedades democráticas importa hoje ainda mais preservar as tradições liberais depois do seu progressivo abandono pelos liberais contemporâneos.

Para lá da crise?

Num artigo intitulado “A crise da crise”, Alain Touraine (XXXX) argumentava que o nosso grande problema (nosso da Europa) é o facto de as ideias presentes no espaço partidário estarem rarefeitas. O que Touraine aí aponta é a incapacidade de fugir a um discurso tecnocrático, isto é medidas que conhecemos como de redução do défice, construção, extinção ou aumento de qualquer coisa, ou ainda a generalização da ideia de que é preciso melhorar a vida das pessoas e ter mais atenção aos mais fracos – duas afirmações que ninguém em nenhum lado do espectro partidário se sentiria desconfortável em defender. O que sabemos hoje após 100 anos de ideologias aplicadas à prática – do marxismo às ultraliberais – é que são más conselheiras. Por outro lado, sabemos também que a gestão

136

O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso tecnocrática vivida na Europa da pós-queda do muro mata a esperança, a motivação e o carisma político. Há ainda uma terceira constatação a levar em conta e que é que a esperança de mudar para melhor continua presente no nosso mundo - basta viajar às capitais europeias em fim de semana para assistir nas ruas às manifestações desse facto. Quando a vontade de mudança se junta às ideias que dão corpo à ideia de mudar para melhor e ao carisma de liderança, há motivação para votar, para debater

ideias

e

para

criar

movimentos

que

catalisam

as

nossas

energias cívicas. Nos últimos anos temos vindo a assistir ao surgir de três opções de exercício da política e que são também três escolhas nas nossas vidas: o modelo Obama; o modelo Berlusconi e a terceira via de efeito tecnocrático que podemos designar por modelo Merkel. Obama sintetiza a ideia de que pode haver esperança na procura de algo novo, Berlusconi

dava

a

segurança

do



conhecido

e

de

que,

se

tudo

mantivermos ou se nos inspirarmos no passado, estaremos melhor no futuro. Por sua vez, Merkel mostra-nos que se gerirmos bem o dia-a-dia teremos,

provavelmente,

novos

dias

à

nossa

frente.

Infelizmente,

na

maior parte dos casos, as actuais lideranças europeias combinam apenas os ensinamentos do modelo Berlusconi/Merkel. As lideranças existem, a vontade de mudança é sempre algo latente à nossa condição humana, mas o que nos faz falta hoje é debater ideias. Precisamos de ideias, não de ideologias vazias de ideias. Ideias que nos ofereçam um mundo melhor onde possamos sentir que podemos fazer parte dele sem ser através de comprar algo ou de nos sentirmos protegidos face a um qualquer perigo real ou imaginário. Qual é então a agenda política que alguém

que

se

reveja

no

tríptico

liberdade,

igualdade,

fraternidade

pode defender hoje? Pode defender e lutar pela ideia de que o futuro passa pela generalização do modelo social europeu a nível global e não a aproximação do nosso modelo aos modelos Asiáticos, das Áfricas e das Américas. Isto é, a globalização do modelo social europeu onde ele ainda não ocorre. A segunda ideia pela qual vale a pena lutar é a especialização

agrícola,

industrial

e

de

serviços

europeia



da

137

O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso finança aos produtos alimentares e da construção aos transportes – com base nas alterações climáticas. A Europa deve antecipar a mudança climática posicionando-se económica e financeiramente como a entidade que mais estará preparada para essa mudança civilizacional. E por último a ideia de que a descoberta de materiais, territórios, energias e produção de riqueza passa pelos oceanos e pelo espaço. Isto é que o futuro

da

Europa

passa

pela

“descoberta”

de

novos

territórios

e

limites para a sua presença. Esta é uma agenda de futuro. E que agenda de futuro para Portugal? De novo a ideia de que há algo para além de hoje

e

que

o

podemos

obter,

por

oposição

ao

fatalismo

em

que

regularmente se assume que tudo está pior do que estava há 50 anos, uma década ou cinco anos. As

ideias

motivadoras

para

Portugal

necessitam

de assumir que podemos mudar a nossa forma de viver (e viver melhor), com

mais

(re)distribuição

emprego, da

melhor

riqueza

saúde,

actual,

criação

melhor futura

educação, de

maior

riqueza

mais

distribuída e acima de tudo um país mais justo hoje do que ontem. Concretizando, precisamos de assumir publicamente a recusa da “geração 1000 euros” e da “geração 500 euros”. Ou seja, que não queremos ter jovens de formação elevada a ganhar 1000 euros até ao fim dos seus dias e que também não podemos tolerar a situação daqueles que nunca ganharão mais de 500 euros, estejam eles hoje no seu fim de vida activa ou no seu início. Se não conseguirmos cumprir esse desígnio então é preferível mudar radicalmente de modelo de vida, tal como a vivemos até hoje, porque é tudo menos justa, quer para quem tem mais quer para quem tem menos. E por fim, algo que cruza as ideias de Europa, as que têm a ver com a nossa vida de todos os dias e a nossa identidade, isto é, a ideia de que o nosso futuro político é o da construção e prática da ideia de Portugal como ponte da gestão global de

interesses

de

cinco

continentes

nas

áreas

da

saúde,

energia,

construção, transportes e agricultura. Um país de pessoas, isto é os portugueses, que na Europa e no mundo sabem gerir os interesses de

138

O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso diferentes países, organizações e empresas. Só assim se pode ver para lá da crise, só assim se pode pensar como deixar para trás este terreno de práticas armadilhadas e procurar na mudança social, económica e política a saída.

139

O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso

Parte IV A saída é igual a mudança política, económica, e social

140

O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso

Os valores da saída

Quando é que se sai de uma crise? A percepção de final de crise está sempre associada a mudanças de valores como, por exemplo, de percentagens elevadas de níveis de desemprego para a sua diminuição, de valores negativos do PIB para valores constantes de crescimento daquele, etc. Esses são valores matemáticos, números que nos indicam taxas de crescimento ou decréscimo. No entanto, sabemos que para haver valores matemáticos que mostrem a saída de uma crise há primeiro que haver valores culturais que permitam construir objectivos, por sua vez servidos por políticas, as quais contêm estratégias e instrumentos. Sem identificarmos aquilo em que acreditamos não é possível traçar políticas nem obter resultados que nos conduzam até à saída de uma crise. Quando olhamos para a história do século XX vemos que houve diferentes escolhas de valores que levaram a diferentes caminhos políticos. Houve novos valores e rupturas para tentar vencer a crise de então – alguns com valores positivos de respeito pelo ser humano outros de valores negativos proclamando a dispensabilidade do ser humano face aos fins a atingir. Tivemos o New Deal nos EUA e os Fascismos na Europa como resposta à Grande Depressão. Depois tivemos uma guerra, primeiro na Europa e depois no mundo. A história não se repete mas ensaia sempre tentativas. Independentemente de olharmos para governos e burocracias à esquerda, ao centro ou à direita, o que vemos hoje nas políticas Europeias e nas suas escolhas é a inexistência de novidade e a adopção de velhos valores e velhas políticas. Não arriscamos e sem risco apenas podemos esperar ter a vida que temos e nada mais. Chamemos-lhe austeridade, neo-keynesinismos, políticas de desenvolvimento e crescimento, neo-liberalismo ou qualquer outra coisa, todas elas encerram em si velhas ideias remixadas sem grande criatividade nem vontade de obter outro mundo senão aquele que as velhas rotinas nos podem esperar oferecer.

141

O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Precisamos de arriscar se efectivamente queremos vencer as crises e fazê-lo sem cair na tentação de alienar o que de mais positivo conhecemos em troca da incerteza dada pelo piorar muito ou talvez um dia melhorar algo. O exercício cívico que cada um de nós precisa de realizar e partilhar nas diferentes redes – da Internet às outras - é o questionar individualmente quais são os príncipios que dão forma aos valores que consideramos nossos e inalienáveis na construção do mundo em que queremos viver. Se pensarmos o nosso tempo e espaço no início do século XXI temos de encarar como prioridades de uma vida melhor a protecção do Indivíduo, a protecção da Natureza, a defesa da liberdade de empreender e agir, a defesa da liberdade de informação e criação e o arriscar (sempre) por mais democracia. Precisamos compreender que, na Europa, mesmos que as nossas constituições nacionais e tratados europeus contenham por escrito os valores mais fundamentais eles só terão poder se conferirmos a essas palavras poder. E o poder só se constrói se individualmente insistirmos na sua escrita e na sua afirmação pública. É esse o poder da palavra, que leva ao poder da acção. O poder da palavra está presente quando se afirma como valor fundamental a protecção do indivíduo. Ou seja a garantia de que todos tenham o direito de viver com dignidade. Assegurando a diversidade da vida humana através do acesso ao direito ao sustento e à segurança social, ao direito de gozar de saúde física e mental no mais alto padrão possível. Garantindo que somos efectivamente todos iguais perante a lei e gozamos dos direitos humanos que nos estão consagrados, sem discriminação quanto ao sexo, idade, genótipo, residência, situação financeira, deficiência, orientação sexual, raça, opiniões, filiação política, religião, língua, origem, família ou posição em qualquer outro respeito. O poder da palavra está presente quando se afirma como valor fundamental a protecção da natureza. Isto é, assegurar que a utilização dos recursos naturais deve ser pautada por um desenvolvimento sustentável com base no interesse comum, tudo fazendo para a protecção dos animais e das espécies ameaçadas. Assegurando que os recursos naturais, como os recursos do mar, as reservas e fontes de água e seus direitos de acesso, os direitos de exploração de energias

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso não renováveis, e os direitos de mineração nacionais, que não são de propriedade privada, sejam considerados propriedade comum e perpétua. O poder da palavra está presente quando se afirma como valor fundamental a defesa da liberdade de empreender e agir, garantindo a todos o direito de poder formar associação para qualquer fim legal, incluindo os fins empresariais, políticos

ou

outros,

apoiando

as

condições

para

o

prosperar

do

empreendedorismo e a sua remuneração equilibrada. Permitindo que todos sejam livres para exercer a profissão de sua escolha e o direito a condições dignas de trabalho, como a remuneração justa, o repouso, as férias e momentos de lazer. O poder da palavra está presente quando se afirma como valor fundamental a defesa da liberdade de informação e criação através da garantia do direito à protecção da privacidade, do direito ao anonimato digital e do direito à liberdade de expressão nas sua diferentes formas de criatividade enquanto base fundamental para uma sociedade democrática. Liberdade de informação e criação que assenta também numa administração que deve ser transparente, na qual tanto documentos, como actas de reuniões, devem ser preservadas e as suas origens, processo e resultado, registadas e documentadas. O poder da palavra está presente quando se afirma como valor fundamental arriscar sempre por mais democracia, pois só uma real e verdadeira democracia permite uma justa coexistência e equilíbrio de interesses individuais dentro dos Estados. A democracia é um ideal e uma prática em permanente evolução. Não há limites à democracia, apenas há modelos, leis eleitorais e sistemas partidários que caracterizam um dado tempo histórico. Democracia é mudança e experimentação. Sem promover mais participação não há mais democracia. O objectivo de um governo deve ser a máxima igualdade democrática entre todos. Daí que se deva lutar pela promoção das oportunidades de participação democrática directa e indirecta de cada individuo, incluindo a liberdade e independência dos indivíduos eleitos para os parlamentos, por forma a reduzir a disciplina partidária e a pressão organizada sobre quem é eleito. Estes são apenas as minhas cinco escolhas, produto de uma leitura e análise de diferentes discussões em curso sobre que valores são os que acreditamos serem

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso fundamentais para o mundo onde hoje queremos viver e que amanhã passaremos às gerações futuras. Eles estão escritos na proposta da nova constituição islandesa, no manifesto do partido pirata alemão ou em diferentes propostas de partidos ecologistas desde a Europa até aos nossos antípodas na Nova Zelândia. Mas este é um exercício que todos necessitamos fazer. Todos os que acreditam que vale a pena arriscar pela busca de novas soluções que um dia serão as futuras rotinas que darão sentido à nossa vida em sociedade. Os números quantificam objectivos, que estão inscritos em estratégias, que tiveram origem em políticas e que por sua vez partem de valores. Sem definirmos agora, já, neste momento que valores são os nossos, dificilmente construiremos saídas de mudança. A alternativa à não construção de saídas de mudança será deixarmos que a crise crie saídas para nós, isto é, roubando-nos a capacidade de ser autónomos e definir que futuro queremos.

Alternativas? Claro que as há, basta escolher!

Alternativas? Mudanças conduzentes a outras políticas e a outras vidas? Neste livro apontei várias formas diferentes de conduzir a nossa vida mas podemos iniciar a resposta à pergunta com o German Institute for Economic Research (DIW Berlin) e a proposta de um mecanismo de Seguro de Desemprego Europeu, em complementaridade com os mecanismos nacionais já existentes3. Grande parte do discurso político europeu sobre a Zona Euro gira em torno da necessidade de realizar ajustamentos e da inexistência de alternativas às políticas actualmente em uso. Essa é uma certeza nada nova e que, ainda por cima, omite alternativas reais às desvalorizações dos salários privados, dos públicos, das reformas e, também, à alienação (i.e. venda) do que deve ser de todos e não de alguns (i.e. sector público). A insistência no actual discurso e, também, prática corrente da Comissão Europeia, do Banco Central Europeu, do Fundo Monetário Internacional e da maioria dos governos nacionais, só parece historicamente nova porque não procuramos exemplos similares no passado. 3

XXXX colocar aqui link

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Na realidade, não há nada de novo nela, pois enquadra-se perfeitamente no que Albert Hirschman (XXXX) descrevia, nos idos anos noventa, como sendo uma “Terceira Vaga de Pensamento Reacionário” destinada a mudar um dado modo de vida ancorado na existência de um Estado Social. No entanto, ao contrário do apontado por Hirschman, que sugeria que essa terceira vaga de argumentos considerava o Estado Social como um entrave à liberdade individual e à governação democrática, no momento actual o Estado Social é apresentado não como um entrave mas sim como não sustentável. Tal sucede, porque é mais fácil dizer que não é possível ter um Estado Social do que dizer que não se quer efectivamente ter um, porque, são os próprios barómetros europeus que mostram que a maioria de nós prefere uma lógica de “todos por um” ao “cada um por si”. Uma medida política como a sugerida pelo DIW Berlin é uma alternativa plausível ao "Não há alternativas!", obviamente, desde que existam vontades políticas nacionais na Zona Euro e também vontade na Comissão. Mas, é também uma medida necessária, pois permite actuar imediatamente sobre as economias em recessão, através do incentivo ao consumo. Pois, o nosso elevado grau de integração das economias da Zona Euro leva sempre a "fugas" dos estímulos fiscais nacionais para outros países da Zona Euro, porque partes significativas do aumento de rendimento são gastos em produtos importados. A ideia central da proposta de Seguro de Desemprego Europeu do DIW é a procura do equilíbrio das disparidades entre países da Zona Euro através de um sistema de transferências automáticas. Ou seja, através da introdução de um sistema

de

segurança

social

europeu,

vocacionado

para

apoiar

os

desempregados de curta duração, seria possível criar um sistema de transferências automáticas entre economias em crescimento e países em recessão. Idealmente um mecanismo como o proposto pelo DIW estaria assente nos estabilizadores automáticos já existentes, como os sistemas de segurança sociais nacionais, permitindo que os pagamentos líquidos do sector privado aos governos funcionassem em contra-ciclo face ao ciclo económico existente num dado país. Neste sistema, os empregados pagariam parte da segurança social

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso para um esquema de seguros de desemprego europeu e receberiam um subsídio de desemprego deste mecanismo, na eventualidade de se virem a encontrar em situação de desemprego. Este subsídio estaria limitado a um dado período de tempo, digamos até um ano, sendo assim destinado a situações de desemprego de curto prazo, permitindo também complementos nacionais de prazos e valores superiores aos oferecidos pelo mecanismo europeu. A sua utilização não se traduziria num aumento das actuais contribuições dos trabalhadores e empresas, nem o pagamento a outras entidades não nacionais, já que seriam as entidades de segurança nacional a assegurar a recolha de pagamentos e a distribuição de subsídios. Se um mecanismo como este tivesse estado activo na Zona Euro em 2008, as variações nas economias dos diferentes países teriam sido muito diferentes. A análise do DIW indica que um mecanismo como este poderia ter reduzido a recessão em vários dos países intervencionados e que a própria Alemanha teria usufruído mais do que contribuiria, sendo portanto um ganhador líquido, durante os anos de 2003-2005, quando a economia alemã estava mais debilitada do que o resto da Zona Euro. Para além dessa dimensão económica teria também impacto financeiro nas contas públicas ao não sobrecarregar nacionalmente, durante períodos de crise, as verbas da segurança social destinadas ao desemprego. Um Seguro de Desemprego Europeu deste tipo seria assim um elemento essencial de estabilização para os estados membros da união monetária europeia. Políticas Alternativas? Claro que as há, esta é apenas uma entre várias possíveis. Um mecanismo como o de Seguro de Desemprego Europeu não difere na sua concepção do já existente Seguro de Saúde Europeu que todos os cidadãos da união usam quando adoecem no estrangeiro ou, mesmo, do princípio por detrás de um Programa Erasmus. Ou seja, todos participam, todos contribuem e todos estamos melhor porque partilhamos algo. Se a actual crise veio mostrar algo, esse algo é que precisamos urgentemente de partilhar mais e de construir um Estado mais social e menos pessoal. Um Estado menos pessoal, que nos defenda mais a todos socialmente e deixe de privilegiar menos os que ganham desproporcionalmente com ele – e os que assim ganham

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso à custa dos favores pessoais do Estado não são de certeza nem os seus funcionários, nem os cidadãos em geral.

O país das desigualdades (e não o das reformas) estruturais

Tal como uma peça, filme ou série possui um argumento onde se inscrevem os traços, as acções e os personagens, também os negócios, as empresas, os Estados, ou as redes de Estados como a União Europeia precisam de um argumento claro e perceptível, por forma a organizar os seus objectivos e os meios para os atingir – algo que hoje não temos para a Europa. Vivemos um tempo particularmente intenso em termos de escolhas para a Europa e, como a presidência portuguesa se aproxima, é importante perceber o que Portugal pode contribuir para a clarificação do argumento da série em que cada um de nós é actor, personagem ou figurante, mas em que claramente participamos. O mundo, como hoje o conhecemos, deixou de permitir aos Estados agir unilateralmente e, por consequência, tornou também cada vez mais difícil a vida às empresas que não criam as condições para estarem ao mesmo tempo em vários mercados. Daí que seja necessário clarificar qual é o argumento para o espaço-base de actuação das empresas portuguesas. Ou seja, qual é a base territorial donde partem para actuar globalmente. Essa base é Portugal e, por consequência, o espaço europeu ao qual pertencemos. Pertencer à Europa não quer dizer que seja uma pertença intemporal, pois a Europa e o mundo já assistiriam a muitas configurações político-geográficas ao longo da sua já longa História. A Europa deve ser vista como algo real e continuado para, talvez, as próximas duas gerações, que por sua vez se interrogarão não só sobre o tipo de sociedade que quererão continuar a construir como também se valerá a pena manter os laços até aí construídos em termos de identidade, moeda, cultura, política e economia. Este é, também, um argumento próximo ao sugerido por Pekka Himanen (XXXX). A proposta de Himanen (XXXX) passa por olhar em simultâneo para os três argumentos presentes no mundo actual: o americano, o europeu e o chinês. O argumento americano é baseado na ideia de que o sucesso de uns poucos no fim beneficiará todos. Trata-se de uma sociedade de

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso vencedores em que, mesmo que pareça o contrário, no fim tudo acabará bem, ou seja, há sempre um fim feliz para a história. Por outro lado, no argumento chinês o momento actual é apenas o regresso a uma posição de liderança, interrompida durante o período que vai da revolução industrial à revolução informacional. A China regressa assim à sua posição natural, a de império líder do mundo. A pergunta feita por Himanen (XXXX) é: onde se posiciona a Europa face a tudo isto? A sua resposta é simples e, ao mesmo tempo, complexa. A Europa tem de ser ela mesma a escrever o seu argumento, a olhar para as suas grandes potencialidades económicas, empresarias, científicas e decidir o que quer ser. Trata-se de uma tarefa difícil, mas sem a qual as taxas de crescimento europeias terão apenas episódicas altas numa longa série de baixas. Portugal é hoje tão conhecido na Europa, como destino turístico, como o é por ser um país onde as reformas estruturais, guiadas por Bruxelas, Frankfurt e Washington (embora aqui com menor peso e vontade), devem ser aplicadas para reduzir o déficit do Estado e reequilibrar o sistema bancário. No entanto, apesar das cimeiras, das coberturas televisivas e artigos de jornal, a Europa não se conhece bem a si mesma. Não se conhecendo a si mesma, a Europa vive o presente omitindo o seu passado longínquo – isto é a última guerra mundial e o motivo porque nos juntámos nesta União. Continua a olhar o presente a partir de um passado mais recente – o dos anos noventa quando acreditava poder ser relevante a nível global. E olha para o futuro de uma forma auto-centrada, isto é, pensa o que será amanhã em função dos seus interesses nacionais e não do interesse nacional enquanto partilha de interesses comuns. "O Estado é necessário para assegurar a possibilidade de todos viverem uma vida decente e em dignidade, mesmo se não puderem ter muito sucesso no mercado, e também a possibilidade de os cidadãos gerirem com sucesso as tarefas partilhadas e colectivas que entenderem." Porque não se conhece a si mesma, a Europa também continua a acreditar, estranhamente, mas não em contradição com uma visão auto-centrada, que todos os países são parecidos e que as singularidades são desprezíveis. Daí que não se aperceba de como há países extremamente desiguais e países extremamente menos desiguais.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso E que em muitos desses países, como em Portugal, o que os caracteriza, são desigualdades estruturais (que em dado momento a Europa havia decidido ajudar a corrigir) e cujas actuais propostas de reformas estruturais estão a acentuar. Isto porque a ordem é para manter as desigualdades, porque as políticas que guiam a acção estão assentes numa normatividade neoliberal na qual a desigualdade é a norma, e a norma resulta da ideia de que apenas os que tiverem sucesso no mercado merecem melhorar a sua vida. Resumindo, estamos hoje neste local incerto porque a ideia de um modelo social europeu se perdeu algures quando muitos acharam que deveríamos, de algum modo, assumir comportamentos ou expressar valores neoliberais no nosso dia a dia e quanto ao nosso futuro. A ideia de que nos podemos todos ter tornado neoliberais é poderosa e é sugerida por Colin Crouch no seu livro “Making Capitalism Fit for Society” (XXXX). Mas porque acha Crouch que mesmo os que votam à esquerda sem ter partido, ou que se consideram socialistas no sul da Europa, ou sociaisdemocratas no norte da Europa, ou são verdes ou mesmo comunistas, se podem ter tornado, sem o perceber, neoliberais? E, se tal aconteceu, de que modo tal explica o porquê da Europa estar hoje como se encontra? E o que fazer se não gostamos da imagem que surge quando nos olhamos ao espelho? Como sugere Crouch (XXXX), embora a Terceira Via 4 , protagonizada pelos trabalhistas de Blair, possua claras limitações, também possuirá pelo menos uma virtude: a de nos alertar para a exaustão e impossibilidade de regressar aos velhos projectos. Mas, a mais importante limitação, presente nas diferentes terceiras vias experimentadas, reside em ter-se aceite, durante largos períodos governativos, o capitalismo de forma acrítica. E, ao fazê-lo, termos ignorado os problemas criados aos cidadãos pela acumulação desmesurada de poder por parte de empresas globais, na tentativa de remunerar sempre cada vez mais os seus accionistas e conselhos de administração – basicamente, dando corpo à receita para a criação de crises como aquela em que nos encontramos hoje.

4

Ver “Para lá da Direita e Esquerda” de Anthony Giddens para uma melhor compreensão do que foi a conceptualização da Terceira Via na Social Democracia Europeia.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Segundo Crouch (XXXX) tornámos-nos "todos" neoliberais quando acreditámos que algo que em teoria parecia fazer sentido, isto é, que podemos ter estados fortes com um papel limitado na garantia da operacionalidade dos mercados, podia ser aplicado na prática. E que, apenas por via da aplicação política de uma teoria, se garantiria que a esperança, que faz com que a vida valha a pena ser vivida, continuasse a guiar as sociedades europeias. Tornámos-nos neoliberais, sem o escolher, quando assumimos que tínhamos de aceitar alguma forma de capitalismo neoliberal; mas errámos quando confundimos esta aceitação com a sua transposição para a esfera da governação e enquanto valor de governo das sociedades. No entanto, o “neoliberalismo” presente na governação de uma parte substancial dos países europeus é muito mais um neoliberalismo de favores, em que tanto as elites económicas quanto as políticas estão em concertação para proteger interesses por si definidos, do que um puro neoliberalismo promotor de um contexto de liberdade de escolha e de acesso aos produtos dos mercado à maioria das populações. Os pensamentos de Habermas (XXXX) ou Crouch (XXXX) mostram-nos que as ideias e a sua ligação com a actuação política na economia, sociedade e fiscalidade não desapareceram. Estão activas e em combate com outras formas de pensar. Por outras palavras, a tecnocracia, no contexto da governação europeia, surgida como forma de fazer política, fazendo de conta que as ideias políticas estão ausentes e que há apenas teorias de gestão e de relações públicas, a serem aplicadas por pessoas que as sabem aplicar, não se tornou ainda na única forma de fazer política. De alguma forma as propostas tecnocráticas, mesmo quando legitimados nas urnas europeias sob a forma de programas de reestruturação e austeridade, estão essencialmente imbuídas de uma lógica programática neoliberal. O neoliberalismo político não é sobre dar aos consumidores maiores escolhas em mercados competitivos, mas sim sobre como aumentar o poder dos mais poderosos no mercado e também da concentração de privilégios em poucos indivíduos. Daí que, em vez de ser a aplicação à realidade de um conjunto de

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso ferramentas baseadas em uma pura teoria económica, seja efectivamente um movimento político. Um capitalismo sem um Estado para o salvaguardar dos seus excessos, cria as condições para o seu próprio falhanço e crises duradouras, as quais, por sua vez, minam a própria credibilidade dos estados e dos sistemas políticos e económicos. O capitalismo viciou-se no neoliberalismo mas, como em todos os vícios, a euforia do momento acaba sempre por comprometer a sustentabilidade do médio prazo. Daí, que Crouch (XXXX) sugira que devemos lutar por uma versão de capitalismo de coordenação económica de mercado em vez de uma ortodoxia incapaz de reduzir as desigualdades e promover crescimento económico. Essa é a forma de capitalismo que melhor serve os cidadãos e, se quisermos ir mais longe, também é aquela que vai ao encontro do interesse da maioria dos actores económicos porque sustém a viabilidade do próprio capitalismo. Um capitalismo de coordenação económica de mercado que, aceitando o valor e a prioridade dos mercados na economia, aceite também as suas limitações e deficiências. O que implica igualmente fazer a pergunta: quando e como se torna o Estado necessário? E, consequentemente, uma tentativa de resposta: o Estado é necessário para assegurar a possibilidade de todos viverem uma vida decente e em dignidade, mesmo se não puderem ter muito sucesso no mercado, e também a possibilidade de os cidadãos gerirem com sucesso as tarefas partilhadas e colectivas que entenderem. No fim de contas, o que Crouch (XXXX) sustenta é a necessidade de um reactivar dos movimentos políticos existentes perante a necessidade de serem capazes de representar a parte da sociedade com menor distribuição de rendimento e riqueza, ou seja, a maioria da população europeia. É essa a escolha política que os governos precisam de encarar e responder: estar do lado dos interesses individuais de pessoas e de algumas organizações ou dos interesses dos indivíduos e da sua liberdade de organizar o seu futuro? É também essa a escolha dos governos Europeus a que Habermas se refere quando diz que precisamos de sair da lógica de interesse próprio de curto prazo que

marca

o

comportamento

de

quase

todos

os

governos.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso No geral, o que podemos concluir sobre a Europa e o seu futuro é que a voz popular talvez tenha alguma razão, ou seja, a culpa é mesmo dos políticos. Como sugere Habermas (XXXX), a culpa é dos que hoje, ocupando lugares de poder, não apelam à mudança usando o melhor de nós; e apenas buscam manter-se no poder apelando ao que de pior há em cada um de nós.

Keynes 2.0: redes, energia, transportes, hackers, agricultores urbanos (e ciclistas)

Manuel Castells realizou, em Lisboa, meses antes dos primeiros sinais da “Grande Recessão” uma conferência intitulada "Welfare of Nations" (o bem-estar das nações). O trocadilho com Wealth of Nations (a riqueza das nações) é evidente e faz todo o sentido, não só no que se refere à necessidade de olhar bem-estar e riqueza das nações mas também porque a conjugação das duas é hoje fundamental para a sobrevivência dos países - isto é, para continuarem a ser relevantes económica e culturalmente. O governo de grupos, nações e países é uma actividade quase que se encontra inscrita na história do mundo, no entanto, muito se evoluiu desde os tempos em que bastaria a experiência vivida na primeiro pessoa para possuir os conhecimentos necessários para gerir bem as nações e assegurar o seu fim último: o bem-estar dos seus cidadãos. As nossas sociedades complexificaramse, por via da densidade de redes que podemos aspirar a conseguir construir e gerir (Castells XXXX) elas são muito mais reflexivas e assentes em múltiplas garantias simbólicas (Giddens XXXX). As nossas sociedades já não toleram aqueles que propagam a certeza absoluta e os dogmas governativos e, nesse sentido, são muito mais autónomas porque, mesmo desconfiando dos políticos, sabemos que delegamos soberania, não a entregamos aos nossos governantes. E, por último, para uma grande parte da população, o que predomina não é a confiança na governação para dirigir caminhos, mas sim a exigência que se governe para permitir que eu, cidadão, escolha o rumo que mais me aprouver para a minha vida.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Hoje em dia, os mercados complexificaram-se, internacionalizaram-se e ficaram muito mais sensíveis às mudanças nacionais e globais. As nações, os países e as suas organizações, lucrativas ou sem fins lucrativos, precisam de inovar para acompanhar as mudanças para gerar riqueza e combater as desigualdades. A minha argumentação é que não há lugar à inovação e riqueza sem bem-estar. Para haver inovação, tem de haver envolvimento de quem produz, de quem decide e de quem, em último lugar, possui os meios que permitem que escolha exista, ou seja, a autonomia de decisão. Inovar é mudar, e mudar é fazer um remix de tudo aquilo que já se conhece criando algo de novo. Pode funcionar ou não, mas inovar é arriscar, é promover o novo a partir do que já existe. Para tal acontecer, é necessária motivação de quem imagina e não só de quem decide ou possui o capital. Obviamente que esta é uma receita de risco, a de aliar riqueza e bem-estar, pois é mais fácil acreditar que o bem-estar só é possível de atingir quando já historicamente se atingiu patamares de riqueza, mas não há nada de material ou “divino” que impeça esse caminhar a par e passo entre bemestar e riqueza, excepto para aqueles poucos para quem viver é acumular riqueza para exercer o poder e satisfazer o seu egoísmo de querer moldar o mundo à sua imagem – a qual ninguém garante seja compatível com a vontade de todos os outros. Seguir essa via egoísta implica perder o futuro, tornamo-nos prisioneiros do mundo em vez de o inovar. O bem-estar das nações não depende da criação da riqueza, esta última é que depende do bem-estar de quem trabalha nas nações. Só assim se inova e muda. Os primeiros capítulos deste livro foram dedicados a compreender porque e como chegámos à actual situação económica e financeira em que vivemos. Para além disso necessitamos de implementar aquilo a que poderemos chamar novos paradigmas do crescimento, desenvolvimento e sustentabilidade. Ou, se preferirmos, o “kernel” ou núcleo das nossas sociedades em termos de acção colectiva e individual. Isto é, temos de olhar para o passado, partir das experiências, inovar e combinar essas leituras com o que hoje sabemos sobre as nossas sociedades contemporâneas.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Regressando ao título deste ponto da nossa análise, as redes acompanham-nos enquanto humanidade desde sempre, elas são a estrutura organizativa que melhor serve as nossas necessidades individuais e colectivas. O actual período histórico é aquele onde, pela primeira vez, nos é possível explorar a verdadeira força das redes através da articulação entre as nossas redes sociais, de negócios, económicas, culturais e politicas através do uso de telemóveis e, embora de forma menos representativa, em termos da população nacional e global, do uso da Internet. Portanto, as redes de pessoas e organizações são um traço fundamental do nosso presente e da possibilidade de moldar o nosso mundo pós Grande Recessão. A crise de onde partimos, tal como anteriores, tem também uma componente energética. No entanto, esta é a primeira vez em que essa componente deriva de outra variável, que são as alterações climáticas. A mudança climática tem sido uma palavra chave para todos aqueles que nasceram depois da década de setenta do século passado – ou seja, as duas últimas gerações. Essas duas palavras têm sido omnipresentes, não por causa da sua visibilidade, mas sim porque durante os últimos quarenta anos a atenção dada ao ambiente tem crescido com as nossas crianças e acompanhado o nosso próprio dia a dia. O ambiente e a energia deixaram de ser variáveis isoladas para passarem a fazer parte do mesmo “cluster”. O ambiente está hoje directamente associado à energia e, como a energia e a informação são as dimensões chave da produtividade, o ambiente está no centro da actividade económica. Uma vez mudando a energia, mudamos tudo o resto, da vida familiar, ao trabalho, do governo à distribuição ao comércio. No entanto, desde o meio do século passado que não fomos apresentados a nenhum novo engenho de transporte verdadeiramente novo. Junto com a energia, o transporte é o um indutor de mudança, mas embora as coisas se desloquem hoje mais rápido não fomos efectivamente trstemunhas de novidades de ponta nesta área. Entre os aviões supersónicos e a ficção científica, existe um vasto campo de experimentação que pode fornecer o potencial para a mudança real nas nossas tecnologias, economias e sociedade.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso O que têm de comum entre si as redes associadas às tecnologias de comunicação e informação, como o telemóvel e a Internet, com a energia e o transporte? Enquanto áreas de inovação tecnológica elas aliam o elevado custo em investimentos para o desenvolvimento e a criação inicial de redes, logo apenas entidades com elevada capacidade de investimento, como os Estados, podem desencadear os processos de inovação que incorporam empresas e laboratórios de universidades. O investimento em energia e transportes requere é a combinação entre a capacidade de investimento dos Estados e a capacidade de juntar as mentes dos inovadores e dos pequenos investidores, sejam eles empresas ou singulares. Aquilo que pode parece, à primeira vista, um dilema sem solução pode hoje ser lidado através do poder da comunicação das redes. De facto, a possibilidade de utilizar as redes como a força necessária para realizar a junção entre objectivos individuais e colectivos constituiu uma novidade. A possibilidade de juntar, quando necessário, pessoas em objectivos comuns em redes e reajustando essas quando os interesses individuais se alteram, por via do uso das tecnologias de informação e comunicação é uma novidade histórica. A nossa época é também aquela onde, pela primeira vez, podemos colocar as redes ao serviço do combate às desigualdades, tentando tornar mais flexíveis o acesso a oportunidades económicas e inclusão. No fim de contas, o que chamamos “Keynes 2.0” são as estruturas de redes sociais combinadas com a capacidade de investimento – individual, de organizações e Estados – permitindo maior capacidade de combinar liberdade individual de escolhas e a necessidade de coordenar recursos económicos escassos ao serviço dos objectivos de autonomia individual e colectiva. O momento que vivemos não será passageiro porque é efectivamente impossível voltar ao modo de vida pré-crise de 2008. É óbvio que gostamos sempre de pensar que a mudança não é tão grande quanto isso e tal é normal uma vez que as rotinas são o que nos permite encarar o futuro tranquilamente. Mas as nossas economias terão mesmo de ser diferentes a partir de agora, pois esta crise é tão financeira como económica, no sentido em que não será mais possível ter economias em que mais de 2/3 do crescimento eram baseadas nas compras que individualmente fazíamos. Não é mais possível, porque a base para

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso o crédito barato e massificado, i.e. cartões de crédito sempre disponíveis para todos, terminou com a bolha do mercado imobiliário. Portanto, iremos consumir menos e isso implica que teremos de encontrar alternativas para o tempo gasto a comprar coisas e para a multiplicação de fontes de rendimento para pagar o crédito adquirido. Sugeriria também que as nossas vidas irão mudar porque não voltaremos à pré-crise de 2008, mas também não teremos um mundo onde as obras públicas e o investimento do Estado substituirão o que deixámos de comprar. Provavelmente, teremos um mundo onde o crescimento económico será um misto do que conhecemos na maior parte das nossas vidas, com investimento público em maior número e com franjas da economia entregues à experimentação por parte de grupos de pessoas com ideias que se alargarão a um maior número da população. Um exemplo são as hortas urbanas, aquilo que ontem, para alguns, era sinal de subdesenvolvimento é agora incentivado pela Primeira-dama norte-americana nos jardins da Casa Branca em Washington. O livro de Chris Carlsson “How Pirate Programmers, Outlaw Bicyclists, and VacantLot Gardeners are inventing the Future Today!” (XXXX) trata precisamente dessas mudanças. Mudanças iniciadas por pequenos grupos de pessoas que, por vezes, se alargam a grupos importantes da população. Carlsson (XXXX) mostra-nos apenas algumas das muitas experimentações em curso nos mais diversos ambientes urbanos à volta do planeta. Desde programas comunitários de conhecimento em saúde que procuram reduzir os custos individuais, nomeadamente redução de gastos em fármacos através de estilos de vida mais saudáveis até à diminuição da “pegada” de carbono nas nossas actividades diárias gastando menos dinheiro e menos energia, passando pela criação de produtos culturais online e a sua distribuição usando redes P2P, até ao uso de transportes que vão da bicicleta, patins, skates, partilha de carros e intensificação da cultura de valorização dos transportes públicos, para terminar na criação de cooperativas para gerir empresas em risco de falência, economias de troca de tempo ou bens e fundações para gerir jornais que deixaram de ser lucrativos. Como se pode ver muito está já a acontecer e a moldar o nosso futuro próximo.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso É certo que nem todos entre nós estarão dispostos a arriscar o que conhecem por troca de uma mudança que podem não dominar totalmente. Mas, como sabemos, nem há negócios sem risco nem vida sem incerteza. O que nos é oferecido na forma de rating é apenas uma forma de tranquilidade e até pode, e é, prejudicial à actividade económica – embora possa ser no curto prazo positivo para a actividade financeira. Se pretendemos buscar uma mudança para algo melhor do que aquilo que hoje temos, precisamos abandonar os “ratings” a assumir que a incerteza é uma constante das nossas vidas. A incerteza é uma dimensão chave da inovação e da mudança e faz parte da nossa busca sistemática de antecipação e compreensão sobre o que se passará e dos seus porquês. É precisamente porque a incerteza faz parte da mudança que precisamos de instrumentos

propiciadores

de

mudança

para

que

o

risco

destrua

a

previsibilidade que apenas serve os que lucram com o actual sistema de redistribuição de riqueza e de manutenção das desigualdades. Daí que muitas vezes os críticos da mudança procurem rótulos que inibam a aceitação do risco pelas sociedades e, assim, permitam a manutenção de um dado status quo. Um exemplo desses rótulos é designar algo como uma “ideia perigosa”. A verdade é que as ideias designadas como “perigosas” têm o dom de nos fazer pensar em todas as ideias possíveis sobre um dado assunto e, ao fazê-lo, abrem as portas à nossa criatividade e capacidade de inovação, só possíveis se aceitarmos a incerteza como uma das poucas certezas que possuímos. No fim de contas é o dilema do “Cisne Negro” com que nos deparamos. A diferença é que, ao contrário dos nossos antepassados do século XVII, deixámos de tomar como certeza absoluta que o altamente improvável o seja mesmo. Nassim Taleb escreveu um livro intitulado “The Black Swan: The Impact of the Highly Improbable” (2007) e é sobre esta componente das nossas vidas que vale a pena debruçarmo-nos um pouco. Porque sabemos que o muito improvável pode acontecer, vivemos numa sociedade radicalmente diferente das que nos precederam. No entanto, o mesmo viés que levou a que na Europa se acreditasse até 1697 (data da identificação do Cygnus atratus na Austrália) que apenas existiam Cisnes Brancos continua a fazer parte da nossa forma de

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso pensar. Chris Anderson (XXXX) na crítica que faz à obra de Taleb, é elucidativo quando refere que colocamos demasiado peso na probabilidade de que eventos passados se repetirão, quando uma melhor explicação poderá ser a de que há uma classe de acontecimentos que tende a ser única, irrepetível e produto do acaso. Num momento em que olhamos para o século XX em busca de sentido ou antecipação sobre o que a crise económica actual será, e quando terminará, e sobre se estaremos à beira da repetição de pandemias, vale a pena pensar que o que conhecemos (i.e. a história) é importante mas que igualmente importante é a incerteza, a qual é produto da nossa humana incapacidade de lidar com o imprevisto. Mas, e há sempre um “mas”, se pensarmos que “incerteza” e “certeza” estão sempre presentes nas tomadas de decisão, e se nos lembrarmos que as nossas emoções afectam a forma como avaliamos o risco associado a uma dada decisão, continuará a haver espaço para desenvolver a ciência da previsão e alterar o nosso destino. Mas, teremos, sempre, de nos lembrar que a previsão terá de ser baseada simultaneamente na não repetibilidade, no viés do emocional e na historicidade.

O défice da desigualdade

Défice e desigualdade, estas duas palavras encerram em si as causas, as explicações e, possivelmente, as soluções para a crise que vivemos actualmente em Portugal. Pelo que necessitamos não de uma “regra de ouro” mas sim de duas: uma para obrigar governos a limitar défices orçamentais e outra para os obrigar a limitar a desigualdade de rendimentos. Precisamos de encontrar soluções para os problemas que vivemos e o mais curioso

é

que,

apesar

de

sermos

constantemente

confrontados

com

comentadores e actores dos processos políticos e económicos que dizem não haver alternativas, há alternativas. A curiosidade do fenómeno da assertividade do “não haver alternativas” advém precisamente de a afirmação não ser produto de uma exaustiva procura e da consequente conclusão de que, efectivamente, "não podemos fazer senão o que estamos a fazer”. Pelo contrário, trata-se antes de um fenómeno assente numa

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso ideia feita, que impede os próprios, os que acham não haver alternativas, de as procurar onde elas se encontram. A conclusão parece pois evidente: “não há alternativas” porque os que acham “não as haver” se encontram ideologicamente autolimitados em as procurar. E onde estão elas, as alternativas? Como sempre estão primeiro sobre a forma de ideias nos documentos que as pessoas que pensam e propõem produzem, ou seja, nos think tanks de diferentes orientações políticas, nas universidades e nas propostas

ainda

não

oficiais

de

muitos

organismos

internacionais

ou

supranacionais como a OCDE, o FMI ou a União Europeia. No entanto, as alternativas não existem em formato chave na mão, tal como as actuais políticas também não foram produto de inspiração divina — pois as políticas são produto da influência combinada das visões individuais de quem as aplica, da selectividade das leituras que fizeram (ou não), do contraponto do conhecimento da realidade fora dos “palácios e gabinetes” e do resistir (ou não) à tentação de copiar o que os outros fazem sem o inovar e adaptar à realidade nacional. Em 2010, a Direcção-Geral de Assuntos Económicos e Financeiros da UE publicou um interessante relatório sobre o desempenho fiscal dos governos e as desigualdades de rendimento das populações. O seu autor, Martin Larch (XXXX), terminava o documento afirmando que “a disciplina fiscal é mais fácil de assegurar em sociedades comparativamente menos desiguais, uma vez que a igualdade modera as pressões políticas para o gasto excessivo”. Larch (XXXX) referia que os países com desigualdade de rendimentos abaixo da média são também os países com menores défices orçamentais e mais elevada percentagem de gastos sociais no total dos gastos do Estado. No que respeitava a factores políticos, existia uma associação entre governos de centro-direita ou governos alargados de coligação e um grau de desigualdade de rendimentos acima da média. Por sua vez, o impacto da desigualdade no aumento dos valores do défice orçamental em países mais desiguais tendia a ocorrer mais durante a governação de esquerda.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso O mesmo estudo mostrava igualmente que quanto mais desigual é uma sociedade, maior a instabilidade política, com um maior número de crises políticas e de protestos anti-governos. Há igualmente outras conclusões interessantes na análise de Larch (XXXX), em particular que o factor fundamental de desequilíbrio fiscal nas sociedades mais desiguais ocorre quando os governos, independentemente da sua cor, para além de quererem corrigir desigualdades por via de transferências, são capturados pela “situação”, ou seja, aqueles interesses particulares e grupos específicos que pretendem manter o statu quo inamovível e que, normalmente, são identificados com entidades empresariais e grupos profissionais menos escrupulosos com o bem-estar social do que com o seu próprio bem-estar. A OCDE tem demonstrado que os governos europeus têm vindo a aumentar ao longo das últimas décadas os seus gastos no combate às desigualdades através de diferentes políticas sociais — desde transferências directas até àquelas que são produto da transformação demográfica, como no caso das pensões e na saúde. No entanto, essas políticas não têm conseguido parar a crescente desigualdade, apenas minoram o que há de imensamente errado no actual sistema de criação de riqueza e na sua distribuição — um sistema onde 85 pessoas no mundo detêm 46% de toda a riqueza produzida no planeta, como demonstra o relatório da Oxfam (XXXX). Se realmente não nos agrada viver em sociedades assim, onde os mais ricos ficam mais ricos, onde a classe média vai definhando e os pobres ficam mais pobres, temos de fazer algo e esse algo deve ser feito também em Portugal e na Europa. As desigualdades de rendimento, tal como as que hoje conhecemos em Portugal e na Europa, necessitam de ser combatidas porque são socialmente injustas e porque são também inimigas da boa governação orçamental e da sustentabilidade democrática. Necessitamos de novos mecanismos de redistribuição de riqueza e, para tal, necessitamos também de um debate sobre os nossos mecanismos sociais, económicos, políticos e culturais geradores de desigualdades de rendimentos.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso A redução das desigualdades a nível nacional é condição necessária para a inexistência de défices orçamentais no médio e longo prazo. Por sua vez, a redução das desigualdades passa por um reforço dos níveis de protecção social nacionais nos países mais desiguais e uma política Europeia de Seguro de Desemprego, em conjugação com políticas científicas e económicas de inovação nacionais e europeias. Se tivéssemos de escolher um único, e simples, instrumento de gestão política para começar a equilibrar os nossos orçamentos e, ao mesmo tempo, lidar com o exagero psicológico que foi atribuir à “redução do défice” o papel de objectivo social último, esse deveria ser a inscrição em legislação nacional de um valor máximo de desigualdade que estamos dispostos a aceitar em Portugal e na Europa. Essa seria a verdadeira “regra de ouro”, a utilização de um limite para o coeficiente de GINI, o qual mede a desigualdade, e que deveria ser cumprido através das políticas dos governos qualquer que fosse a sua cor partidária. Precisamos de crescimento económico junto com bem-estar e não de crescimento, desigualdade e mal-estar. Não está no património genético de nenhuma organização, política ou outra, dar-nos o que é melhor para nós. Só nós, dentro e fora dessas organizações, podemos decidir o bem-estar ou o malestar em que queremos viver. Depois cabe aos governos aplicar a nossa vontade.

Uma Estratégia para a Classe Média

Sem menores desigualdades não há maior criação de riqueza. Esta é uma questão fundamental, porque quanto mais a riqueza estiver concentrada em poucos, maior a probabilidade de não contribuir para criar empregos. A razão é simples, na actual Sociedade em Rede, estruturada em redes que interligam mercados financeiros, agências de rating e gestores de fortunas à escala global, quanto maior a riqueza individualmente acumulada maior a probabilidade que esse dinheiro transite para ser investido em fundos financeiros globais e não localmente na criação de negócios.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Pensemos no modelo de conferencias globais da revista “The Economist“, como o que é habitualmente realizado em Lisboa. O objectivo dessas conferências é discutir é analisar as perspectivas de crescimento económico e reformas, por exemplo, em Portugal. Na sua plateia estão essencialmente homens de negócios (e também algumas, poucas, gestoras) na sua maioria trabalhando em empresas estrangeiras sedeadas nos países, bem como grandes empresas de capitais portugueses e ainda algumas PME nacionais. Se mudássemos, por um momento, o nosso olhar da plateia para o palco da dessas conferências veríamos surgir um outro tipo de participantes: os políticos. A função desses, ao longo dos dias das conferências, é explicar e tentar convencer a plateia sobre o que tem sido feito e o que se pretende fazer em termos de políticas públicas para induzir o crescimento económico num dado país. Introduzamos, agora, uma hipótese: a boa governação económica não depende apenas de ter gestores que saibam gerir bem empresas e políticos preocupados com o crescimento económico. A boa governação económica depende de se saber como diminuir as desigualdades num país. Essa é uma sugestão de Robert Reich, Professor em Berkeley, Secretário de Estado do Trabalho de Bill Clinton, autor de várias obras sobre a economia americana e, actualmente, produtor do sucesso cinematográfico “Inequality for all” e do livro inspirador do documentário (XXXX). Pensemos, agora, em Portugal e na sua distribuição de riqueza. Se analisarmos alguns dos dados disponíveis, verificamos que entre 1985 e 2009 se acentuaram as desigualdades salariais em Portugal. Ou seja, um salário a meio da tabela de remunerações em Portugal valeria sensivelmente 25% dos salários mais elevados praticados em 1985, mas em 2009 apenas valeria, mais ou menos, 15% dos salários mais elevados. Se tal comparação não chegar para compreender a desigualdade portuguesa, podemos também lembrar-nos que em 2010, de entre os países da União Europeia, Portugal apresentava o nível de concentração do rendimento familiar mais elevado entre os 20% e os 5% mais ricos da população. Ou seja, os 20% mais ricos detinham cerca de 42% do total do rendimento familiar do país e os

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso 5% mais ricos cerca de 17% - vale a pena aprofundar esta análise lendo o trabalho de Frederico Cantante5. Precisamente pelo papel que a redução das desigualdades pode ter no desempenho da economia, Robert Reich (XXXX) sugere a necessidade de desenvolver uma estratégia para a classe média em países de elevadas desigualdades, como por exemplo Portugal. O seu argumento não é baseado na moralidade ou na justiça da maior repartição do rendimento, mas sim no facto de, fruto das crescentes desigualdades, existirem dois tipos de ameaças às nossas sociedades. A primeira ameaça é económica, pois a menos que a classe média receba uma parcela justa da riqueza produzida, não será capaz de consumir o que podemos produzir sem recorrer ao endividamento – algo que não permite sustentar crescimentos elevados sem crises recorrentes, do tipo daquela que actualmente vivemos. A segunda é uma ameaça política, pois uma crescente desigualdade acompanhada pela percepção generalizada de que as grandes empresas e o sector financeiro estão alinhadas com o Estado, com o intuito de tornar os ricos mais ricos, dá azo a todo o tipo de demagogias e extremismos de ambos os lados do espectro político. A menos que estas tendências sejam revertidas a classe média não voltará a ter o poder de compra necessário para manter a economia a crescer e isso acabará por atingir também aqueles que hoje melhor estão em termos económicos. Daí, que seja preciso criar uma estratégia de governação orientada para a classe média. Há obviamente custos financeiros a pagar mas, como sugere Reich (XXXX), há também formas de os suportar sem aumentar a dívida pública de um país. Uma estratégia para a classe média destinada a minorar as desigualdades, como a proposta por Reich (XXXX), passa, por exemplo, por introduzir uma taxa de rendimentos inversa. Ou seja, a introdução de suplementos salariais devolvendo parte do dinheiro pago em impostos. Em vez de um rendimento mínimo garantido teríamos uma devolução para aquelas famílias com maior propensão para aumentar o consumo. Tal custaria dinheiro, mas as receitas perdidas para o Estado seriam substituídas por duas outras medidas: uma taxa de carbono 5

http://www.cies.iscte.pt/np4/?newsId=453&fileName=CIES_WP154_Cantante.pdf

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso (inserida nos bens e serviços transacionados) e o aumento das taxas para os 5% mais ricos. Isto, para além de dar aos rendimentos de capital o mesmo tratamento aplicado aos rendimentos do trabalho. Consumir mais e desenvolver mais a economia nacional em sectores chave, faria chegar a nossa economia ao seu máximo produtivo e permitiria um crescimento sustentável. Uma outra medida estratégica proposta por Reich (XXXX) passaria pela introdução de um Subsídio de Reemprego em vez do actual Subsídio de Desemprego. O antigo sistema foi desenhado para dar protecção às pessoas até que conseguissem obter empregos no final de uma crise. No entanto, hoje a maioria das pessoas que perde o seu emprego não o obtém de volta, juntandose à lista de desempregados de longa duração. Um sistema de reemprego que permita durante 2 anos às pessoas receber a diferença entre 90% do seu salário original e o salário que obtiver no seu novo emprego seria, segundo Reich (XXXX), uma forma mais eficaz de mudar o mercado de trabalho do que aquelas actualmente em fase de experimentação. Medidas como esta seriam financiadas, em parte, por novas taxas sobre as empresas saudáveis que decidam despedir apenas para aumentar a sua remuneração

acionista,

desincentivando

assim

os

despedimentos

para

sobrecarregar o Estado. Porque essas medidas gerariam um crescimento mais forte e mais estável do que o conseguido pelas políticas actuais, permitiriam aumentar os rendimentos das empresas e diminuir a dívida da nossa economia ao longo dos anos vindouros. O custo de continuar como hoje estamos é muito maior. Ou seja, continuar com uma economia que funciona abaixo da sua capacidade, quer em pessoas quer em produção, é uma terrível perda de recursos. E uma sociedade alimentada pelo ressentimento provocado pela desigualdade é também uma sociedade instável. Mas, para que tudo isto seja possível, é necessário que a prática política deixe de ser menos parecida com a gestão de empresas. Precisamos que cada qual assuma a sua função. Precisamos que os gestores se foquem na criação de lucro, e não na política, e que os políticos deixem de copiar os gestores procurando que os países deem lucro.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Uma vontade de prosperidade democrática

Portugal precisa de escolher um novo caminho, diferente e indutor de mudança. Não basta fazer melhor, é fundamental fazer diferente. Primeiro a crise financeira e de crédito global e, depois, uma governação de hiper-austeridade colocaram à vista de todos as falhas das actuais políticas orçamentais e económicas. As políticas de austeridade aplicadas em Portugal, demonstraram que não são capazes de criar prosperidade, desenvolvimento ou riqueza. Mas essas políticas também colocaram à vista uma falha mais ampla do sistema económico e político. A Europa também tem de mudar. A actual Europa, nas suas múltiplas lógicas de protecção nacional não tem a capacidade de resolver a crise económica, financeira, social e, consequentemente, política em que se encontra. Portugal precisa de uma Europa diferente e a Europa, para mudar, necessita de um outro Portugal, interventor, empreendedor, criativo, realmente democrático e capaz de dar à Europa caminhos de descoberta do poder científico, empresarial e cultural que este continente dispõe. Se não pensarmos com visão estaremos condenados a nunca arriscar e a nunca sair da posição defensiva em que, tanto Portugal como a Europa se colocaram. São precisos novos desafios e, se Portugal está pronto para eles, também a Europa deverá ouvir Portugal, pois temos um rumo e um desígnio a partilhar com este continente. Como chegámos aqui? Esta é a pergunta que muitos portugueses fazem hoje. Mas ela não deve ter apenas um ponto de vista negativo. Pois há também que lembrar tudo aquilo que de positivo adquirimos nas décadas posteriores ao 25 de Abril de 1974. A crise que vivemos é a mais dura do pós 25 de Abril, sem dúvida. É a mais dura porque é uma crise nacional que ocorre num contexto de crise global. Mas porque tanto os portugueses como os seus governos democráticos fizeram muito de positivo em Portugal temos hoje um país que em todos os indicadores nos coloca nos 40 melhores países do mundo. É esse o acervo que temos de manter e melhorar.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Os partidos que governaram Portugal e que tiveram representação parlamentar nas últimas décadas devem assumir os seus erros, que os tiveram, e também os seus ganhos, que muitos houve. Ninguém tem a culpa de tudo, mas todos têm a culpa daquilo que não conseguiram fazer melhor. Sem dúvida que o endividamento excessivo do Estado, das famílias, das empresas e do próprio sector financeiro, constitui um erro que urge corrigir mas que só poderá ser feito através da gestão temporal do mesmo, mais tempo e menos juros, para maior riqueza que possa gerar prosperidade para as famílias, empresas e para o Estado e que permita gerir a dívida e os seus juros, é o caminho. Sem esta escolha estaremos condenados a de pior em pior ser obrigados – por vontade interna e imposição externa – a não conseguir concretizar todas as dimensões que nos fazem hoje ser membros plenos da União Europeia. Portugal, não deve abandonar nenhum dos pilares da União Europeia e mesmo, se a tal for obrigado, será sempre com o intuito de reconstruir essa relação noutros moldes e num outro tempo. A Europa, em conjunto com a nossa vocação global, é o nosso caminho e a nossa pertença. O mundo está a enfrentar uma crise de recursos séria e fundamental que terá impacto em cada aspecto das nossas vidas, desde os alimentos que comemos até à energia que utilizamos. Desde o início da “Grande Recessão” assistimos à crise do sistema financeiro, produto da ideologia política que induz a ganância de poucos com o dinheiro de muitos, a uma crise económica provocada pela falta de crédito e a, consequente, perda de empregos generalizada. A busca desenfreada pela manutenção de práticas de consumo energético não renováveis continua também a contribuir para uma crise climática completa. E, produto de tudo isto, também assistimos a crises alimentares cíclicas, com aumento de preços e desestabilização social global. No entanto, existem sinais claramente positivos, por um lado as pessoas não perderam a esperança em criar vidas melhores para si e para os seus – nem no poder da sua autonomia. Nas praças, ruas e nas redes sociais as reivindicações de milhões são a prova da vitalidade da sociedade nacional e global. Por outro lado, as instituições multi-nacionais começaram uma lenta caminhada no sentido

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso de se globalizarem mais e criarem a possibilidade de pensar uma outra globalização que, num futuro próximo, seja mais justa. Estas "crises", a que damos o nome de “Grande Recessão”, devem ser vistas como a prova da necessidade de transformar as nossas economias e sociedades, tanto a Portuguesa como a Europeia. E essa transformação deve ser feita com, a Europa por certo, mas no caso Português com um extremo ênfase na África, falante e não falante de português, assim como com a totalidade da América Latina. As crises não se vencem fechando-nos em “nossa casa” mas sim “estando no mundo”, tal como historicamente os Portugueses o têm feito – no entanto, fazê-lo por gosto, por opção estratégica e colectivamente ou ser obrigado ou coagido a fazê-lo individualmente faz toda a diferença, como muitos o sabem por experiência própria. Que desafios Europeus e globais, em particular no hemisfério sul, pode Portugal promover, participar e liderar? O Mar pode e deve ser um desses desafios, mas tem sido desde sempre uma prioridade adiada em Portugal. No entanto, sabemos que Portugal só concretizou o mar como prioridade quando explorou também outros mares e não apenas o seu. Daí que Portugal e a Europa, em conjunto com a África e América Latina, precisem de uma estratégia combinada de exploração dos mares que actue como o equivalente dos programas de exploração espacial da década de sessenta. Ou seja, programas de investimento de base científica que, aproveitando a ciência, criem indústria e serviços e que, assim, por via de novas tecnologias e novas descoberta, criem novos consumos e novos conhecimentos e actuem como multiplicadores de emprego à escala nacional, Europeia e dos países do Atlântico Sul. Precisamos também de uma economia mais verde e de combate às alterações climáticas que crie novos empregos em áreas que na Europa nos habituámos a considerar, erradamente como antiquadas ou pouco atractivas – ou seja agricultura, floresta, energia. Precisamos de nos tornar mais auto-suficientes, quer em Portugal quer na Europa, reduzindo a nossa dependência das importações de energias poluentes, procurando abordagens mais sustentáveis para a nossa agricultura, espaços de produção marítima mais produtivos, e aposta em recursos de energia renovável. Mas esta aposta tem de ser feita tendo

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso presente uma política de desenvolvimento assente na capacidade científica disponível e no desenvolvimento de tecnologia e serviços, que experimentados em Portugal, possam ser exportados enquanto serviços ou produtos. Precisamse políticas que, em Portugal, substituam o betão implantado em muitos campos e arribas por produção alimentar, energética e florestal de caracter informacional, aliando a experiência de séculos, ao conhecimento e antecipação de necessidades e tendências de consumo e de infraestrutura no nosso mercado e nos mercados dos outros países.

São os 100% de nós que importam (e não só 1% de nós)

A

construção

de

mudança

implica

tomar

em

atenção

o

contexto

macroeconómico, mas nada nos limita apenas às ideias propostas por aqueles que, por oportunismo estratégico, se posicionam para além da esquerda e da direita e nos apresentam o empobrecimento como a única estratégia possível. É possível mudar em liberdade e igualdade e devemos mudar tendo presente que, acima de tudo, o que importa é criar riqueza e diminuir as desigualdades. A mudança faz-se também assumindo que identidade é economia – que é outra forma de dizer que economia é cultura. Hoje, na grelha conceptual da competitividade, deixámos claramente o século XIX e XX para termos nações e regiões indexadas a par de países. Basta pensar na Espanha e na Catalunha, na Itália e na Lombardia, na China e na zona do delta do rio das Pérolas ou na região em torno de Bangalore e no resto da Índia. O que nos diz tal leitura? Provavelmente que a nível global há uma nova equação para o desenvolvimento e que na Europa haverá uma dimensão mínima para a competitividade, algo próximo dos seis milhões de habitantes concentrados em zonas urbanas densamente povoadas (litoral português de Viana a Sines e Algarve, Catalunha, Lombardia) onde se encontram as condições para a inovação, circulação de ideias, fruição cultural e convivência de técnicos altamente especializados incorporados nas redes de riqueza globais com trabalhadores não especializados que permitem, aos primeiros, ter as suas vidas mais organizadas e a profusão de prestadores de serviços pessoais.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso O desafio que a organização económica das regiões-motor coloca é um desafio político e ao mesmo tempo individual. Político, porque implica, por um lado, redistribuir riqueza e dar as condições para que zonas do território não sigam um processo de desertificação (o qual em Portugal é uma tendência desde sempre presente e só possível de contrariar com recursos do poder central a par da autonomia das populações). E, por outro, individual porque nos obriga a pensar as nossas cidades de dimensão média (e não só) cada vez mais como bairros de uma imensa metrópole, o que toca a identidade local construída ao longo de séculos. Estes desafios são, como vimos globais, por exemplo, a eles se refere o Sociólogo Fernando Henrique Cardoso em “A Arte da Política” (XXXX) quando se percebe que há São Paulo (articulado com outras metrópoles brasileiras) e o resto do Brasil – mas essas diferenças não colocam em causa o país como um todo. Compreender a relação entre identidade e economia é também compreender a necessidade de explorar a articulação de projectos em rede que envolvam diferentes zonas ou países e que tragam ganhos para ambos os lados. Identidade e economia são duas faces da mesma moeda, são ambas variáveis fundamentais

para

o

crescimento

económico,

competitividade

e

desenvolvimento. Pelas razões atrás enunciadas, a definição de príncipios de governo e acção governativa, ancorada na mudança, deve tomar em atenção o quadro macroeconómico e político que nos rodeia, mas também assumir alguns principios base, sem os quais a mudança não se pode estruturar. Existem três principios base que devem orientar a actuação política num quadro económico tendente à mudança. O primeiro é que mudança dos padrões de produção deve ser baseada na incorporação sistemática e deliberada do progresso técnológico, o qual deve abranger todo o sistema em que as empresas operam. Em segundo lugar, tem de existir uma relação interdependente entre crescimento e equidade, algo que é possível e viável, pois o progresso económico só é sustentável com o progresso social e inclusão.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Em terceiro lugar, a política de mudança tem assumir como príncipio orientador que a integração regional de Portugal na União Europeia será tanto maior quanto a nossa capacidade de estar mais presente em toda a África e América Latina. Embora a existência de coerência entre os instrumentos governativos e a vontade de mudança necessite de coerência, a mudança só será efectiva e concretizável se a necessidade de oferecer condições de emprego aos portugueses for considerada uma emergência política e não apenas uma opção governativa. Os empregos são criados tanto por aqueles que escolhem empreender sozinhos projectos como por aqueles que necessitam de quem os acompanhe na sua criação. Por isso, precisamos de verdadeira liberdade de criação de negócios – quarenta anos após o 25 de Abril ainda não conseguimos concretizar a liberdade também aqui. E, para ter liberdade de criar negócios, precisamos, primeiro, acreditar que se pode ter sucesso. Cabe aos governos criar essa confiança, seja através de políticas públicas, seja através de criar o ambiente positivo de esperança. O Estado é tão empregador como facilitador de condições para a criação de emprego e também é aquele que assegura que entre dois empregos ninguém ficará sem apoio. O Estado deve apoiar e incentivar os seus funcionários, sem os quais nunca poderá atingir qualquer política a que se proponha. Se não houver funcionários públicos motivados, não haverá condições para criar emprego fora do estado. E, se não houver um sentimento partilhado por todos os portugueses que Portugal é um país justo, nunca ninguém se sentirá incentivado a criar e ajudar a criar emprego. O papel do Estado é também este, criar um sentimento de justiça que contrarie o sentimento criado nos últimos anos, isto é, que nascer em Portugal é sinónimo de injustiça de oportunidades. A prioridade das políticas públicas para a criação de emprego deve ser o apoio às Pequenas e Médias Empresas. Mas o Estado inteligente não é aquele que acha que sabe tudo o que é preciso, mas sim aquele que tem os canais de comunicação abertos com os parceiros sociais e que está na rua onde estão as pessoas. Um Estado que pergunta, “o que podemos fazes por vocês?” em vez de gerir economicamente a partir de gabinetes e baseado apenas em modelos matemáticos, muitas vezes sem grande adaptação à realidade empresarial.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Portugal, com um mercado interno de pequena dimensão tem de atingir um “break even point” de empregabilidade baseando-se, em alguns grandes projectos, mas acima de tudo em projectos articulados em rede entre si. Por vezes, isso quererá dizer um grande investimento rodeado de pequenos investimentos, outras vezes poderá querer dizer multiplicação de pequenos investimentos articulados entre si. Não há soluções únicas, há situações únicas, pedindo por vezes intervenções específicas outras vezes generalistas. Se as PME são a base do emprego, só se poderá atingir prosperidade se também se souber envolver as grandes empresas e afastar a ideia tantas vezes repetida de que o Estado está refém do sector financeiro e das grandes empresas nacionais. Para as grandes empresas, com um mercado interno de pequena dimensão, resta-nos a presença global de prestação de serviços de aposta tecnológica global, tanto em áreas tradicionais como novas áreas. Temos de atrair clientes fora de Portugal, clientes para os nossos serviços transacionáveis, como a banca, as telecomunicações e aplicações informáticas. O Estado deve actuar como procurador das nossas empresas mais globais e criar um pacto de apoio em que o Estado apoia-as, criando as condições necessárias para a sua internacionalização, e as empresas comprometerem-se a ajudar o país também. Entre as grandes empresas, o seu valor bolsista, e o valor dos orçamentos familiares o Estado tem sempre de escolher entre estas últimas. Não necessitamos de um Estado interesseiro, capturado por interesses particulares, precisamos sim de um Estado procurador. Não necessitamos de um Estado monopolísta, nem de um Estado taxante que, sem justiça, em tudo vê impostos, nem de um Estado que, por tão liberal, se ausente de fazer o que quer que seja para ajudar ou apoiar as pessoas e as empresas nas suas escolhas. Necessitamos de um Estado actuando como procurador das empresas que lhes facilite acesso a outros mercados, que junte pequenas empresas para poderem cumprir grandes encomendas, que seja capaz de criar confiança, não apenas nos que querem investir em Portugal, mas também nos que querem comprar a Portugal. No entanto, Portugal precisa de mais no quadro de política de criação de riqueza e criação de Emprego. Portugal precisa de definir prioridades económicas no

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso apoio a sectores chave o que implica também que o Estado canalize para algumas áreas a dispersão de apoios económicos existentes actualmente. O Estado possuí um conjunto de instrumentos que vão desde a diplomacia económica, ao apoio à investigação científica nas universidades públicas, aos programas de translação de conhecimento e mesmo, às dinâmicas das forças armadas, que permitem que um apoio inteligente às grandes empresas nacionais se traduza em crescimento do país e das mesmas no quadro de um pacto de desenvolvimento mútuo. Precisamos de um Estado preocupado com Portugal e com os Portugueses e de empresas, pequenas ou grandes, que sejam também globais na acção e nacionais no coração – leia-se que paguem impostos em Portugal. Pois, Portugal ,enquanto território de 10 milhões de habitantes, só conseguirá prosperar se todos soubermos encontrar o que nos une ao mesmo tempo que respeitarmos o que nos separa. O Estado desempenha historicamente um papel fundamental na economia. São os Estados que fazem com que dadas tecnologias se desenvolvam - através do financiamento directo da investigação e das condições fiscais para a investigação privada. São os Estados que criam as condições para os mercados crescerem - induzindo a procura e as infraestruturas necessárias. São os Estados que promovem a criação de empresas - através de um sistema político e judiciário funcional. Mas os Estados também podem destruir um sistema económico através da sua falta de visão e incapacidade de actuação. Daí, que seja necessária nossa uma Política Económica voltada para a criação de riqueza e a recusa de Políticas Económicas clientelares e de favorecimentos individuais. Precisamos de um Estado que seja dos 10 milhões de portugueses e não de 1000 portugueses. Necessitamos ser um país que combina novas tecnologias com a experiência do trabalho realizado e que não tenha medo de arriscar em novas áreas. Pois não há riqueza sem risco, inovação sem experimentar, nem prosperidade sem igualdade. É também necessária mudança que combinane as políticas públicas e os instrumentos de caracter generalista e de caracter selectivo. Necessitamos de

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso políticas públicas que permitam o apoio selectivo à investigação em áreas económicas chave e fazê-lo com base em propostas que incluam parceiros privados ou empresas de cariz universitário para a translação de conhecimento – promovendo

assim

a

investigação

tecnológica

a

par

da

investigação

fundamental. Ao mesmo tempo, necessitamos de criar apoios fiscais dirigidos especificamente a cada um dos sectores prioritários, uma fiscalidade específica e apostas na formação profissional para estas áreas prioritárias. Porque o crédito para a actividade empresarial é fundamental e porque o mesmo não deve apenas assentar no apoio do Estado, ou bancário privado, também se configura necessário retomr o apoio à criação de novos bancos de carácter mutualista e de indule de banca ética, por forma a introduzir inovação num sistema financeiro demasiado igual entre os seus pares. Ainda no quadro das políticas públicas, o Estado deve procurar dotar-se de um Instituto de investigação Militar activo, o qual através de novos laboratórios e reestruturação dos antigos laboratórios militares, se afirme, através do financiamento da pesquisa pública com aplicações para as missões de defesa nacional, como um novo parceiro tecnológico e de desenvolvimento nacional. Operacionalizando os principios enunciados ao longo deste capítulo, uma política económica de apoio ao desenvolvimento de sectores com capacidade global de intervenção e capacidade local de criação de emprego deve passar assim por uma aposta de desenvolvimento em nove sectores:

Transportes – fruto da localização geográfica de Portugal, conjugando a importação de matérias primas por via marítima (para produção em território nacional e exportação posterior por via marítima, avião, rodoviário e, futuramente, comboio) com a exportação de matérias primas e produtos europeus e peninsulares. Mas também a circulação de pessoas entre os dois lados do Atlântico Sul e entre estes e a Europa. Haverá que a dado momento implementar ligação à rede ferroviária espanhola – seja AV seja bitola espanhola – por forma a ligar à rede europeia. Esta aposta implica uma política de preços e serviços que seja competitiva a nível europeu e

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso peninsular e uma forte aposta por parte do Estado na manutenção de infra-estruturas, gestão de processos e diplomacia.

Saúde – o cluster da saúde inclui a formação de ensino superior nas diiferentes valências em saúde, a investigação em ciências da vida e o conjunto de valências hospitalares clínicas do Serviço Nacional de Saúde , privados e terceiro sector e mutualismo (misericórdias incluídas). Esta é uma área de reconhecimento mundial para Portugal, não só na qualidade de indicadores do SNS como também da investigação realizada por empresas privadas e por laboratórios públicos e na qual através de uma lógica combinada entre PME do sector, um laboratório baseado em Portugal e o investimento na investigação militar no quadro das ciências da vida se deveria proporcionar um branding sectorial que permita a criação de maior riqueza e emprego nacional e a exportação não só de produtos mas também de serviços.

Recursos Marítimos – a exploração dos recursos marítimos necessita de ser uma prioridade portuguesa. Mas uma exploração sustentável e assente na articulação entre ciência, recursos do Estado e empresas privadas. Partindo do elencar das áreas científicas com uma palavra a dizer na dimensão marítima, é necessário criar a translação de conhecimento para a aplicação empresarial que leve ao emprego e à criação de emprego. Esta será uma área de forte implemento de políticas públicas de crédito e de aposta de um empreendedorismo de estado na busca de parceiros privados para a ciência pública existente. A par da fixação de empresas, instituições globais e uso de bandeira nos regimes mais atractivos a nível global. Á actuação do Governo da República se somará aquilo que será um programa Europeu nesta área.

Telecomunicações – O conjunto de empresas com implantação no mercado nacional e presença substancial de capital português na sua estrutura acionista são uma mais valia pela sua dupla capacidade de

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso criação de riqueza e emprego local e internacionalização. As empresas portuguesas do sector das telecomunicações são um hub de ligação a PME de tecnologias de informação e do sector criativo que permitem o exportar de tecnologia e também modelos de negócio e formatos audiovisuais. Este é um sector que, mais uma vez, necessita de um branding sectorial para se promover globalmente e uma aposta na estruturação de redes de empresas capazes de utilizar o mercado interno como fonte de experimentação prévia para a posterior oferta externa.

Educação Superior – Portugal é já hoje destino de estudantes oriundos de muitos países de fora da Europa. Aquilo que hoje constitui um acrescento à actividade normal das instituições de ensino superior deve tornar-se num desígnio nacional de políticas públicas na oferta de formações em todas as áreas de ensino (Ciências da Vida; Ciências da Terra e do Espaço; e Ciências Sociais e Humanas) em português, espanhol, francês e inglês – ou seja, as línguas maioritárias do hemisfèrio sul do Atlântico e Indico.

Engenharia Civil e Construção – Portugal possuí um acervo de experiência e excelência no sector da construção civil, quer em pessoas na dimensão da engenharia quer na de técnicos especializados, quer organizacional em termos de articulação de recursos em obras. Esse acervo necessita de ser valorizado e de Portugal actuar como plataforma logística de actuação global das empresas e dos técnicos especializados. Não só é necessário um branding global deste sector como também a criação de condições para que exista em Portugal uma base para essa estratégia ancorada em políticas públicas que serviam pragmaticamente a actuação no exterior das empresas e dos seu pessoal especializado.

Agroflorambiental – Portugal possuí na agregação dos sectores agrícolas, floestais e ambientais uma combinação fundamental a explorar entre a produção de bens agrícolas destinados à alimentação humana e animal, à produção de matérias primas florestais e a sua transformação (mobiliário,

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso produtos cortiça e papel) em combinação com o desenvolvimento de tecnologias no sector da energia renovável – não a apenas a produção de energia mas a produção de tecnologia energética. Este é um sector fundamental para assegurar auto-suficiência mínima a Portugal. É um sector onde a experiência está presente e a inovação e a gestão de marcas é fundamental.

Industrias Criativas – A escolha do nome “Industrias Criativas” para definir o sector que agrega a produção desde o calçado e têxtil até à incorpração de criatividade artística e cultural em bens e serviços traduz os objectivos necessários para este sector. A produção nacional alimenta marcas globais de todos os segmentos de consumo e das mais diferentes sociedades. Importa através da incorporação de marcas próprias que se identifiquem com estilos de vida globais centrar em Portugal a criação de valor acrescentado e não o fazer depender de outras localizações.

Turismo – O turismo compreende o conjunto de actividades que suporta a vinda do estrangeiro e de de pessoas deslocações de lazer dentro de Portugal. Por isso compreende as indústrias e serviços de hotelaria, restauração, cultura, património, comércio e transportes. Daí que seja fundamental uma estratégia integrada de preços, ofertas de produtos e serviços e fiscalidade que permita que Turismo seja sinónimo de valor acrescentado nacional e emprego nacional e não de rendas pagas a operadores externos.

E, porque não há economia nacional, ou seja não há investimento nem exportações, sem que se possa responder à pergunta feita “Vocês são bons em quê?” precisamos de criar visibilidade internacional em termos de branding sectorial e de marcas portuguesas globais, que possam transmitir o valor acrescentado nacional na produção e serviços. Portugal tem um papel económico, político e social a desempenhar da Europa e fora dela. Mas precisamos de uma Europa responsável. Uma União Europeia

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso capaz de defender a sua identidade, que se baseie tanto na diversidade cultural quanto na partilha de sistemas sociais e condições de trabalho livres das pressões da concorrência baseada na imitação dos países mais desfavorecidos. Necessitamos de uma Europa assim para que possamos, em pleno, mudar a economia e a política em Portugal. Mudar, para que os interesses económicos não sejam contraditórios com a dignidade do ser humano e a protecção dos direitos civis. A ideologia neoliberal, ainda dominante na Europa, criou um sistema em que os interesses de poucos vem antes do bem-estar geral dos cidadãos – e Portugal adoptou nos últimos anos essa prática. Alguns poucos têm colocado os lucros de algumas indústrias poluentes ou serviços não éticos à frente do meio ambiente, da saúde pública, da riqueza de todos e do bem-estar comum. Esses mesmos poucos têm também preterido o apoio às muitas empresas que criam emprego e favorecido oligopólios que procuram o lucro através da especulação financeira e que relegam o valor da produção para uma dimensão desprezível e assessória. Austeridade, produtividade e competitividade têm sido mantras utilizadas para reduzir os padrões sociais e condições de trabalho em geral por toda a Europa, e no sul Europeu em particular. A articulação entre os diferentes stake-holders neoliberais no Parlamento Europeu, no Conselho, na Comissão Europeia e em muitos governos Europeus é culpada. Culpada de decidir aceitar às múltiplas exigências de grupos de pressão dos mais variados, colocando lucros de curto prazo antes do interesse geral. É por isso necessário oferecer uma alternativa real para Portugal e para a Europa. Precisamos da solidariedade e entreajuda, construída com base na autonomia dos projectos individuais e colectivos, que pode garantir aos cidadãos uma boa qualidade de vida com base na sustentabilidade económica, social e ambiental. Um Portugal verdadeiramente democrático, com prosperidade repartida, sem medo de arriscar e que age para os seus cidadãos e não apenas para os interesses de pequenos grupos de visões tacanhas e preocupados em se salvarem sozinhos em detrimento de construir um rumo para todos.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Mudar

Durante os últimos três anos mais de 300.000 dos melhores de entre nós terão abandonado, permanente ou temporariamente, Portugal. Uma parte substancial corresponde a uma “fuga de cérebros” só comparável historicamente ao sucedido em países alvo de derrotas militares ou convulsões políticas extremas. E não tinha, nem tem, de ser assim. Se é o desenvolvimento de Portugal que todos pretendemos atingir, independentemente de onde nos posicionamos intelectualmente, é altura de clarificar as “incapacidades treinadas” que cegam, com frequência, as posições de partida nos debates tanto no facebook como na comunicação social. O título deste texto inspira-se numa obra de Albert O. Hirschman “Exit, Voice and Loyalty” (XXXX). Hirschman discute aí a razão porque as estratégias habitualmente seguidas, ou seja, “Exit” ou optar por sair (deixar de comprar, deixar de fazer parte) e “Voice”, dar voz (criticar o desempenho de organizações ou bens), podem funcionar nos mercados de produtos e serviços, mas falhar quando são transpostas isoladamente para políticas de desenvolvimento e equilíbrio económico. Em termos económicos parece fazer todo o sentido que se alguém decide deixar de comprar produtos ou serviços a uma empresa, essa tomada de posição leva, quase de forma imediata, a uma resposta e reajustamento por parte da empresa – que se vê impelida, para sobreviver, a alterar padrões de produção, distribuição ou marketing. Mas a sociedade não é igual a economia no seu estado puro de mercado. O mercado não é capaz, apelando apenas a ajustes entre procura e oferta, de resolver a maioria dos problemas do nosso dia a dia, desde relações familiares e de amizade, à regulação entre necessidade de trabalho e capacidade de trabalho existentes, à distribuição de riqueza ou à igualdade de oportunidades ou, ainda, à proteção que, em diferentes níveis, todos procuramos face ao que não controlamos – e que é muito e diverso. Falemos, por exemplo, sobre cheques-ensino e educação. A ideia é já velha de quase sessenta anos. Milton Friedman já a propunha em 1955, embora a sua

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso actualidade seja premente, dada a recente onda de falências de escolas públicas que aplicaram a medida na Suécia e os problemas práticos dessa teoria. Segundo Friedman, os cheques ensino deveriam substituir o actual sistema de Escola Pública porque, escrevia então, “Os Pais poderiam expressar o seu ponto de vista sobre as escolas directamente, retirando os seus filhos e enviando-os para outra (...)” (XXXX). O cheque-ensino é o exemplo perfeito de um viés muito comum na economia que privilegia a “Saída” como solução e relativiza a “Voz”, o fazer-se ouvir, enquanto instrumento económico de equilíbrio e desenvolvimento. Mas para os economistas, e políticos, que professam as abordagens centradas no abandonar dos problemas, a “Saída” é vista como a forma normal de expressar a visão negativa que se possa ter de uma organização face aos seus produtos ou serviços. No entanto, uma Estratégia de Saída falha em ser capaz de enviar uma mensagem para os que têm um desempenho menos bom e, portanto, falha na resolução dos problemas. Tomar as estratégias de saída como solução para a gestão política dos problemas é um pouco como virar as costas ao problema, ele parece resolvido mas contra-ataca sempre de um modo ou de outro, mais cedo ou mais tarde. Mesmo no campo puramente económico basta pensar em Portugal e perguntarnos se não nos lembramos de casos onde empresas ficam aliviadas quando os seus críticos saem de cena. Mas, o desaparecer das críticas não quer dizer que o problema económico fique resolvido. Como Hirschman refere, aqueles que detêm o poder numa situação de monopólio económico - e eu acrescentaria também monopólio de decisão política no quadro dos Estados democráticos – podem ter incentivo em criar oportunidades limitadas de saída para aqueles cuja voz seja percebida como inconfortável. É aqui que vale a pena relembrar o aumento exponencial das saídas do país por parte dos portugueses. A maioria das pessoas apenas abandona o seu país quando a tal é impelida, embora também haja sempre aqueles que preferem como primeira opção viver noutro local.

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Ora a emigração actual, tanto de trabalho genérico quanto de “cérebros”, não é o somatório de opções individuais, mas sim o produto de uma necessidade percebida. Quando a necessidade é percebida por muitos deixa de ser uma matéria individual e torna-se um problema de carácter económico e político nacional. A situação vivida em Portugal seria porventura um estudo de caso para Hirschman. Para ele, o que hoje assistimos seria caracterizado como a busca de desenvolvimento ancorada numa Estratégia de Saída, deixando a correcção de um problema de equilíbrio económico puramente às forças do mercado – que não são por si só capazes de o resolver. Quantos mais de entre nós tiverem que sair menor será a taxa de desemprego, talvez o mercado seja capaz de fornecer por si 4 horas por semana de trabalho para todos. Mas para poder ter ofertas de 40 horas de trabalho para a população não chegam apenas as Estratégias de Saída, de substituição da política pela economia, é preciso ter Estratégias de Voz. Saída e Voz, isto é, forças de mercado e de não-mercado. Ou melhor, mecanismos económicos e políticos, são elementos de igual importância e é da sua conjugação que se podem resolver os desequilíbrios. Quando a política se torna num clone da economia, só podemos esperar que os desequilíbrios económicos se mantenham. Mudar é rejeitar que a política seja um clone da economia. Mudar é ser autónomo, é escolher um rumo onde queiramos estar junto com outros. É esse o poder de mudar: escolher.

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Um princípio e não uma conclusão

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O Poder de Mudar –Gustavo Cardoso Esta não é a conclusão deste livro. Pois este é um livro sem conclusão. A conclusão será aquela que germinar em quem o leu e pela forma como decidir contribuir para mudar o que o rodeia. Mais do que uma conclusão, o que procurei aqui apresentar foram diagnósticos, prospectiva informada nessa análise e possíveis caminhos para o desenho de políticas que possam tornar a nossa democracia mais forte, a nossa economia mais rica e as desigualdades menores. Este é para mim o início de algo, não o fim de qualquer coisa. O início de contribuir para se pensar diferente e, mais do que prometer acção, ajudar a desenhar caminhos possíveis. Porquê? Porque agir qualquer um o pode fazer. Não é preciso grande noção do que é necessário fazer se nos limitarmos a repetir o que outros nos disserem ou apenas decidirmos prometer que tudo ficará pior do que está. Não há grande sabedoria nessa visão negativa nem grande gesta. Pensar e prometer o pior relega-nos sempre para as notas de rodapé da história, como o exemplo negativo de tudo o resto que foi conseguido e atingido. A crise é a situação contextual em que vivemos faz já vários anos, mas terá um fim, o qual passará sempre por uma mudança, por uma escolha. Uma mudança que, para ser uma escolha duradoura e eficaz, precisa centrar-se na autonomia. Na autonomia de cada um e na força dada ao todo por cada um de nós. O elemento central desta análise é portanto a autonomia, pois ela é, em simultâneo, instrumento e fim a atingir para a conquista da mudança social, económica e política que necessitamos, para pôr fim ao ciclo que nos levou até esta “Grande Recessão”. A criação de autonomia, ou se preferirmos a capacidade das pessoas viverem a sua vida de acordo com os seus próprios planos, é inerente à nossa condição humana de criatividade e diferença. Será na autonomia dos projectos que soubermos construir em conjunto que encontraremos a mudança que procuramos. O poder de mudar é o poder de nos encontrarmos com o que de mais humano temos, a possibilidade de escolher. Pois, a autonomia é a semente das ideias que alimentam a mudança. Gustavo Cardoso, Lisboa 2014

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