O poder é servir

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RELIGIÃO FRANCISCO

O poder é servir Moisés Sbardelotto *

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ão se deve esperar do magistério papal uma palavra definitiva ou completa sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao mundo. Não convém que o papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que se sobressaem nos seus territórios. Nesse sentido, sinto a necessidade de proceder a uma salutar ‘descentralização’”. Assim escrevia o papa Francisco logo no início do seu pontificado, na exortação apostólica Evangelii Gaudium (n0

16). Mas é incomum que uma pessoa que detenha um determinado poder – e, especialmente no caso do pontífice, um poder “ordinário, supremo, pleno, imediato e universal, que pode exercer sempre livremente” (Código de Direito Canônico, cân. 331) – opte por colocar esse poder em discussão. Aliás, no caso político brasileiro, infelizmente, o poder é disputado a unhas e dentes. Para Francisco, contudo, “o verdadeiro poder é serviço”, como disse na homilia em Santa Marta no dia 21 de maio de 2013.

Nesse contexto, o Conselho dos Nove Cardeais, instituído pelo papa Francisco para auxiliá-lo no governo da Igreja, decidiu dedicar ao tema da descentralização uma sessão específica dos seus encontros, em fevereiro de 2016, também no âmbito dos trabalhos de reforma da Cúria. O tema voltou à tona no discurso do papa em comemoração aos 50 anos da instituição do Sínodo dos Bispos, em outubro do ano passado. Na ocasião, ao falar das Igrejas locais e das conferências episcopais, o pontífice

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Uma salutar descentralização da Igreja e do coração, “o cristão não tem medo de se descentralizar, de ir às periferias, porque tem o seu centro em Jesus Cristo”, papa Francisco

reconhecia: “O desejo do concílio de que tais organismos possam contribuir para aumentar o espírito da colegialidade episcopal ainda não se realizou plenamente”. A questão da descentralização, portanto, remete a duas questões em aberto, na visão de Francisco: a “colegialidade episcopal” e a “Igreja toda sinodal”, que une “os bispos entre si e com o papa na solicitude pelo Povo de Deus”. Especialmente em uma hierarquia como a existente na Igreja Católica, o primeiro desafio é o de uma descentrali-

zação do próprio poder eclesiástico. E aqui vale a pena retomar o que Francisco dizia na Evangelii Gaudium (n0 32): “Dado que sou chamado a viver aquilo que peço aos outros, também devo pensar em uma conversão do papado. Compete-me, como bispo de Roma, permanecer aberto às sugestões tendentes a um exercício do meu ministério que o torne mais fiel ao significado que Jesus Cristo pretendeu lhe dar e às necessidades atuais da evangelização. (…) O papado e as estruturas centrais da Igreja universal

também precisam ouvir esse apelo a uma conversão pastoral”. E criticava: “Uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária”. Encontro móvel – Outro desafio é a descentralização geográfica do poder eclesiástico. Em nível mundial, a sede da Igreja é Roma, e muitos processos e questões internas das mais diversas Igrejas locais espalhadas pelo globo ainda devem ser encaminhados à Cúria janeiro de 2016 45

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Neste Jubileu Extraordinário da Misericórdia, papa Francisco descentralizou o próprio Ano Santo. Antes, os jubileus acabavam se tornando manisfestações públicas da centralidade do papado Romana para lá serem decididos. Diversos passos foram sendo dados ao longo das últimas décadas para superar essa centralização geográfica e para explicitar que a Igreja de Roma deve se abrir ao mundo. Nos tempos do concílio, por exemplo, com o surgimento das conferências episcopais nacionais ou regionais. O bemaventurado Paulo VI inovou com as suas diversas viagens intercontinentais de avião, algo nunca feito até então por outros papas, podendo “apalpar” as diversas realidades da Igreja pelo mundo. São João Paulo II tornou-se, ele mesmo, o ponto de encontro “móvel” das diversas expressões eclesiais com suas viagens e também reconheceu a importância do “princípio de subsidiariedade” entre bispo e Cúria Romana, esperando que tais relações, em uma “eclesiologia de comunhão”, levassem a “uma maior descentralização” (Pastores Gregis, n0 56). Bento XVI continuou tal processo, mas o radicalizou com a sua própria renúncia, para o bem maior de toda a Igreja. E, assim, chegamos ao papa Francisco, que, desde o início, afirmou: “Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos” (Evangelii Gaudium, n0 49). Neste Jubileu Extraordinário da Misericórdia, ele também descentralizou o próprio

Ano Santo. Historicamente, os jubileus acabavam se tornando manifestações públicas da centralidade do papado (que concedia as indulgências) e da centralidade de Roma (como ponto de convergência das inúmeras peregrinações às basílicas papais). Francisco, ao contrário, desde a bula de convocação, já deixava claro que este Jubileu devia ir muito além de Roma: “Estabeleço que em cada Igreja particular (…) se abra igualmente, durante todo o Ano Santo, uma Porta da Misericórdia. (…) Assim, cada Igreja particular estará diretamente envolvida na vivência deste Ano Santo como um momento extraordinário de graça e renovação espiritual. Portanto o Jubileu será celebrado, quer em Roma, quer nas Igrejas particulares, como sinal visível da comunhão da Igreja inteira” (Misericordiae Vultus, n0 3). Mas não só isso: o próprio início do Jubileu não se deu em Roma nem na Basílica de São Pedro. A abertura da primeira Porta Santa deste ano jubilar se deu a muitos quilômetros da Europa, em um lugar quase desconhecido, no coração da África: na Catedral de Bangui, na República Centro-Africana. E, de lá, o papa afirmou: “Hoje, Bangui se torna a capital espiritual do mundo. O Ano Santo da Misericórdia chega antes a esta terra, uma terra que sofre há diversos anos

a guerra, o ódio, a incompreensão, a falta de paz”. Mas o principal desafio – e este vale para todos os cristãos – é a descentralização da própria Igreja. Ao descentralizar o papado e Roma, Francisco deseja, no fundo, descentralizar o coração de cada cristão e cristã. À Conferência Italiana dos Superiores Maiores, em novembro de 2014, o papa disse: “Para viver e ser fecundo, cada carisma está chamado a se descentralizar, para que no cerne só permaneça Jesus Cristo”. E no 350 Meeting para a Amizade entre os Povos, em agosto de 2014, exclamou: “O cristão não tem medo de se descentralizar, de ir às periferias, porque tem o seu centro em Jesus Cristo”. Cada cristão e cristã, portanto, pode contribuir com essa “salutar descentralização”, que continua desafiando o pontífice, a Cúria, a Igreja de Roma, os bispos, especialmente neste Ano da Misericórdia. Porque o verdadeiro centro da Igreja é e deve ser Jesus Cristo – e o centro da sua revelação é justamente a misericórdia (Misericordiae Vultus, n0 25). * Moisés Sbardelotto é jornalista, mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul, e La Sapienza, em Roma. É também autor de E o Verbo se Fez Bit (Editora Santuário).

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