O Poder em Perspectiva (Org.)

June 1, 2017 | Autor: M. Siqueira Filho | Categoria: Michel Foucault, Poder
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O Poder em Perspectiva

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ORGANIZAÇÃO: PROGRAMA DE ENSINO TUTORIAL – CIÊNCIAS SOCIAIS – UFMG. MEMBROS DO PROGRAMA: ANA LÚCIA MODESTO (TUTORA DO PET-CS) CAMILA GOMES CORDEIRO CAROLINE FERREIRA ROSA FERNANDO SALUM FERNANDO VIEIRA FREITAS ISABELA VILELA CHIMELI JÚLIO CÉSAR RUAS ABREU FILHO MÁRCIO TADEU MAIA DE ALMEIDA MALTA MATHEUS DE SÁ MORAIVA MAURÍCIO MACHADO SIQUEIRA FILHO NATHÁLIA DE ÁVILA DUARTE RICARDO BERNARDES PEREIRA ROBERTO ROMERO SOFIA RODRIGUES VIVIANE RIBEIRO CUNHA EDITORES: FERNANDO VIEIRA FREITAS JÚLIO CÉSAR RUAS ABREU FILHO MÁRCIO TADEU MAIA DE ALMEIDA MALTA MAURÍCIO MACHADO SIQUEIRA FILHO REVISORES: JÚLIO CÉSAR RUAS ABREU FILHO MAURÍCIO MACHADO SIQUEIRA FILHO

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: MARCOS DE OLIVEIRA LARA CAPA: ???????????????? IMPRESSÃO: SOGRAFE - EDITORA E GRÁFICA LTDA

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Agradecemos o apoio do departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG (SOA), do departamento de Ciência Política da UFMG (DCP), da Diretoria da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, assim como dos autores que contribuíram com nosso projeto através do envio dos textos aqui reunidos e publicados. Prestamos especial agradecimento à professora Ana Lúcia Modesto, tutora do Programa de Ensino Tutorial das Ciências Sociais da UFMG (PET-CS), pela atenção e dedicação que tornaram possível a concretização da presente obra, bem como a todos os colegas do PET-CS que se interessaram e contribuíram de alguma maneira para a realização deste livro.

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A Jornada de Ciências Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que acontece anualmente, é o maior evento realizado pelo grupo PET – Ciências Sociais da UFMG (PET-CS). A Jornada reúne professores, pesquisadores e estudantes das ciências humanas com o intuito de discutir temas caros à Antropologia, Ciência Política e Sociologia. Realizada há quase uma década, nossa Jornada já está firmemente ancorada no calendário acadêmico do curso de ciências sociais. Os textos apresentados na terceira edição da Jornada, que se dedicou ao pensamento de Claude Lévi-Strauss, foram organizados para publicação. O resultado foi o livro Lévi-Strauss: Leituras Brasileiras. Tal iniciativa do PET-CS foi muito bem recebida pelo meio acadêmico. Mais recentemente, no segundo semestre de 2010, ocorreu a VII Jornada de Ciências Sociais que abordou o tema “poder”. Com o título O Poder em Perspectiva, o evento reuniu docentes de várias áreas, como Filosofia e Psicologia, além das ciências sociais. Durante três semanas foram realizados minicursos e conferências, que abriram espaço para uma ampla discussão sobre o assunto. O evento O Poder em Perspectiva ocorreu em plena época de eleições presidenciais, e teve relevância e repercussão tamanhas que o grupo PET-CS decidiu por reunir em um livro os textos apresentados pelos pesquisadores, que são os seguintes: Alcida Rita Ramos – professora titular emérita da Universidade de Brasília; Vera Alice Cardoso da Silva – professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Izabel Friche Passos – professora associada do Departamento de Psicologia e membro permanente do Programa de Pós-graduação em Psicologia (Mestrado e Doutorado) da UFMG; Helton Machado Adverse - professor adjunto do Departamento de Filosofia da UFMG; Renato Sztutman – professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo; Guilherme Castelo Branco – professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Fernando Filgueiras – professor adjunto da UFMG, no

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Departamento de Ciência Política; Renarde Freire Nobre – professor adjunto da UFMG, no Departamento de Sociologia e Antropologia (SOA); Karenina Vieira Andrade – Professora Adjunta da UFMG, no SOA; Rogério Duarte do Pateo – Professor adjunto da UFMG, também no SOA. A VII Jornada de Ciências Sociais – O Poder em Perspectiva aconteceu ao longo de três meses – setembro, outubro e novembro. Em setembro, foram realizadas mesas de discussão sobre o pensamento de Michel Foucault. Os pesquisadores convidados para esta primeira fase do nosso evento discutiram a respeito dos instrumentos teóricos que o autor francês propõe para análise das técnicas de poder. Em função do caráter transdisciplinar do pensamento foucaultiano, foram realizados debates que não se ativeram apenas ao campo das ciências sociais. A conferência de abertura foi ministrada pelo professor do departamento de filosofia da UFMG Helton Adverse. Intitulada Foucault e as genealogias, a conferência, e agora texto publicado neste livro, tratou de uma mudança importante no percurso intelectual de Foucault: a passagem da arqueologia do saber para a genealogia do poder. Após a conferência de abertura, o professor do departamento de filosofia da UFRJ Guilherme Castelo Branco ministrou o minicurso Michel Foucault: Técnicas de Poder e Biopolítica. Branco discute, no texto apresentado aqui, como Foucault analisou as técnicas de controle do corpo e o agenciamento entre o saber-poder médico e o saber-poder jurídico. A conferência de encerramento contou com a participação da professora do departamento de psicologia da UFMG Izabel Friche Passos. Na ocasião, Passos discutiu sobre as noções utilizadas por Foucault de genealogia, arqueologia e arquivo, centrais para a compreensão do modo foucaultiano de análise histórica. O professor do departamento de sociologia da UFMG Renarde Freire Nobre – embora não tenha sido conferencista da VII Jornada de Ciências Sociais – muito gentilmente aceitou participar da elaboração do presente livro enviando o texto Foucault, as ciências sociais e o problema do sujeito. Neste texto, Nobre investiga as controvérsias suscitadas pela perspectiva

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“prática histórico-filosófica” de Foucault em relação aos paradigmas da antropologia, da sociologia e da ciência política, apontando os contrastes mais significativos. Por fim, o autor procurar demonstrar o incômodo das ciências sociais com o “problema do sujeito” e os seus modos de subjetivação. A Segunda fase da VII Jornada de Ciências Sociais se ateve ao campo da ciência política, o que nos rendeu dois textos que temos o prazer de incluir nesta publicação. O primeiro deles tem como autora a professora do departamento de Ciência Política da UFMG, Vera Alice Cardoso da Silva, que ministrou a conferência intitulada “A Natureza e as Formas de Manifestação do Poder político”. Silva busca tecer em seu ensaio uma sistematização dos pontos mais relevantes do debate acerca da natureza do poder político, relacionando-o aos temas da liberdade individual e do controle social. Resgatando importantes pensadores do século passado, Silva aponta suas divergências e convergências teóricas, indicando como estas diferenças afetaram o desenvolvimento das discussões modernas sobre a natureza do poder político. O segundo trabalho de ciência política aqui publicado é de autoria do Professor Fernando Filgueiras. Seu texto é um exercício de análise das relações entre o poder democrático e a corrupção. A partir de uma análise da interação entre os desenhos institucionais da democracia representativa e a moralidade política inerente a uma sociedade democrática, o autor procurou problematizar a intrincada relação entre instituição e valores. O texto nos sugere que uma compreensão mais clara do fenômeno da corrupção deve ser pensada a partir de uma perspectiva que consiga conjugar de um lado a problemática da ação individual e de outro as falhas institucionais que favorecem a emergência da corrupção. Na segunda seção do texto, têm-se ainda um afunilamento da discussão para uma análise do caso brasileiro onde o paradoxo entre uma participação política crescente após o regime de exceção, e uma também crescente onda de denúncias de corrupção nas três esferas permite perceber a maneira como o presidencialismo de coalização no Brasil, apesar de ter assegurado uma maior governabilidade, acabou por determinar um enfraquecimento da legitimidade dos mecanismos de representação política.

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A terceira e última etapa da VII Jornada de Ciências Sociais, O Poder em Perspectiva, se dedicou à Antropologia. O poder sob perspectiva antropológica teve como foco o mundo ameríndio das terras baixas da América do Sul. Alcida Rita Ramos demonstra em seu texto a maneira como Brasil, Argentina e Colômbia construíram suas ideologias nacionais sobre “escombros indígenas” pautados em específicas visões ideais do Índio, retiradas de um determinado “imaginário cultural” nacional. A partir dos mitos de origem das Nações e de sua literatura bem como de uma análise da legislação e aplicação da política indigenista, a autora demonstra a variedade e contraste de visões sobre os indígenas, conformando um determinado ethos estatal. Passando das relações com o Estado chegamos àquelas contra o Estado. Renato Sztutman procurou sublinhar, aqui, a atualidade das proposições de Pierre Clastres a partir de exemplos etnográficos recentes. Com isso o autor buscou apontar para uma filosofia política “contra o Estado” que pode ser vista nos mitos, ritos e exegeses de sábios indígenas, nas práticas da chefia, na guerra ou ainda nas acusações de feitiçaria. Sztutman ressalta ainda a potência do caráter paradoxal e abertura ensaística dos escritos de Clastres, virtudes a serem atualizadas nos estudos etnológicos atuais. A contribuição de Rogério Duarte do Pateo destinou-se a discutir os conflitos intercomunitários entre os grupos indígenas Yanomami a partir da recapitulação de uma extensa discussão dos modelos analíticos empregados para compreendê-los desde os anos de 1960. A partir dos dados coletados em sua pesquisa com os Yanomami da Serra das Surucucus (RR/ Brasil), o autor pretendeu mostrar as variações na dinâmica sociopolítica entre grupos quando observados a partir de uma perspectiva diacrônica. Para tanto, o autor vale-se de uma descrição densa dos princípios que regem as relações intercomunitárias entre eles, com vista a demonstrar a maneira como os reides massivos a que se geralmente se identifica a guerra Yanomami constituem apenas uma parte de um universo sócio-cosmológico muito mais amplo, permeado pelo idioma da predação. Karenina Vieira Andrade – a partir de sua pesquisa entre os ye’kuana localizados na aldeia de Fuduwaaduinha (RR/Brasil), situada no alto Rio

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Auaris – abordará o conceito de ädhajö, ligado à chefatura ye’kuana. Seu texto tem como objetivo realizar uma análise da estrutura política Ye’kuana levando em consideração a epistemologia nativa revelada no corpo das narrativas wätunnä. Tem-se ainda uma descrição da ättä, tradicional casa ye’kuana que replicaria em sua estrutura a configuração do cosmos invisível. Assim, a autora irá buscar correlações cosmológicas entre chefe e casa, ädhajö e ättä, um representando a totalidade do corpo social, a outra funcionando como uma expressão codificada do cosmos. Andrade aponta ainda para uma análise do papel dos cantores e historiadores Ye’kuana. Esses funcionariam como elo entre as unidades (aldeias) ye’kuana, criando uma rede onde as histórias, canções e idioma seriam compartilhados. Na pista clastreana, Andrade aponta historiadores e cantores como espécies de contrapeso à tendência à centralização do poder nas mãos do chefe de aldeia, levando a ideia de uma oscilação entre forças centrípetas e centrífugas; a uma perpétua tensão entre a autonomia das unidades que compõem a rede e a força conectiva engendrada pela própria rede. A VII Jornada de Ciências Sociais – O poder em Perspectiva – e, agora, esta coletânea de textos representam o interesse dos alunos do PET-CS pela investigação e pela crítica de um dos objetos cruciais das ciências humanas: o “poder”. Buscando conhecer e explorar as diversas perspectivas sobre o assunto, o evento e o livro não poderiam possuir outro caráter que não o da transdisciplinaridade, imprescindível para a abordagem de tal objeto. A oportunidade de ter acesso e poder trabalhar com textos diversos que, sem dúvida alguma, contribuem muito para o avanço dos estudos sobre o poder, muito nos lisonjeia. É com enorme satisfação que o grupo PET-CS realiza este projeto.

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SUMÁRIO

FOUCAULT, AS CIÊNCIAS SOCIAIS E O PROBLEMA DO SUJEITO ...........................15 Renarde Freire Nobre FOUCAULT E A GENEALOGIA DO PODER..................................................................37 Helton Adverse MICHEL FOUCAULT: TÉCNICAS DE PODER E BIOPOLÍTICA...................................65 Guilherme Castelo Branco A NOÇÃO DE DISCURSO EM MICHEL FOUCAULT.....................................................79 Izabel Friche Passos A NATUREZA E AS FORMAS DE MANIFESTAÇÃO DO PODER POLÍTICO: DEBATES TEÓRICOS...............................................................89 Vera Alice Cardoso Silva A CORRUPÇÃO DO PODER DEMOCRÁTICO............................................................... 111 Fernando Filgueiras CHEFIA E REPRESENTAÇÃO ENTRE OS YE’KUANA................................................ 133 Karenina Vieira Andrade OS INDÍGENAS E A CONSTRUÇÃO DAS NAÇÕES SUL-AMERICANAS............................................................................... 153 Alcida Rita Ramos O CONTRA O ESTADO E AS POLÍTICAS AMERÍNDIAS ALGUMAS MEDITAÇÕES CLASTREANAS................................................................... 183 Renato Sztutman ANTAGONISMO EM PROCESSO: UMA APROXIMAÇÃO À GUERRA YANOMAMI.......................................................... 215 Rogerio Duarte do Pateo

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FOUCAULT, AS CIÊNCIAS SOCIAIS E O PROBLEMA DO SUJEITO Renarde Freire Nobre1

Intróito

Certa ocasião Foucault situou o seu pensamento numa perspectiva por ele denominada de “prática histórico-filosófica”.2 Esta se encontraria na esteira do “movimento” da Aufklãrung alemã, apropriada de forma particular e conforme os direcionamentos que o pensador francês dá às suas pesquisas. A região de enlace entre a filosofia e a história é uma encruzilhada com diferentes interseções, pondo em jogo dinâmico homem e acontecimento, indivíduo e poder, sujeito e verdade. À história pertencem as estruturas de poderes e os regimes de discursos, o que a filosofia e sua alma inquieta vêm fustigar para verificar o estatuto do sujeito em face do regime das verdades. Foucault procura elaborar uma crítica da nossa contemporaneidade pelo reconhecimento do inevitável enredamento dos sujeitos em condições históricas, tratando-as como relações entre poder e saber. Ele realça as duas dimensões da trama filosófica de Nietzsche com originalidade e de modo ainda mais incisivo, lançando-se radicalmente para a história. A “vontade de verdade” – expressão nietzschiana para a “vontade de potência” na cultura ocidental – é, então, investigada conforme referências práticas e efeitos de subjetivação.3 Postando-se na encruzilhada das conexões decisivas entre dispositivos de poder e regimes de verdade, Foucault faz um pacto com o daimon do 1 Professor adjunto de Ciências Sociais da UFMG 2 Foucault, M.. O que é a crítica (crítica e Aufklãrung). Disponível em www.vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/iluminismo.pdf. No original: “Qu’est-ce que la critique? Critique et Aufklãrung”. Bulletin de la Société Française de Philosophie, vol.82, número 2, pp.35-64, avril/juin 1990. 3 Foucault, M. A ordem do discurso, p.14-21.

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pensamento. Ele o faz como pensador-prático, aquele que, pela esgrima de uma escrita ensaística, embaralha os significados e subverte problemáticas de modo a: por um lado, manipular fontes documentais e realizar associações desprezadas por conhecimentos científicos e propagandas ideológicas, e, por outro lado, pôr em tensão a relação do sujeito com a verdade ao se atentar para o lastro dos discursos com as práticas sociais e os artefatos de poder. Assim é que, da historia, se recolhe peças para a ficção do pensamento; da filosofia, se retira a criticidade do pensamento; e, da escrita, se obtém os recursos para a montagem da intriga. O pensamento fluindo nas asas da escrita como ensaio teórico, fazendo da objetividade um problema de inteligência, profundidade, crítica e provocação, em vez de método, testabilidade, neutralidade e verdade. A “prática histórico-filosófica” de Foucault não se coaduna com os compromissos da teoria racional. A objetividade não é entendida como correta averiguação histórico-empírica nem fidelidade aos fatos, mas como a capacidade de levar o pensamento a regiões insondáveis, liberar olhares, atravessar a muralha formada pelas imagens e designações dominantes, para melhor detectar os artifícios dos jogos de poder e saber. Compreender os artifícios é um modo de desmascarar a própria pretensão à neutralidade, pois se põe em cheque a crença cultivada no Ocidente de que poder e saber seriam dimensões de ordens distintas, contaminando-se o campo das verdades de justificativas metafísicas e racionalistas, condenando o poder a certa cegueira, castigo de Édipo por querer acumular tirania e verdade.4 Mas o poder é tudo menos cego. Aliás, enxerga muito bem, com requinte de detalhes panópticos. A marca distintiva e indigesta da intriga histórica foucaultiana é mostrar que o saber não vinga sem se sujar no poder e o poder não se perpetua sem o suporte do saber. A Foucault interessa o saber enquanto referido ao poder. É por isso que, em relação aos discursos dominantes, o que ele procura realizar é uma

4 Foucault, M. A verdade e as formas jurídicas, pp.50-51.

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(...) insurreição dos saberes. Não tanto contra os conteúdos, os métodos ou os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição, sobretudo, contra os efeitos centralizadores de poder que são vinculados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma sociedade como a nossa.5

O melhor flanco de Foucault não é epistemológico, mas o da crítica histórica. O papel da crítica consiste em analisar e expor os arranjos entre poder, verdade e sujeito, dando, assim, a sua contribuição para a “ontologia de nós mesmos”, o que Foucault julgava ser o propósito maior da Aufklãrung.6 A partir do pensamento “insurreto” e “de fora” do campo da objetividade racionalista, é que Foucault será posto em relação com as ciências sociais, sem o intuito de confrontação diante do racionalismo ou da cientificidade. E não se trata sequer de colocar os conhecimentos em diálogo. De fato, seria de surdos. A relação com as ciências sociais não é de complementaridade nem concorrência. Há, sim, diferenças inconciliáveis. Uma aproximação demasiada é uma artificialidade à custa da deturpação de pressupostos. São dois, então, os propósitos deste texto Na primeira seção, analisar os desajustes da “prática histórico-filosófica” com os enunciados da antropologia, da sociologia e da política, procurando contrastes significativos. Na sequência, explorar uma consequência mais geral dos contrastes: o estranhamento nas ciências sociais do “problema do sujeito”, ponto nevrálgico das conexões entre pode e saber. O que estará em pauta não é o status de “ciências”, mas a qualificação “social”, com a qual a sociologia, a antropologia e a ciência política não podem a percepção e o tratamento devidamente crítico do tema do sujeito e os seus modos de subjetivação.

5 Foucault, M. Em defesa da sociedade, p.14. 6 Foucault, M. O que é o Iluminismo. Disponível em: www.vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/iluminismo.pdf. No original: “Qu’est-ce que la lumière”, p.688. In Dits écrits – Vol. IV. Paris: Gallimard, 1994.

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Foucault e as ciências sociais

Foucault não tratou exaustivamente de nenhuma das disciplinas que compõem as ciências sociais. Elas nunca foram objetos diletos de suas interpretações. Porém, quando são consideradas, aparecem atreladas a paradigmas conforme suas filiações: a antropologia associada à etnologia francesa; a ciência política associada à teoria política moderna; e a sociologia associada à da economia clássica. O fato de haver versões específicas para cada disciplina – quando elas carregam desmembramentos internos e agregaram filiações diversas, exprimindo um pluralismo - não constitui um impeditivo para os propósitos deste texto. E isso por duas razões. A primeira é a de que as versões apresentadas por Foucault, por mais estereotipadas que possam parecer, ocupam um lugar efetivamente cativo e, com variações, recobrem a diversidade de cada disciplina, ao menos se se pensa nas teorias mais robustas e típicas. Assim, sem desconsiderar as sólidas distinções e mesmo oposições na fauna teórica que são a antropologia, a ciência política e a sociologia, pode-se dizer que cada uma preserva uma imagem fundamental, como a última palavra a ser mantida, mesmo que silenciosa ou disfarçadamente; cada uma tem a sua viga intocável, ainda que o edifício a encubra e siga a crescer e se descaracterizar. Assim é que, em Foucault: as teorias antropológicas, por sua deferência ao trabalho etnológico, abrigam a imagem das formações culturais como consensos simbólicos e ritualísticos, mais visíveis no contexto das comunidades primitivas, sociedades “cruas”; as teorias políticas abrigam a imagem da soberania legal incrustada na formação e racionalização do Estado, conforme a moderna filosofia política; e as teorias sociológicas abrigam a imagem da ordem como integração de conflitos através de regras, em franca similaridade com os parâmetros das sociedades capitalistas. A segunda razão de não haver inconvenientes para os contrastes está precisamente no fato decisivo de que um melhor resultado exige a apropriação de outros elementos do pensamento de Foucault para além da ca-

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racterização específica de cada disciplina. Portanto, pelas razões expostas, este texto não se interessará pela diversidade e as querelas nas ciências sociais nem se limitará às considerações de Foucault a respeito delas, mas procurará pensá-las em relação ao caráter do empreendimento foucaultiano como “prática histórico-filosófica”. Comecemos pela antropologia. Foucault tratou da disciplina via reflexão sobre a etnologia de extração francesa e matriz estruturalista.7 Toda e qualquer teoria, quer estruturalista ou não, só se justifica plenamente antropológica na condição do fazer etnológico, o que significa pensar “as formas singulares de cada cultura, as diferenças que a opõe às outras, os limites pelos quais se define e se fecha sobre sua própria coerência (...)”.8 Lastreada no método etnológico, a antropologia carrega a imagem da unidade cultural, quer esta se apresente como estruturas míticas, regras de aliança, valores compartilhados ou linguagens grupais. O importante é o motivo de fundo: as formações coletivas como identidades simbólicas. Essa perspectiva primária faz com que a antropologia se incline fortemente para o princípio do “relativismo cultural”, precisamente porque opera a partir da ideia de que toda associação humana é um universo simbólico específico, no interior do qual se definem sentidos como os de unidade, reciprocidade, pertinência. Em contraponto à antropologia e suas unidades simbolicamente sustentadas e autojustificadas, destaca-se em Foucault a tessitura histórica das visibilidades do poder e dos enunciados do saber, configurando uma “acontecimentalização” [événementalisation]. Com essa expressão, um tanto bisonha, Foucault reivindica que as realidades culturais sejam analisadas em sua historicidade entendida como “as condições que tornam aceitável uma singularidade cuja inteligibilidade se estabelece pelo reconhecimento das interações e das estratégias às quais ela se integra”.9 A noção de “singularidade” não reporta a um estatuto de autonomia ou coesão cultural, 7 Não se considera neste texto o sentido filosófico com que Foucault usa o termo “antropologia”, referindo-se notadamente ao empreendimento kantiano de restituição da transcendência a parir da assimilação do empírico. 8 Foucault, M. As palavras e as coisas, p.523. 9 Foucault, M. O que é a crítica (crítica e Aufklãrung).

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mas à lógica da acontecimentalização, cabendo ao trabalho “genealógico” verificar as conjunções de emergência e amarração de uma singularidade cultural ligada a múltiplos fatores. Há uma passagem em que Foucault sintetiza o essencial na ideia da história como espaço de acontecimentos: A questão seria antes essa: como a indissociabilidade do saber e do poder no jogo das interações e das estratégias múltiplas pode induzir ao mesmo tempo singularidades que se fixam a partir de suas condições de aceitabilidade, e um campo de possíveis, de aberturas, de indecisões, de retornos e de deslocamentos eventuais que os tornam frágeis, que os tornam impermanentes, que fazem desses efeitos dos acontecimentos nada mais, nada menos que acontecimentos?10

A antropologia tende a conceber a atualização ou multiplicação da estrutura comunal humana em diversidades irredutíveis a qualquer denominador comum, a não ser a noção última e afim à disciplina que é a do “relativismo cultural”, xodó da alma etnológica. Diferentemente, para Foucault, é a acontecimentalização que se apresenta como matéria e símbolo, ou, mais precisamente, como estratégias de poder e arranjos discursivos. Não o homem como ser codificado conforme o compartilhar de realidades simbólicas, mas, sim, o homem envolto em um plano de recursos estratégicos de poder e uma grade de matrizes discursivas, produtoras, não de coesão ou do “nós”, mas de normalidade. Talvez o olhar de Foucault esteja demasiado colado às formações sociais modernas, ao passo que a antropologia nasceu e vicejou voltada para o mais antigo, daí diálogo de surdos. Na modernidade é que se verifica a proliferação de mecanismos que ligam os indivíduos a aparelhos sociais – normativos, institucionais, burocráticos. Pelos aparelhos, os indivíduos são sequestrados, corrigidos, normatizados, direcionados, incluídos, por isso Foucault chama-os de “aparelhos de normalização de homens”, reunidos na famosa noção de “poder disciplinar”. Contrariamente ao regime de con10 Foucault, M. Idem.

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trole primitivo, o poder não marca na carne e nem se mantém na posição de signo soberano, mas qualifica o corpo como alma “dócil” e “produtiva”. Se essa projeção do poder para o núcleo da cena não desautoriza as antropologias e suas codificações culturais, parece julgá-las mais adequadas ao tradicional. Tomemos os pensamentos, porém, não pela referência histórica, mas a partir dos pressupostos ou pontos de vista últimos. Bem esquematicamente, enquanto Foucault reconhece disposições efetivas de governo dos homens e seus agenciamentos com as discursividades, o ponto de vista antropológico reconhece códigos e ritualísticas com os quais se amalgama uma determinada comunidade – o que se replica também nas pesquisas sobre “tribos” urbanas. Ao considerar que mais valem as estratégicas discursivamente legitimadas do que as codificações, e que mais valem os regimes de verdade apoiados em instrumentos práticos do que as crenças e os ritos, Foucault crava uma distância intransponível para com a antropologia. Se se pensa na etnologia mais original, a homeostase do sistema de alianças estruturado como corpo de regras sobre o sagrado e o profano, o permitido e o proibido - é quebrada quando dispositivos de controle e governo se impõem como “táticas móveis, polimorfas e conjunturais”.11 Imagens caras à antropologia/etnologia – como as de “integração”, “unidade”, “signos”, “comunidade” - não encontram guarita em um pensamento que, em vez de conceber o que é “comum”, pensa em relações, estratégias e resistências, e que, ao conceber as relações, não as pensa como sinônimo de regras de aliança ou como unidade mítica ou agenciamento simbólico, mas como interações de homens relacionados às teias de poderes e saberes. Consequentemente, não é possível extrair da matriz analítica foucaultiana o acolhimento do homem como um ser codificado, envolto em uma variedade de signos e designações emblemáticas, cujos conjuntos seriam irredutíveis entre si e igualmente dignos de respeito. Ao desconsiderar o relativismo cultural, Foucault fere fundo na alma antropológica.

11 Foucault, M. A história da sexualidade - Vol.I, p.101.

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Passemos para a ciência política, que recebe da teoria política moderna o postulado da soberania e seu sentido de legitimidade. Por este se destaca a visão das instâncias e dos agentes da Lei como constituindo os mecanismos principais de exercício do poder e a visão do Estado moderno como centro da soberania. Mais esquematicamente, a noção de soberania agrega as concepções de um “sujeito” do poder (o Chefe, o Principie, o Rei, os governantes), de uma “estrutura” de poder (a Tribo, o Estado), de um sentido de “Legitimidade” (a tradição, a lei) e do poder como “propriedade” (algo que se possuiu ou não). E quando a Teoria Política, de base filosófica e moral, especificou-se em ciência política, as concepções se mantiveram firmes. Contrariamente à teoria (ou ciência) política, Foucault vai propor uma analítica política que substitui o sujeito pelos dispositivos práticos e dinâmicos de poder, os quais provêm de todos os lugares, sem um centro definido, dispersos em micropolíticas, algo, portanto, que não se pode possuir, uma vez que é eminentemente operatório e delgado, e que se mantém, não por ser legítimo, mas porque designa a situação estratégica de dominação que estrutura as sociedades de controle. Há uma passagem síntese do autor sobre o tema: Onipresença do poder: (...) porque se produz a cada instante, em todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto e outro. O poder está em toda parte (...) porque provém de todos os lugares (...) o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada.12

Como se viu, essa imagem se aplica melhor às sociedades modernas, onde se verifica a proliferação de mecanismos de normalização e de governo por diferentes campos sociais. As situações de poder são “relações”, mas estas concebidas como integrações dinâmicas, correlações de forças, com acordos e tensões, encontros entre “pontos”. As relações de poder são ditas “uma situação estratégica complexa”, o que significa que o poder é eminen12 Foucault, M. História da sexualidade – Vol.I, p.89.

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temente ativo, o seu modus operandi são os dispositivos através dos quais homens governam homens, normas moldam sujeitos, discursos infiltram enunciados. Os arranjos que se formam parecem impor aos homens o destino de seguirem um mote único de dominação, o qual, contudo, está longe de ser homogêneo, fechado, totalitário. O poder não tem a forma de um centro soberano, mas a de um feixe de forças, uma rede de dispositivos, que articulam pontos – indivíduos, interesses, produtos, conhecimentos – pela condução de ações. O “centro” partido em um emaranhado de tendências racionalizantes, que disciplinam, dividem, controlam e gerenciam corpos e almas. As emergências históricas, inicialmente arbitrárias ou prosaicas, vão ganhando corpo e se cristalizando aos serem apropriadas por perspectivas de forças, práticas e discursivas, anelando-se em arranjos extensos e de mais longa duração, tendências que, no entanto, não contam com garantias lógicas ou transcendentais e nem com horizontes definidos, por mais maciço e maquínico que se apresentem. No contraste com a visão tradicional do poder e seu exercício, pode-se dizer que Foucault relevou a dominação sobre a soberania, a sujeição sobre a legitimação, o funcionamento sobre o fundamento, a relação sobre a posse, a norma disciplinar sobre os ritos coercitivos e, assim, a produção sobre a repressão. O poder não é soberano, não possui um fundamento. É essencialmente dinâmico e produtivo. No cômputo de uma dada situação de poder, as forças se atritam, impõem sujeições, geram contradições e deslocamentos, abrindo-se possibilidades de luta e de “linhas de fuga”. E se o poder designa uma rede de instrumentos atrelados a enunciados com efeitos de subjetivação é porque ele é eminentemente operativo, ou, no termo de Foucault, “produtivo”. “Positividade” do poder, no sentido que ele opera, organiza, direciona, produz, conduz, partindo de baixo para cima, dos microagenciamentos às grandes formações institucionais e sistemas de legalidades. Desse modo Foucault vai de encontro a uma das imagens mais caras à teoria da soberania lastreada na Lei, na medida em que esta consagra o caráter coercitivo e repressivo do exercício do poder. Hobbes é

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exímio mentor do modelo. A imagem repressiva fez-se, de certa maneira, arquetípica, pois, dificilmente conseguimos imaginar o poder sem as faces do obrigatório e do proibido. Porém, para Foucault, a repressão é, antes, decorrência secundária do que direção primária, meio e não fim. O poder representa uma rede de ações e efeitos. O mote da dominação não é a soberania e a contenção, mas a eficácia tática na disciplina de corpos e mentes para deles extrair mais, gerenciando e canalizando forças humanas em ambientes planejados, procedimentos padrões e rotinas organizadas. Longe de dizer “sim”, o poder diz, no âmbito objetivo e representacional: faz acontecer, dispõe competência, conforma individualizações, aplica saberes. Não há Soberania, há uma situação estratégica complexa baseada em ações que estabelecem, com os discursos, pontos de apoio e disjunções, produzindo-se efeitos de normalização e verdade. O postulado da soberania poderia ter reaparecido no momento em que Foucault veio a acentuar o papel do Estado, quando do tratamento de uma nova modalidade de poder que se acresce ao poder disciplinar, o “biopoder”. Porém, o que se tem é até mesmo uma inversão do sentido clássico de soberania, uma vez que não se trata mais do poder de “fazer morrer”, mas, ao contrário, “fazer viver”.13 Associado ao “biopoder”, o Estado não é pensado como unidade institucional, mas complexo de dispositivos políticos que se dedicam, não a marcar corpos nem disciplinar indivíduos, mas a estratificar e regulamentar populações. As políticas se voltam para eventos naturais – nascimento, procriação, doença e morte – a fim de promover ações que visam mensurar, controlar e regulamentar comportamentos e tendências macro. E quantos agenciamentos não persistem e são recriados entre o poder de Estado e os saberes científicos quando a vida torna-se objeto das políticas públicas em razão de produtividade, segurança e duração? O principal segue inalterado: a dispersão e a promiscuidade dos contatos entre poder e saber. Quanto à sociologia, Foucault a situa no âmbito das ciências humanas, juntamente com a psicologia e a linguística, todas desenvolvidas no sé13 Foucault, M. Em defesa da sociedade, p. 287.

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culo XIX. Elas retiram das epistemes do século anterior - ligadas à economia clássica, à biologia e a filologia, respectivamente - os elementos aos quais darão novos direcionamentos.14 As epistemes do século XVIII vinculavam os homens a três grandes positividades empíricas: o trabalho, a vida e a linguagem. Como um “acontecimento da ordem do saber”, as ciências humanas, por sua vez, herdam essas empiricidades, mas não de modo à delas extrair as leis próprias de funcionamento, como antes, mas com o objetivo de problematizarem a condição ambígua do homem como produto e sujeito das relações de trabalho, do mundo da vida e dos contextos linguísticos. No caso, somente nos interessa a sociologia. Foucault a define “fundamentalmente [como] um estudo do homem em termos de regras e conflitos”, vinculando-a ao mundo do trabalho, primeiramente tematizado pela economia clássica, pois, Na superfície de projeção da economia o homem aparece enquanto tem necessidades e desejos, enquanto busca satisfazê-los, enquanto, pois, tem interesses, visa a lucros, opõe-se a outros homens; em suma, ele aparece numa irredutível situação de conflito; a esses conflitos ele se esquiva, dele foge ou chega a dominá-los (...) instaura um conjunto de regras que são, ao mesmo tempo, limitação e dilatação do conflito.15

A sociologia herda a índole interessada e conflituosa das relações de produção, aplicando-a, replicando-a e diferenciando-a na vasta dimensão do social, mas sempre com o empenho de decifrar, quando não ajudar a fundar e manter, as regras através das quais instituições e agentes intercambiam interesses e, assim, a ordem se estabelece. Para Foucault, a sociologia é tributária da economia, mas não como resposta intelectual ou representação ideológica. Os conhecimentos, em geral, com sua filiação primária a uma cadeia de formulações epistêmicas, não se reduzem à epifenômenos ou ideologias. Diferentemente de uma leitura marxista ou uma visão determinista qualquer, para Foucault a socio14 Foucault, M. As palavras e as coisas, pp.475-536. 15 Foucault, M. Idem, p.494.

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logia se desenvolve influenciada, não pelo capitalismo diretamente, mas pelo pensamento econômico clássico. Mesmo considerando-se a dependência para com as mudanças estruturais porque passavam as sociedades europeias, que tinham no par industrialização-urbanização a locomotiva de todo o processo, deve-se respeitar o estatuto da sociologia como um “acontecimento da ordem do saber”. A alternativa ao determinismo não é conferir aos saberes uma sustentação predominantemente especulativa ou puramente teórica. Foucault insistiu no apontamento de uma a variedade de ganchos significativos entre as teorias e as práticas sociais de diferentes matizes (jurídica, econômica, sexual, etc.). A sua obra é mais um esforço para desacreditar a autonomia do conhecimento, demonstrando como a emergência e o domínio de diferentes ciências dependeram de vínculos práticos e participação ativa em realidades configuradas como situações de poder. Um caso expressivo é a substituição, no século XIX, dos procedimentos prático-jurídicos do “inquérito” pelo “exame”, com o que puderam ser edificados instrumentos disciplinares, aplicados a diferentes contextos sociais, como o manicômio, a prisão e a família, ao mesmo tempo em que se favoreceu o desenvolvimento de técnicas de intervenção e abordagem como a psicanálise, a criminologia e a sociologia, dentre outros saberes.16 No mesmo espírito, o confinamento do louco serviu de terreno fértil para emergência e aplicação da psiquiatria. O essencial é a ideia de que os conhecimentos não reportam ao uso correto de categorias lógicas nem brotam da mente do sujeito do conhecimento nem se sustentam na história do pensamento. Todo saber precisa, acima de tudo, de condições de possibilidade práticas e antecessores epistêmicos para se abastecer e se legitimar. Em relação a tais condições, o saber representa, a um só tempo, apropriação, desdobramento e reorientação, ou seja, guarda dívidas, mas ousa acontecer como discurso particular. Não é um “produto” conforme causas, mas um “efeito” disforme com os referentes. A insistência de Foucault na “emergência” dos saberes – assim como o faz para as modalidades de poder – confirma as marcas da arbitrariedade 16 Foucault, M. A verdade e as formas jurídicas, p.12.

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e da descontinuidade nos jogos das forças, com o que ele descarta a tentação de se fixar o sentido primordial ou as causalidades fundamentais dos fenômenos. A sociologia – e qualquer ciência - não é nem um empreendimento de validade interior nem um mero efeito ideológico de forças históricas. Ela é uma emergência, efeito de múltiplos determinantes, em especial as condições epistêmicas de possibilidades e os enredamentos constituídos com as práticas e as instituições sociais para edificação e garantia de “aceitabilidade”. Por isso é que Foucault não se interessa por abordar um saber conforme o grau de coerência com a realidade, não pergunta pela verdade do saber; ele se interessa por pensar o saber em relação ao campo das epistemes e às imbricações efetivas, perguntando pelas verdades sobre o saber. No caso da sociologia, o mais sintomático no seu saber é a incontornável relação com o problema da ordem e da integração, relacionado aos referentes do conflito e da regra. Nessa diretriz a análise contrasta com o pensamento de Foucault. Pode-se dizer que a “ordem” foucaultiana não é feita de indivíduos e coletividades ou ação e estruturas – elementos que levaram a sociologia à obsessiva discussão sobre qual dos termos tem a primazia da integração. A “ordem” é composta de dispositivos agenciadores e enunciados discursivos, conexões e descolamentos entre poder e verdade. A “ordem” assemelha-se a um campo de forças em que as posições são sempre planos de ações e as ações recebem resistências, de modo que os acontecimentos históricos sofrem abalos e dispersões periódicas e guardam um sentido agônico. O social é mais precisamente uma situação de fixações, deslocamentos resistências do que integração funcional, dominação estrutural ou intercâmbio racional. Nele, os homens figuram não como “membros”, “funções” ou sequer “agentes racionais”, mas como pontos de ancoragem e efeitos ativos de práticas e de saberes com forças de inclusão, correção, significação, modelagem, governo. 17 17 Versões sociológicas mais contemporâneas, notadamente de extração anglo-saxão, procuraram “recuperar” o sujeito na forma de agente, que faz escolhas e toma decisões, mas, assim, decididamente, a sociologia (e também a política) perdeu o prumo e se tornou refém de modelos oriundos da economia, quando não da matemática. De todo modo, esse deslocamento e essa mistura talvez só confirmem o insight de Foucault quanto à ascendência da economia e sua lógica da troca de produtos sobre a sociologia. As tentativas sofisticadas de se substituir o agente pela idéia de “agência” pode ser um

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Foucault não compartilha o modelo da troca como visão adequada das relações sociais, quer quando supõe “sujeitos racionais” (contratualismo) quer quando supõe uma “estrutura lógica” (estruturalismo, funcionalismo). Mais expressivo do que os agentes e os sistemas, são os jogos de forças, seus mecanismos, estratégias e também as resistências. As relações sociais não são relações de troca, são relações de poder, ou seja, não são relações baseadas em ações com lógica comunal ou cooperativa, mas ações e instrumentos de codificação e marcação, como prescreve a tradição, ou de condução, normalização e racionalização técnica, típicos da modernidade. Voltado para o “histórico”, não para a “social”, Foucault desinteressa-se da questão da integração dos indivíduos e dos interesses a uma ordem estatuída conforme uma determinada lógica de relações e de regulamentações, realçando, ao contrário, o quanto há de arbitrariedade, mobilidade, descontinuidade e deslocamento na trajetória das ações e representações. Na “encruzilhada” dissolvem-se identidades e domínios fixos, e passa a valer o corpo móvel das táticas e das resistências. Substitui-se a imagem da integração pela imagem do jogo móvel das forças, denunciam-se as regras e os conflitos como reféns da operação de artefatos práticos, da produção de discursos verdadeiros e da demarcação de legalismos. E o homem, em relação à “ordem” encontra-se em condição ambígua, pois ele é, simultaneamente, o indivíduo enredado nas estruturas de poder e o sujeito capaz de pensar a sua situação e, assim, potencialmente recolocar-se, quer isso se faça solitária ou coletivamente. Foucault pode, então, inverter e lançar uma suspeição sobre a indagação sociológica básica, presa ao “problema da ordem” – como se dá a regulamentação e a sustentação dos interesses e dos conflitos humanos numa orquestração qualquer-, enveredando-a para o “problema do sujeito” - como é possível aos indivíduos a crítica das verdades instituídas que reforçam o assujeitamento às regras e a consequente domesticação e despersonalização da subjetividade. Contra a obliteração ou a redução do homem a agente de conflitos sob a cobertura das regras, Foucault vai propor outra refinamento analítico, mas não mexe no primado da ordem e da integração.

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imagem, a qual não é antisociológica – como se tratasse de resgatar a autonomia ou a antecedência do indivíduo em relação às ações e as estruturas sociais -, mas também e fundamentalmente não é sociológica, porque se trata de produzir um pensamento que tome como tarefa superior – de estirpe filosófica – questionar e provocar o sujeito em sua familiaridade com as práticas e as verdades estabelecidas. Sujeito e verdade

A sequência de diferenciações em relação aos campos das ciências sociais se apoiou na importância que tem para Foucault a tríade poder-saber-sujeito. Agora, é o caso de se projetar o terceiro termo para o primeiro plano.18 Se o maior legado do olhar histórico é o da destruição da crença em qualquer metafísica do sujeito, ligando-o aos diagramas históricos dos dispositivos de forças, é o olhar filosófico quem faculta a reposição do sujeito no centro da trama, não por ser mais forte ou importante, mas por ser mais profundo e decisivo para o pensamento como “prática histórico-filosófica”. O problema do sujeito não viceja nas ciências que têm como referente o “social”, seja enfatizado como cultura, ordem ou soberania. Cada um dessas referências congrega, enquadra e reduz o sujeito à sua maneira. A problematização do sujeito depende, então, de uma radical fragmentação do social, para além da ideia de grupos, setores e instituições, o que Foucault faz através de uma análise das afetações do homem pelos conectivos entre poder e saber. É no ensejo desses jogos que o sujeito vem a ser problematizado como assunto de governo e estatuto de verdade, o que corresponde à pergunta pelos modos de subjetivação, questão que, nas ciências sociais, está de antemão excluída. O pensamento sobre os modos de subjetivação vê-se levado a considerar o homem a partir do problema da verdade. Isso não apenas porque o sujeito acontece necessariamente dentro da ordem da linguagem e da representação, mas pelo quanto os discursos incidem sobre os sujeitos 18 Gros, Frédéric. “Situação do curso”, in Foucault, M. A Hermenêutica do sujeito, pág.620.

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com poder de verdade. Foucault rejeita a crítica como “analítica da verdade” – o que significaria manter-se na metafísica ou no idealismo -, mas, igualmente, rejeita a analítica como estudo objetivo das relações de poder numa dada sociedade – o que significara deixar a matéria do poder separada do problema da verdade e, por conseguinte, incapaz de atingir o âmago “existencial” da questão, ou seja, os modos de subjetivação. Na contramão da tendência do “poder do discurso” como regência objetiva das verdades, a intervenção filosófica de Foucault esboça firmemente outro plano de reflexão da verdade, que passa pela investigação crítica da posição do sujeito nas práticas sociais e históricas. O sujeito posicionado e interrogado em face das coerções e subjugações concretas, implicando-se em relação à sua história. Nesta, ele figura como um estranho duplo: o assujeitado, efeito de táticas e de verdades, e o sujeito, propriamente dito, como perplexidade e dobra do efeito, por assim dizer, aquele que pode interrogar sobre o problema do governo de si, o que implica o problema de como não se quer ser governado. Mas, trata-se rigorosamente da formação histórica de uma problemática. O modelo tradicional e soberano de poder não favorece a percepção do sujeito como problema. Na tradição, o poder é a fidelidade ao local, que não é o espaço mundano, mas a plenitude da significação da vida. Embora haja domínio territorial, o local é, antes de tudo, a inscrição no ser no eterno mesmo, na forma da fidelidade às leis e aos costumes tradicionais, do que sempre foi e será assim. O ser repousado na fixidez dos sentidos absolutos, a rigor, fora do tempo, a eternidade do círculo, na qual o sujeito está contido, não governado, está significado como “nós”, não individualizado. Como diz Max Weber, na tradição se morre saciado da vida, pois não há desencaixe entre a experiência pessoal e a totalidade da significação da existência. No mundo racionalizado, por sua vez, o poder não é mais da ordem da codificação moral, manifestação dos costumes compactos e imutáveis, que se apresentavam como um bloco sólido representado pelo Soberano. O poder deixa de ser o eixo de uma circularidade. O poder faz-se um feixe de

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forças, uma rede de dispositivos e táticas aos quais se acoplam enunciados, rede em relação à qual os sujeitos estão, a um só tempo, emaranhados e esquivados. É deste não-local e da ausência de fixidez e significação que se valida o problema do sujeito. O sujeitos não pode se constituir “fora”, exterior ou anterior às conexões de poder e saber, mas também não se encontra nelas contido como parte ou objeto. O sujeito não está posto antes, como substância, mas também não é reificação. Sua condição nem é de senhorio nem de escravidão, muito menos um contradito de ambos. O sujeito é um acontecimento possível e uma possibilidade flexível, cujas identidades socialmente consignadas ou as posições estabelecidas são mais apropriadamente roupagens para demarcar enquadramentos sociais. E mesmo onde há totalizações operacionais, na forma de denominadores comuns – leis, dinheiro, método – o sujeito nunca está de todo incluído. Ele é, sim, induzido. A condição do sujeito diverge dos status de identidade ou pertinência. O sujeito é um problema de subjetivação. À medida que as linhas coercitivas se afirmam eles atiçam a questão da subjetivação, não somente pelo quanto produzem e dizem dos sujeitos, mas também, e, sobretudo, ao provocarem resistências e aberturas. Os mesmos dispositivos que “seqüestram” e “normatizam”, instigam o sujeito, possibilitando descolamentos. De maneira similar, enquanto os discursos racionais afirmam o seu poderio, imiscuindo-se nas práticas, abre-se um campo de possibilidade para rir-se de suas pretensões e suas ingenuidades tardias. Indo mais fundo nos enredamentos e dispersões históricas, aproximando a política e o poder da carne e da cotidianidade dos homens, Foucault encara com extremo realismo o grau de pertinência e as determinações, mas também vislumbra com ousadia as brechas, as resistências e as possibilidades de subjetivações. O sujeito não é um produto, um mero fantoche ou uma reificação, mas também não lhe cabe nem a imagem de uma substancialidade anímica imaterial, de destino imortal, nem o velho heroísmo do espírito universal acima do mundo vulgar. A história dos poderes e dos saberes faz pilhéria do dogmatismo, do determinismo e do magnânimo. A problemática do su-

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jeito se impõe na conjuntura das injunções históricas e não lança nenhuma esperança que rompa a certeza da finitude. As revoluções, por seu turno, anseiam inverter os polos da dominação ou construir relações desprovidas de poder. Os seus proponentes, por mais bem intencionados, acabam por se revelarem superficiais e ingênuos, quando não hipócritas. Partidários da crença na soberania, eles anseiam alterar os proprietários e a direção da dominação. Mas a dominação não se define pela posse ou direção; ela se define por estratégicas e saberes, os quais podem ser deformados e subvertidos por táticas localizadas, voltadas para a desativação dos dispositivos e a denúncia das discursividades que engessam o sentido da dominação. As lutas frequentemente operam na superfície das conexões entre poder e saber, reféns que são de problemas, horizontes e mecanismos disponíveis, contidas no plano das sedimentações legais. É o que se vê em lutas de “minorias” pelo reconhecimento “formal” da igualdade, refletindo as identificações e consignando os meios inerentes aos jogos de poder e saber, notadamente relativos ao campo político-jurídico. Contidas no raio de eficácia de uma arqueologia de dispositivos legais e discursos verdadeiros, as lutas podem ser bem conservadoras. Contrariamente, conhecendo-se as articulações eficazes da intricada rede de práticas e discursos pode-se empreender lutas em que se desrespeite as margens do estabelecido, classificado, normatizado, legalizado, isso em nome de uma aproximação entre verdade e subjetividade. Ao procurar obstinadamente escapar da metafísica e da ciência por meio de uma atividade do pensamento que situasse e incomodasse o homem face ao par poder-saber, Foucault conduziu o seu pensamento para o terreno em que as lutas não visam simplesmente significação ou contestação, mas aprofundarem-se no âmbito das subjetivações. Isso, nas condições da modernidade racionalizada, exige que o pensamento vá à luta, ouse a intriga, assuma uma posição transgressora e denunciante, instigue os sujeitos a pensarem o que são e também o que querem fazer com o que são. O pensamento crítico pode provocar os sujeitos a qualificarem as suas lutas. Para tanto, não basta querer negar os efeitos coercitivos das cumplicidades

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seladas entre saber e poder através de novas verdades ou novo fundamento para o homem, mas urge atuar sobre os efeitos no sentido de denunciá-los e desfazê-los sob a determinação de não ser governado (subjetivado) de tal maneira. De todo modo, a opção de Foucault não é por um pensamento que diga que caminho se deve seguir, assim como não se prende a nenhum método padrão. O seu pensamento não é político, não milita por nenhuma causa específica, não indica ou mesmo sugere direções para as lutas.19 Todavia, há a política do pensamento insurreto. Foucault pode ser apresentado como um dos raros “mestres da suspeita” – ao lado de nomes que ele admirava como Marx, Freud e Nietzsche. Como exercício de suspeição, o pensamento intromete-se para desmascarar arranjos e embaralhar significados, desonerando-se da adesão ideológica ou pedagógica para ser instrumento livre e sem outro compromisso que não o aprofundamento e provocação no inesgotável conflito das interpretações. A maior contribuição que o pensamento pode dar é, então, arriscar as suas forças, o que reporta à capacidade de se indignar e se traduz em uma entrega à escrita. E o que não pode o pensamento ao tragar e estilizar a seriedade do mundo em jogos de palavras e sentidos? Após as ciências humanas tentarem fazer do homem o fundamento da sua finitude, relacionando-o às empiricidades e à condição de ser da ordem do saber, relativo ao mundo e a si, centrando-o em suas próprias representações, o homem e seu sonho de domínio e justificação entram em uma região sombria. Isso ocorre, em parte, pelo quanto as suas positividades empíricas se desdobram em dispositivos que produzem o sujeito normal, assujeitado e alienado, mas também porque o pensamento pôde a conclusão sobre o arbítrio e a impostura última de toda verdade, inclusive a verdade do homem dormindo em si. O homem “desaparece” ao se dobrar sobre um campo de positividades que lhe revelou os limites, não somente do seu saber, mas do seu saber sobre si mesmo. Torna-se irônico mantê19 Isso em nada desmente ou diminui o engajamento prático-intelectual de Foucault em lutas, como o movimento de humanização das prisões ou a revolução islâmica iraniana.

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-lo como objeto de uma razão objetiva posto apresentar-se como “domínio positivo do saber”, ao passo que o impensado e a desrazão não indicarem o limite do saber, mas o seu ponto de partida. 20 Dessa feita, mais do que dizer que tudo é finito – as empiricidades, os discursos e, por conseguinte, o próprio homem concebido como arranjo móvel entre referentes empíricos e representações - Foucault é daqueles que preferem lançar a finitude, com o vazio que lhe parece sustentar, no campo do arbitrário, da incerteza, do ilimitado, da abertura. O sujeito perdido e indefinido, mas também sem limitação absoluta e sem ingenuidades, uma fenda ontológica sobre a qual podem se inscrever novas perspectivas de subjetivação. Assim, por mais que realce as contingências mundanas sobre os sonhos espirituais, Foucault acolhe o princípio nietzschiano de a experimentação como legado superior do homem, daí a certeza de que o vazio que acompanha o sentimento de finitude “não escava uma carência; não prescreve uma lacuna a ser preenchida. Não é mais nem menos que o desabrochar de um espaço onde, enfim, de novo é possível pensar”.21 O sujeito é efeito de multiplicidades, um ponto que reluz na encruzilhada das linhas de forças, onde também se insere o seu pensamento. É um brilho móvel, que lampeja na intensidade do jogo e brilha na proporção da liberdade de dizer suas verdades e ousar as rédeas da condução da sua vida. A possibilidade de subjetivação relembra o convite de se ir além do homem. Para tanto, pouca valia têm as ciências sociais, tão atreladas parecem estar à morte do homem, dispostas à tarefa de enterrá-lo incessantemente na cultura, na sociedade, no Estado. Mas Foucault não quer ressuscitá-lo, uma vez o encontro com as potências do pensamento crítico ratifica a dissolução das figuras de Deus, do Homem e da Verdade. O desafio, agora, está em manter-se o pensamento desperto. Quem sabe, assim, ele ajude a fazer com que o homem – desvanecido ao se dobrar sobre suas positividades – se desdobre de si mesmo, descarregando-se das carcaças, explorando a finitude e liberando subjetivações de vida, trabalho e lingua���������������� Foucault, M. Idem, pp.472-473. ���������������� Foucault, M. Idem, p.473.

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gem.22 Pois, se é verdade que as ciências humanas chegaram à conclusão de que o homem só é histórico enquanto participa de outras histórias – dos seres (vida), das coisas (trabalho), das palavras (linguagem) -, o que lhe sela determinações e finitudes, também é verdade que a “morte do homem” é uma curiosa permissividade à experimentação na modelagem dos seres, na apropriação dos objetos e na cadeia dos sentidos. A “prática histórico-filosófica” de Foucault, ao direcionar-se para o “problema do sujeito”, extraído das confluências movediças entre os planos do “poder” e da “verdade”, realiza-se como uma espécie de avesso do avesso do platonismo e sua famosa divisão em mundo sensível e mundo suprasensível. Não se trata de uma simples rivalidade a respeito de que plano tem primazia sobre a condição humana, se a finitude ou a transcendência. Foucault invalida a tese platônica afirmando a transcendência como um problema de subjetivação, o qual, por sua vez, repousa sobre uma inescapável finitude. Também se diferencia de Kant, que não engolia a finitude e cadastrou a verdade e o juízo num registro transcendental. Os gregos antigos, ao contrário, propiciaram a Foucault um exemplo vivo da experiência da verdade. Foucault religa pensamento e espiritualidade, vínculo comprometido na trajetória racionalista da cultura ocidental. Como outros, retorna aos gregos, dedicando os últimos estudos às éticas da Antiguidade Clássica, em que se manifestam as condições favoráveis à “subjetivação de um discurso verdadeiro em uma prática e um exercício de si sobre si”, na modalidade estóica,23 ou a disposição transgressora de viver uma vida verdadeira “mudando o valor da moeda”, na posição cínica em relação a toda ordem.24 No contato com as éticas antigas, Foucault melhor compreendeu o quanto a relação com a verdade é uma questão de governo. Por certo não seria viável reeditar os gregos e fazer do processo de subjetivação um princípio de ascendência cósmica e significação integral. 22 Deleuze, G. Foucault, pp.139-142. 23 Foucault, M. A Hermenêutica do sujeito, p.401. ���������������� Foucault, M. Le courage de la vérité, p.208.

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Não há mais lugar para o “outro mundo”, a moeda perdeu o “valor” e há saberes objetivados por todos os cantos, infiltrados no cerne da vida. Os exemplos antigos são evocados não para serem reproduzidos, mas porque podem ajudar, com sua radical conexão entre vida e verdade, a entender que não é possível instaurar verdades e encarná-las espiritualmente sem uma “posição essencial de alteridade” [altérité].25 Neste sentido, o desafio à subjetivação atualiza-se com um curioso atestado de humildade e de pretensão: o sujeito não tem como escapar da consciência da sua finitude, sua fragmentação e sua indefinição, mas, precisamente na impossibilidade de se fixar e se determinar, abrem-se brechas para invenção de novas alteridades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. __________. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2000. __________. A história da sexualidade - Vol.I. São Paulo: Editora Graal, 2003. __________. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004. __________. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2005. __________. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins fontes, 2005. __________. Le courace de la vérité. Paris: Gallimard/Seuil, 2009. __________. O que é a crítica (crítica e Aufklãrung). (“Qu’est-ce que la critique? Critique et Aufklãrung”. Bulletin de la Société Française de Philosophie, vol.82, número 2, pp.35-64, avril/juin 1990). ___________. O que é o Iluminismo. www.vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/iluminismo.pdf. (“Qu’estce que la lumière”, p.688. In Dits et écrits – Vol. IV. Paris: Gallimard, 1994).

25 Foucault, M. Idem, p.311.

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FOUCAULT E A GENEALOGIA DO PODER Helton Adverse1

1- A ORDEM DO DISCURSO: A aula inaugural pronunciada por Foucault por ocasião de seu ingresso no Collège de France é, via de regra, identificada como o momento de inflexão de seu trabalho intelectual: da arqueologia desenvolvida nos anos 1960, Foucault parte agora para uma investigação genealógica que deverá privilegiar as relações de poder que articulam a formação dos saberes. Em outros termos, aquilo que até então era meticulosamente relegado ao domínio do extra-discursivo torna-se objeto de interesse. Como entender essa mudança? Diversas são as referências do próprio Foucault a essa mudança em seu percurso intelectual. Vou reter apenas uma que acredito expressar de modo bastante eloquente o que motivou a passagem da arqueologia do saber à genealogia do poder. Em uma entrevista de 1975, Foucault coloca o problema nos seguintes termos: o corte epistêmico identificado e descrito em Les mots et les choses é um grande quebra-cabeça cuja solução tem de ser buscada nas condições históricas que o ensejaram. “Era, finalmente, nas tecnologias de poder e em suas transformações, do século XVII até agora, que era necessário ver a base a partir da qual a mudança seria possível. As palavras e as coisas situava-se no nível da constatação do corte e da necessidade de ir buscar uma explicação. Vigiar e punir é a genealogia, a análise das condições históricas que tornaram possível esse corte.”2

1 Departamento de FilosofiaUFMG 2 M. Foucault, “Eu sou um Pirotécnico”. Entrevista a R. Pol-Droit gravada em junho de 1975. In: R. PolDroit, Michel Foucault. Entrevistas. Trad. de Vera Portocarrero e Gilda G. Carneiro. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 92.

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O que gostaria de sugerir, contudo, é que a aula inaugural nos ajuda a entender como Foucault foi levado a colocar a questão das relações entre saber e poder. O tratamento dessa “questão de método” requer, então o acompanhamento da gênese de um problema em seu pensamento. Para isso, é preciso levar em conta o status do discurso: ele passa a ser tomado no interior de relações de poder e práticas sociais. Esgotamento, portanto, dos recursos de uma análise formal e reconhecimento da necessidade de uma politização do discurso. Essa alteração, claro está, não pode ser tributada a um tardio desenvolvimento da consciência histórica e política de Foucault, mas ao fato de que o próprio discurso exige, para compreendermos a historicidade de sua formação, ser tomado como um elemento das relações de poder, isto é, de acordo com a aula inaugural, o discurso é um elemento perigoso. “Eu suponho [diz Foucault] que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por papel conjurar-lhe os poderes e os perigos, dominar-lhe o evento aleatório, esquivar-lhe o peso, a temível materialidade.”3 Para tanto, são necessários mecanismos, “procedimentos de exclusão” que possam, senão neutralizar essa periculosidade, ao menos contê-la dentro de determinados limites. Desses procedimentos, o mais familiar é a interdição, que recai sobre o objeto de que se fala, sobre as circunstâncias em que tal coisa é falada, ou sobre o sujeito que fala. Estamos diante de três formas de interdição que compõem, segundo Foucault, um “grade complexa” que se modifica constantemente4. Em nossos dias, diz ele, as regiões em que essa grade se torna “mais cerrada” são aquelas da sexualidade e da política: “como se o discurso, longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se desarma e a política se pacifica, fosse um dos lugares onde elas exercem, de maneira privilegiada, algumas de suas

3 M. Foucault, L’ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971, pp. 10-11. 4 Ibidem, p. 11.

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mais temíveis potências”5. O que importa ressaltar é o laço que o discurso estabelece com o desejo e com o poder, podendo ele mesmo ser considerado objeto de desejo e instrumento de poder: o discurso não é simplesmente o meio no qual o desejo vem a ser expresso nem apenas a tradução das lutas e dos sistemas de dominação, mas igualmente isso que desejamos ao falar e aquilo pelo que lutamos. Ao enfatizar essa politização do discurso, Foucault se vê obrigado a destacar sua dimensão pragmática: dizer é fazer. Esse fazer elimina de vez a possibilidade de neutralidade do discurso, pois ele opera na forma da partilha, segundo procedimento dos “sistemas de exclusão”. Por exemplo, a oposição entre razão e loucura instaura o mecanismo de partilha com o qual um discurso pode ser neutralizado, anulado ou, ao contrário, recebido e reconhecido como pleno de sentido. O discurso do louco, desde a Idade Média, é esvaziado de sentido próprio e reduzido ao puro balbucio, ao puro ruído de uma linguagem que é incapaz de enunciar uma verdade própria. A medicalização da loucura não alterou essa situação, uma vez que o sentido do discurso delirante ainda deve ser buscado do lado de quem o escuta: no silêncio do psiquiatra (e também do psicanalista) a razão aguarda o momento em que irá articular o fragmentado e desconexo palavreado do paciente em uma cadeia discursiva plena de sentido. O terceiro sistema de exclusão que Foucault assinala (e é sobre ele que gostaria de me deter) é aquele que opera com a oposição do verdadeiro e do falso. À primeira vista, tomar essa oposição como um procedimento de exclusão ao lado dos listados acima soa paradoxal. Com efeito, eles não se referem, abertamente ou não, às práticas sociais de coerção? Ora, a exclusão pela verdade não parece possível, então, a não ser como atualização de uma potência da própria verdade; logo, não teria nada de arbitrário, mas é precisamente isso que se trata de colocar em questão. Se nos colocarmos no nível de uma proposição, afirma Foucault, a partilha entre o verdadeiro e o falso nada tem de impositivo ou violento. Porém, se nos colocarmos em uma outra escala, ou seja, “se colocamos a questão de saber qual foi, qual 5 Ibidem, pp. 11-2.

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é constantemente, através de nossos discursos, essa vontade de verdade que atravessou tantos séculos de história, ou qual é, em sua forma geral, o tipo de partilha que rege nossa vontade de saber, então é talvez algo como um sistema de exclusão (sistema histórico, modificável, institucionalmente coercitivo) que vemos se desenhar.”6 O funcionamento desse procedimento de exclusão deve ser compreendido à luz do estudo genealógico de nossa vontade de saber, ou melhor, da genealogia da configuração de nossa vontade de verdade. Isso implica uma história do modo pelo qual passamos a reconhecer determinados enunciados como verdadeiros. Esse reconhecimento não pode ser reduzido à identificação de critérios internos de verdade, mas tem de ser referido às condições históricas e políticas que definem as regras para que um discurso possa ser concebido como verdadeiro. Assim, na Grécia arcaica, o discurso tido por verdadeiro era aquele do poeta. Esse “mestre da verdade” anunciava em seu canto a memória viva dos deuses e dos homens. Mais especificamente, mantinha longe da “noite do esquecimento” os feitos dos mortais, assim como atualizava a linhagem nobre dos deuses, graças a sua “palavra eficaz”, instauradora da verdade: “Sua ‘Verdade’ [a do poeta] é uma ‘Verdade’ assertórica: ninguém a contesta, ninguém a contradiz. ‘Verdade’ fundamental, diferente de nossa concepção tradicional, Alétheia não é a concordância da preposição e de seu objeto, nem a concordância de um juízo com os outros juízos; ela não se opõe à ‘mentira’; não há o ‘verdadeiro’ frente ao ‘falso’. A única oposição significativa é a de Alétheia e de Léthe.”7 Essa palavra instaurada da verdade/memória cede lugar, a partir do século V a.C., a uma concepção de verdade que a localiza não mais no campo poético e sim no domínio propriamente lógico em que o conteúdo do enunciado tem privilégio sobre o ato de enunciação: a verdade estará naquilo que é dito. Estabeleceu-se aí, nesse período que vai de Hesíodo a 6 M. Foucault, L’ordre du discours, op. cit., p. 16. 7 M. Detienne, Os mestres da verdade na Grécia arcaica. Trad. de Andréa Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 23.

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Platão, uma nova partilha em que o “discurso verdadeiro não é mais o discurso precioso e desejável, pois que não é mais o discurso ligado ao exercício do poder. O sofista é expulso.”8 Para Foucault, é precisamente essa nova partilha que dará a “forma geral de nossa vontade de saber.”9 Um dos traços distintivos dessa forma geral é que a verdade exerce, porém mascarando-a (ou sob a condição mesma desse mascaramento), uma força coercitiva sobre o discurso. Assim, a chancela do verdadeiro tornou-se obrigatória para que um discurso possa circular e encontrar algum acolhimento em nossa cultura. Isso não significa que todos devem ser tidos como verdadeiros, mas que sem a referência à verdade eles carecem de credibilidade e são desprovidos de toda eficácia. Por esse motivo, nossas práticas econômicas, para serem reconhecidas como racionais, têm de ser justificadas por uma teoria das riquezas e da produção; nosso sistema penal não pode dispensar os fundamentos e bases de uma teoria do direito a qual, a partir do século XIX, se apoiará, por sua vez, em um conhecimento sociológico, psicológico, médico, “como se a palavra mesma da lei apenas pudesse ser autorizada, em nossa sociedade, por um discurso de verdade.”10 Mesmo a literatura se vê constrangida a buscar suporte no natural, no científico, enfim, no verdadeiro. Foucault observa que essa vontade de verdade, que anima nossa vontade de saber, não deixa de se reforçar desde Platão, a ponto de se tornar “incontornável.” Contudo, é dela que sabemos menos, pois que é de sua natureza furtar-se a si mesma na medida em que impele a conhecer. Com efeito, o discurso verdadeiro é, a partir dos gregos, precisamente “aquele que responde ao desejo ou aquele que exerce o poder.”11 Mas, diz Foucault,

8 M. Foucault, L’ordre du discours, op. cit., pp. 17-8. Como podemos ver, Foucault amalgama a poesia arcaica e a sofística por causa da similaridade do regime de verdade em que se inscrevem. 9 Ibidem, p. 18. 10 Ibidem, p. 21. 11 Ibidem.

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“o discurso verdadeiro, que a necessidade de sua forma despoja do desejo e libera do poder, não pode reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade, aquela que se impôs a nós já há muito tempo, é tal que a verdade que ela quer não pode não a mascarar.”12

O desejo de verdade revela-se como um procedimento de exclusão duplamente insidioso. Ao mesmo tempo em que faz esquecer a “origem baixa” de toda verdade, faz a promessa de nos restituir um discurso pleno, pura coincidência da verdade consigo mesma. São aqueles que denunciam essa promessa, são aqueles que “tentaram contornar essa vontade de verdade e colocá-la novamente em questão contra a verdade”, como Nietzsche, Artaud e Bataille, que devem “servir de signo no trabalho de todos os dias.”13 E o trabalho que Foucault irá realizar nos próximos anos pode certamente ser inscrito no quadro geral de uma “genealogia” da vontade de verdade, cuja inspiração, como acabamos de ver, é abertamente nietzschiana. Vale notar que o primeiro curso ministrado no Collège de France terá por título “A Vontade de Saber” e pretendeu realizar “uma série de análises” em vista de uma “morfologia da vontade de saber.”14 Nessa “morfologia”, são as transformações das “praticas discursivas” que devem ser examinadas com o recurso não de uma teoria do conhecimento, mas com a referência a uma “anônima e polimorfa vontade de saber” que sofreria “transformações regulares.”15 Essas transformações, por sua vez, podem ser identificadas tanto no campo dos “estudos empíricos” (a psicopatologia, a medicina clínica, mas também a história natural, isto é, todos aqueles saberes que permitiam “isolar o nível das práticas discursivas”16 em que atuava a arqueologia) quan��������� Ibidem. ��������������� M. Foucault, L’ordre du discours, op. cit., pp. 22-3. ���������������������������������������������������������������������������������������������������� M. Foucault, “La Volonté de Savoir”. ������������������������������������������������������������� Trata-se do resumo de curso do ano de 1970-1971 reeditado no segundo volume dos Dits et écrits (texto 101), op. cit., p. 240. Este curso foi publicado recentemente (Leçons sur la volonté de savoir : Cours au Collège de France (1970-1971) suivi de Le savoir d’Oedipe. Paris: Gallimard/Seuil, 2011). Infelizmente, não foi possível consultá-lo antes do término deste texto. 15 Ibidem, p. 241. 16 Ibidem.

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to no âmbito de suas “justificações teóricas” e aí torna-se necessária a análise dos sistemas filosóficos que fornecem os modelos teóricos para a vontade de saber. Foucault destacou dois deles, por causa de sua oposição acentuada: Aristóteles e Nietzsche. No que concerne a Aristóteles, estava em questão a relação estabelecida entre o conhecimento, a verdade e o prazer (como fica evidente nas primeiras linhas da Metafísica). Por outro lado, Nietzsche define um conjunto de relações muito diferente que permite compreender a verdade como um efeito, como uma falsificação motivada pelos interesses e necessidades. Creio que valha a pena me deter um pouco sobre esse problema tomando como referência dois textos. O primeiro é de 1971 e trata da noção de genealogia em Nietzsche e suas relações com a história. O segundo é uma conferência pronunciada no Rio de Janeiro em 1973 que retoma o problema da vontade de verdade inserindo-o (como Foucault havia feito no curso de 1971) no contexto de uma investigação acerca das formas de justiça. Concedendo atenção a esses textos, deixo de lado a aula inaugural para realizar a tentativa de compreender os problemas maiores de uma genealogia do poder tal como Foucault a entende no início dos anos 197017.

2- NIETZSCHE E A GENEALOGIA: Em “Nietzsche, la Généalogie, l’Histoire” (1971), Foucault enfatiza a diferença entre a pesquisa genealógica e a pesquisa histórica tradicional: ao contrário da história, a Genealogia se opõe à busca da “origem”. Ele explica que em Nietzsche o termo “origem” (Ursprung) tem dois empregos. O primeiro não é marcado, podendo ser encontrado em alternância com outros termos como Entstehung, Herkunft, Abkunft, Geburt. Por outro lado, há um emprego da palavra que é marcado. Nesse caso, a origem “(Ursprung) é utilizada em contraposição a um outro termo. Por exemplo, na introdu17 Isso significa que enfatizo a vinculação entre a genealogia e os procedimentos externos de exclusão. A sequência da aula inaugural irá destacar os procedimentos internos, igualmente responsáveis pela rarefação, seleção e controle dos discursos (como o “comentário”, a figura do “autor”, as “disciplinas”), e um terceiro tipo de procedimento concernente ao “sujeito falante”. Significa também que das tarefas que Foucault lista como constituindo o trabalho a ser realizado nos anos seguintes – colocar em questão a vontade de verdade; restituir ao discurso seu caráter de evento; suspender a soberania do significante (p. 53) – considero as duas últimas subsidiárias da primeira.

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ção de Zur Genealogie der Moral (1887), Nietzsche define o objeto de sua pesquisa genealógica como sendo a origem (Herkunft) dos preconceitos morais, ao passo que o trabalho e tratados dos “historiadores da moral” (como P. Rée) pauta-se por uma busca da origem (Ursprung)18. Em seguida, Nietzsche se refere às pesquisas sobre a moral realizadas em seus livros anteriores [Menschliches Allzumenschiliches (1878-80), Morgenröte (1880-1)], caracterizando-as - assim como as análises de Zur Genealogie der Moral - como “hipóteses sobre a origem” (Herkunfthypothesen). Foucault faz notar que o emprego do termo Herkunft não é arbitrário aí, “como se na época de Para Genealogia da Moral, e nessa altura do texto, Nietzsche quisesse acentuar uma oposição entre Herkunft e Ursprung com a qual não trabalhava dez anos antes”19. A genealogia nietzschiana pode, assim, ser caracterizada por uma recusa da origem (Ursprung). Tal recusa encontra seus motivos no seguinte: buscar a origem (Usprung) consiste no esforço de “recolher nela a essência exata das coisas”, isto é, “sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental e sucessivo”20. A esperança de encontrar a identidade verdadeira das coisas anima a busca das origens, ao passo que o genealogista trata de escutar a história antes do que dar fé à metafísica. Foucault pergunta: o que o genealogista aprende com esse procedimento? “Que atrás das coisas não há ‘algo inteiramente diferente’: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. A razão? Mas ela nasceu de uma maneira inteiramente ‘razoável’ (raisonnable) - do acaso. A dedicação à verdade e ao rigor dos métodos científicos? Da paixão dos cientistas, de seu ódio recíproco, de suas discussões fanáticas 18 Ver F. Nietzsche, Genealogia da moral. Trad. de P. C. Souza. São Paulo: Brasiliense, 1988, 2ª edição, pp. 8-12. A respeito de Nietzsche e P. Rée, ver P. L. Assoun, “Nietzsche et le Réalisme”, prefácio a P. Rée, De l’origine des sentiments moraux. Trad. de F. Demet. Paris: PUF, 1982. ��������������������������������������������������������� M. Foucault, “Nietzsche, la Généalogie, l’Histoire” in Dits et écrits, vol. II. Paris: Gallimard, 1994, p. 138. Esse texto foi publicado em português em M. Foucault, Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992, 10ª edição. ������������������������������������������������������������������������� M. Foucault, “Nietzsche, la Généalogie, l’Histoire”, art. cit., p. 138.

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e sempre retomadas, da necessidade de dominar - das armas lentamente forjadas ao longo das lutas pessoais. E a liberdade, seria ela, na raiz do homem, o que o liga ao ser e à verdade? De fato, ela é apenas uma ‘invenção das classes dirigentes’. O que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem - é a discórdia das outras coisas, é o disparate”21.

A esse postulado segundo o qual poderíamos encontrar uma identidade primeira na origem, Nietzsche, de acordo com Foucault, acrescenta outros dois, que caracterizam igualmente a “história tradicional”: o que diz respeito à “solenidade” da origem – quer dizer, o “exagero” metafísico que faz enxergar no começo de todas as coisas “o que há demais precioso e essencial” – e o que afirma ser a origem o lugar da verdade. Nietzsche rejeita a “solenidade” dizendo que o começo histórico de todas as coisas é “baixo”, “não no sentido de modesto, ou de discreto como o passo da pomba, mas derrisório, irônico, próprio a desfazer todas as enfatuações”. Quanto ao último postulado, para Nietzsche “atrás da verdade, sempre recente, avara e comedida, há a proliferação milenar dos erros”. Em outras palavras, “a verdade e seu reino originário tiveram sua história na história”22; ela é um erro que se impõe a nós e se fixa através do tempo. O genealogista não deverá partir em busca dessa origem, mas deter-se nas “meticulosidades e nos acasos dos começos”. Ele deverá “prestar uma atenção escrupulosa à sua derrisória maldade, esperar vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro”. Finalmente, o genealogista deixará aos começos “o tempo de elevar-se do labirinto onde nenhuma verdade jamais os manteve sob sua guarda”23. Para a Genealogia não há, portanto, “essências fixas, nem leis de base, nem finalidades metafísicas”. Diferentemente, ela tenta “colocar em evidência as descontinuidades aí onde os outros perceberam uma evolução contínua”24. Abandonada 21 Ibidem. 22 Ibidem. 23 Ibidem. 24 H. Dreyfus e P. Rabinow, Michel Foucault. Un parcours philosophique [1982]. Trad. de F. Durand-Bogaert. Paris: Gallimard, 1984, p. 158.

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a Ursprung, o objeto da Genealogia consiste naquilo que será designado mais propriamente com os termos Herkunft e Entstehung. Ambos podem ser traduzidos por “origem”, mas Foucault explora as nuances que eles apresentam com relação à Usprung. Herkunft designa a “proveniência”, ao passo que Entstehung significa a “emergência”, o ponto de surgimento. Tomando-as, portanto, como objeto de pesquisa, o genealogista evitará os erros e ilusões (metafísicas) da história tradicional, ou seja, a crença na unidade de um “eu”, em uma consciência sempre idêntica a si mesma no desenrolar dos acontecimentos históricos, na existência de uma alma eterna, na fixidez de nossos sentimentos e valores e no sentido teleológico da história. A Genealogia consiste assim na prática do que Nietzsche denomina de wirkliche Historie (história efetiva). A wirkliche Historie é a retomada do “sentido histórico” que, como diz Foucault, “reintroduz no devir o que se acreditava imortal no homem”25. Isso significa que a “história efetiva” não se apóia em nenhuma “constância”: “Tudo em que o homem se apóia para se voltar em direção à história e apreendê-la em sua totalidade, tudo o que permite retraçá-la como um paciente movimento contínuo; tudo isso, trata-se de destruir sistematicamente. É preciso despedaçar o que permitia o jogo consolador dos reconhecimentos... Saber, mesmo na ordem histórica, não significa ‘reencontrar-nos’, A história será ‘efetiva’ na medida em que ela introduzir o descontínuo em nosso próprio ser”26.

A história efetiva nos mostra que o saber não é o resultado da laboriosa atividade dos homens em seu esforço de entenderem a si mesmos e o mundo que os cerca, atividade essa que seria contínua e caminharia sempre em direção progressiva. Antes, ela explicita que o saber “não é feito para compreender, ele é feito para cortar”27. O saber não é a decodificação do segredo escondido no âmago das coisas. O saber não é nem mesmo um dado objetivo: ele é efeito e, ao mesmo tempo, instrumento da tentativa ������������������������������������������������������������������������ M. Foucault, “Nietzsche, la Généalogie, l’Histoire”, art. cit., p. 147 26 Ibidem. Grifo nosso. 27 Ibidem, p. 148.

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de dominar a realidade e os outros homens. Ele é sempre “interessado” e por esse motivo, está sempre ligado ao momento histórico em que surge. A wirkliche Historie termina por nos reenviar ao caráter “perspectivista” do conhecimento28. Revelar o caráter perspectivista do conhecimento – ao mesmo tempo em que consiste em destruir a crença em uma unidade da verdade, da identidade e da própria realidade – significa, para Foucault, compreendê-lo como “injustiça”29, como violência que fazemos às coisas, movidos que somos pela “vontade de saber”. O texto de uma conferência realizada no Brasil, em 1973, vem complementar essa análise do saber que desemboca em uma Genealogia do poder. Nessa conferência, Foucault comenta mais uma vez a obra de Nietzsche, abordando especificamente o problema do conhecimento. Foucault inicia citando o parágrafo de abertura de “Verdade e Mentira no Sentido Extramoral”30, destacando o seguinte: Nietzsche declara que o conhecimento constitui uma invenção (Erfindung). Quando Nietzsche utiliza Erfindung, é para fazer oposição à “origem”: “quando ele

28 Foucault declara, aqui, que pode distinguir os traços próprios da wirkliche Historie, em oposição à história tradicional. O primeiro é que a “história efetiva” faz ressurgir o evento “no que ele tem de único e agudo”. Ela destaca o acontecimento que, por sua vez, não consiste em “uma decisão, um tratado, um reino ou uma batalha”, mas antes em “uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se distende, se envenena, uma outra que faz sua entrada, mascarada”. Dessa forma, diz Foucault, “as forças que estão em jogo na história não obedecem nem a uma destinação nem a uma mecânica, mas antes ao acaso da luta”. Por outro lado, a “história efetiva” não dirige seu olhar para as “alturas”, para o longínquo. Ela lança, ao contrário, seu olhar ao que está próximo: “o corpo, o sistema nervoso, os alimentos, a digestão, as energias; ela perscruta as decadências; e se afronta outras épocas é com a suspeita -não rancorosa, mas alegre- de uma agitação bárbara e inconfessável. Ela não teme olhar embaixo. Mas olha do alto, mergulhando para apreender as perspectivas, desdobrar as dispersões e as diferenças, deixar a cada coisa sua medida e sua intensidade”. Por fim, Foucault atribuirá à “história efetiva” a capacidade de reconhecer-se perspectiva. Para Nietzsche, o “sentido histórico” sabe-se “perspectivo e não recusa o sistema de sua própria injustiça”. Nesse sentido, a “história efetiva” abre a possibilidade de realizar sua própria genealogia” (Ibidem, pp. 148-50). �������������������������������������������������������������������������� M. Foucault, “Nietzsche, la Généalogie, l’Histoire”, art. cit., p. 150. 30 “Em algum canto afastado do universo espalhado no cintilar de inumeráveis sistemas solares, havia uma vez uma estrela sobre a qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o momento mais arrogante e mentiroso da ‘história universal’: mas foi apenas um minuto. Após alguns suspiros (Atemzugen) da natureza, congelou-se a estrela, e os animais inteligentes tiveram de morrer”. (“Erken�������� ntinistheorische Einleitung uber Warheit und Luge im Aussermoralischen Sinne”. In: Das Philosophenbuch (1873). Le livre du philosophe. Paris: Aubier-Flammarion, 1969, edição bilíngue com a tradução de A. K. Marietti, p. 170. Grifo nosso).

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diz Erfindung, é para não dizer Ursprung”31. Foucault mais uma vez começa com a questão da Ursprung, mas seu objetivo agora não é o de examinar particularmente a história, mas a verdade, ou melhor, a constituição da verdade. Na formação do conhecimento não há Ursprung, mas Erfindung. Esta, ao mesmo tempo em que consiste em uma ruptura, é também algo que possui um “começo pequeno, baixo, mesquinho, inconfessável”, em vez da origem alta, nobre. O que a Erfindung revela então é que encontramos na formação do conhecimento “obscuras relações de poder”. Por outro lado, dizer que o conhecimento é uma invenção significa dizer que ele não está “absolutamente inscrito na natureza humana”32. Dessa forma, o conhecimento não é um instinto presente no homem. Para Nietzsche, de acordo com Foucault, o conhecimento tem relação com os instintos, mas não constitui ele próprio um instinto: “o conhecimento é simplesmente o resultado do jogo, do afrontamento, da junção, da luta e do compromisso entre os instintos. É porque os instintos se reencontram, se batem e chegam, ao fim de suas batalhas, a um compromisso que algo se produz. Esse algo é o conhecimento”33. O conhecimento tem por “fundamento” os instintos, mas deles se diferencia: ele é como “uma faísca entre duas espadas, mas que não é feita com o mesmo ferro”34. Não fazendo parte da natureza humana, ele é no fundo contra-instintivo, contranatural. De acordo com Foucault, esse é o primeiro sentido que podemos dar à ideia de que o conhecimento é uma Erfindung. O outro é o de que não há semelhança entre o conhecimento e as coisas. Para Nietzsche, diz Foucault, há tanta diferença entre o mundo a conhecer e o conhecimento quanto há entre o conhecimento e a natureza humana: “temos então uma natureza humana, um mundo, e algo entre os dois que se chama o conhecimento, 31 M. Foucault, “La Vérité et les Formes Juridiques” (Conferências apresentadas na P.U.C. do Rio de Janeiro em maio de 1973 e publicadas em português com a tradução de R. Machado e E. J. Morais nos Cadernos da P.U.C., nº 16, junho de 1974, e reeditadas em francês em Dits et Écrits , vol. II, op. cit., pp. 538-646. A citação é da p. 543. 32 Ibidem, p. 544. ����������������� Ibidem, p. 545. ����������������������������������������������������������������������� M. Foucault, “La Vérité et les Formes Juridiques”, art. cit., p. 545.

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sem que haja entre eles qualquer afinidade, semelhança nem mesmo laço de natureza”. Daí decorre que o conhecimento só pode ser uma “violação das coisas a conhecer”35. Na análise de Foucault, Nietzsche investiga ainda o mecanismo através do qual os instintos “inventam” o conhecimento. No aforismo 333 de Die fröliche Wissenschaft (1881-2), Nietzsche comenta o famoso texto de Spinoza que opunha intellegere (compreender) à ridere, lugere e detestari (rir, deplorar, detestar)36. Segundo Spinoza, para que possamos compreender as coisas é necessário que nos poupemos de “rir delas, de deplorá-las ou de detestá-las. Somente quando essas paixões se apaziguam nós podemos enfim compreender”. Para Nietzsche, ocorre exatamente o inverso, de modo que intelligere consiste no “resultado de um certo jogo, de uma certa composição entre ridere, rir; lugere, deplorar; e detestari, detestar”. Do ponto de vista de Nietzsche, afirma Foucault, podemos compreender apenas porque há o conflito, o combate entre essas paixões que, por sua vez, não constituem maneiras de nos aproximar dos objetos, nem de nos identificar a eles, mas antes de “manter o objeto à distância, de se diferenciar dele ou de se colocar em ruptura com ele, de se proteger dele pelo riso, de desvalorizá-lo pela queixa, de afastá-lo e eventualmente destruí-lo pelo ódio”37. Há, Foucault conclui, na invenção do conhecimento uma vontade de afastar e destruir o objeto: 35 Ibidem. Para Foucault, a concepção de que o conhecimento é Erfindung inaugura uma dupla ruptura muito importante com a tradição da filosofia ocidental: “A primeira é a ruptura entre o conhecimento e as coisas. O que, efetivamente, na filosofia ocidental, assegurava que as coisas a conhecer e o próprio conhecimento estavam em relação de continuidade? O que assegurava ao conhecimento o poder de conhecer verdadeiramente as coisas do mundo e de não ser indefinidamente erro, ilusão, arbítrio? O que garantia isso na filosofia ocidental, senão Deus? Deus, certamente, desde Descartes, para não ir mais além, e ainda mesmo em Kant, é esse princípio que assegura haver uma harmonia entre o conhecimento e as coisas a conhecer”. A outra ruptura é que, junto com Deus, desaparece a soberania do sujeito: “Se é verdade que há, por um lado, os mecanismos do instinto, os jogos do desejo, os afrontamentos da mecânica do corpo e da vontade e, por outro, a um nível da natureza totalmente diferente, o conhecimento, então não temos mais necessidade da unidade do sujeito humano. Podemos admitir sujeitos ou podemos admitir que o sujeito não existe” (Ibidem, pp. 546-7). 36 Em duas passagens do capítulo I do Tratado político Spinoza estabelece essa oposição: no primeiro e no quarto parágrafos. A leitura de Nietzsche, acatada por Foucault, centra-se nas oposições “pensamento consciente”/ “pensamento absoluto”, repouso/conflito, sempre valorizando o segundo elemento do par como aquele que expressa mais autenticamente a natureza do conhecimento. (Ver F. Nietzsche, A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 220-1.) 37 Ibidem, p. 548.

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“Atrás do conhecimento, na raiz do conhecimento, Nietzsche não coloca um tipo de afeição, de pulsão ou de paixão que nos faria amar o objeto a conhecer, mas antes pulsões que nos colocam em posição de ódio, de desprezo ou de temor diante das coisas que são ameaçadoras e presunçosas”38.

Na leitura de Foucault, Nietzsche não encara o conhecimento como uma “adequação ao objeto, uma relação de assimilação, mas antes uma relação de distância e de dominação”39. Em suma, Nietzsche coloca no fundamento do conhecimento a relação de poder. Em sua raiz, o conhecimento não é amor, harmonia, adequação, mas luta, conflito. Por isso, diz Foucault, o melhor meio de apreendê-lo não é aproximar-se dos filósofos, mas sim dos políticos40. Portanto, o conhecimento, a verdade, o saber sempre são o “resultado histórico e pontual de condições que não são da ordem do conhecimento”41, isto é, o saber sempre é constituído, atravessado pelas relações de poder que se estabelecem em uma época dada.

* Até agora me detive em considerações “metodológicas” acerca da genealogia do poder. Precisamos avançar em direção aos trabalhos que Foucault realiza nos anos 1970 com o intuito de apreender in concreto as diversas configurações das relações de poder na contemporaneidade. Isso porque a genealogia do poder não deve ser tomada como uma simples extensão ou retificação, um simples prolongamento ou aprofundamento da arqueologia do saber. É todo um novo campo de investigação que se abre na reflexão de Foucault e que, a meu ver, toca o coração da política na modernidade. O que quero fazer, a partir de agora, é explicitar o sentido daquilo que ele chama da uma “analítica do poder” em contraposição a uma “teoria do poder” (seu objetivo não é apresentar do poder uma visão global, mas investigar os pontos em que ele é exercido em nossa prática cotidiana). Para tanto, vou dar destaque a um dos textos centrais de sua genealogia: Vigiar e punir. 38 M. Foucault, “La Vérité...”, art. cit., p. 549. 39 Ibidem. 40 Ibidem, pp. 549-50. 41 Ibidem, p. 551.

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3- VIGIAR E PUNIR: Publicado em 1975, Vigiar e punir – Nascimento da prisão analisa a história de uma mudança notável em nossa economia punitiva: de uma prática do suplício ao sistema de encarceramento. A “história” dessa alteração não deve, contudo, ser entendida no sentido que comumente atribuímos a um trabalho historiográfico. A preocupação maior de Foucault é fazer uma “genealogia da alma moderna”, a qual requer um estudo pormenorizado das práticas sociais em se cristalizam as relações de poder e de saber. A “alma moderna” é, portanto, uma “invenção” de nossa modernidade política, ao invés de um extrato metafísico deduzido da história do espírito ou uma criação da teologia. Mas qual é a história da invenção dessa alma? Para contá-la, é preciso investigar a história política do corpo. Melhor dizendo, é preciso contar a história de como o corpo foi capturado nas relações de poder. A exemplo do que havia feito no período arqueológico, Foucault identifica na passagem dos séculos XVIII e XIX o momento privilegiado em que nossa modernidade ganhou seus contornos. Com efeito, é a partir da segunda metade do século XVIII que se inicia uma mudança profunda em nosso “estilo punitivo”, atrelada a uma nova configuração do dispositivo de poder e saber. Antes de entrarmos no conteúdo das análises históricas de Foucault, valeria a pena destacar que o começo de seu livro nos apresenta uma perspectiva crítica a respeito das concepções tradicionalmente aceitas do poder, especialmente aquelas vazadas na forma do pensamento jurídico-político. Em outras palavras, a concepção de poder que Foucault apresenta no primeiro capítulo de Vigiar e punir coloca em xeque a capacidade explicativa de termos como “soberania” e “Estado”, via de regra mobilizados para se pensar a estrutura de nossa realidade política. É certo que Foucault não é o primeiro a colocar em questão o alcance epistêmico dessas noções (autores como Carl Schmitt e Hannah Arendt já o haviam nas décadas anteriores), mas o percurso que segue para evidenciar suas limitações é inegavelmente original. Como quer que seja, Vigiar e punir, assim como os cursos do

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Collège de France cronologicamente próximos à publicação do livro (em especial Il faut défendre la sociéte´42), nos oferecem uma visão do poder pouco compatível com o vocabulário jurídico que parece entendê-lo como um “direito” ou uma “propriedade” que poderiam ser cedidos ou transferidos. O poder, assim, não consiste em um privilégio que alguém pode deter; o seu modelo é o da perpétua batalha antes que o do contrato “que opera uma cessão ou a conquista de um domínio”. E Foucault declara que devemos “admitir que esse poder se exerce antes do que se possui; que ele não é o privilégio adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas – efeito que manifesta e por vezes reconduz a posição daqueles que são dominados”43. Por outro lado, o poder não se aplica pura e simplesmente aos que dele estão desprovidos. Na verdade, esse poder os atravessa e os investe, apoia-se neles do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder, apoiam-se no ponto em que esse poder os toca44. Por conseguinte, as relações de poder “aprofundam-se na sociedade”, o que significa dizer que a concepção de poder como exercício próprio do Estado não capta a complexidade dessas relações; em segundo lugar, “se há continuidade... não há analogia nem homologia, mas especificidade de mecanismos e modalidades”; por fim, essas relações não são unívocas, isto é, “definem inúmeros pontos de luta”45. O poder se espalha, portanto, por sobre toda a estrutura social. Essa “politização do social” não pode se efetivar sem que se revel o caráter “produtivo” do poder. Mais uma vez, nos deparamos com a recusa do modelo jurídico, segundo o qual ele seria um fenômeno que diz respeito exclusivamente à lei e à repressão46, sendo essencialmente negativo, funcionando na forma da coerção, da violência que o Estado exerce sobre o ��������������� M. Foucault, Il faut défendre la société. Cours su Collège de France. 1975-1976. Paris: Gallimard/ Seuil, 1997. ��������������� M. Foucault, Surveiller et punir. Paris: Gallimard, 1975, p. 35. 44 Ibidem, pp. 35-6. 45 Ibidem. 46 Ver a esse respeito R. Machado, “Por uma genealogia do poder”, introdução a M. Foucault, Microfísica do poder. Trad. de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. XV.

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cidadão para assegurar a manutenção da sociedade ou a perpetuação da dominação. Para Foucault, essa concepção de poder é insuficiente para explicar a existência da própria sociedade capitalista: se o poder fosse exclusivamente repressivo, como entender a obstinada submissão das pessoas a ele? O poder antes incita, molda, conduz, possui uma eficácia produtiva. Em Vigiar e punir, Foucault tenta demonstrar que o poder punitivo não é algo que simplesmente castiga: ele também produz, tanto saber quanto individualidades. As práticas punitivas dão origem a uma série de conhecimentos sobre o homem no século XIX 47. O poder punitivo que emerge por volta do século XVIII é responsável pelo nascimento das “ciências” que pretendem delimitar, analisar, controlar o comportamento humano. Além do mais, essa nova configuração da relação poder-saber apresenta como resultado a produção de novos tipos de “sujeitos humanos”48. Esta última consideração irá nos permitir retomar o problema central de Vigiar e punir, isto é, a história dos sistemas punitivos. Foucault destaca, em sua análise do poder punitivo, duas transformações distintas: a primeira diz respeito à passagem de uma tecnologia de poder construída sobre a figura do “corpo supliciado” a uma outra que incide sobre “a alma e suas representações”; a segunda é a passagem desta última a uma modalidade do poder punitivo construída em torno da figura do corpo sujeito ao adestramento. Até meados do século XVIII, o direito de punir concentrava-se na pessoa do soberano. Cabia a ele, por intermédio de seus encarregados, colocar em prática as investigações e as sanções dos crimes. De acordo com 47 Diferentemente de Les mots et les choses, Foucault liga, aqui, o surgimento das ciências humanas à mudança na configuração do poder. Como afirma J. Rouse, “Vigiar e punir expandiu o escopo das investigações de Foucault sobre esta reconfiguração moderna do saber. Seus primeiros estudos tinham frequentemente associado a reconfiguração dos campos discursivos com a organização de novas instituições, por exemplo, os asilos, as clínicas e os hospitais. No entanto, sua ênfase sempre incidiu sobre a estrutura do discurso. Em Vigiar e punir, contudo, a transformação das ciências humanas nos séculos XVIII e XIX foi explicitamente estabelecida no contexto de práticas de disciplina, vigilância e coerção que tornaram possível novos tipos de saber sobre o ser humano enquanto criavam novas formas de controle social” (J. Rouse, “Power/Knowledge”. In: J. Bernauer e M. Mahon (org.), The Cambridge Companion to Foucault. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 94). 48 Ibidem, p. 97.

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Foucault, a punição consistia, nessa época, em um espetáculo a ser presenciado pelos súditos e que era, ao mesmo tempo, uma demonstração de força do rei. Todo crime era, em última instância, um crime de “lesa-majestade”, ou seja, representava um dano feito à pessoa do soberano do qual este exigia a reparação. Tal reparação somente era obtida por uma punição que recaía sobre o corpo do condenado (suplício). Era o corpo, portanto, que deveria reparar o mal feito ao corpo do próprio rei que se estendia por toda a sociedade. Daí esses rituais, hoje abolidos, do suplício que caracterizava a punição: por seu intermédio, era a majestade do poder que se reafirmava. Mas se reafirmava, Foucault não pode deixar de notar, pelo excesso. O suplício é uma forma de espetáculo no qual a intransponível distância entre o súdito e seu soberano ganhava materialidade no sofrimento infligido ao corpo do sentenciado. Nessa “política do horror”, diz Foucault, o que se torna visível a todos sobre o corpo do criminoso é “a presença desencadeada (déchaînée) do soberano. O suplício não restabelecia a justiça; ele reativava o poder” 49. Logo adiante em seu texto, Foucault dá mais precisão a esse aspecto da relação entre o suplício, o poder e a justiça: a execução pública não deixa de ser uma obra de justiça, mas “é a justiça como força física, material e temível do soberano que aí se desdobra. A cerimônia do suplício faz brilhar em plena luz a relação de força que dá seu poder à lei”50. Chamo a atenção sobre este último ponto porque ele concerne a um problema que está no cerne da reflexão política moderna: o da relação entre força e lei. A análise de Foucault permite compreender que o aporte material da violência que assegura a força da lei, que faz a lei valer em sua força, não pode ser transposto sem mais para o âmbito da realidade política contemporânea. Assim como o Estado não pode ser considerado o ponto privilegiado a partir do qual (por meio do qual) as relações políticas irão se desdobrar na modernidade, a lei não pode mais reivindicar a prerrogativa de se constituir como o princípio universalizante, unificador, regulador que confere forma às associações políticas. Se a microfísica do poder coloca em perspectiva a 49 M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., p. 60. 50 Ibidem, p. 61.

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função do Estado (ou coloca ainda o Estado como função), mostrando que na modernidade o político (as relações de poder) o antecede, a lei deixa de ser o princípio jurídico estabilizador das tensões e conflitos que atravessam o corpo social para ser integrada nas estratégias políticas; não sob a forma da ideologia, mas sob a forma da norma. Infelizmente não tenho tempo de desenvolver esse tema aqui51. Mais adequado a nossos interesses é retomar ao problema da relação entre corpo e poder e ver como a economia do suplício dará lugar a uma “tecnologia política do corpo”. A prática punitiva sofre uma alteração por volta das últimas décadas do século XVIII. Começa a surgir uma “tecnologia da punição ‘humana’ ”. Assim, “no pior dos assassinos uma coisa pelo menos deve ser respeitada quando punimos: ‘sua humanidade’ (...) O castigo deve ter a ‘humanidade’ como medida”52. É a época dos “grandes reformadores” do direito penal e é quando a punição deixará de visar o corpo do condenado para se ocupar de sua alma: ela deverá atuar ao nível da representação. Para compreender melhor esse processo, é preciso ter em mente que a transformação na prática punitiva se deve, inicialmente, ao fato de que o espetáculo do suplício acabava por ser um princípio de desordem. A execução pública, em vez de imprimir no espírito da população o temor, o respeito à força e à onipotência do soberano, podia transformar-se em uma ocasião em que essa força mesma fosse rejeitada. Os súditos que tomavam parte no espetáculo sentiam-se às vezes mais próximos daqueles que sofriam a punição do que daqueles que a aplicavam. A tirania, assim, através do suplício, involuntariamente gerava rebelião: ineficácia do poder punitivo que será corrigida quando for compreendido que o castigo deve pagar o dano, a injúria, não a afronta. A proposta dos reformadores foi a de eliminar essa “falha” na punição, desenvolvendo uma “economia” da prática punitiva na qual o poder de castigar podia se inserir mais profundamente na sociedade e, ao mesmo tempo, nela se distribuir melhor. A primeira preocupação da reforma punitiva era, portanto, “não punir menos, mas punir melhor”53. 51 A respeito, ver o livro de Márcio A. Fonseca, Foucault e o direito. São Paulo: Max Limonad, 2002. ��������������� M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., p. 89. ��������������� M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., p. 96.

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Por outro lado, havia o problema econômico das ilegalidades. Quando estas passaram a ter como alvo principal não mais os direitos, mas os bens, tornou-se urgente uma reforma no direito penal. Durante o Antigo Regime, as ilegalidades eram aceitas e se constituíam até mesmo como meio de sobrevivência das classes menos favorecidas. Elas iam de encontro, às vezes, às ilegalidade das classes altas. Ao mesmo tempo em que mantinham relações de rivalidade, de concorrência, essas ilegalidades de classes diferentes se apoiavam mutuamente, como na recusa camponesa a pagar certos “foros” estatais ou eclesiásticos que era bem vista pelos proprietários de terras, de modo que o “jogo recíproco das ilegalidades fazia parte da vida política e econômica da sociedade”54. Porém, com o aumento geral da riqueza, por um lado, e com o crescimento demográfico, por outro, a ilegalidade passou a se incidir sobre os bens, o que exigiu uma mudança de postura frente a ela: “a ilegalidade dos direitos, que muitas vezes assegurava a sobrevivência dos mais despojados tende, com o novo estatuto da propriedade, a tornar-se uma ilegalidade de bens”55. Como consequência, tornou-se necessário puni-la. Essa necessidade de punir as ilegalidades teve de alcançar a instância controladora das penalidades, ou seja, o soberano. Foi preciso também combater o excesso de poder, o “sobrepoder”, que lhe cabia: “A forma da soberania monárquica, ao mesmo tempo em que colocava do lado do soberano a sobrecarga de um poder brilhante, ilimitado, pessoal, irregular e descontínuo, deixava do lado dos súditos o lugar livre para uma ilegalidade constante; esta era como a correlata daquele tipo de poder”56.

Portanto, a reforma penal visava, de uma parte, limitar o excesso de poder do soberano e, de outra, controlar as ilegalidades conquistadas e toleradas. O “homem” que se pretende fazer respeitar na pena é, assim, afirma Foucault, “a forma jurídica e moral que se dá a essa dupla delimitação”57. ����������������� Ibidem, p. 100. ������������������ Ibidem , p. 101. ��������������� M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., p. 104. 57 Ibidem, p. 105.

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Para alcançar o controle das ilegalidades desenvolveu-se um sistema penal que funcionava como um aparelho capaz de geri-las. Decorreu daí uma nova tecnologia do poder de punir que levava em conta, sobretudo, os efeitos desse poder. Para Foucault, o que se chama de “humanidade” dessa reforma consistia apenas no “nome respeitoso dado a essa economia e a seus cálculos minuciosos”58. A prática punitiva passou a ser cálculo, uma “arte dos efeitos” na qual o castigo não visava tanto a reparação do dano feito quanto a não repetição do dano futuro. O castigo, portanto, devia atingir a alma, seja do condenado, seja dos possíveis infratores. Mas de quais técnicas essa “arte” se valeu? Foucault destaca seis regras que caracterizam o que ele chama de “semiotécnica” penal. Todas elas (regra da quantidade mínima; da idealidade suficiente; dos efeitos laterais; da certeza perfeita; da verdade comum; da especificação ótima) buscavam imprimir na alma das pessoas uma certa ideia da penalidade: a ideia de que não é vantajoso cometer um crime; de que, caso alguém o cometa, será punido; de que para cada crime há um castigo correspondente etc. Essas regras deviam atuar, portanto, ao nível da representação, não do corpo: “... que não seja mais o corpo, com o jogo ritual dos sofrimentos excessivos, das marcas ostensivas no ritual dos suplícios; que seja o espírito ou antes um jogo de representações e de sinais que circulem discretamente mas com a necessidade e evidência no espírito de todos”59. Mas esta “semiotécnica” foi rapidamente substituída pela universalização da prática de detenção: a “cidade punitiva” cede lugar ao “reformatório” como um laboratório de disciplina fechado. A prisão representa o surgimento de uma nova “tecnologia” punitiva, uma nova anatomia política que se ocupa dos corpos dos condenados com vistas a produzir “indivíduos submetidos”. E a prisão será, assim, a figura máxima dessa nova forma de organização social: a “sociedade disciplinar”. Chegamos, então, ao ponto que queríamos, isto é, ao conceito de “disciplina”. Segundo Foucault, as disciplinas são “métodos que permitem o 58 Ibidem, p. 109. 59 Ibidem, p. 120.

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controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade”60. Elas representam todos esses procedimentos que estão na base de uma nova política do corpo, uma “política das coerções”, coerções estas que podem ser consideradas como um “trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos”61. O corpo humano entra assim, diz Foucault, “em uma maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe”. Essa mecânica é também, diz ele, uma “anatomia política” que “define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros” para que estes operem como se quer, com as técnicas e “segundo a rapidez e a eficácia que se determina”62. O poder disciplinar produz, através desse controle dos corpos, uma individualidade dotada de quatro características: ela é celular (pelo jogo da repartição espacial); orgânica (pela codificação das atividades); genética (pela seriação do tempo) e combinatória (pela composição das forças). Para ter essa eficácia produtiva, a disciplina utiliza quatro “grandes técnicas”: “ela constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação das forças, organiza ‘táticas’ ”63. A disciplina usa ainda três instrumentos: a “vigilância hierárquica”, a “sanção normalizadora” e o “exame”, que combina os traços dos dois primeiros, sendo “um olhar normalizador, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir”; o exame acaba por estabelecer “sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados”. No centro mesmo dos procedimentos disciplinares, o exame manifesta, para Foucault, “a sujeição daqueles que são percebidos como objetos e a objetivação daqueles que são assujeitados”64. Podemos perceber mais claramente, com esse instrumento simples, o entrelaçamento de poder e saber. A prática do exame ��������������� M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., p. ��������� Ibidem. ��������� Ibidem. ��������� Ibidem. ��������� Ibidem.

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“traz consigo todo um mecanismo que liga a uma certa forma de exercício do poder um tipo de formação de saber”. Foucault demonstra então, como a instauração de uma medicina “examinatória”, que observa com regularidade o doente, deu ensejo à renovação do conhecimento médico, ou como o surgimento do hospital “disciplinado” (com suas hierarquias e regulamentos) está na origem da “disciplina” médica. A prática do exame constitui um procedimento de individualização segundo três aspectos: 1) “o exame inverte a economia da visibilidade no exercício do poder”, isto é, com o exame aqueles que exercem o poder ficam na sombra, ao passo que aqueles que sofrem a objetivação do exame recebem toda a luminosidade, ganham plena visibilidade; 2) “o exame faz a individualidade entrar em um campo documentário”, ou seja, o exame, ao colocar os indivíduos em um campo de vigilância, também os situa em uma rede de anotações escritas onde serão inteiramente “codificados”, “documentados”, o que representa, para Foucault, “a primeira formalização do individual no interior das relações de poder”; 3) “o exame, cercado de todas suas técnicas documentárias, faz de cada indivíduo um ‘caso’ ”: o indivíduo pode ser agora descrito, avaliado, medido, comparado a outros e isso em sua própria individualidade. O “caso”, aqui, é também “o indivíduo que tem que ser treinado (dresser) ou retreinado (redresser), tem que ser classificado, normalizado, excluído etc”65. Em resumo, o exame, combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza “as grandes funções disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de composição ótima das aptidões. Portanto, de fabricação da individualidade celular orgânica, genética e combinatória. Com ele se ritualizam aquelas disciplinas que se pode caracterizar com uma palavra dizendo que são uma modalidade de poder para o qual a diferença individual é pertinente”66.

��������������� M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., p. ��������� Ibidem.

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O exame, como instrumento da disciplina, está na origem do que Foucault chama de “inversão do eixo político da individualização”, o que quer dizer que em uma sociedade disciplinar a individualização é “descendente”: “à medida que o poder se torna mais anônimo e mais funcional, aqueles sobre os quais se exerce tendem a ser mais fortemente individualizados”67. A “individualização” é feita por observações, fiscalizações, por medidas comparativas e por “desvios”. Para Foucault, o indivíduo é o efeito dessas relações de poder e saber; ele é, portanto, “uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama a ‘disciplina’ ” e ele conclui: “Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele ‘exclui’, ‘reprime’, ‘recalca’, ‘censura’, ‘abstrai’, ‘mascara’, ‘esconde’. Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais de verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção”68.

E é precisamente nesse contexto que devemos compreender a prisão. Ela é um local privilegiado para a produção de individualidade. A forma específica desta individualidade será a “delinquência”. O verdadeiro papel da prisão não é o de eliminar as infrações, de corrigir os criminosos, pois se assim fosse teríamos de reconhecer um enorme fracasso que, por sua vez, permaneceria inexplicável. Por que uma instituição como a prisão, que sabidamente é ineficaz na correção e diminuição da criminalidade, permanece por tanto tempo como a forma privilegiada de punição? A resposta de Foucault é que esse fracasso é apenas aparente; na verdade, ele tem sua razão de ser. Na sociedade disciplinar a punição não visa a eliminação das infrações, mas sim seu controle, seu gerenciamento. A prisão, na medida em que é lugar de aplicação da tecnologia disciplinar, desincumbe-se dessa tarefa. Nesse sentido, o “fracasso” da prisão oferece um objeto para um tipo de saber ao mesmo tempo em que fornece “um solo para a expansão do poder normalizador no governo do indivíduo considerado como um objeto do olho disciplinar”69. ��������� Ibidem. ��������������� M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., p. 69 Ibidem.

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Mas é preciso agora seguir na direção inversa dessa especificação da disciplina e fazer notar que o poder normalizador, que Foucault denomina de poder disciplinar, não tem seu campo de aplicação restrito às instituições carcerárias. Na verdade, ele se estende pelas mais diversas camadas sociais, o mesmo valendo para seu efeito de subjetivação. Essa subjetivação não pode ser efetivada sem a presença de um conhecimento individualizador (como as ciências humanas), um conhecimento que, sendo em si mesmo geral e universal, é capaz de produzir individualidades porque é normalizador. A norma é o que permite a articulação entre a necessária formalização que toda ciência deve possuir (sua universalidade) e a singularidade de cada subjetividade. Por isso ela tem um importante papel a desempenhar no domínio das relações de poder. Em certa ocasião, Foucault disse o seguinte a seu respeito: “a norma é portadora de uma pretensão ao poder. A norma não é simplesmente um princípio de inteligibilidade; é um elemento a partir do qual certo exercício do poder se acha fundado e legitimado”70. Contudo, ela apenas pode legitimá-lo porque é capaz de responder à dispersão e recalcitrância daquilo que é por natureza único identificando um elemento comum, ou que possa ser o suporte de uma verdade comum. (Essa identificação não opera a partir da exterioridade. A norma não deve ser tomada aqui em seu sentido jurídico e sim em sua acepção biológica, o que significa que ela é imanente ao objeto que ela mesma constitui71) Eis aí a noção de alma, sua função própria e como ela permite capturar o corpo. E é por essa razão que Foucault afirma que não devemos ver nela os “restos reativados de uma ideologia”, mas sim “o correlativo atual de certa tecnologia do poder sobre o corpo”, ou seja: “Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior 70 M. Foucault. Os anormais. Curso no Collège de France. 1974-1975. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 62. ���������������������������������������������������������������������������������������������������� A respeito, ver P. Macherey, ”Pour une Histoire Naturelle des Normes”. Publicado ��������������������������� originalmente em Michel Foucault Philosophe e reeditado em De Canguilhem à Foucault. La force des normes. Paris: La Fabrique Éditions, 2009, pp. 71-97.

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do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos – de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência. Realidade histórica dessa alma que, diferentemente da alma representada pela teologia cristã, não nasce faltosa e merecedora de castigo, mas nasce antes de procedimentos de punição, de vigilância, de castigo e de coação. Esta alma real e incorpórea não é de modo algum substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder”72.

Como podemos ver, a genealogia do poder levada a cabo em Vigiar e punir lança uma luz completamente nova sobre as relações de poder: 1) A crítica às teorias da soberania, sugere a exaustão das concepção jurídica do poder; 2) O estudo da passagem do poder soberano para o poder disciplinar opera uma dessubstancialização do poder em favor de sua difusão nos mais diferentes registros sociais; 3) A lei e a concepção jurídica de norma dão lugar a uma acepção natural, biológica da norma que, em vez de impor da exterioridade um sistema de coerção, regularia “de dentro” o comportamento dos indivíduos73. Este é o sentido fundamental da concepção produtiva e positiva do poder. No trabalho que desenvolverá nos anos seguintes, Foucault irá refinar, aprofundar, sofisticar essas concepções, as quais estarão sujeitas a modificações e algumas revisões, mas também a uma ampliação. Já em seu livro seguinte, A vontade de saber, primeiro volume de uma História da Sexualidade, o escopo investigativo se alarga com a introdução da temática do biopoder, modalidade de exercício do poder político na modernidade que articula a anatomia política dos corpos individuais a uma política dos ��������������� M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., p. 38. 73 Convém notar, porém, que essa acepção biológica da norma afeta a concepção jurídica na medida em que ficam ligados direito e subjetivação. Dizendo de outra forma, na modernidade não há direito sem disciplina. O sujeito de direito, nas análises de Foucault, está longe de se reduzir a uma entidade jurídica abstrata.

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corpos coletivos, isto é, a população. Essa política em “larga escala” coloca em funcionamento um conjunto de mecanismos de gênero diferente das disciplinas (embora não as dispense). São os dispositivos de segurança e controle populacional que permitirão a prática de um poder cuja preocupação maior é o gerenciamento da vida e cujo agente privilegiado é o Estado. Contudo, essa proeminência do Estado não significa um recuo nas análises de Foucault em direção a um estatismo do qual já havia feito a crítica. Trata-se de inserir o próprio Estado em uma tecnologia de governo que dará as diretrizes de uma biopolítica. Ao processo que está na origem da formação e instauração dessa tecnologia Foucault chamará de “governamentalização”. Para encerrar esta breve análise da genealogia do poder, gostaria de observar, mais uma vez, que encontramos no trabalho de Foucault uma concepção do político bastante original, capaz de colocar em xeque muitas das categorias que usualmente aplicamos para compreender a realidade política. O interesse desse pensamento, contudo, não se esgota em sua força epistêmica: a ele é inerente uma potência crítica que nos libera da ilusão de que há verdade sem vontade de verdade, subjetividade sem técnicas de subjetivação, liberdade sem relações de poder.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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―------------------------- “La Vérité et les Formes Juridiques”. In: Dits et écrits, vol. II. Paris: Gallimard, 1994, pp. 538-646. ―------------------------ Surveiller et punir. Paris: Gallimard, 1975. ―------------------------ Il faut défendre la société. Cours su Collège de France. 1975-1976. Paris: Gallimard/Seuil, 1997. ―----------------------- Os anormais. Curso no Collège de France. 1974-1975. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. MACHADO, Roberto. “Por uma genealogia do poder”, introdução a M. Foucault, Microfísica do poder. Trad. de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1978. MACHEREY, Pierre. De Canguilhem à Foucault. La force des normes. Paris: La Fabrique Éditions, 2009. NIETZSCHE, Friedrich. “Erkenntinistheorische Einleitung uber Warheit und Luge im Aussermoralischen Sinne”. In: Das Philosophenbuch (1873). Le livre du philosophe. Paris: Aubier-Flammarion, 1969. ―------------------------------- Genealogia da moral. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Brasiliense, 1988, 2ª edição. ―------------------------------ A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ROUSE, J. “Power/Knowledge”. In: J. Bernauer e M. Mahon (org.), The Cambridge Companion to Foucault. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.

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MICHEL FOUCAULT: TÉCNICAS DE PODER E BIOPOLÍTICA Guilherme Castelo Branco1

No começo dos anos setenta do século XX, Michel Foucault(1926-1984) forjou todo um instrumental metodológico para analisar as diversas tecnologias de poder que foram sucessivamente elaboradas no mundo ocidental, nos últimos quatro séculos, sobretudo a partir do que ele denomina por ‘governamentalidade’. A princípio, Foucault se interessa por saber como o poder acontece nas práticas cotidianas, em lugares aparentemente cinzentos e periféricos da vida social; neste particular, o filósofo francês mostra que certas técnicas de poder estão centradas no corpo, como as disciplinas, que procuram exercer uma pressão detalhada e contínua sobre os corpos dos operários, trabalhadores, e todos os internos subjugados em instituições que aglomeravam pessoas, como órfãos, viúvas, loucos(uma vez que todos eram submetidos a uma rotina de trabalho) a partir dos séculos XV e XVI. Livros, manuais e manifestos foram escritos, no período, para divulgar o enorme potencial daquelas técnicas de controle do corpo e de sua regulação temporal. A obsessão com estas técnicas de controle do uso do corpo levou autores da época a apresentarem imagens e gravuras nos seus opúsculos e livros, para ilustrarem suas técnicas e metas de gestão dos corpos, e algumas destas imagens foram apresentadas por Foucault no Vigiar e Punir(1976), a título de exemplo. Com o sucesso do poder disciplinar enquanto instrumento de controle social, esta técnica de poder vai se disseminar no campo social e converter-se em modalidade real de exercício de poder até hoje: da escola ao exército, do hospital ao acampamento de refugiados, todos nós, consciente ou inconscientemente, obedecemos a uma regulação e disposição corporal pelos quais seguimos e cumprimos regras de convívio social, profissional e político. 1 Professor Associado III da UFRJ.

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Mesmo sem contornos históricos bem definida na analítica do poder de Foucault, uma noção necessária e complementar à de disciplina foi a de normalização. Deslizando entre o campo da norma jurídica e o da produção social e histórica de alguma modalidade de normalização, Foucault chama a atenção para o fato de que a normalização tem por foco a vida subjetiva dos indivíduos, e fascinou, a partir dos séculos XVII e XVIII, um conjunto significativo de filósofos, educadores e toda uma gama de escritores voltados para este aspecto da vida social. O problema central da normalização, em outras palavras, é o cuidado com a alma dos seres humanos, com o conhecimento possível da subjetividade humana, e, por consequência, com a questão de como dominá-la. A escola e a família seriam agentes por excelência, mas não os únicos, das técnicas de normalização. Os objetivos mais importantes dos procedimentos de normalização seriam a produção de subjetividades assujeitadas, a criação de trabalhares honestos, cidadãos cumpridores dos deveres, bons pais de família, pessoas feitas em série e mais ou menos padronizadas nos seus modos de viver, nos seus gostos, nos seus estilos e gostos, até mesmo no seu modo de morrer. As Ciências Humanas, que surgem depois desta época, decorrem do interesse em se conhecer o que se passa na cabeça das pessoas para melhor dominá-las, e são um efeito inegável das técnicas de poder em sua vertente de constituição do controle subjetivo, também denominado poder normalizador. Segundo Foucault, os saberes e poderes que visam à normalização e ao controle social, todavia, não seriam a única novidade na gestão política dos países ocidentais a partir da idade clássica. Do agenciamento do saber-poder médico com o saber-poder jurídico, surgem diversos modos novos de exercícios do poder, visando ao “assujeitamento dos corpos e controle das populações” (FOUCAULT, 1976, p. 184). O efeito político massivo que daí resulta é a entrada na “era do biopoder.” (FOUCAULT, 1976, p. 184). Como define Foucault, no início do Segurança, território, população, o biopoder pode ser caracterizado pelo “.... conjunto de mecanismos pelos quais o que constitui, na espécie humana, seus traços biológicos fundamentais, vai poder entrar no interior de uma política, de uma estratégia

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política, de uma estratégia geral de poder; ou, dizendo de outra maneira, como as sociedades, as sociedades ocidentais modernas, a partir do século XVIII, passaram a levar em conta o fato biológico fundamental de que o ser humano constitui uma espécie humana.” ( FOUCAULT, 2004b, p. 3), O tempo de biopoder, que é por excelência o nosso tempo, caracteriza-se pela ampliação crescente das articulações dos saberes biológicos e biomédicos com os dispositivos jurídico-institucionais, com grandes efeitos no campo da macropolítica, seja nas relações entre os Estados, seja no interior de cada Estado, indo até mesmo à interferência micropolítica no modo de vida das pessoas, no interior de suas próprias casas.. As técnicas de poder, as tecnologias de segurança postas em ação, de grande complexidade, em nossas sociedades, vai se fazer “....seja por mecanismos que são propriamente mecanismos de controle social, como é o caso da punição penal, seja mecanismos que tem por função modificar alguma coisa no destino biológico da espécie.” ( FOUCAULT, 2004b, p. 12). Michel Foucault, quando analisa os conflitos entre as nações, o confronto dos interesses econômicos dos países, a partir do século XX, dá-se conta de que eles passaram a produzir guerras cada vez mais sanguinárias, nas quais os combatentes passaram a ser eliminados em escalas nunca antes imaginadas (na época, não foram poucos os que perceberam que as guerras eram também uma maneira de eliminar parcela da população do próprio país, deliberadamente escolhida nas camadas menos desejáveis do povo, segundo o governo ou suas elites). Todavia, para Foucault, o mais aterrador é um fato totalmente novo e singular, fora de situação de guerra interna ou externa, onde “[...] guardadas todas as proporções, até então, os regimes nunca tinham praticado tais holocaustos sobre sua própria população.” (FOUCAULT, 1976, p. 179). Sob as mais diversas justificativas e também com as mais diversas estratégias, os Estados, no decorrer do século XX, eliminaram grandes contingentes humanos dentre os membros de suas próprias nações. O que perturba Foucault é que o biopoder, que em tese deveria ser uma modalidade de gestão do poder que teria por finalidade gerir a vida e fazer viver, tenha se convertido, sobretudo, num poder

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de morte, exercendo a função prioritária de acarretar a morte das pessoas. Com indignação, o filósofo pergunta: “como é possível que um poder político mate, reivindique a morte, exija a morte, faça matar, dê a ordem para matar, exponha à morte não apenas seus inimigos, mas também seus cidadãos?” (FOUCAULT, 1996, p. 205).2 As três técnicas de poder estudadas por Foucault, a disciplinarização (tecnologia de controle, sobretudo, dos corpos adestrados), a normalização (ou educação, isto, é controle positivo do comportamento e do pensamento, de maneira sobretudo individualizante), o biopoder (controle da população, tanto em seu fluxo quanto em tamanho), mantém entre si, malgrado seus diferentes tempos de emergência históricos e seu modo de funcionamento, relações circulares e interdependentes. No que diz respeito ao biopoder, a hipótese de Foucault é a de que o genocídio da própria população, um dos aspectos desta forma de gestão política da população, resulta de uma nova modalidade de racismo, de caráter estatal, sustentada por princípios científicos e técnicos: “o que permitiu a inscrição do racismo nos mecanismos do Estado foi, conjuntamente, a emergência do biopoder. Este é o momento em que o racismo é introduzido como mecanismo fundamental do poder e segundo as modalidades exercidas pelos Estados modernos.” (FOUCAULT, 1996, p. 205). O neo-racismo que se inicia na era do biopoder, por um lado, se exerce segundo uma crescente e renovável divisão da população em grupos e sub-grupos, em raças e sub-raças, numa escalada virtual sem fim, de modo a que seja sempre possível, no interior de uma sociedade ou coletividade, apontar para grupos potencialmente inferiores, patológicos, doentes, anormais, em oposição a grupos saudáveis, superiores, viçosos. Outro aspecto relevante do exercício do neo-racismo é fazer com que as pessoas pensem que suas vidas somente são possíveis às custas da exclusão e/ou da eliminação de outras. Trata-se da justificativa da manutenção da vida de 2 Utilizo-me da edição em espanhol do curso do Collège de France que recebeu por título Em defesa da sociedade. Esta escolha deve-se à importância da edição espanhola, pirata, que recebeu por título Genealogia del racismo, e que publicou apenas as lições finais do curso. O fato é que esta edição pirata obrigou o Centre Michel Foucault a providenciar a rápida publicação dos cursos de Foucault, com grandes benefícios para os estudiosos de sua obra.

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um povo ou de uma coletividade social pela deliberada eliminação de outra coletividade qualquer. Frases como “se queres viver, o outro deve morrer” converte-se num slogan político e é, a todo momento, utilizado nas chantagens a respeito do direito à riqueza e ao bem-estar social. A grande chantagem está na associação possível da eliminação do outro( que pode ser, a qualquer momento, qualquer e qualquer segmento da sociedade) com a purificação da sociedade como um todo. Como alerta Foucault: “a morte do outro, a morte da raça má, da raça inferior(degenerada, inferior), é isto que tornará a vida mais sã e mais pura”(FOUCAULT, 1996, p. 206). O biopoder utiliza-se, sem dúvida, de uma articulação política entre segurança e potencial de eliminação de parcela da população. Nossos tempos, assim, têm alicerçado muitas relações hegemônicas de poder fundamentando-as em justificativas e metáforas de caráter biológico e médico, nas quais o que está em jogo é a defesa da ordem social e da vida, contra os perigos biológicos, desagregadores e desordenadores, que certos grupos carregam consigo. Toda uma tática política que assegura o modo pelo qual o Estado opera, a partir do final do século XIX, vem deste tipo de funcionamento: “a partir do momento em que o Estado passa a funcionar baseado no biopoder, a função homicida do Estado passa a ser assegurada pelo racismo” (FOUCAULT, 1996, 207). O processo de transformação do direito ao genocídio numa necessidade social e política já tinha suas origens no genocídio colonizador, que perdura, sem diminuir, até o momento presente. Todavia, o fato novo no processo político contemporâneo está no discurso legitimador do genocídio tanto dos estrangeiros como de seus próprios cidadãos, alegação apresentada pelos Estados como sendo imprescindível para levar a cabo a regeneração da própria raça: “quanto mais morrem os outros, mais pura será nossa raça”(FOUCAULT, 1996, p. 209). O neo-racismo é extremante eficaz nos seus efeitos, e tem sido um instrumento de crescentes e sucessivas medidas de ação política e de intervenção médica. O racismo de Estado é desenvolvido segundo as competências técnicas, científicas e jurídicas postos à disposição no seu tempo: “[...]

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estamos longe de um racismo como simples ou tradicional desprezo ou ódio entre raças. Porém, também estamos longe do racismo entendido como uma operação ideológica com a qual o Estado ou uma classe{social} cuidariam de voltar contra um adversário mítico as hostilidades que outros fariam voltar contra eles, ou que poderiam trabalhar no corpo social”(FOUCAULT, 1996, p. 209). Por exemplo, a possibilidade de matar ou eliminar um criminoso é um dos resultados do biopoder, e pode ser estendida, com o passar do tempo, a outros personagens tornados indesejáveis conforme os ventos sociais, como os loucos ou portadores de outras patologias, ou mesmo com características físicas ou psíquicas sem importância no momento presente. Para Foucault, o exemplo mais marcante e radical de exercício do biopoder ainda é o caso do nazismo: “[...] o regime nazista não terá como único objetivo a destruição das outras raças. Este é apenas um de seus aspectos. O outro {aspecto} é o de expor a própria raça ao perigo absoluto e universal da morte. O risco de morrer, a exposição à destruição total é um princípio inscrito entre os deveres fundamentais da obediência nazista e entre os objetivos essenciais da política “(FOUCAULT, 1996, p. 210). O que está em jogo, portanto é o sacrifício da própria vida como dever perante o regime e os demais membros da sociedade, chegando ao caso extremo da auto-eliminação da própria população, quando esta se revela incapaz de cumprir com os mandamentos políticos de sua nação; ou, mais precisamente, tal possibilidade de auto-destruição obedece à seguinte lógica: se uma sociedade não é capaz de se impor como raça superior, ele não merece o direito à vida, e deve se auto-eliminar pelo fato de que se converteu uma raça inferior, logo passível de ser destruída. Foucault conclui; “com os nazistas [...] assistimos à emergência de um Estado absolutamente racista, absolutamente homicida, absolutamente suicida (FOUCAULT, 1996, p. 210). Na Alemanha nazista, na verdade houve a superposição da “solução final”, de 1942 em diante, com a “solução” de abril de 1945.3 Foucault chega a indicar que esta junção no Estado moderno, do ra3 Esta “solução” aparece no Telegrama 71. O teor do telegrama é assustador: nele, Hitler dá a ordem de se eliminar as condições que mantinham o povo alemão com vida.

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cismo com o suicídio, não é uma fórmula que se encerrou no episódio do regime nazista. Tal articulação acontece, em maior ou menor magnitude, em todos os Estados, capitalistas ou socialistas. O processo que leva à aposta entre a vida e a morte de toda uma população, está em pleno vigor na atualidade, se levamos em conta o arsenal bélico disponível a inúmeros países do mundo. O pensador faz um alerta, a propósito dos arsenais militares gigantescos, aliados à potência genocida dos Estados: “a situação atômica é hoje o ponto culminante deste processo: o poder de expor uma população a uma morte geral é o inverso de garantir à outra {população} sua manutenção na existência”. (FOUCAULT, 1976, p. 180). O caráter genocida do Estado tem várias faces e manifestações: “[...] quando falo de homicídio, não penso somente no assassinato político direto, mas em tudo que pode ser, também, morte indireta: o direito de expor à morte, ou de multiplicar para alguns o risco de morte, ou – mais simplesmente – a morte política, a expulsão” (FOUCAULT, 1996, p. 207). Nem sempre o que está em jogo, portanto, é o mero trabalho de eliminação, mas também o potencial afastamento de cidadãos por motivos econômicos( pois nos países para onde os exilados vão não está garantido, quase nunca, nenhum direito, seja trabalhista ou cobertura médica e/ou previdenciária). Por outro lado, os nômades, os que circulam em demasia, mesmo no interior de um país, assim como todos aqueles que tem trabalho ocasional e de natureza temporária estão mais expostos a riscos que todos os trabalhadores sedimentados, e são objeto de rejeição das instituições e das políticas governamentais. O racismo e o genocídio inerentes ao Estado e às sociedades contemporâneas, certamente, não são realizados sem lutas de resistência. Mas não deixa de ser um fato notável que tantos assassinatos em massa tenham ocorrido, na modernidade, em escala tão gigantesca, sem enfrentar uma contestação generalizada e sistemática de grupos organizados e mesmo da maioria das sociedades. Segundo Foucault, poderia existir uma explicação, ao menos parcial para esta omissão social diante da exclusão e do racismo: os procedimentos normalizadores constituíram um assujeitamento indis-

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sociável do individualismo burguês, e que foram o fermento inicial para a posterior intervenção do Estado sobre o direito de vida e morte das populações. Datados dos primeiros anos da década de setenta, os artigos, entrevistas e cursos do filósofo francês sempre tiveram como tema decisivo a questão do individualismo, assim como o da formação da individualidade, a mesmo título que a constituição de uma subjetividade assujeitada, submissa aos poderes.4 Primeiro dado a ser considerado: os proletários e os pequeno-burgueses no século XIX, malgrado suas diferenças sociais, tinham reivindicações e aspirações que foram objeto de progressiva conquista histórica, mas a um preço que não foi pequeno. A luta pelo direito ao ensino e ao atendimento hospitalar, por exemplo, se revelam uma combatividade por direitos, mostram, por outro lado , que sua conquista leva a um modo de vida sedentário e conformado. Trata-se do fim do ciclo das constantes migrações e do gosto pela vida” livre e nômade,” em nome de certas conquistas de bem-estar social para a família. Associado a estas aspirações, criam-se caixas de poupança, para que as pessoas possam comprar suas casas, ainda que simples, e fixar residência, às custas de enorme esforço da família, que tudo deve poupar e suportar para não perder sua única propriedade potencial, conquistada com o assujeitamento das pessoas e com o estabelecimento de uma vida regrada e sem prodigalidade de nenhuma espécie. A organização da família, sua estrutura interna no cotidiano, torna-se rígida, totalmente em conformidade com uma moral da restrição e do controle pessoal e familiar do padrão de consumo (ao contrário da incitação ao consumo na atualidade, mesmo para as classes populares). Na verdade, alerta Foucault, a respeito destas lutas populares por direitos no século XIX, que se prolongam no século XX: “dizendo de outra maneira, a moralidade imposta de cima converte-se numa arma em sentido inverso”(FOUCAULT, 1994, v. 2, p. 664).

4 A este respeito, a passagem entre as páginas 226 e 227 do Dits et Écrits, v. 2, n. 98, 1994 é um exemplo irrefutável do anti-individualismo de Foucault.

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Outro componente que contou para a quebra dos vínculos comunitários foi o desenvolvimento do sistema de seguridade e de previdência social, na medida em que para se conceder direito a um possível ‘benefício’ ou direito à assistência, o sistema previdenciário passa a exigir uma vida de trabalho regular e constante, e também uma maneira apropriada de seus afiliados e assegurados conduzirem suas vidas (regradas e sem riscos), assim como pede hábitos e rotinas que não levem ao aumento de gastos no orçamento global(por sinal quase sempre deficitários). As pessoas são separadas entre as cobertas pela seguridade social e as sem direito a ela, e estas segundas são logo vistas pelos demais como quase-párias e indesejáveis socialmente, uma vez que têm um modo de vida inconsequente e perigoso. A aspiração ao direito à previdência social, portanto, se faz às custas de uma vida assujeitada, submissa a padrões de controle e de governabilidade, avessa a todo risco, intensidade e forma de vida desarrazoáveis. A própria estrutura familiar passou por um extraordinário processo de transformação e tornou-se suscetível de sofrer intervenções tanto de instituições quanto de profissionais na sua vida íntima. Foucault descreve, no seu curso do Collége de France de 1974-75,5 que ao longo do séc. XIX, o desenvolvimento da família nuclear burguesa se fez com o envolvimento dela com outras práticas institucionais. Ao contrario da família aristocrática, muita extensa, com primos, amigos e parentes distantes morando nas residências, com escasso envolvimento dos pais na vida cotidiana das crianças, a nova família burguesa e pequeno-burguesa passa a ser nuclear e pouco numerosa e realiza um escrupuloso cuidado parental sobre as crianças no seu ambiente interno ou doméstico. O cuidado dos pais, todavia, não é a única exigência social nova; deve ser prolongado e supervisionado por um controle externo, supostamente mais especializado e preparado, feito por profissionais dotados de conhecimentos e técnicas de intervenção, como seriam os educadores assistentes sociais, e, sobretudo, os médicos. Ocorre, neste caso, uma certa inversão: a relação pais-filhos prolonga a relação médico-paciente. Ao menor sinal de alguma perturbação no interior 5 Publicado sob o título Os anormais.

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da família, o médico deve ser chamado a intervir, realizando uma mediação entre os familiares. O novo grupo familiar, celular, não deixa de se caracterizar por uma irônica subordinação do convívio a um saber-poder externo, o que faz dessa nova família, além ser uma instituição afetiva, sexual e econômica, uma família medicalizada. Entre uma pessoa ‘doente’ e o restante da família, é o médico o principal ator e interveniente. Outro ator: o psicólogo. Mais um ator externo: o assistente social; em certos casos e condições, a polícia e, advogados e auxiliares credenciados da justiça podem também intervir na vida familiar. A família, como um todo, vê-se envolvida por tratamentos e intervenções, de modo direto, mas não é ela apenas que toma as decisões sobre o que fazer e como fazer na condução de seus problemas e de suas vicissitudes. Além do mais, a nova família pequeno-burguesa e burguesa recebe do Estado republicano em vias de se constituir uma função educativa que não possuía anteriormente. Os pais devem cuidar dos filhos, não devem deixá-los morrer, devem educá-los para entregá-los, mais tarde, preparados e prontos para exercerem a cidadania, o civismo, a vida laboral. Os pais passam a ser responsabilizados pelo desempenho dos filhos na escola. Passam a competir com os outros pais pelo bom desempenho de seus filhos, de preferência com desempenhos melhores do que os outros. Para ter êxito nesta tarefa educativa os pais passam a solicitar e a obedecer a uma série de regras fundadas em ‘padrões’ de racionalidade prescritos por médicos, educadores, guias morais. E estes agentes do bom desempenho escolar constituem um discurso bastante paradoxal: pedem, chegam mesmo a exigir a total abnegação dos pais na educação de seus filhos, para depois, com total desprendimento, deixá-los partir, jovens adultos, para cumprirem, por sua vez, as suas ‘obrigações’ sociais, econômicas, políticas. Ordem médica, sistema educacional, sistema judiciário, enfim todo um complexo de saberes é crescentemente chamado a atuar onde anteriormente o bom senso e a experiência comunitária ou coletiva faziam valer suas lições. A partir do século XIX, os saberes, em especial as Ciências Humanas, criam uma complexa rede de instituições, multi-causal e hete-

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rogênea, que trabalha em prol da defesa da sociedade boa, sensata e saudável. O resultado deste processo complexo de gestão da vida humana são indivíduos condicionados e constituídos pelos poderes e técnicas de poder. O poder, entendido no plural, deste modo, não apenas adestra corpos e normaliza comportamentos e atitudes, mas constitui as próprias individualidades. Mais ainda, produz as formas de vida e o dia-a-dia dos indivíduos, voltados para si e distanciados das demais pessoas, centrados quase que exclusivamente para seu próprio mundo e para seus pequenos rendimentos e recursos, o que Foucault chama de ‘individualismo’. O individualismo, considerado como um modo de viver e de pensar a vida, passa a estar centrado na ‘moral do interesse”(FOUCAULT, 1994, v. 4, p. 629) que foi inculcada na pequeno-burguesia, e que foi estendida às classes populares a partir do século XIX. Um modo de vida egoísta, desvinculado dos demais, esta é a característica do modo de vida dos indivíduos assujeitados na modernidade. Tal comportamento apartado das outras pessoas, expressão da vida submetida ao poder, lembra Foucault, é produto de um processo histórico voltado para o controle da vida pessoal: “esta forma de poder se exerce na vida quotidiana imediata, que classifica os indivíduos em categorias, os designa em sua individualidade própria, os adstringe às suas individualidades, lhes impõem uma lei de verdade que eles devem aceitar e que os outros devem reconhecer neles. É uma forma de poder que transforma os indivíduos em sujeitos.” (FOUCAULT, 1994, v. 4, p. 227). O individualismo, para Foucault, ocorre na contramão da vida comunitária. Decorre de práticas divisórias que separam, crescentemente, as pessoas umas das outras, que levam a uma vida solitária, que incita os indivíduos a cuidarem dos outros apenas segundo a dimensão do controle, da denúncia, do chamamento à ordem e à obediência das normas. Cria-se, assim, uma ‘polícia da cidadania’, onde todos são convocados a controlar os demais. Simultaneamente, tais práticas divisórias já contêm elementos do racismo, de acordo com a concepção de Foucault, pois fazem do indivíduo um mero objeto, como no exemplo da “separação entre o louco e o homem são, entre o doente e o indivíduo sadio, entre o criminoso e o ‘bom

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moço’”(FOUCAULT, 1994, v. 4, p. 227). Os excessos de poder praticados pelos Estados contemporâneos, por consequência, tem na despolitização vinculada ao individualismo um forte auxiliar de suas tendências radicais na condução das populações. Quando, na fase final de sua obra, Foucault dá relevo às relações de poder e às resistências ao poder, não pode deixar de conceder um lugar importante, dentre as lutas de resistência relevantes da atualidade, às lutas em torno da individuação e contrárias ao individualismo, como “as que combatem tudo o que liga o indivíduo a ele mesmo. E assegura, deste modo, sua submissão aos outros (lutas contra o assujeitamento, contra as diversas formas subjetividade e de submissão” (FOUCAULT, 1994, vol. 4, p. 227).). O que não significa dizer que as lutas contra o assujeitamento desmereçam as demais tradicionais formas de luta; mas que elas, na verdade, são as mais incisivas do tempo presente: “[...] hoje, na atualidade, é a luta contra as formas de assujeitamento – contra a submissão de subjetividade – que prevalece cada vez mais, ainda mais porque as lutas contra a dominação e a exploração não desapareceram, bem pelo contrário”(FOUCAULT, 1994, v. 4, p 228). Ao fim e ao cabo, nós também temos que recusar, se tivermos ainda capacidade de reação aos instrumentos e tecnologias do poder, o tipo de individualidade com a qual fomos forjados, e sermos capazes de inventar e criar novas formas de vida e novas relações conosco mesmos, e, neste segundo caso, temos que ultrapassar constantemente os nossos limites subjetivos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANDIOTTO, C. – Foucault e a crítica da verdade. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2010. CASTELO BRANCO, G. - Atitude-limite e relações de poder: uma interpretação sobre o estatuto da liberdade em Michel Foucault in Verve n°13, SP, NU-SOL/PUC-S.P. CASTELO BRANCO, G. - Ontologia do presente, racismo, lutas de resistência, in Poder, normalização e violência(Org. Izabel Friche Passos). Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2008. Foucault, in Os Filósofos Clássicos da Filosofia, vol III(Org. Rossano Pecoraro). RJ: Ed. PUC-Rio- Ed. Vozes, 2009.

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Anti-individualismo, vida artista: uma análise não fascista de Michel Foucault, in Para uma vida não fascista(Orgs. Margareth Rago, Alfredo Veiga-Neto). Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2009. Michel Foucault, a literatura, a arte de viver, in Os Filósofos e a Arte( Org. Rafael Hoddock-Lobo). RJ: Ed. Rocco, 2010. DUARTE, A.- Foucault e as novas figuras da biopolítica: o fascismo contemporâneo in Para uma vida não-fascista(Orgs. Margareth Rago, Alfredo Veiga-Neto). Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2009. Vidas em Risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. FOUCAULT, M. - Surveiller et Punir. Naissance de la Prision. Paris:Gallimard,1975.  Histoire de la Sexualité I. La Volonté de Savoir. Paris: Gallimard, 1976. Dits et Écrits. 1954-1988.Paris: Gallimard. 4 vols. Orgs. D. Defert, F. Ewald e J. Lagrange. Paris: Gallimard,1994. Les anormaux. Paris: Ed. du Seuil, 2001. Le pouvoir psychiatrique. Paris: Ed. du Seuil, 2003. Naissance de la biopolitique. Paris: Ed. du Seuil, 2004a. Sécurité, territoire, population. Paris: Ed. du Seuil, 2004b. Genealogia del racismo. La Plata: Altamira, 1996

Guilherme Castelo Branco coordena o Laboratório de Filosofia Contemporânea da Universidade Federal do Rio Janeiro. É Professor do Departamento de Filosofia da UFRJ. Pesquisador do CNPq. Pesquisador da FAPERJ. Membro do Centre Michel Foucault, França. Coordenador no Brasil do acordo internacional apoiado pelo Ministério de Educação argentina ( RSPU 1070/10 ) na área de Filosofia Política, que integra Argentina, Brasil e México. E-mail:[email protected]

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A NOÇÃO DE DISCURSO EM MICHEL FOUCAULT. Izabel Friche Passos1

Introdução

A noção de discurso, desdobrada nas ideias de arquivo e de práticas discursivas, é central na forma de problematização da história por Foucault. Percorre toda sua obra, passando por transformações sucessivas, segundo se trate da história dos saberes (das ciências humanas e medicina), da história de práticas sociais concretas e locais, como aquelas em torno da loucura e dos sistemas de punição, ou da história de práticas de subjetivação, como aquelas do cuidado de si na antiguidade. A história que sempre interessou a Foucault não foi exatamente a história tradicional produzida pelos historiadores, mas aquela que lhe permitisse uma interrogação sobre as transformações e os acontecimentos cuja trama genealógica poderia, ou deveria, ser explicitada a partir do trabalho paciente de perseguição de detalhes, por vezes insignificantes, de narrativas menores (ao modo como Deleuze se referiu a certa literatura), de fragmentos de existência. Acontecimentos cuja “escavação” arqueológica seria feita através da análise da formação dos discursos, materializada nos arquivos acumulados. Nesse modo foucaultiano de abordar a história e de pensar os acontecimentos, encontramos noções transmutadas de outros campos de saber, tais como: genealogia, arqueologia, arquivo. A genealogia, inspirada no uso que desse conceito fez Nietzsche, já se encontra, hoje, em “estado de dicionário”, como diria Drummond de Andrade. O Houaiss traz na última Rubrica: Filosofia, para o termo, a seguinte definição, sucinta e precisa: “em Nietzsche (1844-1900) e Foucault 1 Professora associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Fafich/UFMG

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(1926-1984), investigação da história com o objetivo de identificar as relações de poder que deram origem a ideias, valores ou crenças” (Houaiss, versão eletrônica). A arqueologia foucaultiana só tem com a ciência da qual empresta o nome uma aproximação metafórica, mas muito importante. Remete para a materialidade dos discursos, à semelhança dos fósseis e artefatos colecionados pelo arqueólogo como traços a partir dos quais reconstrói a história dos costumes e da vida cultural de povos há muito desaparecidos. Por fim, arquivo, conceito aparentemente mais apropriado, uma vez que se trata de todo modo de se fazer uma história, entretanto, muito mais sutilmente transmutado de seu sentido originário e, portanto, talvez de mais difícil compreensão. Heliana Conde Rodrigues (2009) em seu belo e elaborado artigo “Sobre arquivos e tumbas: uma análise da expressão ‘documento como monumento’”, traz densa reflexão sobre o equívoco de se pensar o arquivo, e nele o documento, como um conjunto do que se pôde ordenar, organizar, estabelecer através de uma inscrição ou fixação em documentos escritos. Arquivo na análise foucaultiana do discurso é o conjunto de todos os enunciados, de tudo o que se pôde dizer e, no que se disse, elidir, num determinado campo de práticas. Neste sentido, os arquivos são formados antes pelo que se encontra disperso, emaranhado, esquecido ou transformado e não apenas pelos textos e os testemunhos ordenados, cuidadosamente preservados, criteriosamente classificados. A história para, ou melhor, em Foucault, não sendo uma memorialística nem, muito menos, uma história “monumental” (modo como ele qualificou a história que busca reconstruir as séries de continuidades, as razões históricas dos acontecimentos, ou as grandes narrativas), busca ressaltar a singularidade de acontecimentos e neles o lugar da singularidade subjetiva, produzida no jogo discursivo do saber/poder, responsáveis por um modo específico de existência, de relação com o conhecimento e de governo de si e dos outros. Ou seja, modos de subjetivação que perpetuam, alteram ou transformam o passado no presente em que se vive. Daí Foucault autodefinir-se, quando instado, a contra-gosto, a fazê-lo, como um

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jornalista ou um comentador do presente, mais que como um filósofo da história ou um historiador. O que trago para compartilhar com vocês nesse seminário não é um comentário sobre a obra de Foucault a propósito do tema do discurso e da história. Será antes a proposição de um diálogo sobre o uso que tenho feito dela em minhas pesquisas empíricas, etnográficas e cartográficas. Uso que, como queria o próprio filósofo, a obra mais que autoriza, incita a fazer. A tarefa não é nada fácil, porque uma coisa é usar, outra, muito mais difícil é tomar distância para poder enxergar o modo como se está usando. Vou tentar. Certamente não é como especialista que tomo a palavra. Não me considero mais que uma amante utilitária da obra do filósofo e uma admiradora da biografia de um homem cuja mente inquieta e brilhante nos ampliou os horizontes do pensamento e cuja existência nos legou uma vida bela. História e memória

Participei, em 2009, do VI Encontro Sudeste de História Oral, promovido pela Sociedade Brasileira de História Oral, no qual coordenei um simpósio sobre Memória e saúde. História oral, história escrita – nunca entendi como se poderia separá-las. No entanto, foi preciso que se criassem várias associações e um verdadeiro movimento, muito recente, aliás, em prol da história oral para que as estórias narradas pelos viventes contemporâneos pudessem ser incorporadas à historiografia do mundo ocidental, isto é, fossem levadas a sério e deixassem de ser desqualificadas como relatos suspeitos de distorção dos fatos pela subjetividade do narrador. Não sou profissional da disciplina, minha inserção como psicóloga social é no campo da saúde mental em sua interface com a saúde coletiva. Esta incursão pela história, no meu caso, se dá pela via do levantamento de relatos de histórias de vida e muito uso de entrevistas nas pesquisas que faço. Mas as entrevistas tem menos propriamente uma perspectiva histórica que etnográfica, o que produz certas inflexões próprias às indagações históricas no meio de um conjunto complexo e imbricado de práti-

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cas e discursos que nossas descrições, chamadas densas, pretendem fazer do cotidiano de uma comunidade ou grupo. A identificação dos elementos históricos está muito mais comprometida com a proliferação de narrativas que povoam a memória coletiva e o imaginário da comunidade que com o estabelecimento de linhas de continuidade entre o passado e o presente. Como diz Alessandro Portelli, concordando com Pietro Clemente, há sim distinção “entre os ‘fatos’ do historiador [aspas no original] e as ‘representações’ do antropólogo (...). Porém só considerando-as juntas é que se pode distingui-las. Representações e ‘fatos’ não existem em esferas isoladas. (...) Talvez essa interação seja o campo específico da história oral, que é contabilizada como história com fatos reconstruídos, mas também aprende, em sua prática de trabalho de campo dialógico e na confrontação crítica com a alteridade dos narradores, a entender representações”. (Portelli in Ferreira e Amado, 2005: 111)

Foucault nunca se apresentou como historiador. Não constitui nenhuma novidade que Foucault tenha explicitamente se afastado da historiografia oficial, seja aquela baseada no recenseamento de heróis e grandes feitos, seja aquela que se apresenta como ciência e pretende alcançar o sentido último dos acontecimentos. Foi crítico contumaz dessa história-ciência que trata os acontecimentos como se fossem resultantes de uma cadeia necessária de fatos determinantes que o historiador buscaria restituir, e não frutos de acasos ou efeitos de jogos de força que poderiam ter dado em uma outra história totalmente diferente se o resultado dessas lutas e embates fosse outro. Seguindo as pegadas de Nietzsche, Foucault chamou esta história, pejorativamente de história monumental (ver especialmente seu texto de 1971, “Nietzsche, a genealogia e a história”, em Microfísica do Poder). Nesse mesmo texto, Foucault também se levanta contra a memória tout court e contra o culto da memória. Interpretando suas palavras, penso que está nos dizendo que talvez tiremos mais proveito do desmantelamento da memória do que do seu culto. Ouçamos Foucault:

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“O sentido histórico comporta três usos que se opõem, palavra por palavra, às três modalidades platônicas da história. Um é o uso paródico e destruidor da realidade que se opõe ao tema da historia-reminiscência, reconhecimento; outro é o uso dissociativo e destruidor da identidade que se opõe à história-continuidade ou tradição; o terceiro é o uso sacrificial e destruidor da verdade que se opõe à história-conhecimento. De qualquer modo se trata de fazer da história uma contra-memória e de deslocar consequentemente toda uma outra forma do tempo.” (Foucault, 1995: 33)

Voltando ao texto de Portelli, esse historiador também está interessado em dessacralizar as memórias e quando se trata de uma memória coletiva carregada de dores e sofrimento como é o caso do massacre ocorrido na cidadezinha italiana de Civitella Val di Chiana perpetrado pelos nazistas, que o autor retoma para análise, ou, ainda, no nosso caso, dos loucos exterminados no manicômio público de Barbacena por décadas a fio (há suposição de que foram 60 mil mortos, muitos deles vendidos como peças anatômicas para as faculdades de medicina, ou enterrados anonimamente como indigentes), a tarefa se torna ainda mais árdua. Diz Portelli: “a tarefa do especialista, após recebido o impacto, é se afastar, respirar fundo, e voltar a pensar” (idem:106). Penso que Foucault, que foi um verdadeiro rato de arquivo, nunca colocou o documento contra a narração. Algumas vezes preferiu se definir como jornalista de seu tempo, precisamente porque sua volta ao passado sempre teve como motivo a preocupação com o que nos tornamos o que somos na atualidade. No seu belo livro intitulado Foucault, Deleuze dirá que o enunciado é primordial na obra do amigo filósofo. Mas aí, precisamos entender o sentido deste termo e junto com ele os de arquivo, discurso e formações discursivas, e sua importância para o arqueologista. Também temos de considerar a noção de formações não-discursivas que o primado do enunciado não apagará, mas, ao contrário, se associará e ganhará ainda maior relevo no Foucault genealogista. Segundo Deleuze, o primado do enunciado nunca será sinônimo de reducionismo à dimensão discursiva. “Do princípio

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ao fim da obra de Foucault, as visibilidades permanecerão irredutíveis aos enunciados, ainda mais irredutíveis porque parecem formar uma paixão em comparação com a ação dos enunciados” (Deleuze, 1995: 59). Nos livros da fase arqueológica, “o primado do enunciado sobre as formas do ver e do perceber”, é, segundo Deleuze “uma reação contra a fenomenologia”. O enunciado é um primado pois incide sobre algo que lhe é irredutível: a visibilidade. Gosto particularmente desta frase de Deleuze: “Foucault deixava-se fascinar tanto pelo que via, quanto pelo que ouvia e lia, e a arqueologia concebida por ele é um arquivo audiovisual” (idem: 60). Foucault redefiniu arquivo contra o conceito corrente de um lugar específico onde são preservadas palavras e coisas como testemunhos da e para a memória. Foucault expande a noção de arquivo, que para ele é produzido segundo regras anônimas que comandam tanto a dispersão quanto a possibilidade e necessidade dos enunciados. Neste sentido, o arquivo é o conjunto de todos os enunciados que puderam ser expressos em palavras, imagens e sons, ou seja, em alguma materialidade, e as regras históricas que tornam alguns dizíveis, repetíveis, memoráveis e outros indizíveis, devendo desaparecer, serem esquecidos, renegados. Também contra a linguística tradicional, o enunciado não é definido como frase, proposição, ato de fala ou performance verbal, mas como um acontecimento que merece análise pois vai mais além de uma manifestação expressiva, possibilitada pelo uso da linguagem. Como bem lembra Edgardo Castro em seu Vocabulário de Foucault, recém-traduzido pela Autêntica (2009), o enunciado é mais que um simples conjunto de marcas materiais, pois refere-se a um domínio de objetos, implica posições de sujeito, relaciona-se com outros enunciados, encerra a possibilidade de sua repetição. O enunciado é produzido por condições históricas que demandam análise para sua elucidação. Não é aparente ou visível, mas tampouco está escondido pelos atos de linguagem. Deleuze irá nos propor rachar as coisas e as palavras, frases e proposições para extrairmos delas os enunciados. Entre coisas ou visibilidades, como prefere nomear Deleuze, e os discursos dos quais os enunciados são como

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átomos, não há nem correspondência ou conformidade, nem total independência. “Há diferença entre falar e ver, entre o visível e o enunciável”, mas há também constante remissão de um a outro. Cito mais longamente Deleuze: “Enquanto nos atemos às coisas e às palavras, podemos acreditar que falamos do que vemos, que vemos aquilo de que falamos e de que os dois se encadeiam: é que permanecemos num exercício empírico. Mas assim que abrimos as palavras e as coisas, assim que descobrimos os enunciados e as visibilidades, a fala e a visão se alçam a um exercício superior, a priori, de forma a cada uma atingir seu próprio limite que a separa da outra, um visível que tudo o que pode é ser visto, um enunciado que tudo que pode é ser falado. (Deleuze, 1995:74).

Agora citando o próprio Foucault, Deleuze irá pinçar algumas frases esclarecedoras: “por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas o que as sucessões das sintaxes definem...” de outro lado, “é preciso admitir, entre a figura e o texto, toda uma série de entrecruzamentos, ou antes ataques lançados de um ao outro, flechas dirigidas contra o alvo adversário, operações de solapamento e de destruição ... uma batalha” “invasão do discurso na forma das coisas”. (Frases citadas por Deleuze, p.75, a partir de Foucault, PC:25 e INP: 30, 48 e 50).

Essa forma de se posicionar diante da realidade implica em permanentes jogos de resistência entre discursos e práticas, ou entre práticas discursivas e não-discursivas, mais que em complementaridade de parte a parte, daí a possibilidade de multiplicação, germinação, proliferação dos enunciados na tessitura da história.

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As pesquisas sobre discursos, práticas e significações da loucura

Venho trabalhando há alguns anos sobre o problema da significação social da loucura dentro dessa perspectiva foucaultiana de análise do discurso. O trabalho pode ser conferido especialmente no livro recentemente publicado, em parceria com muitos colaboradores (Passos, 2009). Particularmente, o terceiro capítulo do livro é dedicado a uma longa discussão teórica sobre a definição, ou, melhor seria dizer indefinição, do objeto que nos ocupa: o conceito de loucura. Na problematização de um objeto, para além das condições epistêmicas de possibilidade de seu aparecimento e das relações discursivas internas ao discurso que lhe dá sustentação, isto é, no qual o objeto se situa, Foucault nos alerta para a fundamental consideração das “relações estabelecidas entre instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamentos, sistemas de normas, técnicas, tipos de classificação, modos de caracterização que o tornam possível” (Foucault, 1987: 51). Essas relações não seriam condições imanentes ao objeto, nem definiriam uma suposta essencialidade do mesmo, mas seriam as condições “que lhe permitem aparecer na história, justapor-se a outros objetos, situar-se em relação a eles, definir sua diferença, sua irredutibilidade e, eventualmente, sua heterogeneidade; enfim, ser colocado em um campo de exterioridade” (1987: 51). Isto significa dizer que, para se compreender a doença mental como um novo objeto, precisamos ir além de uma discussão puramente teórica, epistemológica ou histórica da noção no interior do corpo de saber que lhe deu origem – a psiquiatria. O que está em jogo é a própria emergência de determinado tipo de formação discursiva como totalidade, isto é, os enunciados e dispositivos de poder que dão sustentação ao objeto.

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Como diz Foucault a propósito de sua análise do campo discursivo: (...) trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação, de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode está ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-silenciosa de um outro discurso: deve-se mostrar por que não poderia ser outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar. (...) A questão pertinente [seria]: que singular existência é esta que vem à tona no que se diz e em nenhuma outra parte? (Foucault, 1987: 31-3). Na concepção de Foucault, “não se trata de interpretar o discurso para fazer através dele uma história do referente” (1987: 54), ou uma redefinição de sua essência. Neste sentido, não partimos de, nem perseguimos, uma suposta essência da loucura como fenômeno. Muito menos consideramos que o conteúdo adquirido com o aparecimento das formações discursivas médico-psiquiátricas e psicológicas corresponda a uma suposta essencialidade, finalmente encontrada por esses saberes. A experiência da loucura se apresenta como acontecimentos diversificados e mutuamente irredutíveis na história humana. A hibris grega, ou a possessão medieval não são outros modos de nomear o mesmo fenômeno da doença mental, são, isto sim, outros modos de experiência e de subjetivação daquilo que escapa aos modos de ser, normalizados por cada uma dessas épocas históricas. Pesquisas realizadas em diferentes contextos sócio-culturais, mais que nos dar respostas tranquilizadoras para a barulhenta polifonia de uma experiência limite, a que convencionamos chamar loucura, tem nos permitido uma compreensão problematizadora da emergência de discursos que cercam ou que procuram abarcar essa experiência, tanto quanto daqueles, muitas vezes silenciados, que a ela se abandonam. Menos ou mais que nos afirmarmos como seguidores de um brilhante maître à penser, a companhia de Foucault tem nos instigado a tensionar nossos modos convencionais de pensar e de ler a nossa história. - 87

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault. Um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Tradução de Ingrid Muler Xavier. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. DELEUZE, Gilles. Foucault. 2ª. Reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1995. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baseta Neves. Rio de Janeiro: Forenze-universitária, 1987. FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do Poder. 11ª. Reimpressão. Rio de Janeiro: Graal, 1995. INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Objetiva. PASSOS, Izabel C F. Loucura e sociedade. Discursos, práticas e significações sociais. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009. PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito, política, luto e senso comum. In: FERREIRA, M.M. & AMADO, J. (Orgs.) Usos & abusos da História Oral. 7ª. Edição. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. RODRIGUES, Heliana de Barros Conde. Sobre arquivos tumbas: uma análise da expressão “documento como monumento”. In: Lourenço, É.; Guedes, M.C.&Campos, R.H.F.(orgs.). Patrimônio cultural, museus, psicologia e educação: diálogos. Coleção Encontros Anuais Helena Antipoff. Belo Horizonte: PUC Minas, 2009.

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A NATUREZA E AS FORMAS DE MANIFESTAÇÃO DO PODER POLÍTICO: DEBATES TEÓRICOS Vera Alice Cardoso Silva1

Resumo

O ensaio tem por objetivo sistematizar pontos relevantes do debate relativo à natureza do poder político, tomando como referência pensadores que fixaram o contorno conceitual para a discussão moderna do tema. São destacadas as teses relativas à natureza do poder político que constituem as referências para as críticas e concepções inovadoras elaboradas por pensadores do século XX. Palavras-chave: poder político; ordem social; legitimação; autoridade; liberdade individual. Introdução

O poder político torna-se objeto de debate teórico a partir do momento em que se procura determinar o que está implicado na relação de comando-obediência, que é sua expressão mais visível no convívio social. Tal relação exprime uma assimetria de posições, referida a comportamentos que vinculam indivíduos em diferentes esferas interativas, nas quais é possível distinguir quem comanda e quem é comandado. Esse tipo de interação é caracterizado por algum grau de previsibilidade dos atos e reações que nela ocorrem. No âmbito da discussão mais geral sobre a ordem social, a noção de controle denota a operação de formas variadas de disciplinamento do convívio, a partir das quais se tornam compartilhados os valores, práticas e costumes dos quais deriva a estabilidade social. Esse compartilhamento 1 Professora Titular do Departamento de Ciência Política / UFMG

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inclui os princípios de reconhecimento da assimetria que distingue o poder político, assimetria esta legitimada pelo acatamento da autoridade à qual cabe a determinação do conteúdo do comportamento a ser seguido, bem como a sanção previamente definida como aplicável em caso de desobediência. A ordem social, quando investigada na perspectiva da estabilidade de complexos sistemas de interações, expressa a amplitude e a eficácia dos mecanismos de controle do comportamento individual e coletivo. Quando se admite que os que obedecem são seres livres e autônomos, capazes de escolher suas preferências e, portanto, de se insurgir contra barreiras que tolham sua liberdade de ação, coloca-se como tema pertinente para o pensamento político e social a pergunta sobre a natureza do poder político. Há muitas abordagens para organizar a reflexão sobre o poder político. É possível procurar identificar as razões que levam à obediência. É possível buscar determinar as condições sociais que levam à configuração de formas de convivência que dão origem e reforçam a desigualdade no acesso e controle de recursos a partir da qual se destaca um grupo que passa a comandar, impondo a obediência dos demais. É possível focalizar a própria relação comando-obediência, buscando entender o sentido atribuído por cada uma das partes à interação que as vincula. No estudo do poder político há, então, diferentes possibilidades de focalização, o que dá lugar a debates entre pensadores que se ocupam do assunto. Este ensaio tem por objetivo apresentar as linhas gerais do debate sobre a natureza do poder político e suas formas de manifestação, tomando como referência os pensadores que abordam o tema a partir do conceito de ação social, dentro da qual se observa a assimetria que separa quem manda de quem obedece a comandos políticos. Precedendo a apresentação desse debate, é conveniente esclarecer o que distingue duas outras manifestações de poder no âmbito social, identificadas como poder econômico e poder ideológico. A referência para a distinção relevante no estudo da ação social é o quadro analítico proposto por Max Weber, que buscou diferenciar as formas de interações entre indiví-

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duos e grupos em sociedades modernas, caracterizadas pela complexidade da divisão social do trabalho e pelo pluralismo. Weber identifica o campo de dominação estruturado pelo que denominou de constelação de interesses, no qual a assimetria de posições resulta do padrão de distribuição de recursos essenciais para a realização de determinado modo de produção e de distribuição de bens e serviços. Nesse âmbito, a posição de comando e a de obediência depende do tipo de recurso que é referência para o cálculo do interesse das partes que entram em acordos relativos à fixação de normas e procedimentos que disciplinam o mercado. Este é entendido como esfera de trocas expressas em equivalentes monetários, que incluem desde as relações contratuais do assalariamento até o cálculo de riscos em que incorrem pequenos e grandes empresários ao tomarem decisões de investir na produção ou na distribuição de algum bem ou serviço. Outro âmbito de dominação distinguido por Weber configura-se no campo da formação das mentalidades. Este pensador identifica nas instituições religiosas e nas estruturas de produção e circulação de idéias o lugar social do controle ideológico, que molda comportamentos e inspira movimentos de opinião de alcance e eficácia variados, dependendo da sociedade e do momento histórico em que ocorrem. Tais formas de controle têm impacto na política, isto é, na esfera de exercício do tipo de poder do qual depende o disciplinamento do convívio social que estabelecerá as condições de estabilidade e de previsibilidade na vida coletiva. Na perspectiva de Weber, um determinado padrão de organização social se perpetua justamente porque é garantido pela operação dos controles que decorrem de regras fixadas na negociação de interesses (econômicos), que constitui um âmbito privado das relações sociais, do compartilhamento de conjuntos de valores que criam elementos de coesão e comunicação entre os indivíduos e estratos sociais que compõem uma sociedade e, por fim, do reconhecimento coletivo de uma esfera de autoridade política, que produz e aplica a regulamentação que tem alcance geral e universal, à qual o coletivo deve lealdade .

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Como tema do pensamento político moderno, Maquiavel foi o primeiro pensador a tratar o poder político como capacidade de controle deliberado de comportamentos, expressão de certo tipo de racionalidade dirigida à obtenção de um fim específico, a saber, o disciplinamento de uma coletividade territorialmente definida. Maquiavel identificou esta capacidade como sendo atributo de indivíduos diferenciados justamente por sua vontade de poder que, para transformá-la em efetivo instrumento de controle, empreendem as tarefas de construção do Estado, ou seja, de estruturas especializadas na execução das diretrizes do governante e de fiscalização do comportamento dos governados. Tal visão do poder político foi também endossada por Weber, que definiu o Estado como empresa institucional, cujos funcionários reivindicam a prerrogativa de definir o conteúdo regulamentador da ordem coletiva em territórios determinados e a de deter o monopólio do uso legítimo de meios de coerção para prevenir a desobediência. A natureza complexa da relação entre governante e governado foi tratada por Maquiavel e por Weber, que nisto não inovaram, pois o tema do governo justo já tinha sido objeto de reflexão do pensamento político medieval. O governo justo era aquele que não oprimia o governado com tributos escorchantes e com leis contrárias a costumes e tradições consolidados e legitimados nas relações sociais rotineiras. Pensadores católicos argumentaram a favor do tiranicídio, considerando-o forma legítima de criar as condições políticas para a refundação de uma ordem social justa, mesmo que fortemente hierarquizada. A abordagem moderna coloca o tema predominantemente na perspectiva da legitimidade e não da justiça. Trata-se de reconhecer que o poder do governante só é efetivo se o governado o reconhece e o acata, o que se revela nos atos de obediência e na ausência de movimentos de contestação e rebelião. Segundo Maquiavel, o bom governante é o que consegue ser simultaneamente amado e temido pelos governados. O amor proviria de leis boas, que beneficiem o maior número possível, alienando poucos. O temor proviria da convicção de que o governante exercerá a autoridade com firme-

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za, aplicando com rigor a lei que garanta a ordem e, por esta via, a paz social, que é o bem maior que o governado espera que o governante assegure. Weber, por sua vez, para explicar as motivações que levam o governado a obedecer, de maneira voluntária, reconheceu ser necessário levar em conta as condições sociais dentro das quais se institui a cadeia comando-obediência. Ao distinguir três modalidades de legitimação – a tradicional, a racional-legal e a carismática – partiu da premissa analítica de que repousa nas relações sociais o fundamento da possibilidade, da eficácia, alcance e continuidade do poder político . À medida que avança a modernidade, com seu componente de racionalização das formas de organização das diversas esferas de interação entre indivíduos e grupos de indivíduos, as tradições e os costumes deixam de ser a referência dominante para a obediência. A legitimação da autoridade do governante pelo princípio do governo das leis expressaria a vitória ideológica dos valores do liberalismo político, fundado na visão do individuo autônomo, racional, portador de direitos civis e políticos que as leis e o governo constituído devem proteger. Já a legitimação fundada no carisma do líder político reflete a necessidade de se reconhecer, no campo teórico, a complexa dinâmica política de sociedades modernas, que podem passar por crises institucionais, e de sociedades tradicionais nas etapas de transição para a modernidade. Em tais contextos, ficam abalados os fundamentos sociais e ideológicos do liberalismo político ou os mesmos ainda não foram constituídos. Trata-se de momentos em que se coloca o desafio da refundação da ordem social. Os embates entre indivíduos e grupos podem levar à instauração ou à restauração da ordem liberal ou a alguma forma de autoritarismo. Segundo Weber, os desdobramentos de crises políticas e a força do poder carismático dependem dos valores e dos interesses dos contendores e dos modos de sua vinculação com os diferentes estratos sociais, diversamente afetados pelas crises e pelas mudanças na economia e nos seus lugares sociais. Note-se que Weber, ao tratar da natureza do poder político, introduz a perspectiva do movimento histórico, da mudança que altera os fundamentos propriamente sociais da obediência ao governante. Para este pen-

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sador, a mudança tem um sentido definido, que é o da expansão do componente racional nas relações sociais, expresso na tendência à organização, à burocratização dos procedimentos, ao planejamento das ações, particularmente nas esferas da economia e da política. Esta tendência, vista por ele como irreversível, é genericamente chamada de modernização. É no campo analítico configurado pela análise weberiana da ordem social na modernidade que se constitui o debate sobre a natureza do poder político, relevante para a teoria política contemporânea.

TEORIAS DA AÇÃO E A NATUREZA DO PODER POLÍTICO A reflexão sobre o poder político, configurada a partir de premissas de uma teoria da ação social, funda-se em concepções diferenciadas do que é a política como componente da ordem social. Na teoria social moderna, prevalece a visão sistêmica sobre a natureza do fenômeno social, entendido este como forma de convivência regulamentada, previsível, que incorpora mudanças adaptativas, portanto de modo incrementa,l ao longo do tempo e da sequência de gerações. Esta visão não parte do individuo isolado para explicar a coesão e racionalidade do coletivo. Pressupõe que o fenômeno social é uma trama complexa e inter-dependente de relações que vinculam os indivíduos em estruturas interativas, que são modos de fazer o que é visto como necessário para a continuidade do coletivo. Tais estruturas realizam tarefas, cumprem funções nos âmbitos essenciais para a reprodução de determinada concepção de sociedade. Nessa perspectiva, o conceito de sociedade denota uma modalidade de articulação das relações sociais condicionada por elementos de distinta natureza, destacando-se entre eles o grau de desenvolvimento tecnológico e o universo de valores que serve de referência para a distribuição dos bens socialmente produzidos e para o reconhecimento de direitos e deveres dos indivíduos e de grupos dotados de atributos coletivos que os distinguem, para diferentes efeitos, nas estruturas e tramas sociais. A visão sistêmica permite identificar e diferenciar estruturas e funções especializadas, cujo funcionamento rotineiro e integrado converge

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para manter a continuidade de uma coletividade, segundo padrões previsíveis de reprodução social. Esta é a referência teórica mais ampla para a construção de teorias da ação social. O foco da curiosidade intelectual nesta perspectiva pode ser assim resumido: qual é o sentido de que se revestem as interações que vinculam indivíduos nas práticas rotineiras normatizadas? Assim colocado o tema de reflexão, afirma-se a premissa de que a ação individual é sempre dotada de intencionalidade e que o sentido atribuído a cada ato decorre da própria interação, isto é, incorpora a reação ou avaliação do outro. Admite-se a racionalidade do indivíduo, isto é, sua capacidade de escolher e de hierarquizar preferências em situações específicas. Mas, assume-se que os elementos sobre os quais ela se aplica derivam das circunstâncias particularizadas dos indivíduos. A partir dessas premissas gerais, delimita-se a reflexão sobre a política e o poder político no campo das teorias da ação social. Max Weber e Hannah Arendt exemplificam bem o impacto da interpretação que se dá ao sentido da ação social sobre a definição da política e a identificação do lugar e natureza do poder político. Para Weber, o sentido da ação relevante no âmbito do controle social é o resultado que se quer alcançar. Nessa perspectiva, ganha relevância o foco na cadeia comando-obediência. O que se quer, por meio do exercício do poder político, é garantir a efetividade de determinada forma de disciplina social. O processo deliberativo está essencialmente vinculado às estruturas de coerção; a ação dos governantes é vista como instrumental, como meio de se atingir fins por eles desejados. Pressupõe-se o conflito de opiniões, mas o poder político não está aí. Desse modo, torna-se necessário reconhecer na política duas dimensões distintas, a saber, o momento decisório, associado a conflitos de opiniões, projetos e visões da ordem social, e o momento do poder, quando um grupo prevaleceu e assumiu o controle das estruturas que vão executar suas diretivas. Nessa perspectiva, afirma-se que a racionalidade própria da política é a estratégica, isto é, a que se expressa no processo de fixação de objetivos e metas, na identificação clara dos interesses que se quer realizar, no planejamento

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das ações visando aos fins desejados, planejamento este que leva em conta a situação, recursos e capacidade de reação do(s) adversário(s). Em tal contexto, o poder político é definido como capacidade de obter obediência para os comandos fixados pelo governante por meio de atitudes do governado que passa a se comportar como se as normas que segue tivessem derivado de decisão sua. Trata-se aqui de reconhecer que a violência, que é atributo próprio do poder político, significa, essencialmente, auto-contenção; só em última instância realiza-se como alguma forma de coerção física. Hannah Arendt identifica a política em outro tipo de interação social, cujas características descreve em sua teoria da ação comunicativa. Para ela, é o diálogo, a capacidade de troca de idéias, apresentadas em falas destinadas a persuadir, o elemento distintivo da política. O seu objetivo é a criação de consenso relativo ao conteúdo das regras que servirão de referência para os processos deliberativos referidos a aspectos específicos do convívio de homens livres e iguais quanto à capacidade de exprimir opiniões e preferências. Logo, o campo da política é o do exercício da liberdade de crítica, de proposição, de vigilância das instituições de controle social para que não percam sua vinculação originária com o processo de produção de consenso do qual se originaram. Nessa perspectiva, o Estado é visto como estrutura que pode produzir o bem ou o mal para os governados. Sua função administrativa, que Jurgen Habermas depois chamou de violência estruturada, só se tornaria legítima quando baseada em processos de deliberação com a participação ativa dos governados, organizados segundo regras que garantissem a efetividade do diálogo entre todos os interessados, diálogo livre de qualquer manipulação, quer no plano do direito à fala, quer no da obtenção e circulação das informações a ele pertinentes. A política, então, só se encontra nos movimentos de resistência ao domínio violento, que nega o direito à livre expressão de idéias e à crítica às formas sociais de domínio. Por via de consequência, realiza-se plenamente como experiência humana nos momentos de fundação das liberdades, quando se discutem e se reconhecem direitos que só existem de fato quando constituem a referência ética para o convívio rotineiro nos diversos âmbitos da vida social.

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Para Hannah Arendt, o modelo perfeito da esfera política encontra-se na assembléia dos cidadãos atenienses, na qual todos tinham direito ilimitado à fala e a unanimidade era a regra dominante para a votação de leis. Nessa perspectiva, a estrutura organizada do Estado, que realiza a o governo rotineiro, por meio dasregras e procedimentos das burocracias especializadas, é vista como forma de violência, isto é, como campo interativo caracterizado por cadeias de comando-obediência. Trata-se de comportamento configurado por normas, que não são contestadas pelos indivíduos “amarrados” nas hierarquias. Nesse âmbito, na melhor das hipóteses, prevaleceria o principio da competência e da eficiência no fazer, em tudo diverso da racionalidade discursiva que caracteriza a política. Na pior hipótese, é o campo da ação arbitrária. A visão da política construída por Hannah Arendt, fundada na premissa de que é no campo da fala, do diálogo, que os homens exprimem o que há de distintivo em seu modo de inserção social, certamente não é sistêmica, pois não leva em conta o substrato material, econômico de qualquer sociedade. Mesmo a democracia ateniense, por ela vista como modelo perfeito de instituição capaz de garantir a liberdade de cada um e de afastar a arbitrariedade, dependia da divisão entre trabalhadores e cidadãos livres, que podiam dedicar-se inteiramente ao debate porque outros cuidavam das tarefas de sustentação material da sociedade. Jurgen Habermas buscou superar o debate que coloca o poder político ou no campo da racionalidade instrumental, estratégica ou no campo da racionalidade discursiva, do diálogo, da persuasão. A síntese que propõe lança mão de elementos da teoria do sistema social elaborada por Talcott Parsons. Para este pensador, o poder político é um atributo das relações sociais fundadas na divisão do trabalho social e em valores compartilhados pelos indivíduos a partir dos lugares sociais que ocupam. Pode ser definido como capacidade de vincular indivíduos e grupos nas ações e orientações de comportamento requeridas para a realização de objetivos coletivos. Parte-se da premissa de que a ordem social resulta da convergência de variados tipos

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de ações realizadas por indivíduos que cumprem tarefas específicas – identificadas como papeis – dentro de estruturas socialmente acatadas como responsáveis pela execução de funções necessárias para a continuidade da sociedade. As funções essenciais, que se desdobram em tarefas articuladas em algum padrão de divisão do trabalho, são as que organizam a economia, a reprodução dos valores e a educação dos indivíduos de modo a criar os estímulos para a adoção dos papeis requeridos para a continuidade de dado modelo de organização social, e a esfera de coordenação e direção do coletivo. Nessa perspectiva, a gestão do coletivo é vista primordialmente como administração, ou seja, como monitoramento das diversas estruturas que cumprem as tarefas de reprodução da ordem social, de modo a garantir que modificações sejam planejadas sempre que houver mudanças no ambiente de alguma estrutura que indiquem a necessidade de adaptações. A noção de política fica, então, subsumida à de planejamento. A política como manifestação de divergências e âmbito de expressão de conflitos regulatórios e distributivos é associada à estrutura de instituições que cumprem a função de vincular os indivíduos, a partir de seus papeis sociais, às instituições encarregadas do governo, isto é, da administração e coordenação do coletivo. Nessa perspectiva, a política passa a ser vista como esfera fragmentada de discussões e deliberações, pois os indivíduos, em seus papeis políticos, têm como referência os contextos estruturados nos quais se encontram rotineiramente e a partir dos quais vivenciam problemas, que querem ver resolvidos pela autoridade política pertinente, e visualizam formas novas de fazer as coisas ou de distribuir bens e serviços, que, para se efetivar, demandam intervenção da esfera de regulação que administra o coletivo. Tal concepção da dinâmica social não fornece elementos para o estudo dos conflitos entre grupos configurados a partir de identidades excludentes, como é o caso dos nacionalismos e das lutas de classes. Funda-se na premissa das relações sociais estruturadas a partir da divisão social do trabalho, que se torna a referência para que o indivíduo identifique seus interesses e valores, que lhe permitem reconhecer o(s) grupo(s) com o(s) qual (quais) faria sentido se associar na esfera política. Nessa perspectiva, o po-

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der político não está no plano da dominação coercitiva, mas nos processos de socialização, que educam o indivíduo para a disciplina social. Por meio desta, os papeis sociais são assumidos com grau adequado de disposição por parte dos indivíduos, sendo residual a incidência de disfunção social, isto é, de rejeição ou contestação deliberada da disciplina social. Jurgen Habermas apropria-se de algumas premissas dessa teoria do sistema social para rever os termos do debate sobre a natureza do poder político. Reconhece que a ordem social só se mantém e tem continuidade por causa da existência de estruturas estáveis e previsíveis de convivência , que se reproduzem rotineiramente. Este é o mundo sistêmico. Mas, há que reconhecer, também, o mundo da vida, no qual se manifesta a liberdade de cada um, aí incluída a possibilidade de crítica e de resistência à disciplina social, no seu todo – âmbito dos projetos de revolução – ou em parte dela – âmbito de reformas sociais. Cada âmbito tem sua racionalidade própria, isto é, a instrumental, inevitável nas formas rotineiras das organizações, aí incluída a estatal, e a comunicativa, necessária para que se institua e se efetive a política como confronto de vontades livres, reunidas em debates públicos com o objetivo de construir consensos sobre modos de fazer as coisas e sobre formas justas de distribuição de bens e serviços sociais, debate este que sempre se refere ao reconhecimento político de direitos de indivíduos e de grupos específicos. Ao propor tal distinção, Habermas concluiu que, no estudo do poder político, entendido este como capacidade de comando que requer compulsoriamente obediência, dois momentos devem ser distinguidos, a saber, o de sua gestação e o de seu exercício. A burocratização dos comandos, que se revela em hierarquias de autoridade institucionalizada, não poderia ser caracterizada como forma de violência contra o indivíduo desde que as regras de procedimento para a produção e aplicação das normas tivessem resultado de consenso obtido em esferas públicas de debate e de participação livre de todos os interessados e afetados pela rotina das organizações. O Estado é, então, identificado como organização especializada na função de coordenar a coesão do todo, o que faz por meio de estruturas especializadas, referidas a partes desse todo.

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A síntese teórica proposta por Habermas conduz naturalmente ao tema das instituições. Ao ressaltar o momento da gestação do poder e associá-lo à manifestação da liberdade de expressão e de crítica, este pensador impôs a necessidade de se reconhecer a dinâmica política da esfera pública, que não se confundiria com a esfera estatal. A primeira é o lugar da liberdade, a segunda, o lugar da disciplina. Mas, ambas realizam-se por meio de formas acatadas de vinculação dos indivíduos, ou seja, são institucionalizadas. Assim sendo, na luta pela afirmação da liberdade, coloca-se o desafio de conceber instituições que efetivamente realizem as condições da ação comunicativa identificadas por Hannah Arendt, isto é, as que assegurem o diálogo livre de qualquer tipo de impedimentos. Constitui-se, assim, o horizonte das inovações institucionais que têm modificado as formas de organização e de funcionamento de muitas democracias liberais contemporâneas. Os dois tipos de racionalidade política, isto é, a instrumental e a comunicativa, acabam realizando-se em instituições distintas, mas cada vez mais inter-dependentes.

ABORDAGENS RECENTES NO DEBATE SOBRE A NATUREZA DO PODER POLÍTICO A discussão atual sobre o poder político caracteriza-se por colocar o tema na perspectiva mais abrangente da modernização, vista esta como processo de transformações que altera constantemente a divisão social do trabalho e o universo dos valores de convivência a partir dos quais os indivíduos constroem sua identidade nas tramas das relações interpessoais e por referência à suas posições nas múltiplas instituições que os vinculam. A produção teórica de Niklas Luhmann e de Michel Foucault sobre a natureza do controle social exemplifica adequadamente esta tendência. A modernização é sempre associada ao processo de racionalização das relações sociais, decorrente da revolução industrial e de mudanças correlatas, a saber, a urbanização, a profissionalização das habilidades requeridas pelas mudanças impostas por inovações tecnológicas e a multiplicação de hierarquias sociais não mais baseadas exclusivamente em critérios tradi-

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cionais, tais como família, a propriedade da terra ou o prestígio de estamentos. A noção de pluralismo, utilizada para denotar um atributo essencial da sociedade moderna, indica justamente a multiplicidade de focos de interesse e de princípios de identidade a partir dos quais os indivíduos definem seus compromissos políticos. Os projetos e conflitos propriamente políticos, isto é, que devem ser resolvidos por meio de leis e de diretivas de governos, não mais se configuram como lutas que dividem campos antagônicos, em que o lado vencido perde quase tudo pelo que lutava. As lutas da modernidade em sociedades industriais e urbanas raramente se configuram como confrontos de posições inegociáveis. Pelo contrário, distribuem-se por esferas de interesses específicos, em geral associados a campos bem especializados de interação política, que induzem a formação de comunicação em redes que vinculam grupos específicos a ramos especializados do aparato estatal. Chega-se a falar de comunidades epistêmicas , que formatam as agendas e conduzem os processos deliberativos no âmbito das estruturas políticas especializadas. Nessa perspectiva, o Estado continua a ser visto como aparato burocrático, mas não mais como campo homogêneo e coeso de exercício do poder político. Pelo contrário, destaca-se sua natureza conflituosa e o papel que cada uma de suas estruturas componentes cumpre no sentido de proceder à filtragem dos temas , projetos e concepções normativas que prevalecerão como referências para a definição dos comandos disciplinadores de diferentes aspectos da vida coletiva. No plano propriamente político, a sociedade não é mais vista como realidade única e integrada. Passa a ser vista como objeto de agenda governamental. Esta é seletiva e os critérios de seleção resultam de decisões políticas. Nesse contexto, o poder político é a capacidade de influir na agenda; logo, é atributo de indivíduos e grupos em posições que permitem o exercício da influência nessas decisões. Para destacar a dinâmica da política em sociedades pluralistas, Luhmann destaca o que chama de contingência das formas sociais. O conceito denota, simultaneamente, a variabilidade possível da organização social – o que é demonstrado pela variedade dos arranjos institucionais entre as sociedades modernas – e o princípio que explica a “vitória” de um arranjo ou

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modelo institucional, que é a atribuição de um sentido que lhe é dado pelo grupo que ele deve vincular. Esta visão destaca a complexidade própria de ambientes pluralistas, nos quais prevalece a circulação de informações e que admitem o experimentalismo institucional sem grandes restrições normativas ou técnicas. Este é o contexto que leva Luhmann a definir o poder político como capacidade de definir os conteúdos de informação que irão circular dentro e fora de ambientes especializados e que servirão de referência para a formação de opiniões. Para ele, a democracia como forma de organização da política é menos um conjunto de regras que definem como escolher os governantes e como estes de relacionarão com os governados, do que a garantia de espaços institucionalizados que garantam a vigência de um modo de controle social sobre os processos deliberativos, que ele denomina de sociedade mental. Trata-se de assegurar e estimular a auto-reflexão permanente sobre o sentido das leis, dos padrões de distribuição de bens sociais, dos conteúdos e prioridades das agendas governamentais, de modo a tornar sempre mais inteligentes as estruturas de gestão da vida coletiva. Nessa perspectiva, a inteligência social denota a capacidade de aprendizagem coletiva, processo que, ao ver de Luhmann, contribui para aumentar a adesão ao interesse coletivo e para diminuir o espaço para confrontos redistributivos baseados em referências identitárias que fragmentem o todo, como é o caso da classe social, etnia, religião, língua, sexo ou outra que venha a ser proposta pelo principio da exclusão. Luhmann retoma a teoria do sistema social nela introduzindo o elemento dinâmico da modernização, que é, justamente, a alteração no componente da ordem social referido à função da coordenação e direção dos objetivos coletivos. Ao destacar a gradual impossibilidade de uma direção única e coesa, mostrou a importância dos grupos de pressão e de interesse em processos de apropriação do Estado que contam com a colaboração de indivíduos que ocupam posições dotadas de poder deliberativo real, mas circunscrito a aspectos específicos da ordem social, referidos a setores bem delimitados da organização social. Assim sendo, destaca a pulverização das esferas deliberativas e o aumento do componente de negociação entre as

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autoridades estatais e agentes privados. Sob este prisma, ampliou-se a participação dos governados na política e, portanto, o poder de controle dos governados sobre o Estado. Mas, tal controle permanece restrito a setores bem delimitados, o que impede o monitoramento social efetivo sobre a modelagem integral da ordem social. É esta lacuna que fundamenta a crítica de Luhmann ao Estado do Bem Estar. Para este pensador, ao se transferir para o âmbito político a responsabilidade de compensar indivíduos e famílias por falhas decorrentes do modo de organização da economia, restaura-se o campo para tipos de dirigismo que emasculam a capacidade crítica dos que são classificados como não integrados no convívio de seres autônomos. As políticas sociais, então, representariam formas de reconhecimento social de discriminação da liberdade. Sua aceitação diminuiria a inteligência da democracia e restauraria condições para o exercício mais ou menos abusivo do poder de domínio da sociedade pelo Estado. Encontra-se em Michel Foucault outra perspectiva de discussão sobre a natureza e modos de manifestação do poder político que tem como referência a configuração das relações sociais a partir da divisão do trabalho e das hierarquias próprias de sociedades complexas, constituídas a partir do domínio de conhecimentos especializados. Foucault introduz a noção de sociedade disciplinar para denotar a característica dos processos de socialização dirigidos à educação dos indivíduos para que assumam os papeis sociais necessários à reprodução de um modelo dominante de convívio e de distribuição dos bens sociais, aí incluído o prestígio e o reconhecimento público de valor e importância. O sucesso da socialização é a expressão máxima do poder de dominação dos grupos que definem os conteúdos normativos congruentes com a concepção de organização das instituições que se torna hegemônica em cada etapa de evolução da modernidade, tal como ela se realiza em cada sociedade. Para Foucault, o componente repressivo do poder político é residual; o poder efetivo reside na capacidade de uns homens formarem as mentes e personalidades de outros. Nessa perspectiva, para Foucault, não faz sentido propor uma teoria do poder, dado que o conceito de dominação, entendida esta como capacidade de controle de

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comportamentos cuja característica distintiva é a prerrogativa de aplicação de sanção definida em norma formal, não contempla a dinâmica essencial das relações de poder, que se constituem, primordialmente, na trama das relações sociais institucionalizadas. Para este pensador da ordem social, as instituições existem para vigiar e punir. A partir desta interpretação, o tipo de reflexão relevante sobre o poder político funda-se, justamente, no estudo do funcionamento das instituições sociais, configurando um campo especializado de saber crítico, que Foucault denomina de analítica das relações de poder. Esta é organizada a partir de uma premissa teórica inspirada em Maquiavel, para quem a estabilidade de um coletivo decorre de relações de força, isto é, da ação deliberada de indivíduos que afirmam sua vontade de poder por meio da criação de instituições disciplinadoras da convivência coletiva que realizam os desejos dos que ocupam as posições de comando. Para Foucault, toda e qualquer forma de convívio social se dão em campos de força, dentro dos quais há manipulação das vontades e sistemática emasculação da liberdade individual. Tanto o dominador, quanto o dominado estão presos em tramas interativas que impedem a experiência da autonomia. De fato, esta só se expressa como resistência a alguma forma de disciplina do comportamento. Quando tal resistência torna-se organizada e impõe mudanças em concepções de disciplina social configura-se o campo do poder político. Retoma-se- aqui, por outra via teórica, a tese defendida por Hannah Arendt, para quem o poder político reside na fala, no discurso, no diálogo entre iguais, que leva à rediscussão coletiva dos princípios e valores que vinculam os indivíduos num universo ético amplamente compartilhado. Para estes pensadores, a política como componente da vida social é um processo constante de reconstrução dos termos da convivência justa. Não se trata tanto de manifestação da sociedade inteligente, lidando com desafios de adaptação a desarranjos provenientes de diferentes origens – demográficas, tecnológicas, ambientais, culturais – preconizada como ideal democrático por N. Luhmann, mas de efetiva experiência de liberdade humana. Esta é identificada no plano das aspirações por reconhecimento social, no desejo de realização a partir de diferenças de identidade social, na vontade de re-

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constituir lugares e formas de convívio que o progresso da civilização tecnológica marginaliza ou exclui como tradicionais, anacrônicos, atrasados. Esta modalidade de pensamento social institui o campo de crítica abrangente ao racionalismo ocidental como referência hegemônica para a organização das instituições. Na perspectiva proposta por Foucault, o entendimento da natureza do poder político exige que seja ultrapassada a tese que o associa exclusivamente a uma estrutura instituída por princípios jurídicos, por meio da qual fica determinada a posição do soberano, visto este como fonte da prerrogativa normativa legítima de definir leis que fixam os âmbitos de igualdade e de desigualdade entre os indivíduos. O soberano – nas democracias liberais localizado no poder legislativo, por definição constitucional – nada mais é do que a expressão de algum modelo de dominação social. No que se refere à dinâmica da liberdade (individual) e da dominação (social), o sentido real das formas jurídicas expressas em contratos, em mandatos, em delegações de autoridade, nas hierarquias organizacionais deve ser “destrinchado” por meio de descrições críticas das tramas rotineiras das relações sociais. É assim que se torna possível desnudar os campos de força dentro dos quais os indivíduos se defrontam, na sua concretude cotidiana. Segundo Foucault, só nesses espaços seria possível experimentar as condições da resistência e da emancipação, ou seja, a liberdade. Nessa perspectiva, recupera-se, de certo modo, a visão sistêmica da ordem social. De fato, esta só poder ser interpretada como resultado da reiteração de uma miríade de atos e interações rotineiras por meio da qual se dá a reprodução de uma dada concepção de convívio de indivíduos moldados para os papeis que cumprem nos lugares que ocupam na trama social. O Estado seria uma idealização dessa ordem, traduzida nas ações dos governos. Na grande trama sistêmica, estes seriam os aparatos da administração pública nos seus atos burocráticos por meio dos quais bens coletivos seriam processados, aí incluídas as instituições de disciplinamento especializado, como escolas e cárceres. Nessa interpretação, não há lugar para a política entendida como atividade própria de homens livres, tendo por objetivo resolver conflitos coletivos e produzir a regulamentação que

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assegure a estabilidade e a vida boa com o máximo de espaço para a autonomia individual. Também deixa de ter sentido analítico a reflexão sobre o fundamento da legitimidade da assimetria que é própria da cadeia comando-obediência.

CONCLUSÃO O debate sobre a natureza do poder político, tal como se desenvolve no pensamento ocidental do século XX, centra-se no tema da liberdade do indivíduo. Na formulação moderna do problema, destaca-se a assimetria que separa governante e governado, ressaltando-se o impacto dessa condição na liberdade do governado. A ideologia liberal foi a solução moderna para a legitimação de instituições acatadas como capazes de garantir a ordem e a eficácia do governo e, ao mesmo tempo, preservar o âmbito da liberdade do governado. A tradução liberal desse âmbito levou, em um primeiro momento, ao reconhecimento de liberdades, regulamentadas como direitos de cidadania civil e política. O constitucionalismo passou a ser o principio legítimo para a definição do modo aceitável de interferência do poder público na esfera da vida privada dos indivíduos, agora identificados como cidadãos, sujeitos de direitos inalienáveis, isto é, que o governante não podia desconhecer e devia proteger. Por esta fórmula política ficava bem clara a separação entre a estrutura do Estado – poder político organizado em órgãos e cargos especializados, formatados segundo diretivas constitucionais – e o mundo variado dos governados, isto é, a sociedade. Por meio da associação visando à representação de interesses privados na esfera estatal , os cidadãos configuravam a sociedade civil. O Estado era visto como estrutura racional, coesa, o lugar por excelência das negociações e deliberações políticas civilizadas. Este modelo ideal de delimitação de fronteiras – o espaço do público, entendido como esfera estatal, e o espaço do privado, entendido como âmbito dos negócios e transações sociais diversas nas quais se empenham os indivíduos – foi sendo gradualmente afetado pela modernização social. A cidade passou a ser o lugar dominante da vida privada, ampliou-se e se

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tornou mais complexa a divisão social do trabalho, a monetarização das trocas inviabilizou a economia de subsistência e as formas tradicionais de escambo. A família extensa deu lugar à família nuclear e ao que tem sido chamado de novos arranjos familiares, termo que denota formas de associação de indivíduos para garantir a sobrevivência material e certo grau de apoio afetivo aos membros do grupo. Tais mudanças criaram o clima político propício para a aceitação da idéia de que cabe ao poder público também a tarefa de proteger indivíduos e grupos em situação de vulnerabilidade social. Esta idéia traduziu-se na configuração da função social do Estado , da qual decorreu um processo que os estudiosos desta alteração da democracia liberal clássica identificam como “penetração” da sociedade no Estado. Esta mudança ampliou a participação política e diversificou os foros de deliberação referidos à tarefa de identificação de áreas de intervenção dos governos na vida social. Esta foi uma via de modificação da tese da autonomia do governado e de revisão da noção liberal de liberdade do governado face ao governante. Outra via de modificação da organização do Estado Liberal foi a expansão do pluralismo social. A sociedade moderna é muito mais uma sociedade de grupos do que uma sociedade de indivíduos. O que se ressalta é a multiplicação e a diversificação dos focos de referência que motivam os indivíduos à associação política. A consequência desta condição da vida em sociedades modernas é a fragmentação das arenas deliberativas, o que dá nova configuração à relação entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, definidos pelo liberalismo clássico como forma de garantir a predominância da presença do governado na regulamentação. Um ramo de estudos promissor na teoria política contemporânea dedica-se, justamente, a mostrar que não vigora mais a lógica hipotético-dedutiva própria da racionalidade da democracia liberal clássica. Esta prevê que a eleição dos legisladores preceda a aprovação de leis que serão aplicadas pelos ocupantes dos cargos executivos. A lógica do Estado Contemporâneo é a da dispersão dos centros de poder e a da fragmentação das agendas governamentais. Os indivíduos são livres para se associar, mas dificilmente haverá um gru-

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po que seja bem sucedido em impor como pauta a discussão de grandes temas da liberdade, como, por exemplo, a noção de cidadania no âmbito internacional ou a reflexão sistemática e abrangente sobre justiça social. O máximo que se pede, no plano da utopia, é que se criem as condições para a sociedade mental, como propõe N. Luhmann, a saber, aquela aberta e receptiva à inovação. Nesta, certamente, o exercício do poder político tenderá a estar associado ao domínio de conhecimentos especializados, consistindo na capacidade de escolher entre opções de organização que assegurem mais conforto e segurança na vida privada, segundo certo preço a pagar em termos de restrições à liberdade individual, decorrente da necessidade de coordenação racional do todo. Atualmente, é no âmbito da filosofia política que ainda se coloca o debate sobre o poder político na perspectiva das tensões entre liberdade individual e ordem social. Destacam-se dois tipos de abordagem, a saber, a que propõe a reflexão sobre a justiça e a que busca superar o enfoque individualista na análise da ordem social, que destaca a intencionalidade dirigida pelos interesses, reintroduzindo a noção de comunidade como esfera de convivência instituída no plano ético. Mas, em ambas as abordagens, presume-se que as relações de assimetria , próprias da manifestação do poder político, diluem-se nas diferentes esferas da vida social, não mais se configurando como atributo restrito ao domínio do Estado. A teorização moderna sobre o poder político superou definitivamente as concepções que o restringiam ao âmbito exclusivo da ação de soberanos, isto é, de ocupantes de posições de autoridade formal. Dessa maneira, o estudo do controle social passou a ser objeto de diferentes ciências do social, além da ciência política e da filosofia política. Ganhou ressonância na sociologia, na antropologia e na psicologia social em um processo de ampliação do conhecimento que muito enriqueceu a reflexão sobre aspecto tão crucial para a ordem social e para a realização das potencialidades de cada membro dela. Nesse novo ambiente teórico, a política deixa de ser tema especializado de cientistas e filósofos políticos e passa a ser objeto de preocupação de outros campos do saber e, de modo dramático, de todo indivíduo preocupado com o destino da humanidade. 108 -

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A CORRUPÇÃO DO PODER DEMOCRÁTICO Fernando Filgueiras1

Introdução

Tem sido recorrente nas democracias o diagnóstico de uma crise do sistema convencional de representação política. Um dos elementos que certamente contribuem para esse diagnóstico é uma maior percepção da corrupção como um mal inerente da política contemporânea, que acompanha partidos e sistemas políticos, tanto em países do centro quanto da periferia do capitalismo. O diagnóstico de uma crise do sistema de representação opera com a ideia de que a atuação das instituições políticas não coincide com o interesse dos representados, não produzindo uma concepção forte de bem comum. O descontentamento com as instituições políticas tem sido uma tônica das democracias, criando dificuldades para a legitimidade política. A corrupção, nesse quadro, contribui para esse descontentamento da cidadania frente às instituições. Esta concepção do problema das crises do sistema representativo tem suscitado a preocupação com a qualidade da democracia, em que a corrupção, certamente, é um elemento corriqueiro na sua degeneração. A qualidade da democracia refere-se a elementos procedimentais, de conteúdo e de resultado de políticas constituídas pela vontade geral, tendo em vista regras institucionais e valores fundamentais que organizam e estruturam uma sociedade democrática.2 A corrupção, nesse caso, afeta a qualidade da democracia por degenerar os procedimentos, o conteúdo e os resultados relacionados às políticas. No que tange aos procedimentos, a corrupção 1 Professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do Centro de Referência do Interesse Público (CRIP), dessa mesma instituição. Autor do livro Corrupção, Democracia e Legitimidade (Editora da UFMG, 2008). 2 Larry Diamond, Leonardo Morlino. “Introduction”, in: Assessing the quality of democracy. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2005.

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corrói as regras institucionais básicas de decisão e implementação de políticas a favor de interesses privados. Nesta acepção, a corrupção enfraquece o Estado de direito e o sistema de responsabilização política em detrimento da participação da sociedade e dos valores fundamentais da ordem pública. Quanto ao conteúdo, a corrupção degenera a igualdade de direitos e, por consequência, a liberdade. A corrupção torna alguns indivíduos mais iguais do que outros, esvaecendo o princípio da igualdade política como o princípio de uma sociedade democrática. E, por fim, a corrupção prejudica os resultados das políticas e da ação das instituições democráticas, diminuindo a eficiência na aplicação dos recursos públicos e o resultado das políticas públicas, reforçando a perpetuação da pobreza e da desigualdade. Em uma democracia, portanto, a corrupção degenera o próprio fundamento de legitimidade do poder, corroendo as regras e princípios fundamentais da ordem política para favorecer interesses privados. Nesse caso, a corrupção não se resume a uma relação econômica de apropriação indevida de recursos públicos, mas um processo social mais amplo de patogenia institucional. O objetivo desse texto é perquirir a relação entre corrupção e democracia observando a interação entre a importância dos desenhos institucionais da representação democrática e os valores políticos fundamentais de uma moralidade política de uma sociedade democrática. Com este objetivo em vista, pretendemos, na primeira seção, interrogar a relação entre corrupção e representação. Na segunda seção tratamos o modo como a corrupção afeta a qualidade da democracia, com foco na experiência brasileira recente.

CRÍTICA À ECONOMIA POLÍTICA DA CORRUPÇÃO: ELEMENTOS PARA A DEFESA DA QUALIDADE DA DEMOCRACIA O governo democrático é instituído mediante representação. Essa é uma afirmação categórica da teoria democrática, que busca um critério de legitimidade política na questão dos interesses. O problema do governo democrático é a consolidação do imperativo da representação mediante a articulação da justificação e reconhecimento dos interesses como válido

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para a ação política. De imediato, a passagem do privado ao público é construída pela ação política, em que o indivíduo busca o reconhecimento de seus interesses na civitas mediante a participação nos negócios públicos. Esta participação é mediada por regras e procedimentos que instituem uma sociedade democrática. A característica de uma sociedade democrática é a virtude da construção institucional associada a valores de fundo, principalmente o valor da igualdade. O conceito de interesses representou um momento de ruptura realizado pelo pensamento político moderno, sem que a política estivesse presa a uma concepção de virtudes.3 A democracia, por outro lado, é um arranjo institucional em que a ideia de interesse é central para a construção da legitimidade. Como se trata de uma vida institucional, a democracia separa os correlatos funcionais do interesse privado e do interesse público, fazendo com que a construção da legitimidade esteja assentada no segundo como princípio heurístico. Ou seja, o interesse público é a construção de um princípio de legitimidade, porquanto envolva o consentimento que indivíduos morais dão para a origem da autoridade política. O interesse público não trata de uma concepção unívoca ou empiricamente assentada. Ele é um princípio normativo que estipula o fato de que os interesses dos cidadãos, em uma democracia, podem ser identificados com um valor público fundamental que valida e legitima a ação das instituições políticas, desde que estes mesmos cidadãos sejam tratados em condições de igualdade. O interesse público, portanto, surge da interação entre instituições e valores, representando um consentimento em torno de políticas e ações de governo balizadas no princípio da igualdade. O interesse público, a partir disso, pode assumir diferentes significados a partir de uma construção democrática de valores.4

3 Albert O. Hirschman. As paixões e os interesses. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. 4 John Dewey. The public and its problems. Athens: Ohio University Press; Swallow Press, 1988. Barry Bozeman. Public interest and public values. Counterbalancing the economic individualism. Washington: Georgetown University Press, 2007.

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O consentimento é um princípio de legitimação, o qual permite a passagem do privado ao público, de acordo com uma separação radical entre a vida institucional e o cotidiano dos cidadãos. Para Locke, o governo é legítimo à medida que sua autoridade emane das leis com as quais os cidadãos consentiram seus termos a partir de seus interesses.5 O interesse, como indica Hirschman, é um domesticador das paixões e permite a construção de um critério de legitimidade, visto que moraliza as concepções políticas de sociedades comerciais e marcadas pela divisão do trabalho.6 O consentimento é a capacidade de construção de um acordo motivado por regras, sendo a representação a capacidade do indivíduo de vocalizar suas preferências no âmbito dos sistemas administrativos da sociedade, tendo em vista a formação de uma autoridade política. A representação, nesse sentido, é um imperativo da vida democrática moderna, sendo a política uma esfera de articulação legítima dos interesses. Pressupõe-se que o cotidiano não opera na política enquanto espaço de disputa dos interesses. Fundamental é que a política, na modernidade, opera por fora do cotidiano dos indivíduos, de acordo com o imperativo da representação. A atividade política é realizada por profissionais, que agem de acordo com uma ética de responsabilidade que afasta as convicções morais. Sendo uma esfera da vida social dotada de certa autonomia, a política, nas democracias representativas, procura seu princípio de legitimação na ideia de uma racionalidade orientada para os interesses, importando à ação política mais a realização dos fins do que o respeito às convicções éticas. A responsabilidade política, nesse sentido, é derivada de uma vida institucional em que o cotidiano não se encontra presente nas estruturas de exercício do poder. Ao contrário disso, a política é uma atividade profissional, em que seus agentes no Estado moderno agem motivados por seus interesses e limitados por uma legalidade que legitima a ação política.7 5 John Locke. Dois tratados sobre o governo civil. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 6 Albert O. Hirschman, op. cit. 7 Max Weber. “A política como vocação”, in: C. Wright Mills e H.H. Gerth (eds.). Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2002.

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A corrupção, nessa chave do pensamento político moderno, é quando a passagem do privado ao público ocorre de maneira ilegal. Ou seja, quando o interesse privado se sobrepõe ao interesse público. Como o conceito de interesse está relacionado à construção de sociedades comerciais, a vida institucional está balizada no imperativo da representação e na capacidade do indivíduo de ver reconhecido seu interesse no âmbito da civitas. O direito, nesse sentido, cumpre o papel, na modernidade, de garantir os equivalentes funcionais do interesse privado e do interesse público, diferenciando esferas de juridificação dos interesses e sobrepondo barreiras que separem ambas as dimensões do mundo político.8 A proteção do Estado contra a corrupção demanda a repartição de papéis entre a administração pública e a sociedade, implicando um inevitável distanciamento formatado pela engenharia jurídica, de modo a tutelar, judicialmente, os interesses privados e o interesse público. É a categoria interesse que se torna, portanto, chave para se pensar os termos da representação e da corrupção na política. Uma vez que o conceito de interesse surge em conjunto com a divisão social do trabalho, sua centralidade faz com que a abordagem da política ocorra mediante a economia. Tomando a ideia de interesse como constitutiva da representação, a teoria democrática configura-se em torno da economia política, que produz, por sua vez, uma interpretação funcionalista do Estado, de acordo com a qual seu papel é a manutenção do sistema de produção através de um sistema de administração racional da vida social.9 Acredita-se, dessa forma, que a corrupção esteja ligada ao problema dos interesses e que seu controle depende de sistemas racionais de administração da sociedade, no sentido de distribuir papéis, funções e direitos. Esta concepção teórica da política possibilitou constituir dois pressupostos de análise. Em primeiro lugar, que a ação é uma atividade individual e balizada em uma racionalidade movida pelos interesses. Em segundo lugar, é fundamental à democracia a presença de instituições concebidas como regras que regulam a ação dos indivíduos. 8 Max Weber. “Sociologia do direito”, in: Economia e sociedade. Brasília: Editora UnB, 1999, vol. II. 9 Joseph Schumpeter. Capitalism, socialism, and democracy. New York: Perennial Books, 2008.

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O agente político é visto por esta perspectiva econômica da política como um indivíduo egoísta, que age no sentido da maximização de seus interesses.10 Os atores buscam os fins e percebem o mundo a partir de seu auto-interesse, sendo seu comportamento o resultado de uma escolha consciente e intencional, para a qual, diante de um leque de opções, a alternativa escolhida será aquela que trouxer a maior utilidade esperada. Instituições, por outro lado, são compreendidas como constrangimentos interpostos entre os atores políticos, criando formas de controle ao comportamento naturalmente egoísta, mediante coerção. O comportamento político é análogo ao comportamento dos agentes no mercado, uma vez que o ato privado é auto-interessado e o resultado político é a congruência das preferências dadas em condições obtidas contextualmente11. Esta concepção da teoria democrática esvaziou o conteúdo ético da política em nome de uma concepção técnica de intervenção do Estado na sociedade. O resultado é que a corrupção deixa de ser pensada na lógica dos processos de degeneração institucional para ser pensada como ação individual. Tomando essa premissa dos interesses por meio da economia política, a corrupção é analisada a partir de três ângulos diferentes: (1) a corrupção realizada pelos políticos profissionais, na dimensão da representação, envolvendo, especialmente, governantes e parlamentares; (2) a corrupção de funcionários públicos, que usam seu poder e prestígio para auferir vantagens indevidas. É a corrupção da burocracia e do aparato administrativo do Estado; (3) a corrupção de membros de instituições centrais do Estado, como a polícia e o Judiciário. O ponto de partida destes três ângulos diferentes de análise da corrupção na modernidade é a contestação da eficiência do Estado como produtor de bens públicos, sendo a corrupção um fenômeno natural à existência estatal.

����������������� Anthony Downs. An economic theory of democracy. New York: Harper and Row. 11 É importante salientar que o desenvolvimento da vertente neo-institucionalista da ciência política surge como complementação das teorias da escolha racional, as quais tomavam o indivíduo racional como ahistórico e cuja ação ocorre independentemente de contextos políticos, sociais ou econômicos. A esse respeito, conferir Fábio Wanderley Reis. Política e racionalidade. Problemas de teoria e método de uma sociologia crítica da política. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000.

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Há uma característica central da corrupção na modernidade: ela corresponde à ação ilegal praticada por agentes individuais, de acordo com a sobreposição de interesses individuais ao interesse público. Se na antiguidade a corrupção correspondida à degeneração do corpo político, na modernidade ela corresponde a uma ação individual movida pelo egoísmo auto-interessado.12 Nesse sentido, o enfrentamento da corrupção envolve a discussão sobre o papel das instituições como organizações voltadas para a socialização do poder. As burocracias públicas, no mundo moderno, cumprem a tarefa de socialização do poder, tendo em vista uma ética pública procedimental balizada na ideia de responsabilidade.13 Para a compreensão da corrupção nas sociedades modernas, portanto, é necessário conjugar uma teoria que a compreenda como ação, de um lado, e como falhas institucionais, de outro lado. Como ação, a corrupção é vista como a concretização do egoísmo auto-interessado dos agentes, que buscam a maximização de sua renda burlando as regras do sistema. A corrupção na política, de acordo com Susan Rose-Ackerman, ocorre justamente na interface dos interesses público e privado.14 Os esquemas de corrupção dependem do modo como a organização institucional permite o uso de recursos públicos para a satisfação de interesses privados, tendo em vista o modo como o arranjo institucional produz ação discricionária por parte das autoridades políticas. Esta discricionariedade ensejada pelo arranjo institucional incentiva o uso de pagamento de propinas e de suborno e reforçam a corrupção, no âmbito do setor público e do setor privado. O enfrentamento da corrupção passa pelas reformas institucionais, com o objetivo de equilibrar representação e eficiência das políticas públicas. O objetivo das reformas institucionais é aumentar a eficiência reduzindo os sistemas de incentivo para a corrupção. Por outras palavras, não 12 Fernando Filgueiras. Corrupção, democracia e legitimidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. �������������������������������������������������������������������� Max Weber. “Burocracia”, in: C. Wright Mills e H.H. Gerth (eds.). Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2002. 14 Susan Rose-Ackerman. Corruption and government. Causes, consequences and reform. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

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cabe às reformas institucionais reforçar o poder da burocracia, uma vez que estas reformas resultariam em maior discricionariedade e em maior incentivo para o pagamento de propina e de suborno, ou seja, em ampliação das práticas de corrupção. Por outro lado, é necessário um mecanismo de agregação de vontades particulares em decisões coletivizadas, visando a assegurar a consecução de uma ordem estável e produtora de cooperação entre os indivíduos. No aspecto formal, que representa um consenso entre analistas ligados a teorias neo-institucionalistas, a prática de corrupção não é coibida mediante reforço do poder burocrático, mas pelo fomento do mercado.15 Paralelo às reformas das instituições políticas, cabe ao arranjo institucional da democracia fomentar a existência de um mercado enquanto arena constante de negociação e de catalisação dos interesses por parte de agentes econômicos e políticos. Os esquemas de corrupção dependem dos recursos disponíveis — políticos ou materiais — para que as autoridades ajam discricionariamente, redundando na criação de incentivos para o uso de pagamentos de propinas e de suborno. Todavia, a corrupção, de acordo com Rose-Ackerman, é uma ação que encontra motivação na proporção em que as falhas de mercado estão presentes na cena política, fazendo com que os agentes públicos se comportem de maneira rent-seeking, ou seja, maximizando seu bem-estar econômico, seja seguindo as regras do sistema, seja não as seguindo.16 Em essência, a economia política da corrupção trabalha com a ideia de que os esquemas de corrupção representam modelos de múltiplos equilíbrios. Ou seja, a corrupção assume dimensões sistêmicas quando as estratégias adotadas pelos atores resultam em eventual sucesso das práticas corruptoras. A corrupção é permanente, mesmo em contextos de liberalização do mercado, à medida que ela representa um custo menor do que os custos impostos pela burocracia e pela ordem social. As estratégias bem sucedidas ������������������ Douglass North. Institutions, institutional change, and economic performance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. ��������������������������������������������������������������������� Gordon Tullock. “The welfare costs of tariffs, monopolies, and theft”, ����Western Economic Journal, nº 5, 1967; Anne O. Krueger. “The political economy of rent-seeking”, American Economic Review, nº 64, 1974.

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de corrupção tendem a ser adotadas pelos atores, caso não haja elementos competitivos que inibam sua prática.17 Deste modo, o único modelo de equilíbrio possível para o controle da corrupção é a construção de instituições competitivas através de reformas que mantenham a liberalização do mercado intacta. Apesar de a corrupção representar custos para o próprio mercado, a adoção de uma estratégia corruptora por parte dos atores é preferida em relação a estratégias conducentes à obediência das normas. Neste sentido, as reformas devem optar pela construção de instituições competitivas, que trabalhem com a ideia de controle externo, sobreposição de jurisdições, ombudsman e múltiplos “veto powers”, tendo em vista uma pressuposta ineficiência do Estado como produtor de bens públicos.18 O ponto comum a essa visão econômica da democracia e da política é considerar a ação que leva à corrupção, bem como os sistemas de incentivo que propiciam uma ação corrupta ou corruptora. A corrupção é compreendida como uma ação individual que surge da interação entre corrupto e corruptor, com base em padrões normativos estabelecidos na lei. Racionalidade e intencionalidade da ação constituem o manancial teórico e empírico, desconsiderando a moralidade, os contextos históricos e os processos sociais envolvidos na prática da corrupção. O que é comum à abordagem da economia política da corrupção é a presença de uma metateoria que assenta a construção do problema na relação entre interesses privados e interesse público. A compreensão da política e das crises de legitimidade derivadas da corrupção está subordinada a uma visão comum, ou a uma metateoria tributária de uma naturalização dos interesses e de sua diferenciação no âmbito das sociedades mercantis. O fato é que o imperativo da representação, como imperativo de análise da política, implica a desconsideração da moralidade e da construção de valores na ordem pública.

��������������������������������������������������������������������������� Ajit Mishra. “Persistence of corruption”, Some theoretical perspectives, World Development, 34 (2), 2006. ���������������������������������������������������������������������������� Pranab Bhardan. “The economist’s approach, to the problem of corruption”, World Development, 34 (2), 2006.

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A economia política da corrupção não proporciona uma concepção normativa de interesse público, com a qual pudesse derivar um sentido valorativo da política. O conceito de interesse público é apresentado de maneira pouco amena, no que se refere às disputas por seu sentido, envolvendo mais o aspecto mercantil do que propriamente a discussão de valores e normas. Como o conceito de interesse público é desprovido de um viés empírico, é fundamental discutir a corrupção a partir de uma abordagem normativa, em que pesem os valores e normas de sociedades democráticas e o modo de acordo com o qual as instituições podem secretar estes valores. Ou seja, quando lidamos com o tema da corrupção, estamos lidando com um conceito normativamente dependente.19 A corrupção é um conceito fugidio na política, porque depende de concepções normativas a respeito das próprias instituições sociais e políticas, em que pesem, dessa forma, os valores que definem a própria noção do que vem a ser o interesse público. A corrupção é um fenômeno fortemente abstrato, que depende não apenas do enquadramento legal da ação, mas também do julgamento moral estabelecido pela cidadania. A economia política não dá conta de estabelecer uma agenda de enfrentamento da corrupção porque não compreende a relação entre instituições e valores. Além disso, as crises de legitimidade da democracia, derivadas da corrupção na política, estão relacionadas a um descontentamento com as instituições, o qual leva em consideração aspectos de uma moralidade pressuposta. Pensar a moralidade política, contudo, não significa pensar sua moralização. Pensar a moralidade política, nesse contexto, significa abordar os valores fundamentais da política, de acordo com noções representativas do interesse público, o qual não se resume a uma concepção mercantil de uma racionalidade instrumental, mas a uma concepção de valores fundamentais. Assim sendo, a corrupção deve ser pensada como um juízo moral, transcendendo a mera relação monetária entre corrupto e corruptor. A noção de interesse público está implicada em sua contraparte normativa que é a corrupção. Só se pode compreender o que vem a ser o inte19 Fernando Filgueiras. Corrupção, democracia e legitimidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

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resse público quando se toma uma noção de corrupção como guia, e vice e versa. O descontentamento é gerado à medida que falta ao discurso político um pano de fundo moral, sustentado em consensos de natureza normativa, que especificam os juízos que permitem identificar a corrupção. No caso das democracias representativas, isso fica claro quando a corrupção afeta sua legitimidade, em especial quando ela motiva momentos de desconstrução das instituições.20 É importante destacar que as crises de legitimidade derivadas da corrupção apenas podem ser compreendidas com a possibilidade de uma crítica moral da política. Muito especialmente quando se trata das democracias representativas, que apresentam outras modalidades de compreensão linguística da corrupção, que não apenas a da economia política. A linguagem dos interesses ofuscou outras linguagens que circulam na esfera pública e que podem ser explicativas da corrupção e das crises de legitimidade. Não se trata apenas da compreensão da racionalidade e da intencionalidade do indivíduo egoísta da modernidade, mas de diferentes modalidades de valores que estão pressupostos na construção do conceito e da prática da corrupção. A possibilidade de uma crítica moral da corrupção e da política ocorre apenas com a delimitação de outras modalidades de ação política, que não o desvelo das patologias institucionais por meio da racionalidade dos agentes políticos. Devemos entender a corrupção, não apenas como uma ação individual realizada por agentes públicos que eleve o interesse privado ao interesse público, mas também como um processo mais amplo de degeneração de valores e corrosão institucional da democracia. A corrupção afeta a publicidade das instituições democráticas e o universalismo de procedimentos fundamentais para a decisão e implementação de políticas públicas, tendo por efeito não apenas a distorção na aplicação de recursos públicos, como mostra a economia política da corrupção, mas também a corrosão de valores centrais da democracia, em particular o valor da igualdade.21 Por uma perspectiva de interesse público, que leve em consideração o conteúdo 20 Fernando Filgueiras, op. cit. 21 Fernando Filgueiras, op. cit.

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dos valores de uma sociedade democrática, fica evidente que o processo de degeneração afeta os procedimentos, conteúdos e resultados das políticas configuradas pelas instituições democráticas. O problema da corrupção não se restringe aos aspectos inerentes à economia política, representando um processo político mais amplo que afeta a própria composição da sociedade e do regime político. Falar no termo qualidade da democracia, nesse caso, significa pensar os elementos centrais que permitam sua avaliação do sistema político e da qualidade das instituições na consecução do interesse público. Por qualidade da democracia devemos entender o processo de avaliação da atuação do sistema político frente a padrões normativos configurados em torno de valores fundamentais que orientam a constituição das instituições. Significa pensar o fato de que as instituições estão envolvidas em valores fundamentais que permitem configurar uma moralidade de fundo, que orienta o desenho institucional.22 Tal como o conceito de corrupção, o conceito de qualidade da democracia é normativamente dependente. De acordo com Morlino, a qualidade da democracia refere-se aos padrões estabelecidos em torno dos procedimentos, do conteúdo e dos resultados das políticas. Significa pensar nos termos valorativos centrais que permitam avaliar a qualidade das instituições democráticas e, por consequência, o suporte dos cidadãos a estas instituições. Significa, de acordo com o autor, avaliar os processos de decisão e implementação de políticas tendo em vista direitos e deveres fundamentais que constituem uma sociedade democrática.23 No que tange à questão procedimental, a qualidade da democracia refere-se à efetividade de regras e procedimentos centrais para a efetividade da ação das instituições políticas. A qualidade, nesse primeiro quesito, refere-se ao resultado alcançado a partir de processos políticos controlados por regras constitucionais, as quais dão forma ao corpo político e permitem aos cidadãos satisfazerem seus interesses de forma legítima. As instituições e 22 Russel Hardin. ������������������������������������������������������ “Institutional morality”, in: Robert E. Goodin (ed.). The theory of institutional design. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. ��������������������������������������������������������������� Leonardo Morlino. “Legitimacy and the quality of democracy”. International social sciences journal, vol. 60, nº 196.

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os mecanismos da democracia funcionam sobre um aparato procedimental que regula a ação dos agentes públicos e delimita a validade dela por meio de normas antepostas aos interesses. Significa uma concepção de acordo com a qual a democracia demanda regras de funcionamento institucional que permitam atingir o bem comum, mesmo em sociedades marcadas pelas diferenças. Do ponto de vista do elemento procedimental, as democracias devem assegurar que a autoridade política legítima seja aquela que surgiu de eleições limpas e competitivas, em que os cidadãos possam exercer o seu direito de voto e possam disputar os cargos eletivos em pé de igualdade, que haja liberdade de expressão e fontes alternativas de informação, que os líderes possam disputar o voto dos eleitores e que haja direitos de participação dos eleitores.24 O segundo elemento que define a qualidade da democracia é o conteúdo das decisões e políticas implementadas pelo Estado e pela sociedade. Refere-se, de acordo com o autor, às características estruturais que asseguram o design e o funcionamento das instituições. Basicamente, refere-se ao modo como as instituições da democracia asseguram que suas decisões e políticas tomem como conteúdo básico a liberdade e igualdade dos cidadãos.25 Finalmente, o terceiro elemento que define a qualidade da democracia refere-se aos resultados de políticas e decisões de governo. Significa que em uma democracia, os cidadãos devem ter o poder de avaliar e controlar a ação do Estado, com o objetivo de perseguir os ideais normativos de liberdade e igualdade. A dimensão dos resultados significa o monitoramento das instituições e dos próprios cidadãos quanto à eficiência na aplicação dos recursos públicos, na responsividade do governo frente aos cidadãos e na concretização da accountability. A legitimidade de decisões e políticas estabelecidas em uma democracia depende de uma concepção de responsabilidade frente ao interesse público, tendo em vista uma noção forte de publicidade que perpassa as instituições. A conjunção destes três elemen24 Robert Dahl. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Edusp, 1997. 25 Leonardo Morlino, op. cit.

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tos, de acordo com Morlino, explica a legitimidade da ordem política democrática, tendo em vista a interação entre valores e instituições.26 As instituições democráticas estão calcadas em valores normativos sólidos, tendo em vista uma organização que se espreita em uma moralidade de fundo. A corrupção, ao contrário, esvaece o conteúdo desses valores, afetando diretamente a qualidade da democracia. Se tomarmos o conceito de qualidade da democracia como fundamental para a compreensão dos valores normativos de fundo, percebe-se que a corrupção pode afetar de maneiras distintas as três dimensões de avaliação das instituições e também tomar diferentes formas que não são, necessariamente, congruentes. A próxima seção tratará das asserções levantadas nesse plano analítico para a compreensão do caso brasileiro, tendo em vista uma crítica ao presidencialismo de coalizão.

BRASIL: INTANGIBILIDADE E ENFRENTAMENTO DA CORRUPÇÃO O processo de democratização no Brasil implicou o reconhecimento das condições da poliarquia e proporcionou a universalização de direitos dos cidadãos tendo em vista uma orientação normativa forte de justiça social.27 Nesse contexto, o processo de democratização brasileiro permitiu a liberalização política, a ampliação da competição política e fortaleceu as demandas em relação ao Estado e à sociedade. Ao mesmo tempo, o processo de democratização conviveu com o esmaecimento da burocracia pública, uma vez que a crise fiscal e a globalização impuseram limites à intervenção do Estado na sociedade. Em um contexto de demandas ampliadas, o enfraquecimento da burocracia pública implicou um contexto de reformas que se estenderam pelo reconhecimento da responsabilidade fiscal, em mudanças da máquina administrativa estatal e valorização de parcerias entre Estado e sociedade na consecução das políticas públicas. 26 Leonardo Morlino, op. cit. 27 Wanderley Guilherme dos Santos. “Estado, instituições e democracia”, in: José Celso Pereira Cardoso Jr. (org). Desafios ao desenvolvimento brasileiro. Brasília: IPEA, 2009.

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No que diz respeito aos avanços na relação entre Estado e sociedade, podemos apontar, de imediato, a representatividade da sociedade civil nos processos decisórios das políticas públicas, por meio de uma participação ampliada em instituições híbridas, que representam governo e sociedade civil no momento da formulação das políticas públicas. Dessa maneira, a gestão das políticas públicas no Brasil reconheceu a importância de instâncias decisórias ampliadas, que funcionam como fóruns de deliberação que levam em consideração uma construção interativa do bem comum. A representatividade foi conquistada pela ampliação de direitos dos cidadãos e a constituição de desenhos institucionais participativos, os quais reconhecem tanto os desenhos de partilha de poder entre Estado e sociedade, quanto desenhos institucionais em que o processo decisório flui de baixo para cima.28 Exemplo do modelo de partilha do poder está nos conselhos de políticas públicas nas três esferas da Federação, que asseguram a representação da sociedade civil nos processos de deliberação das finalidades das políticas públicas e poder de veto à sociedade civil por meio de autonomia para fiscalização e acompanhamento das políticas. Modelos em que o processo decisório das políticas públicas flui de baixo para cima podem ser considerados aqueles em que a institucionalização da participação considere a vontade popular e os diferentes interesses dos atores envolvidos na deliberação. Dessa forma, os orçamentos participativos, especialmente na esfera municipal, representam um modelo de institucionalização da participação que considera a vontade popular e os interesses dos diferentes atores nos processos de decisão.29 Avanços na representatividade por meio de processos de participação e deliberação na configuração das políticas públicas também podem ser reconhecidos na institucionalização das conferências nacionais de políticas públicas. As conferências, que representam fóruns ampliados de participação e influenciam a agenda do Congresso Nacional, são instâncias de deli28 Leonardo Avritzer. “Instituições participativas e desenho institucional: algumas considerações sobre a variação da participação no Brasil democrático”, Opinião Pública, vol. 14, n° 1, 2008, pp. 43-64. 29 Leonardo Avritzer, op. cit.

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beração que fixam metas e objetivos para as diferentes áreas de políticas públicas, tais como saúde, direitos humanos, educação, e outras. As conferências foram sendo ampliadas ao longo dos anos, iniciando sua prática no governo Fernando Henrique Cardoso e tornando-se rotina no governo Lula. O resultado das conferências foi constituir, por meio da participação ampliada da sociedade na deliberação das políticas, uma influência sobre a agenda do Congresso Nacional e do governo, de modo a constituir em leis as metas e objetivos pactuados.30 O curioso das inovações institucionais da democracia brasileira é que elas passam ao largo das instituições convencionais da representação. A Constituição de 1988 produziu a liberalização política e a inclusão de estratos sociais até então excluídos do processo político. Mas, apesar disso, a Constituição não produziu um sistema partidário forte, nem uma Congresso Nacional realmente forte, capaz de sustentar a legitimidade democrática. Ao contrário disso, os legislativos são instituições impopulares, apesar de ter o papel central de garantia da governabilidade. O processo de transição para a democracia e a Constituinte de 1988 centralizaram o processo de governabilidade em detrimento de uma preocupação mais central com a questão da legitimidade. Isto é, no momento do fim do regime autoritário e da emergência da democracia, a preocupação foi com a construção de instituições que assegurassem ao presidente da República as condições necessárias para o exercício do governo, sem que isso implicasse novo processo de paralisia decisória. A fórmula do presidencialismo de coalizão significa um processo de delegação de poder ao presidente da República por meio da constituição, dentro de um sistema presidencialista, de uma coalizão de sustentação política no Congresso. As condições de governabilidade no sistema político brasileiro hoje são sólidas, especialmente se considerarmos um desenho institucional que assegura prerrogativas institucionais ao Poder Executivo tais como a capacidade de iniciar o processo legislativo, o poder de decreto por meio das medidas provisórias e o controle do orçamento da União. O presiden30 Thamy Pogrebinschi; Fabiano Santos. Entre representação e participação. As conferências nacionais e o experimentalismo democrático brasileiro. Relatório de pesquisa. Rio de Janeiro: IUPERJ; Brasília: PNUD; Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, 2010.

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cialismo de coalizão brasileiro faz com que o Executivo assegure apoio do Congresso utilizando recursos disponíveis herdados do regime de exceção de 1964 e mantidos pelo Constituinte em 1988. Contudo, a constituição de maiorias no Legislativo passa pela disponibilização de recursos do orçamento da União e pela distribuição de ministérios aos partidos da base de apoio. De imediato, o sistema político brasileiro, tal como organizado, prejudica a accountability horizontal e torna o Congresso uma massa de manobra do presidente, sem formas de controle efetivo do Executivo.31 Some-se a isso a existência de um sistema de financiamento de campanhas eleitorais misto, que permite que grandes corporações e agentes financeiros financiem campanhas eleitorais, tornando as sobras de campanhas sujeitas a pilhagem privada, bem como a presença constante de caixa 2. Ademais, o sistema de financiamento de campanhas eleitorais no Brasil não permite um controle efetivo dos gastos eleitorais e um processo efetivo de accountability. Somado ao processo de permanência de fenômenos como compra de votos e clientelismo, percebe-se que as falhas institucionais se tornaram crescentes à medida do processo de institucionalização política. A democratização brasileira, nesse sentido, é contraditória. Ela proporcionou uma série de inovações institucionais com a maior participação da sociedade. Mas, ao mesmo tempo, perpetuou formas institucionais herdadas do regime autoritário. O resultado é que imediatamente ao processo de liberalização política com a transição e promulgação da Constituição de 1988, veio à arena política as demandas por reformas institucionais, agenda esta que ainda permanece na cena política brasileira. Ademais, some-se a isso um processo contraditório da democratização. A institucionalização da representação política veio seguida de uma sucessão de escândalos políticos relacionados à corrupção. A democratização brasileira deflagrou um processo de desvelamento da corrupção política. Portanto, apesar das inovações institucionais, a corrupção passou a ser mais percebida pela sociedade, deflagrando um processo crescente de descontentamento com re31 José Álvaro Moisés. “O desempenho do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão (19952006)”, in: O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão. Rio de Janeiro: KonradAdenauer Stiftung, 2011.

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lação às instituições da representação política, especialmente o Congresso Nacional, os partidos políticos e o sistema de governo. O sistema político brasileiro possibilita a governabilidade ao custo de uma erosão gradativa da legitimidade política e da naturalização da corrupção no próprio sistema político. No que tange à erosão gradativa da legitimidade, devemos entendê-la como a erosão da capacidade das instituições representativas ecoarem as preferências dos cidadãos e terem apoio destes para decidir e implementar políticas públicas. No que tange à naturalização da corrupção, devemos entender o processo mediante o qual a opinião pública identifica e percebe a corrupção como um tipo de ação permanente no bojo das instituições políticas. A corrupção tem passado por esse processo de naturalização nas instituições do Estado brasileiro por conta da ineficácia das instituições de accountability e controle democrático, especialmente no que tange a um sentimento de impunidade da corrupção que se reitera na opinião pública. Quando os cidadãos são inquiridos a identificar quais as instituições em que a corrupção se faz mais presente, eles de imediato a identificam nas instituições legislativas, no executivo e no judiciário. O Estado brasileiro é visto como o espaço dos vícios, onde a corrupção se faz presente de forma natural. O gráfico abaixo compara a percepção dos cidadãos brasileiros quanto à presença média da corrupção nas instituições políticas e sociais, bem como em grupos sociais distintos:

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Gráfico 1. A presença da corrupção em ambiente políticos e sociais32

Fonte: Centro de Referência do Interesse Público / Vox Populi, 2008 e 2009. O caso brasileiro permite visualizar o impacto negativo da corrupção na qualidade da democracia. Em primeiro lugar, a estrutura do presidencialismo de coalizão faz com que os mecanismos de accountability horizontal deixem de funcionar a contento. Instrumentos próprios do controle político do Poder Executivo e das políticas públicas, como as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI’s) e a atuação dos Tribunais de Contas, não resultam em punição da corrupção. Além disso, apesar de inovações nas instituições de controle interno do Poder Executivo e de uma atuação mais incisiva do Ministério Público, a corrupção não é punida por conta da ineficácia do Poder Judiciário e de uma legislação processual que não permitem que a corrupção seja punida. Apenas em 2010 que houve a primeira punição de uma autoridade política na esfera federal, no âmbito do Supremo Tribunal Federal.33 32 Este gráfico reproduz dados da pesquisa “Os brasileiros e a corrupção”, realizada pelo Centro de Referência do Interesse Público da UFMG em parceria com o Instituto Vox Populi. A pesquisa baseou-se em um survey nacional de opinião pública, realizado nos anos de 2008 e 2009, com amostras de 2421 e 2400 indivíduos, respectivamente, estratificada por situação de domicílio, gênero, idade, escolaridade, renda familiar e situação perante o trabalho. Este processo de estratificação é calculado proporcionalmente de acordo com os dados do Censo Demográfico do IBGE, ano 2000, e pela Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio, ano 2006. A amostra proporciona um intervalo de confiança de 95% e uma margem de erro calculada em 2%. 33 O deputado federal Zé Gerardo foi condenado em 13/05/2010 a pena de dois anos e dois meses de prisão, que foi convertida no pagamento de cinquenta salários mínimos e prestação de serviços comunitários. O deputado foi condenado pelo crime de responsabilidade por ter aplicado indevidamente os recursos de convênio federal com o município de Caucaia, no estado do Ceará, para a construção de açudes contra a seca. Os recursos foram utilizados na construção de pontes molhadas, desviando da finalidade estabelecida pelo convênio com o Ministério do Meio Ambiente.

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A existência do caixa 2 e a presença de grandes corporações no financiamento das campanhas eleitorais faz com que os interesses desses grupos sejam privilegiados em detrimento do interesse público. Isto fica claro no modo como contratos e convênios com o governo federal são geridos, bem como na permanência de problemas de gestão das licitações e no sistema de controle de convênios. A fraqueza dos partidos e a presença de partidos sem uma base social mais sólida também contribuem para abrir flancos por meio dos quais a corrupção possa surgir. A naturalização da corrupção no Brasil ocorre por sua reprodução e permanência na agenda pública, em um sentido mediante o qual ela se torna intangível para a opinião pública, que não a consegue avaliar eficazmente, apesar de todos os esforços e inovações institucionais que são feitos para o seu enfrentamento. O paradoxo brasileiro com a corrupção ocorre pelo fato de a corrupção se tornar uma prática corriqueira na dimensão do sistema político, apesar das inovações nas instituições de accountability. O Brasil, hoje, tem um Ministério Público atuante, uma atuação autônoma do Tribunal de Contas da União, novas instituições de controle como a Controladoria Geral da União e a atenção da sociedade civil para os escândalos de corrupção. A explicação para isso, segundo Taylor e Buranelli, é o fosso que separa a percepção da corrupção e a percepção da accountability.34 Isto ocorre por conta de uma disjunção dos mecanismos de controle da corrupção e por uma legislação processual ultrapassada que permite a impunidade. O sentimento de impunidade da corrupção que hoje paira sobre a opinião pública brasileira e a recorrência de escândalos impactam negativamente a qualidade da democracia, não na esfera da governabilidade, mas na esfera da legitimidade. E este impacto negativo da corrupção possibilita a reprodução de um ciclo vicioso que afeta gravemente o apoio dos cidadãos às instituições clássicas da representação política. O caso brasileiro, nesse sentido, reforça a permanência da agenda da reforma política no contexto de uma sociedade ainda em processo de democratização. Por um lado, a ����������������������������������������������������������������������������������������������������������� Matthew Taylor; Vinícius C. Buranelli. “Ending up in pizza: accountability as a problem of institutional arrangement in Brazil”, Latin American Politics and Society, vol. 49, nº 1, 2007, p. 59-87.

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baixa legitimidade das instituições clássicas de representação é compensada pelas inovações no âmbito das instituições participativas. Por outro lado, a governabilidade compensa a agenda da legitimidade, no plano do discurso político, enquanto for mantido um ciclo virtuoso do desenvolvimento econômico e de políticas que visem à solidificação da justiça social. No momento em que ambas as agendas esmorecerem, não é possível prever qual será o efeito da corrupção que assola as instituições da democracia representativa. Assim, não se sabe se será possível manter esse ciclo vicioso da corrupção se não houver a esperança de um Brasil melhor, que advenha das inovações da democracia e da agenda de justiça social. Nesse caso, se perceberá o modo como a corrupção prejudica a liberdade e a igualdade, à medida que corrói não apenas a eficiência na aplicação dos recursos públicos, mas também o próprio corpo político, que sem as amarras da representação, poderá decair em formas autoritárias ou delegativas do poder. O que se deve temer não é a corrupção dos políticos e do uso dos recursos públicos, mas a corrupção da igualdade e da liberdade, sem as quais não é possível haver democracia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CHEFIA E REPRESENTAÇÃO ENTRE OS YE’KUANA1 Karenina Vieira Andrade2

Preâmbulo – abertura em dois tempos –

Em dezembro de 2009 retornei a Fuduwaaduinha, aldeia ye’kuana no alto Rio Auaris. Era meu segundo retorno a Auaris depois do período inicial de 13 meses, em 2005-2006, durante minha pesquisa de doutorado, e o primeiro depois de defendida a tese. A visita tinha dois objetivos: dar continuidade a minha pesquisa, investigando uma temática pouco explorada na tese, e discutir com os ye’kuana a possibilidade de desenvolver um projeto de artesanato junto a uma ONG que atua na área. Minha estadia, embora curta, fez com que me debruçasse, de maneira inesperada, sobre a análise de alguns aspectos da organização política ye’kuana, tema que não estava na minha pauta como pesquisadora nem como “assessora” da associação ye’kuana. Encontrei um cenário muito diferente do período em que vivera em Auaris, marcado por dois eventos: a mudança da aldeia para a outra margem do rio (processo que se iniciara ainda em 2005 e que eu acompanhara no seu estágio inicial) e a escolha de um novo chefe da comunidade, devido à morte do chefe anterior no ano de 2008. Eu havia presenciado as primeiras reuniões do conselho de homens maduros da aldeia em que se discutiu a mudança para um novo sítio; a escolha do novo local; a derrubada da mata para o início da construção das casas; o desenho do “mapa” da nova 1 Os Ye’kuana são um povo de fala caribe cuja população está em parte no território brasileiro (04 aldeias, todas no estado de Roraima) e em parte no território venezuelano (59 aldeias). Realizei pesquisa etnográfica com os Ye’kuana que vivem na Terra Indígena Yanomami, no extremo norte do estado de Roraima, na aldeia Fuduwaaduinha, a maior aldeia ye’kuana do lado brasileiro, com cerca de 300 habitantes. Fuduwaaduinha estava então localizada na margem esquerda do Rio Auaris, a cerca de 280 milhas aéreas da cidade de Boa Vista, próximo à fronteira com a Venezuela. 2 Doutora em Antropologia Social (UnB), Professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG.

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aldeia, com a disposição das futuras residências, o prédio da escola, a casa comunal e a enfermaria. Não cheguei a ver o início efetivo da construção das casas. No entanto, antes de pousar na pista de Auaris numa ensolarada manhã de dezembro, eu já havia sido informada de que a mudança estava praticamente finalizada. Não só a maioria das famílias já estava vivendo na nova aldeia, em local muito próximo à aldeia antiga, mas outro processo que eu também acompanhara de perto havia se efetivado: a fundação de outra aldeia ye’kuana, composta por duas famílias extensas que deixaram Fuduwaaduinha, desceram o rio e estavam agora vivendo na região conhecida como Tucuxim, próximo ao ponto de confluência dos rios Auaris e Parima. Também tivera, em fins de 2005, a oportunidade de acompanhar a expedição que levou à escolha do local da nova aldeia, numa viagem de vários dias rio abaixo. Naquele período, apenas um casal havia permanecido no local escolhido e os outros membros da expedição retornaram a Auaris, enquanto as roças plantadas no Tucuxim cresciam para alimentar as cerca de 60 pessoas que planejavam viver lá. A mudança foi gradual. Ao longo dos quase três anos de ausência, as notícias sobre os acontecimentos em Auaris me chegavam através de mensagens eletrônicas e telefonemas vindos de Boa Vista, principalmente dos professores ye’kuana que iam periodicamente à cidade para ter aulas (alguns no magistério indígena e outros na licenciatura intercultural da UFRR), e também nos meus encontros com um dos mais proeminentes jovens ye’kuana, atual diretor da Hutukara Associação Yanomami, entidade criada para representar os interesses dos povos indígenas que vivem na Terra Indígena Yanomami. Este jovem costumava ir a Brasília (onde eu então vivia) periodicamente para participar de congressos e reuniões ligados a seu trabalho na Hutukara, e nestas ocasiões, quando costumava hospedar-se na minha casa, tinha eu a oportunidade de saber sobre a vida daqueles com os quais eu havia vivido e das muitas mudanças que estavam ocorrendo em Fuduwaaduinha. Assim, quando embarquei em Boa Vista junto com um jovem Sanumá e milhares de alevinos que alimentariam as pisciculturas das aldeias ye’kuana e sanumá no avião Caravan fretado pela ONG interessada em desenvolver o projeto com

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os ye’kuana, eu estava ansiosa por ver, já do alto, as duas novas aldeias. Mantive os olhos fixos no “mar” verde abaixo de nós, tentando identificar Kudatänha, a aldeia do Tucuxim que eu vira em germe. Somente quando estávamos a vinte minutos de vôo de Auaris finalmente pude vislumbrar a nova aldeia e sua pista de pouso, recém-aberta, surpresa com a proximidade de Fuduwaaduinha – ao menos por via aérea, pois na viagem de 2005 levamos penosos 13 dias para completar o percurso pelas águas acidentadas do Rio Auaris. Vinte minutos depois, sobrevoávamos a outra nova (velha) aldeia, agora mais próxima da pista de pouso onde se localizavam as instalações do 5º Pelotão Especial de Fronteira, da FUNAI e da FUNASA, bem como uma das aldeias Sanumá. Após o pouso e reencontro com meus conhecidos, embarquei na canoa de um dos ye’kuana e rumamos para a velha aldeia. Tomada por um misto de saudosismo (acentuado pela visão da casa onde eu vivera, agora abandonada e em ruínas) e curiosidade, fui aos poucos vendo e sentindo as mudanças pelas quais Fuduwaduuinha passara naquele curto período de tempo. Antes de rumar para a aldeia, no entanto, uma breve conversa na inevitável passagem pelo posto da FUNASA localizado em uma das extremidades da pista de pouso seria determinante para presente a análise. Coisa de índio ou coisa de branco?

Após o pouso da aeronave, na cabeceira da pista onde está o 5º PEF, e o rotineiro procedimento de identificação ao soldado de prancheta em punho que logo se acerca do avião, segui com os ye’kuana para o porto que se localiza atrás das instalações da FUNAI e da FUNASA, na outra extremidade da pista de pouso. O posto da FUNAI estava fechado, mas passamos pelas instalações da FUNASA para cumprimentar os conhecidos – encontrei apenas um dos funcionários da época em que vivi em Auaris. Seguimos para o porto e enquanto os Ye’kuana ajeitavam na canoa as encomendas que haviam chegado de Boa Vista, tive uma breve conversa com um dos novos funcionários. Ao saber que eu era a antropóloga que havia morado

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em Auaris, trabalhando com os Ye’kuana, o jovem rapaz fez uma série de comentários que eu já escutara tantas outras vezes: “é bom trabalhar com os Ye’kuana, eles são organizados, sérios, disciplinados. É muito difícil trabalhar com os Sanumá, mas com os Ye’kuana! É outra história! Eles, os Ye’kuana, são muito parecidos com os brancos... quer dizer, eles já aprenderam muitas coisas com os brancos”. Durante o tempo em que vivi em Auaris, não foram poucas as vezes em que ouvi discursos deste tipo a respeito dos ye’kuana, sempre em tom de elogio. Aos olhos dos brancos que trabalhavam em Auaris, os ye’kuana eram organizados, sérios, um tanto arrogantes e tinham hábitos “civilizados”3. Essas falas apareciam em situações como os mutirões que eram regularmente feitos para a limpeza da trilha dos postes de energia que ligavam a micro-usina, o pelotão, a aldeia ye’kuana, as instalações da FUNAI e da FUNASA e a maior das aldeias sanumá de Auaris, localizada à beira da pista de pouso. O trabalho era dividido entre os soldados e os homens ye’kuana e sanumá. Os ye’kuana costumavam ser elogiados pela eficiência na execução do trabalho, sobretudo porque escolhiam um homem que se tornava o responsável pela equipe de trabalhadores e negociava com o comandante do pelotão a escala de trabalho e todos os demais detalhes referentes ao mutirão. Dois dias depois da minha chegada a Auaris, eu havia combinado uma entrevista com D., o novo chefe político da aldeia. Ele imediatamente convidou outros homens para que se juntassem a nós, como era já costume. A essa altura os ye’kuana conheciam bem meu interesse pelas histórias wätunnä4 e a série de perguntas com as quais eu os bombardeava a cada encontro. Talvez na tentativa de torná-las menos enfadonhas para si mesmos, eles costumavam transformar essas ocasiões em verdadeiras sessões em que se discutiam histórias e trocavam-se idéias sobre diversos temas trazidos à baila por minhas perguntas. E eu só tinha a lucrar com isso, e se 3 Este tipo de discurso sobre os ye’kuana, que tantas vezes ouvi em Auaris, não é novo. Koch-Grünberg, em sua viagem à bacia do Orinoco entre 1911-1913, afirmou sobre os Majonggóng [ye’kuana]: “Entre los índios (...) me llamó enseguida la atención um índio casi blanco (...) Al principio lo tomé por un blanco. Es un Majonggóng. (...) Tiene una manera de comportarse naturalmente fina, algo orgullosa.” (1979: 50-51). 4 Narrativas tradicionais ye’kuana.

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os provocava com questões iniciais, depois que o debate se iniciava eu costumava ouvir mais do que falar, deixando que decidissem o “rumo da prosa”, fazendo perguntas aqui e ali quando o tema pedia, quando queria mais detalhes sobre certos assuntos ou quando algo não estava claro para mim. Logo cedo, após a refeição matinal, segui com H. para a nova aldeia (na margem oposta do rio) onde nos encontraríamos com os demais. Eu estava hospedada na casa de H., uma das poucas famílias que ainda não havia se mudado para a aldeia nova – sua casa estava em construção. Atravessamos de canoa para a outra margem e em poucos minutos entramos na casa de D., onde os homens nos esperavam fumando tabaco e tomando xibé. Depois de trocarmos cumprimentos, começamos uma conversa sem muita importância. Digo a D., ― D., sabe o que eu escutei ontem, lá do outro lado? Sabe o que um branco da Funasa me disse? ― Não. ― Ele me disse que os ye’kuana são muito organizados. Você sabe, nas coisas de trabalho. Que tem responsáveis para organizar o trabalho. ― É verdade. Nós pensamos antes de fazer as coisas. Nós planejamos. Sempre fazemos assim. Quando a gente abre uma roça, pensamos o tamanho da roça para durar o ano todo. Para não faltar comida. Pensamos para a frente, não pensamos só no dia de hoje ou amanhã. Por isso tem os responsáveis para ajudar a organizar o trabalho. Eles decidem como vai ser. ― Mas você sabe, os brancos acham que vocês aprenderam a ser organizados com eles. Por isso dizem que vocês são civilizados. Porque tem responsável por cada coisa aqui. Tem até o tuxaua dos brancos, que é a pessoa que conversa com os brancos quando é preciso resolver alguma coisa com a comunidade. Eles acham que vocês inventaram isso porque aprenderam com eles. ― Isso não é verdade. Nós sempre fomos assim, organizados. Nas wätunnä tinham os responsáveis pelos trabalhos. Os chefes, os adhajö. Nós aprendemos assim. Nós já contamos as histórias para você. Não foram os brancos que nos ensinaram. Então agora você vai escrever sobre isso.

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Este artigo tem como objetivo, portanto, pensar aspectos da estrutura política ye’kuana tendo como foco principal o conceito de ädhajö e alguns dos usos deste termo, sem perder de vista a epistemologia ye’kuana que se revela no corpo das narrativas wätunnä. Há um mundo infinitamente mais complexo por trás de determinados aspectos da organização ye’kuana do que mera incorporação de lições aprendidas com os brancos, como pensam alguns dos atores que compõe o cenário interétnico em Auaris. Chefes, xamãs e mestres

Idealmente ocupadas por dois irmãos, as posições de chefia não são hereditárias. Um chefe de aldeia, ao adoecer e pressentir sua morte iminente, pode indicar seu sucessor, e a indicação será discutida pelo conselho de homens maduros da aldeia, que deve referendá-la. Em 2006 já circulavam boatos em Fuduwaaduinha sobre quem seriam os futuros chefes da aldeia, uma vez que N., já de idade avançada, estava bastante doente. Parecia haver certo consenso em torno do nome de D., que era o candidato indicado por N. Com a morte de N. em 2008, D. assumiu efetivamente a chefia e conduziu o processo de mudança da aldeia para a outra margem do rio. Também neste período consolidou-se a mudança das duas famílias para a nova aldeia do Tucuxim5. Perguntei aos Ye’kuana por que P., irmão mais novo de N. que exercia a chefia com ele, não havia permanecido no cargo (o novo vice-chefe é irmão classificatório de D.). Foi-me dito que P. não quis permanecer no cargo de vice-chefe alegando que já estava velho, doente e cansado, e que os jovens não escutavam mais suas palavras. Um dos homens, no entanto, esclareceu: “ele era chefe junto com o irmão. Eram os dois juntos, o irmão morreu, ele não quis mais. Não era mais a mesma coisa, eles eram juntos. Um saiu, o outro ficou só.” Mais do que um simples “cargo”, a posição de chefia é exercida dualmente pelo chefe e seu vice em uma relação de natureza muito especial. Ambos encarnam a dupla face de 5 Arvelo-Jiménez (1974) apontou que após a morte do chefe da aldeia é comum a concretização de fissões de grupo, consolidando tensões latentes, nas aldeias ye’kuana.

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uma só coisa, e efetivamente os ye’kuana parecem não ver sentido na continuidade da liderança de P. sem N6. Para ter legitimidade e prestígio um chefe deve ser generoso, prudente, pacífico e persuasivo em situações de conflito interno. Segundo Arvelo-Jiménez (1974), o chefe ye’kuana é um líder sem poder. As decisões são efetivamente tomadas pelo conselho de homens maduros da aldeia, composto por todos os homens alçados a tal status, que está mais relacionado à posição que ocupam no seio de suas unidades domésticas (casados, chefes de família) do que à idade. Cabe ao chefe conduzir os processos de tomada de decisões, escolher seus “responsáveis”, os homens que organizam trabalhos comunais (derrubada de roças, construção de casas, atividades rituais) e zelar pela harmonia entre seus pares. Há outra função desempenhada pelo chefe, no entanto, que nos permite entender em profundidade a natureza da chefia ye’kuana: a mediação que ele exerce entre o mundo da aldeia e o mundo exterior, o mundo “dos outros”. Esta função pode ser melhor compreendida quando examinamos mais detidamente os usos do termo que designa a chefia, ädhajo ou ayäjo7. A exemplo de tantos outros povos indígenas amazônicos, os Ye’kuana relatam que no passado remoto os animais viviam como vivem os humanos, organizados em sociedade, em suas aldeias, celebrando seus rituais. As histórias wätunnä, narrativas ye’kuana transmitidas oralmente através das gerações, ilustram os conflitos entre humanos e animais quando compartilhavam uma mesma essência de humanidade. Embora os animais vivessem em sociedade como os humanos, apenas os xamãs eram capazes de enxergar suas formas humanas sob a “roupagem” animal. Os animais, entretanto, tinham a capacidade de se despir deliberadamente dessa roupagem e assumir forma humana; também somente xamãs podiam perceber o disfarce. Lévi-Strauss, nas Mitológicas, ao analisar a simbologia animal nos mitos sul-americanos, demonstrou como tais histórias, através da mani6 Esta mesma dualidade aparece de forma seminal nas wätunnä, não só encarnada nos gêmeos Iudeeke e Sichamöna, personagens centrais de várias narrativas, mas nas figuras do demiurgo Wanaadi e seu irmão, o anti-herói Odo’sha, nascido da placenta apodrecida de Wanaadi. 7 Outro termo usado para designar o chefe é kajichäna, um empréstimo do espanhol (referindo-se a capitán).

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pulação de metáforas animais, eram resultado de reflexões sobre temas como a origem da culinária, a mortalidade humana, ou, em última instância, sobre as elaborações indígenas em torno da temática, tão cara à antropologia, da relação entre as categorias natureza e cultura. Entretanto, é Eduardo Viveiros de Castro (2006) quem analisa mais especificamente a questão da “humanidade” compartilhada por humanos e animais em um tempo mítico e os significados desse compartilhamento no contexto das sociedades ameríndias (notadamente as sociedades amazônicas). O que diferencia animais e humanos nessa concepção de uma condição de humanidade compartilhada, ou, como afirma Viveiros de Castro, de ser, são as “afecções corporais” de cada espécie, que lhes conferem determinadas habilidades específicas. Para os indígenas sul-americanos que partilham tais idéias, humanos e animais teriam em comum a própria condição de humanidade - o que, em última instância, é a posse de cultura - ao contrário do pensamento ocidental, de acordo com o qual o que nos une aos animais é o fato de sermos também animais, ou seja, compartilharmos com eles nossa condição de animalidade. Para o pensamento ameríndio, a cultura seria a constante, e não a natureza. Viveiros de Castro (2006) cunha o conceito de perspectivismo ameríndio a partir das noções indígenas de que cada espécie elabora sua percepção em relação ao mundo e às outras espécies através de um ponto de vista próprio, isto é, o modo como os humanos veem animais e outros seres que habitam o universo é diferente do modo como estes seres veem os humanos e a si mesmos. Embora esse perspectivismo esteja presente nas histórias wätunnä, ele se manifesta de maneira própria, com uma marca nitidamente ye’kuana. A simbologia animal é fonte, nas wätunnä, da reflexão sobre o comportamento verdadeiramente humano, em narrativas que marcam a diferenciação desse comportamento humano vis-à-vis o não-humano. No tempo passado, a contigüidade com a natureza era a marca dos humanos: não dominavam o fogo nem as plantas cultivadas, não conheciam rituais nem adornos corporais. À medida que passam a ter tais coisas, que usurpam de outras espécies, se diferenciam dos animais.

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Um dos aspectos fundamentais na definição do comportamento propriamente humano, na visão dos ye’kuana é a pacificidade, o comportamento não-agressivo. A agressividade é típica dos animais e, no passado, o comportamento agressivo justificava-se apenas frente à necessidade de conquistar dos animais a posse de tais bens que marcam a condição de humanidade. Os Ye’kuana afirmam que ainda hoje os animais apresentam um comportamento hostil em relação aos humanos como resquício das disputas do passado. Em duas ocasiões distintas relataram-me exemplos da manifestação dessa hostilidade. Há muitos anos, A., importante líder ye’kuana já falecido, quando ainda jovem saiu com outros Ye’kuana para caçar um bando de queixadas. A. acabou mordido por uma delas e ficou bastante ferido. Os outros caçadores carregaram-no até a aldeia, onde o ferimento foi tratado e AP., seu pai e chefe da aldeia na época, fez um ritual para curar o filho e aplacar a fúria das queixadas, espantando-as para longe da aldeia. AP. reuniu os jovens para explicar-lhes o porquê da hostilidade dos animais com relação aos humanos, contando-lhes como os humanos venceram os animais na disputa pelo domínio da Terra. Disseram-me que “os humanos, na verdade, estão abaixo dos animais, que vieram primeiro”. Por causa disso, AP. disse-lhes que eles deveriam guardar respeito aos animais e compreender a razão de sua fúria. Na disputa pelo direito de exercer a condição de humanidade neste mundo, os animais saíram perdedores. Vencida a batalha, restou a eles experimentar tal condição em outra oito dimensões do cosmos, cuja réplica visível (a dimensão em que nos encontramos) é hoje dominada pelos humanos. Os animais que hoje habitam a terra são meras réplicas corporais dos seus ancestrais, assim como o mundo em que vivemos é uma mera réplica do cosmos invisível. Os animais também têm seu próprio mundo invisível, onde estão seus antepassados que um dia tiveram a capacidade de assumir forma humana no plano visível. Foram eles que partiram deste mundo e deixaram aqui suas formas corporais. Nos locais de origem de cada espécie animal vivem seus chefes (ädhajö), mantendo relações de natureza especial com suas formas corporais terrestres. O ädhajö e os demais “espíritos-animais” vivem em

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suas aldeias invisíveis, como fazem os humanos. A cachoeira do Tucuxim, local próximo à nova aldeia ye’kuana fundada em 2008, é a morada dos peixes, exemplo de um destes locais. Há que se respeitar locais como este, onde vive um ädhajö8. A conduta que deve marcar a relação dos ye’kuana com os ädhajö dos animais torna-se explícita nas atividades de caça. Os caçadores devem estabelecer com o ädhajo da espécie caçada uma negociação, sob pena de provocar sua fúria. Quando um caçador mata um animal, ele deve fincar uma vara no local onde o animal foi abatido com uma parte do corpo da presa espetada – uma orelha, o rabo, etc., como forma de compensação. O ädhajö é capaz de produzir um novo animal a partir da compensação deixada pelo caçador. “Quando o espírito do chefe vê a vara fincada, pensa que o animal morreu por causa dela e não sai atrás do caçador para se vingar”, dizem os ye’kuana. Há ocasiões em que o caçador, ainda na mata, ao cortar o animal e retirar-lhe as vísceras, ouve um grito estranho, não-humano, os cachorros latem alvoroçados... é o chefe do animal chegando. O caçador deve partir rapidamente. O ädhajö dos animais encarna a essência de sua espécie, sua totalidade. É ele o mediador entre aqueles que representa, seus duplos terrestres, e os demais seres. É o ädhajö o responsável por empreender a vingança contra aqueles que causam dano aos seus. Habitando o lugar de origem da espécie, onde se situa sua aldeia, o ädhajo incorpora em si as forças que compõem a dimensão invisível que corresponde àquele ponto do cosmos visível, na concepção dual ye’kuana9. A chefia ye’kuana é de natureza similar. Longe de estar associada à noção de “poder” strictu senso, ela se aproxima da ideia de representação 8 Para uma análise da concepção de lugar ye’kuana e as prescrições em torno do trânsito dos humanos pelo território, ver Andrade, 2010. 9 A natureza dual da concepção ye’kuana do cosmos já foi apontada por dois de seus etnógrafos (Guss, 1989; Arvelo-Jiménez, 1974). De acordo com esta concepção, todos os seres têm um correspondente invisível, cujas forças podem se voltar contra determinados indivíduos, causando-lhes danos e até mesmo morte. É preciso aprender a manipular tais forças invisíveis, seja através do canto, do uso de plantas mágicas, da pintura corporal ou pela simples observância de algumas regras de etiqueta que marcam a realização de atividades da vida cotidiana. Essa natureza dual se reproduz em diversos aspectos do pensamento ye’kuana, constituindo-se uma marca de sua própria epistemologia (Andrade, 2010).

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e mediação entre a aldeia e o mundo externo. O ädhajo ye’kuana encarna a totalidade da aldeia. O demiurgo Wanaadi, principal herói das histórias wätunnä, construiu na Terra uma réplica do mundo celeste no formato da casa tradicional, a ättä, que reproduz a estrutura cosmológica do mundo invisível. A ättä, construção circular cujo teto cônico reproduz os oito planos celestes, é formada por círculos concêntricos e cortada em seu centro por uma grande viga, réplica do eixo central da Terra. No centro da ättä está a annaka, onde são realizadas as refeições comunais e os rituais, e ao seu redor estão diversos compartimentos onde vivem as famílias. A annaka é uma analogia a dama, o mar, que se situa no centro da Terra. Wannato, cunhado de Wanaadi, foi o primeiro ye’kuana a construir uma casa redonda em annachänha, no coração do território tradicional ye’kuana, em região situada na Venezuela, onde hoje há uma grande formação rochosa. “Aquela pedra grande, redonda, que está lá em annachänha, é a primeira ättä que Wannato construiu, e nós aprendemos a fazer nossas casas da mesma maneira”, dizem os Ye’kuana. Os Ye’kuana de Auaris não vivem mais na ättä, a grande casa comunal redonda. A aldeia hoje é formada por um conjunto de residências onde vivem as famílias extensas, e seus moradores atribuem a mudança do padrão residencial ao aumento demográfico ocorrido nas últimas décadas. Não obstante, a imagem exercida pela figura da grande casa comunal como réplica do cosmos invisível não perdeu força e continua presente no discurso (e no imaginário) ye’kuana, a despeito de sua ausência física. Em alguma medida, a casa onde hoje são realizadas reuniões e eventos rituais e festivos na comunidade está associada à ättä. O ädhajö da aldeia encarna em si, pois, a totalidade do macrocosmos cuja epítome é a ättä. Existe uma similitude entre a concepção ye’kuana do cosmos e a maneira através da qual as casas são construídas. De maneira simbólica, a casa redonda transmite uma mensagem do universo em código, tal como os ye’kuana o entendem e visualizam. É esta qualidade da casa de gerar uma imagem que projeta externamente tal unidade, incorporada no ädhajö, que desejo salientar aqui. Uma

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vez que a ättä representa a dimensão invisível do cosmos, codificando-a, o ädhajö encarna em si esta totalidade composta pelo corpo social formado pelos co-residentes, unificando-o a despeito das dualidades internas. Casa e chefe estão em relação de equivalência, aquela codificando o cosmos, este codificando os laços que vinculam os co-residentes, expressos também através da linguagem do parentesco. Cabe ao chefe de aldeia representar a totalidade constituída pelos co-residentes frente ao mundo exterior. É o chefe quem recebe forasteiros, sejam visitantes não-ye’kuana ou ye’kuana vindos de outras aldeias. No passado, o chefe da aldeia performava diálogos cerimoniais com visitantes vindos de outras aldeias ye’kuanas, que se constituíam em verdadeiros duelos por prestígio. Ainda hoje, é o chefe que recebe os visitantes, determina onde devem ficar hospedados, exercendo ainda o papel de mediador nas transações de bens e trocas comerciais. Pude ouvir as palavras do chefe de Fuduwaaduinha logo após a chegada de visitantes ye’kuana vindos de uma aldeia situada em território venezuelano, na costumeira reunião dos homens à noite, na casa comunal, ressaltando que todos deveriam receber os visitantes e trocar bens com estes, “mesmo que não tenham como pagar o que eles querem, vocês devem aceitar as trocas10, depois, outro dia, você paga o que ele deseja. Não podemos recusar, eles são nossos fömmä (nossa gente, nossos parentes)11”. Arvelo-Jiménez (1974) afirma que a estabilidade de uma aldeia ye’kuana está vinculada ao estado emocional de seus habitantes e o que se verifica, em largos períodos de tempo, é uma constante variância, um constante movimento de integração e desintegração dos grupos familiares que compõem a aldeia. A autora aponta que há quatro maneiras através das quais é possível criar laços de pertença a uma aldeia, a saber: mediante matrimônio; a convite do chefe da aldeia ou um de seus membros; por adoção, no caso de crianças órfãs ou filhos de pais divorciados; através do mecanis10 Para uma análise das modalidades de troca entre os ye’kuana, ver Andrade, 2009a. 11 Em contrapartida, os ye’kuana utilizam o termo fömmä nee’ne (parentes ‘de verdade’) para se referirem ao kindred, a todos os parentes com os quais ego pode estabelecer laços genealogicamente.

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mo de paternidade extendida ou fictícia. A autora ressalta, no entanto, que a única maneira que assegura o gozo completo dos direitos políticos e sociais é a pertença a uma aldeia pelo nascimento. Ser membro de uma aldeia significa ter o direito de sugerir, aprovar ou objetar decisões relacionadas às atividades da aldeia; ter direitos preferenciais, por exemplo, de matrimônio; solicitar colaboração e ajuda em atividades como a construção de uma casa, abertura de novas roças, construção de caminho para transportar da mata até o rio uma canoa recém-construída (no caso dos homens); na limpeza de uma roça (no caso das mulheres); no plantio de novas roças (para ambos os sexos). Significa ainda ter prioridade na solicitação de serviços e proteção dos especialistas em ritos da aldeia (cantores e pajés). Em última instância, de acordo com Arvelo-Jiménez, ser membro de uma aldeia proporciona ao indivíduo uma identidade política frente ao resto da “nação ye’kuana”. A aldeia é apontada pela autora como a unidade política mais significativa no mundo ye’kuana, e é justamente a autonomia da aldeia que está representada na figura do ädhajö. Em contraponto ao chefe de aldeia, os xamãs são figuras centrais nas relações entre a coletividade constituída pela aldeia e outras coletividades constituídas pelos “outros” que habitam dimensões distintas do cosmos. Wanaadi foi o primeiro grande xamã, contam os ye’kuana. Apenas com o poder de seu pensamento, criou e povoou o mundo. Os primeiros xamãs ye’kuana, assim como Wanaadi, dotados de grande poder, eram capazes de viajar pelo tempo e espaço, tendo revelado o destino dos ye’kuana, através das histórias wätunnä. Estes grandes xamãs desapareceram, deixando aos ye’kuana o uso de plantas alucinógenas, tabaco, widichö (pequenos cristais mágicos utilizados no chocalho dos xamãs), cantos e espíritos auxiliares. Em Fuduwaaduinha, há muito não existem xamãs. Os ye’kuana afirmam que os jovens já não mais se interessam pelo duro aprendizado xamânico, marcado por uma rígida dieta que envolve abstinência sexual em longos períodos. Entretanto, assim como a mensagem codificada pela ättä, a grande casa comunal, prescinde de sua existência física para continuar fazendo parte do imaginário ye’kuana, o xamanismo em Auaris marca profun-

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damente a vida cotidiana, a despeito da ausência dos xamãs. Artifícios como consultas xamânicas via rádio com alguns dos xamãs ye’kuana que vivem em aldeias distantes, na Venezuela, e até mesmo a contratação dos serviços dos vizinhos sanumá12, fazem parte do dia-a-dia de Auaris. Importantes decisões, como a escolha do local onde seria fundada a nova aldeia, ou o melhor período para iniciar o trabalho perigoso de derrubada da mata para abertura de novas roças, nunca são tomadas sem consultar um destes especialistas13. Apesar da inexistência, em Auaris, de xamãs reconhecidos, há vários homens que detêm conhecimento de cantos e manipulação de plantas mágicas para curar doenças e atuar como cantores em eventos rituais14; ao menos dois deles iniciaram a formação xamânica, que não foi concluída. Estes homens, entretanto, não são capazes de enfrentar “desafios maiores”, que exigem a atuação dos espíritos auxiliares dos xamãs, tais como defender a comunidade do feitiço de outros xamãs inimigos ou resgatar um dos seis äkattö (componentes vitais dos humanos) que tenha deixado o corpo de alguém gravemente doente ou enfeitiçado. Os dados que obtive a respeito das crenças xamânicas e da atuação dos xamãs ye’kuana vieram dos relatos tanto daqueles que chegaram a iniciar a aprendizagem xamânica quanto de tantos outros ye’kuana que conviveram com xamãs (sobretudo os moradores mais velhos de Auaris)15. 12 Esta feita com muitas reservas, devido ao medo que os ye’kuana têm do feitiço que os “instáveis sanumá” podem jogar sobre a comunidade. Tive a oportunidade, entretanto, de acompanhar, durante meu período de campo, a contratação dos serviços de xamãs sanumá em duas ocasiões. 13 Importante ressaltar que os xamãs sanumá são chamados apenas para realizar sessões de cura. Todas as outras consultas, que determinarão a tomada de decisões importantes, são realizadas apenas junto a xamãs ye’kuana de outras aldeias. 14 Acompanhei algumas destas performances, em situações tais como a reclusão da comunidade durante o período de resguardo iniciado após uma mulher ter sido picada por uma cobra, e que envolveu a preparação de banhos com plantas mágicas e cânticos não só para a vítima, mas para todos os moradores da aldeia; a inauguração de uma casa nova; a purificação, com cantos e sopros, de todos os alimentos a serem consumidos por meninas em período de reclusão após a primeira menarca e a cura de doenças diversas com o uso de plantas. 15 Também contei com valiosas informações de um dos homens que é apontado como o maior sábio ye’kuana ainda vivo, morador da aldeia de Waikás, no rio Urariocoera, durante sua estadia em Auaris como convidado para atuar como cantor em uma série de rituais, ao longo do meu período de campo. Este homem chega a ser apontado por alguns como sendo um xamã, mas não há consenso; outros limitam-se a dizer que ele é um grande cantor e sábio, mas não um föwai, xamã.

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O xamanismo ye’kuana é marcado por uma ética ascética e pelos cuidados corporais. Barandiarán (1962b) analisou o xamanismo ye’kuana e mostrou como, para que um jovem ye’kuana se tornasse xamã, o mérito pessoal era fator decisivo. Segundo o autor, há indícios de que, no passado, o xamanismo tenha sido hereditário, mas, já nos anos 60, quando fez sua pesquisa entre os Ye’kuana da Venezuela, não era mais assim. Os xamãs deviam adotar uma postura de contenção bastante marcada. No longo processo de aprendizagem com um xamã experiente, o neófito tinha que observar abstinência sexual e sua alimentação seguia uma dieta que excluía diversos tipos de carne, sal e pimenta. Os relatos dos homens de Auaris sobre os mais poderosos xamãs traçam o perfil de homens que assumiam uma postura ascética cuidadosamente cultivada, dedicando-se a desenvolver seus poderes através da contenção alimentar, sexual e mesmo social, como parte dos cuidados com o corpo. Tal ética corporal é parte não só da ascese xamânica, mas do processo de tornar-se uma pessoa de verdade, um Ye’kuana no pleno sentido do termo. O rígido tratamento do corpo é necessário para atingir certo grau de humanidade, sendo o corpo fabricado ao longo de todo o processo de socialização e não apenas no ato de conceber uma criança. Ao analisar o padrão ideal de comportamento ye’kuana, o valor do esforço e do trabalho sobressai como pilar fundante de sua ética. O valor do trabalho está na construção da cultura material, na produção seja dos artefatos materiais, seja do conhecimento – tanto o xamã quanto o historiador (especialista em wätunnä) levam uma vida de dedicação e estudo, marcada por regras e restrições. O valor do trabalho está na construção dos corpos, na formação do ser ye’kuana – através dos rituais e da produção da boa alimentação e aquisição de conhecimento tradicional16. Utilizando o chocalho e três tipos de plantas alucinógenas, bem como entoando os cantos, os xamãs ye’kuana entram em transe ritual, contando com seus espíritos-onça auxiliares para travar batalhas com os espíritos16 Um homem ye’kuana contou-me que quando ainda era muito jovem, seu futuro sogro, ao discutir a potencial aliança, teria apalpado seus braços e dito em voz alta, diante de toda a parentela presente: “não, seu corpo ainda não está pronto, tem que trabalhar mais, ficar com o corpo mais forte para poder casar”.

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-auxiliares de um xamã inimigo, com ädhajös de outras espécies animais responsáveis pela doença de um ye’kuana ou para viajar no tempo-espaço, vislumbrando possíveis ameaças e perigos que rondam a comunidade. Ao narrar um episódio ocorrido durante sua infância, um dos homens de Fuduwaaduinha nos dá pistas para melhor compreender a atuação do xamã. Quando este homem, ainda criança, ficou gravemente doente, seu pai solicitou os serviços de um föwai. Ao fazer o transe xamânico, o especialista descobriu que um dos äkatto do menino havia deixado seu corpo e estava vivendo na aldeia das queixadas, como se um deles fosse. O xamã trouxe o äkatto de volta, após convencer o ädhajö das queixadas a deixá-lo partir e retornar ao corpo do seu dono. Atuando como mediador entre aqueles que representa e outros ädhajö, os xamãs negociam os termos das relações entre “nós” e os “outros” em esfera diversa daquela na qual atua o chefe da aldeia. Verdadeiro conciliador das relações que se estabelecem entre as dimensões visível e invisível, o xamã também exerce relações diplomáticas, protegendo e defendendo o corpo social do qual fazem parte aqueles com os quais compartilha a mesma condição de existência. No tempo presente, são os xamãs os únicos capazes de estabelecer um diálogo com os ädhajö dos animais. Mediadores por excelência, os xamãs exercem no plano invisível o papel de diplomacia do chefe de aldeia, embora não seja ele próprio um ädhajö. As histórias wätunnä, ao relatarem eventos ocorridos em um tempo em que humanos e animais compartilhavam a condição de humanidade (i.e., exerciam sua socialidade no mesmo plano, o terreno), apontam para a comunicação (ainda que perigosa) entre as espécies, quando a mediação xamânica era desnecessária. Na medida em que os animais retiraram-se do plano visível, da dimensão terrestre, após perderem a batalha para os humanos, tornando-se senhores desta dimensão, tendo a primazia por exercer nela sua condição de humanidade, a comunicação foi cortada. Entram em cena os xamãs, que detêm a capacidade de viajar por entre as várias dimensões e estabelecer negociações com os ädhajö dos animais. Assim como o chefe de aldeia, o xamã representa, neste ofício, a totalidade do corpo social do qual faz parte. Configura-se assim

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uma relação de assimetria, em que os xamãs ye’kuana, ainda que não sejam considerados ädhajö, comunicam-se com os ädhajö dos animais, que não possuem xamãs. Fausto (2008), analisando as relações de maestria na Amazônia indígena, destacou que a ausência da propriedade privada sobre recursos materiais importantes, neste contexto, nos impediu de entender a real dimensão de tais relações. Aqui, a posse de objetos, segundo o autor, é apenas um caso possível. Em um “mundo de donos e inimigos, mas não necessariamente de dominação e domínio privado” (:352), configuram-se relações de assimetria, nas quais os donos/mestres controlam e protegem os seus, tornando-se responsáveis por seu bem-estar, reprodução e mobilidade. Os “donos” são mais do que meros representantes de uma coletividade: “o chefe-mestre é a forma pela qual um coletivo se constitui enquanto imagem; é a forma de apresentação de uma singularidade para outros” (334, grifo do autor). Os ädhajö, ao representarem o corpo coletivo constituído por aqueles com os quais compartilha forma corporal e sociabilidade particulares, projetando tal imagem de singularidade ao exterior, à maneira como faz a ättä, a grande casa comunal ye’kuana, transforma-se em mensageiro e diplomata. Responsável pelo bem-estar dos seus, negocia os termos das relações entre aqueles que representa e os outros coletivos que povoam o mundo. O ädhajö de cada aldeia ye’kuana desempenha tais funções na dimensão visível do cosmos, no entanto é o xamã o único capaz de estabelecer tal comunicação com os ädhajö dos animais. Dessa forma, parte das funções exercidas pelo xamã e pelo chefe de aldeia são muito semelhantes, porém em distintas dimensões. *** O atomismo e fechamento ao exterior, resultantes do “horror” à diferença, apareceram durante muito tempo na literatura etnográfica como marcas das sociedades guianenses (Rivière, 2001 [1984]). Tais caracterís-

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ticas levariam, no plano da organização social e política, a uma pronunciada autonomia de aldeia, enfatizada pelo ideal de endogamia. No entanto, pesquisas mais recentes com os povos guianenses tem apontado para a alternância, ao longo do devir histórico, entre processos de fissão e fusão de unidades sociais nas guianas. As intensas trocas de bens e construção de alianças políticas, costuradas através das extensas redes de comércio entre os povos indígenas situados na região, aliadas aos processos de fusão e fissão das unidades sociais, colocam em xeque o “fechamento” das sociedades guianenses ao exterior (Gallois et all, 2005; Arvelo-Jiménez et all, 1989). No caso ye’kuana, o ideal de autonomia, enfatizado pela aldeia enquanto réplica do cosmos, projetando uma imagem exterior de totalidade através da casa e chefe, é matizada se consideramos os papéis exercidos por outros dois ädhajö: cantores (ädemi eyajä/ädhajä e a’chudi eiyajä/ädhajö, “donos” das canções a’chudi e ädemi) e historiadores (wätunnä eyiajä ädhajä, “donos” das histórias). Analisar o papel exercido por cantores e historiadores ye’kuana demanda a produção de outro artigo. Optei por centrar minha análise, neste texto, nas figuras do chefe de aldeia e do xamã, por razões contingenciais. Minha hipótese é a de que se o chefe político da aldeia (dos humanos ou dos animais) representa a totalidade do corpo social, enfatizando o ideal de autonomia das unidades sociais máximas, cantores e historiadores são o elo de ligação entre tais unidades, gerando o sentimento de pertença à rede que une todas as aldeias ye’kuana, sentimento este que repousa no compartilhamento de um só corpo de histórias e canções e um mesmo idioma. Retomando a clássica análise de Pierre Clastres (2003 [1974]) sobre a natureza da chefia ameríndia, cantores e historiadores são aqui o contrapeso do papel do chefe de aldeia. Temos, de um lado desta equação, a representação da autonomia das unidades que compõem a rede e de outro, a força da própria rede. As unidades, que tendem a colocar em questão a totalidade do modelo, tem sua autonomia tolhida pela força que emana dos laços que tecem a rede que as vincula umas às outras, na qual cantores e historiadores são linha e agulha. Temos aqui forças centrípetas e centrífu-

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gas atuando; um movimento pendular, similar ao sugerido por Perrone-Moisés & Sztutman (2010) a partir da etnografia de povos tupi, que oscila entre movimentos de dispersão e concentração perceptíveis numa análise que leve em consideração a diacronia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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OS INDÍGENAS E A CONSTRUÇÃO DAS NAÇÕES SUL-AMERICANAS Alcida Rita Ramos1

Introdução2

O estudo do indigenismo comparado em países sul-americanos, do qual me ocupo atualmente, pode trazer muitas surpresas sobre o papel que os povos indígenas têm desempenhado na formação das novas nações do continente. Meu foco atual são três países cujas populações indígenas constituem nítidas minorias demográficas e políticas: Brasil, Argentina e Colômbia. Por indigenismo refiro-me ao vasto pano de fundo sobre o qual são esculpidas as inúmeras imagens do Índio, criando um caleidoscópio sócio-político que contribui substancialmente para a elaboração de uma ideologia nacional do tipo descrito por Edward Said em seu influente livro Orientalism (1979). Neste sentido, o indigenismo representa um “Orientalismo nacional”, seja ele elaborado no Brasil, na Argentina, na Colômbia ou em qualquer outro país das Américas onde houver algum tipo de discurso indigenista; e, mesmo que não haja, tal ausência já é altamente significativa para entendermos um ethos nacional. Como concebo o indigenismo, ele não se restringe a políticas indigenistas de Estado, embora não as exclua, mas abrange toda e qualquer manifestação do imaginário cultural a respeito do Índio, inclusive, pelos próprios indígenas. Trata-se, em suma, “de um campo de forças gerado na arena interétnica capaz de criar uma realidade prática e conceitual” (Ramos 1998a: 6). Com maior ou menor intensidade, esse campo de forças é 1 Universidade de Brasília Pesquisadora 1A do CNPq 2 As seções sobre Brasil e Argentina estão fortemente calcadas em Ramos 2009. Devido à pouca familiaridade que em geral se tem no Brasil sobre nossos vizinhos de continente, as seções sobre a Argentina e a Colômbia são propositalmente mais extensas. Parte deste trabalho foi exposta preliminarmente na palestra “O trabalho simbólico e político das sociedades indígenas” apresentada durante a VII Jornada de Ciências Sociais da UFMG, em novembro de 2010.

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encontrado em grande parte dos países americanos, podendo emergir com feições românticas, burocráticas (Cardoso de Oliveira 1972: 67-76), de repúdio e tantas outras, mas nunca com indiferença. Como todas as nações americanas foram construídas sobre os escombros das sociedades indígenas, seria de surpreender que tal indiferença, quando existe, vá além da capa mais superficial das consciências nacionais. Indigenismo no Brasil

Se tivéssemos que escolher uma única palavra para descrever a relação do Brasil com seus índios, essa palavra seria ambivalência. Desde sua descoberta em 1500, a tendência de ver os índios como nobres filhos do Paraíso ou como ignóbeis selvagens que devem ser civilizados só aumentou ao longo dos séculos, desembocando numa verdadeira esquizofrenia na política indigenista oficial. Por um lado, os legisladores, ao menos em décadas passadas, mostraram uma sensibilidade razoável para proteger as diferenças culturais e étnicas representadas pelos povos indígenas. Por outro, os executores das políticas indigenistas, sejam funcionários da Funai, governadores ou ministros, têm se distinguido muitas vezes por atentarem contra a legislação pró-indígena, incluindo aí a própria Constituição Federal. Persiste o credo da unidade nacional que toma a nação como indivíduo coletivo – ao gosto do Estado tutelar – e não como a coletividade de indivíduos de inclinação liberal (Reis 1988: 193, 194). Por diversas vezes, autoridades brasileiras pronunciaram-se contra a presença de indígenas em território nacional, pois eles representariam o atraso num país que almeja ser aceito no seleto clube dos países de “Primeiro Mundo” (ver, por exemplo, os dizeres do cientista político Hélio Jaguaribe e do ex-ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves em Ramos 1998a: 46). Ao se declararem avessos à diversidade cultural interna do país, esses senhores desnudam o Brasil pela janela indiscreta da política indigenista. A questão indígena, como um potente holofote, expõe as imperfeições da intimidade do ethos brasileiro sem a generosidade de retoques. Se é que há alguma su-

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tileza no modo tutelar como o Estado trata os cidadãos em geral, essa finura desaparece quando os sujeitos são indígenas. No entanto, o Brasil seria inconcebível sem os seus índios, não como coletividades concretas, mas como objetos do imaginário e da manipulação nacionais. Como uma memória involuntária proustiana, a questão indígena tem a potência de extrair da imagem autodeclarada do país aquilo em que não se pensa ou não se quer admitir. Para usar uma figura freudiana, é como se os índios representassem o id, o mais profundo subconsciente da nação, um componente por vezes embaraçoso, mas necessário à sua própria constituição. A fábula das três raças nada mais é do que uma tentativa de acomodar essa ambivalência entre uma ideologia humanista e o anseio pela modernidade. Nesse jogo ideológico, os índios foram convertidos em moeda de troca do capital simbólico do país, desde emblemas da cobiça estrangeira até doadores de genes que, juntamente com negros e portugueses, produziram esse ser único que é o brasileiro. A ambivalência contamina tudo, criando um meio fértil para a propagação de tantas imagens do “índio” quantos forem os agentes envolvidos na construção do indigenismo. Imagens da nação e do índio brotam da ficção de escritores, da caneta de legisladores, das piedades missioneiras, dos projetos de desenvolvimento, das colunas jornalísticas, das análises antropológicas e das próprias demandas indígenas. Nesta Babel ideológica transparece uma mensagem irrefutável: é impossível ao Brasil extirpar o indígena de sua autoconsciência. Indigenismo na Argentina

Tendo sempre o Brasil como ponto de partida e de referência, venho investigando as ideologias e ações indigenistas na Argentina e como elas têm contribuído para formar aquela nação (Ramos 2009). Embora a pesquisa ainda esteja em curso, alguns temas começam a surgir como importantes indicadores das trajetórias políticas e científicas em ambos os países que afetaram e continuam afetando direta ou indiretamente os povos indígenas.

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Um dos pontos em comum entre a Argentina e o Brasil é o papel da ideologia positivista. No entanto, os pressupostos e consequências políticas diferem consideravelmente. Na Argentina, o positivismo de feição inglesa prevaleceu tanto na política (por exemplo, na figura do General Roca, o “conquistador do deserto” [Briones e Delrio 2009]) como na ciência (representada, entre outros, pelo médico e criminologista José Ingenieros), apesar de não ter sido unânime (Lenton 2001; Soler 1979; Terán 1986, 2008). Já no Brasil, foi o positivismo comteano de origem francesa que assumiu a liderança na política e, em especial, no indigenismo (tendo a figura do Marechal Rondon como ícone), enquanto o spencerismo (ou darwinismo social) inspirou cientistas como Nina Rodrigues e Arthur Ramos em seus estudos sobre raça. Outro contraste está nos “mitos de origem” brasileiro e argentino. Enquanto o primeiro inclui os índios como formadores da nacionalidade, o segundo nega peremptoriamente aos povos originários a participação na formação da argentinidade. Como aponta Claudia Briones (2005: 42, 44), ao contrário dos peruanos que vieram dos incas e dos mexicanos que vieram dos astecas, os argentinos preferem dizer que vieram dos barcos. Rejeitam assim qualquer ascendência indígena e afirmam que o desenho de sua nação tem traço unicamente europeu: “un difundido aserto del sentido común, ‘nos recuerda’ que los argentinos ‘venimos de los barcos’, buscando así convencernos de que la ‘bondad’ sociológica de nuestro ‘pueblo’ más bien trendría un basamento exclusivamente ultramarino” (Briones 2002: 68). Embora em seus anos formativos o Estado argentino almejasse atrair imigrantes do norte europeu, teve que se contentar com multidões de italianos e espanhóis. Foram eles, mais do que ingleses e alemães, que apareceram nos barcos (Quijada et al 2000). No campo da produção cultural, especialmente na literatura, o Brasil teve no movimento indianista um grito de louvor às qualidades atribuídas aos índios, cantadas em autores como José de Alencar e Gonçalves Dias, entre outros. Mas os índios do indianismo brasileiro são os gentios primevos de um passado que nunca foi. Vivendo na mesma época desses

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indianistas brasileiros, os argentinos Domingo Sarmiento, José Hernández e Lucio Mansilla, por exemplo, trataram a problemática indígena do ponto de vista da construção da nação, porém num registro diametralmente oposto ao nosso. Seus indígenas eram seus contemporâneos, competiam por recursos com a sociedade nacional e por estes fizeram-lhes guerra. Sem saudosismos, o que incomodava os formadores da nação argentina eram os índios vivos, não os mortos. Assim o expressa Viñas: “’los magnos aztecas e incas’ residían en un espacio retórico que no alarmaba a nadie; Calfucurá, Pincén y Mariano Rosas, en cambio, estaban del outro lado, allí, ‘allí mismo’, en la frontera limítrofe de los grandes latifundios en avance” (Viñas [1982]2003: 70). Já não se tratava de índios extintos que o tempo transformou em heróis, mas de obstáculos a um progresso que parecia aguardar com impaciência que a Argentina os eliminasse para, enfim, florescer. Eram eles, os ”diferentes” e os “impossíveis de assimilar”, que “no nos dejan hacer buenos negocios − comenta Pellegrini desde Londres −, los de aquí se impacientan” (Viñas [1982]2003: 59). Como para marcar a (des)importância dos índios para o destino do nascente país, autores como Domingo Sarmiento atacam , por assim dizer, o problema pelas bordas. O alvo privilegiado do seu tiro civilizador não é exatamente um índio, mas um caudilho interiorano de Cuyo que mostra sua força política no comando de um exército regional. Juan Facundo Quiroga emerge das páginas sarmentianas como um desgrenhado bandido que recusa a elegância do fraque (a epítome de civilidade européia) e comete atos chamados de atrocidades, que em mãos de aliados seriam apenas práticas inevitáveis de guerra. “Facundo es un tipo de la barbarie primitiva; no conoció sujeción de ningún género; su cólera era la de las fieras; la melena de sus renegridos y ensortijados cabellos caía sobre su frente y sus ojos en guedejas, como las serpientes de la cabeza de Medusa” (Sarmiento [1845]2004: 123). Não sendo índio, mimetiza-se em selvagem: “trafica desde Córdoba con los indios; y últimamente se casa con la hija de un cacique, vive santamente con ella, se mezcla en las guerras de las tribus salvajes, se habitúa a comer carne cruda y beber la sangre en la degolladera de los

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caballos, hasta que en cuatro años se hace un salvaje hecho y derecho” (Sarmiento [1845]2004: 206). Atos imperdoáveis para o civilizador Sarmiento para quem, pior do que nascer índio é fazer-se índio tendo nascido branco. Facundo, originalmente publicado em 1845 durante o exílio de Sarmiento no Chile, levava o título de Civilización y barbarie. Vida de Juan Facundo Quiroga y aspecto físico, costumbres y hábitos de la República Argentina. Na terceira edição, de 1868, o título se transforma em Facundo o civilización y barbarie en las pampas argentinas. Essas oscilações de título indicam que Sarmiento utilizou uma figura pública, um desafeto político, como pretexto para lançar seu programa civilizatório para a Argentina (Pigna 2004: 269; Halperín Donghi 1997). Dele estavam excluídos todos aqueles elementos criados à imagem dos costumes europeus e, já então, estadunidenses. Índios, gaúchos, exércitos informais (as chamadas montoneras às quais pertencia Facundo [Pigna 2004: 266]), compunham essa barbárie ideologicamente antípoda da civilização. Porta-voz desse porvir civilizado, Sarmiento inaugurou um projeto cujo desfecho não deixava lugar a meio-termo: “o se someten o se los elimina: se convierten o se los suprime. ‘El resto son suspiros de beatas’, llega a decir Eduardo Gutiérrez” (Viñas [1982]2003: 59). Com essa plataforma negativa, mais a proposta positiva de difundir um sistema exemplar de educação nacional, Sarmiento elegeu-se presidente da Argentina de 1868 a 1874. No entanto, a aspiração de eliminar a barbárie, neutralizando a atuação indígena, só começou a ser deveras satisfeita alguns anos depois, já quase no final do século XIX, com a chamada Campanha do Deserto de 1879, a guerra armada do Estado argentino que destroçou os modos de vida indígena nos Pampas e na Patagônia (Briones e Delrio 2009), seguida pelos massacres que devastaram os povos do Chaco (Gordillo 2004). Um cronotopo, duas nações

Como foi que os índios no Brasil adquiriram tanta visibilidade, enquanto seus congêneres argentinos, alquebrados pela Campanha do Deser-

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to, eram, a partir de 1880, submersos num silêncio sepulcral até a segunda metade do século XX? Responder a esta pergunta requer algum esforço analítico. Digamos que, no caso argentino, houve uma operação de apagamento, uma obliteração, na verdade, mais virtual do que real, deixando em sua esteira um rastro-testemunha, algo invisível que era necessário evocar para que a própria operação de aniquilamento se tornasse plenamente visível. Seria um bom exemplo do que Derrida propõe quando fala de pôr algo “sob rasura”: não se fala mais de índios em território argentino, mas, sem se falar deles, a conquista daquele território não repercute na nação. A palavra índio não deve ser pronunciada, mas é preciso evocá-la para afirmar o seu jugo. É como se um X lhe fosse sobreposto, num jogo semântico de mostra-e-esconde, pois, sem ela, não é possível afiançar plenamente a existência da nação: o índio está lá, mas riscado como um erro de ortografia ou, melhor dizendo, de história. Porém, se for apagado totalmente, a frase-mestra da nacionalidade − “os índios estão todos mortos” (Grosso 1999) − carece de sentido. Ou seja, é preciso haver o índio ocupando um lugar transitório na história pátria para que seja conquistado e, no seu lugar, surgir a verdadeira civilização. Sem índio não haveria conquista e sem conquista não haveria o heroísmo do qual germina o orgulho pátrio. O índio é, em suma, a marca da presença de um ausência (Spivak 1976: xvii). No caso brasileiro, o processo de substituição do índio pelo civilizado seguiu outra lógica. Conquistam-se os índios e se reduz a sua influência a imagens descarnadas: índio bom é índio do passado. Tendo cumprido seu papel de ancestral da nacionalidade, ele torna-se supérfluo e relegado aos confins do território nacional. Passa a ser tão insignificante aos olhos nacionais que lhe é permitido até continuar a existir, desde que não compita pelos bens da nação e nem se mostre indigno da imagem de nobre selvagem que fizeram dele (Ramos 1994). As reservas territoriais indígenas concretizam essa lógica e ainda podem servir como demonstração viva de magnanimidade pluriétnica por parte dos governantes, como é o caso do Parque Indígena do Xingu que há muito tempo atrai celebridades em busca de exotismo tropical. Assim, enquanto na Argentina o índio está sob rasura, no Brasil, ele está na berlinda.

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Ambos os países fizeram grandes esforços para atrair imigrantes europeus para colonizar e desenvolver o que consideravam terras férteis e “vazias”, ou seja, os estados do sul no Brasil e os Pampas e a Patagônia na Argentina. Aliás, os vazios demográficos são outro cronotopo não só no Brasil (Ramos 2008) e na Argentina (na figura do ‘deserto’), mas no Novo Mundo inteiro, sendo monotonamente repetido pelas Américas afora. Em ambos os países, centenas de milhares de imigrantes (principalmente alemães, italianos e holandeses no Brasil; italianos e espanhóis na Argentina) passaram a ocupar o que eram os territórios tradicionais dos índios Kaingang e Guarani no Brasil, e, na Argentina, dos Mapuche, Ranqueles, Tehuelche e tantos outros povos, alguns considerados extintos. Em ambos os países, os índios se rebelaram contra as invasões de colonos e o esgotamento de recursos naturais essenciais à sua existência e se engajaram no que ficou conhecido na Argentina como malones (que poderíamos tomar a liberdade de traduzir como arrastões, à imagem das atuais turbulências urbanas no Brasil), incursões devastadoras que destruíam lavouras, casas e animais, matavam homens e capturavam mulheres e crianças. Em ambos os países, esses conflitos sulistas provocaram debates em Buenos Aires, Rio de Janeiro e São Paulo sobre o que fazer com os índios que persistiam em bloquear o caminho do progresso e desenvolvimento da nação. No entanto, o resultado desses debates não poderia ter sido mais diferente em cada país. A semântica da conquista

Na Argentina os debates parlamentares, especialmente depois de consumada a campanha militar nos Pampas, na Patagônia e no Chaco, forjaram uma série de discursos e interpretações da alteridade que, explorando admiravelmente a ambiguidade da linguagem com extraordinários malabarismos semânticos, conseguiram muitas vezes a façanha de transformar índios em alienígenas e imigrantes em iguais: “la ‘argentinidad’ a veces es expandida para incluir grupos antes marginalizados, y otras veces

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se restringe para excluir a sectores que parecían próximos al ‘nosotros’, en relación con coyunturas políticas determinadas” (Lenton 1999: 8, 2001. Ver também Briones e Delrio 2002: 46). A vasta literatura sobre a “conquista do deserto” mostra que a investida de 1879 chefiada pelo Coronel Julio Argentino Roca, Ministro da Guerra do Presidente Avellaneda, foi a última de uma série de ataques armados contra os índios, só no século XIX. Foi o golpe de misericórdia há muito anunciado. Uma lei de 1867 (número 215) já prefigurava a tomada dos territórios e o despejo dos indígenas para o sul, ou seja, “buscaba limpiar de indios el terreno entre la frontera y el río Negro, ya fuere quebrando su moral, reduciendo sus efectivos o privándolos de sus haciendas” (Walther [1948]1980: 431). Outra lei, de 1878 (número 947) reiterou e regulamentou a anterior. No ano seguinte, começa a ofensiva final contra os índios sulinos. Roca, o pacificador do “deserto”, “se convierte en el arquétipo de la ‘solución final’ en el ‘problema’ indígena, defensor de la tesis de la guerra ofensiva sin concesiones” (Martínez Sarasola 2005: 254). Houve um grande consenso unindo os governantes e os cidadãos comuns sob a crença de que era preciso remover os índios das terras do sul e depois da região do Chaco, se o país quisesse cumprir “un mandato del destino” (Viñas [1982]2003: 54) ou, talvez mais apropriadamente, o seu “destino manifesto”, a exemplo dos construtores da nação estadunidense (Turner 1921). (Aliás, uma comparação entre a Argentina e os Estados Unidos seria, sem dúvida, um exercício em repetições e coincidências, muito mais do que contrastes, incluindo o General Roca e seu dublê yankee, o General Custer). Embora tenha havido divergências, o discurso da preservação indígena foi o grande perdedor dessa batalha ideológica. As campanhas bélicas que tornaram os índios argentinos invisíveis para a nação e para o mundo conseguiram matar dois coelhos com uma cajadada. Do ponto de vista econômico, o Estado convenceu o país de que a solução era esvaziar de índios as terras férteis de modo a deslanchar um plano de criação extensiva de gado destinada à bonança do mercado internacional de carne e derivados. Do ponto de vista ideológico, demonstrou

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que destruir os índios cumpria a profecia segundo a qual a Argentina era uma nação de brancos para brancos vindos dos barcos. Mas nem só de pastos vivia o país. Havia ainda que conquistar as terras quentes do nordeste, boas para produzir bens de troca como o algodão. A região chaquenha foi o palco da guerra seguinte. “La Campaña de Victorica de 1884, culminación también de una serie de esporádicas incursiones militares que comienzan hacia 1870, no logra erradicar a todos los pueblos del Chaco, pero desgasta a los grupos más organizados en torno de grandes caciques” (Carrasco e Briones 1996: 14). Derrotados na guerra oficial já no início do século XX, os índios do Chaco foram reduzidos a devastada mão de obra nas plantações de algodão em condições subumanas tão extremas que chocaram até mesmo agentes do governo e provocaram entre os Toba e Mocoví um movimento milenarista que acabou desbaratado no que se chamou o massacre de Napalpí (Gordillo e Hirsch 2003: 13, Gordillo 2005). O grandioso desenho da nação argentina seguiu, passo a passo, um plano cuidadoso e muito bem definido: 1º) eliminar os índios; 2º) povoar o interior de imigrantes europeus; 3º) embranquecer o país; 4º) implantar um programa de educação universal. A rigor, apenas este último ponto teve o sucesso esperado: nem os índios foram eliminados − hoje são mais de um milhão (Claudia Briones, comunicação pessoal) −, nem os ideais imigrantes do norte europeu se apresentaram − a maioria veio da Espanha e da Itália (Quijada et al 2000) − , nem o país saiu mais embranquecido, se formos além das estatísticas censitárias (Andrews 1980). Um dos subprodutos das campanhas anti-indígenas, aliadas ao despautério da Guerra do Paraguai (18651870), foi o alarmante crescimento da dívida pública “que consumiu quase metade do orçamento em 1978-1879” (Fausto e Devoto 2004: 97), ou seja, esvaziam-se os campos e os cofres públicos em nome de uma hegemonia erguida a ferro e fogo, deixando atrás de si um rastro de míseros equívocos. Tanto na Argentina como no Brasil o exército comandou o destino dos índios, sendo que os principais vultos da empreitada foram profundamente influenciados pelo positivismo. No entanto, os modelos de conquista foram diametralmente opostos. Na Argentina, às escaramuças militares

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relativamente tímidas para afugentar os índios dos Pampas seguiu-se a estratégia de uma guerra para acabar com todas as guerras, comandada pelo General Roca. No comando de seis mil soldados, Roca esvaziou aquela terra, empurrando os índios derrotados para a fronteira com o Chile, fazendo dos sobreviventes prisioneiros e despachando-os brutalmente para lugares remotos. Por exemplo, índios da fria Patagônia foram jogados no Chaco escaldante. No ano de 1879 começa a derrota definitiva de todos os povos indígenas dos Pampas e da Patagônia. Nos anos seguintes, um número ainda desconhecido de indígenas desapareceu vitimado por doenças, fome, trabalhos e deslocamentos forçados e condições desumanas de vida. Ao todo, estima-se que ao longo daquele século mais de 12 mil índios tenham sido mortos nas guerras que a República da Argentina empreendeu contra eles (Martínez Sarasola 2005). No início dos anos 1880, já com Roca como presidente do país, foi a vez dos índios chaquenhos provarem o poder de fogo do exército argentino numa guerra que durou oficialmente até 1917. A opinião pública lamentou tanta violência, mas, em geral, a nação ficou aliviada com a notícia de que, por fim, não havia mais índios no território pátrio. O fato de que talvez a grande maioria da população indígena anterior à Conquista do Deserto continuava viva nunca chegou à consciência da nação, informada como estava por discursos oficiais enganosos. Outra questão de extrema importância para a análise comparativa do Indigenismo liga-se à legislação indigenista. Entrevistas com jovens universitários da etnia Mapuche realizadas em novembro de 2008 em Buenos Aires expuseram uma diferença crucial entre a situação argentina e a brasileira: enquanto no Brasil a Constituição Federal de 1988 marcou o início de uma nova era para as relações dos indígenas com o Estado nacional, abrindo caminho para iniciativas inéditas de autodeterminação (Santilli 1993; Marés de Souza Filho 1998; Ramos 1998a), na Argentina, a reforma constitucional de 1994, de modo geral, parece não passar de uma abstração sem grandes repercussões na vida dos indígenas, uma vez que são as leis provinciais que assumem o papel principal nas decisões sobre direitos indígenas (Briones e Delrio 2002, Briones 2005, 2007). Tomando o contexto

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argentino como espelho, é possível perceber a real importância do fato de no Brasil a questão indígena ser assunto da alçada federal. Por último, o tema das representações sobre o Índio. Se no Brasil essa figura emerge com grande força na construção da nação (Ramos 1998a), na Argentina, ela se dá ao revés, ou seja, pela contínua negação de que haja índios no seu território. Tal negação tem sido tão forte que acabou por acentuar a presença de sua potente ausência (Derrida 1976) que, de tanto ser enfatizada, acabou por moldar o modo como a argentinidade se sedimentou. A nação argentina foi montada sobre a dicotomia entre civilização e barbárie, a primeira exemplificada pela Europa ocidental, a segunda, pelos povos indígenas que habitavam o solo argentino. Para que a primeira germinasse, era preciso erradicar sumariamente os indígenas. Enquanto no Brasil a ideologia que embasou a brasilidade sustentou-se na imagem da conjunção de três “raças” (europeia, africana e indígena), na Argentina, a ideologia que gerou o sentido e o sentimento de nacionalidade, muito longe de se apoiar nos povos autóctones como alicerce de independência contra o conquistador europeu, declarou que os argentinos “vieram dos barcos” (Briones 2005, Lenton 1992, Svampa 1994), ou seja, foram gerados unicamente por europeus, como se a terra “descoberta” fosse vazia, só se realizando como ambiente humano com a vinda de imigrantes (Quijada et al. 2000). Não só isso, mas as políticas estatais de remoção territorial dos povos indígenas obedeciam ao ditame de que os argentinos tinham a missão manifesta de recuperar as terras que, em sua convicção, haviam sido usurpadas pelos indígenas (Briones, comunicação em sala de aula, primeiro semestre de 2009). Em suma: enquanto no Brasil a imagem do índio serviu aos brasileiros para criar uma identidade própria, na Argentina, a noção de que “os índios estão todos mortos” (Grosso 1999) serviu aos argentinos para criar a autopercepção de viverem uma Europa na América. No início do século XX, também o Brasil assistiu a acaloradas discussões que dividiram aqueles que propunham algum tipo de solução final para o problema indígena e aqueles que adotavam uma posição humanitária segundo a qual o estado precisava proteger fisicamente os índios para

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que pudessem ser trazidos à civilização. Um longo debate foi travado em torno do que fazer com os indígenas, especialmente no sul do país, onde os imigrantes, principalmente alemães, protestavam contra os ataques constantes dos Kaingang que viam sua base de subsistência, o pinhão, desaparecer para dar lugar a lavouras e ferrovias. Ao contrário do caso argentino, não foram os positivistas comteanos que propuseram o extermínio, mas em especial um cientista com o cargo de diretor do Museu Paulista, von Ihering. Sua proposta, se comparada à de Sarmiento algumas décadas antes, parece uma réplica da posição positivista argentina. Breve e agudo, diz Sarmiento: “Nada ha de ser comparable con las ventajas de la extinción de las tribus salvages” (Viñas [1982]2003: 64). Em von Ihering a prosa é menos elegante e econômica, mas a mensagem se repete. O trecho a seguir é parte do artigo publicado no Jornal do Comércio a 16 de setembro de 1908, citado em Gagliardi (1989: 72): Os atuais índios do Estado de S. Paulo não representam um Elemento de trabalho e de progresso. Como também nos outros Estados do Brasil, não se pode esperar trabalho sério e continuado dos índios civilizados e como os Caingangs são um empecilho para a colonização das regiões do sertão que habitam, parece que não há outro meio, de que se possa lançar mão, se não o seu extermínio.

Instigante inversão de posições: enquanto na Argentina são os positivistas hegemônicos que defendem a eliminação sumária dos índios, no Brasil, são eles que repelem tal proposta e advogam a proteção irrestrita dos povos indígenas, ainda que dentro do paradigma evolucionista que caracteriza o programa de Comte. É como se fosse um mesmo teste com resultados opostos: na Argentina, a proposta Sarmiento/Roca levou a melhor; aqui, a de von Ihering saiu perdedora. Certamente, houve no Brasil seguidores do positivismo de inclinação spenceriana, mas a sua influência foi mais acadêmica do que política, como é o caso de Nina Rodrigues (Leite 1992: 218). Von Ihering foi duramente criticado e, eventualmente, calado, ao prevalecer a posição dos positivistas hegemônicos. A polêmica se encerrou com a criação do Serviço de Proteção aos Índios em 1910. Foi a primeira

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política estatal a englobar todos os povos indígenas do país, fossem eles classificados como “primitivos” ou como “civilizados”. O baluarte da proteção indígena brasileira foi o General Candido Mariano da Silva Rondon que, no fim do século XIX, empreendeu a construção de uma rede de linhas telegráficas pelas florestas de Mato Grosso, numa tentativa tardia de trazer o interior ocidental do país para o controle do Estado centralizado no Rio de Janeiro e evitar outras surpresas desagradáveis como foi a guerra do Paraguai. Em suas incursões mata adentro, Rondon fez os primeiros contatos com muitos povos indígenas desconhecidos até então. Conduzia seus soldados com mão de ferro e impôs o slogan que contribuiu para torná-lo um herói nacional (Souza Lima 1990): morrer se preciso for, matar, nunca. Com sua matilha de cães e uma paixão quase incontida pela caça a onças (Viveiros 1969), ele criou um modelo para abordar índios arredios que ainda hoje está em vigor na agência indigenista oficial, agora chamada Fundação Nacional do Índio, Funai. Esse modelo consiste em atrair os índios com presentes (as proverbiais bugigangas do primeiro contato), palavras e gestos de sedução, mas inclui também a construção de torres panópticas e outras táticas de defesa nem sempre eficientes. A tensão que esse estado de sítio auto-imposto gerava na tropa de Rondon era tão grande que muitos soldados simplesmente fugiam, ou tentavam fugir pela mata inóspita. Ser resgatado de volta à tropa nem sempre era melhor do que cair nas mãos dos índios. Mas, se Rondon e seus sucessores pouparam aos índios as balas que mataram tantos na Argentina, isto não quer dizer que os índios brasileiros sobreviveram ilesos ao primeiro contato. O clímax do processo de pacificação, mais tarde rebatizado de “atração”, era o abraço que fundia – ou confundia – pacificadores e índios. Aparentemente amistoso e inocente, aquele abraço era, de fato, um veículo potente para a contaminação microbiana. Por exemplo, a gripe que era apenas um desconforto passageiro para os pacificadores, era letal para os índios. Muitas vezes, depois de cada pacificação, surtos epidêmicos devastavam aldeias inteiras e seus habitantes que, deixados à própria sorte, sucumbiam em massa na ausência de qualquer

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assistência médica, incapazes de se cuidar uns aos outros (Ribeiro 1970: 272-307). Como no filme italiano dos anos 1960, os índios brasileiros eram, literalmente, seduzidos e abandonados, vítimas de uma atração fatal que lhes transformava a vida para sempre (Ramos 1998a). Talvez por efeito da sujeição pacífica e da subsequente infantilização que veio com a intensa tutela do Estado, os indígenas contemporâneos à formação do Brasil independente perderam sua subjetividade frente à sociedade brasileira. Eram índios sem rosto e sem vontade. O contraste é flagrante com a situação argentina. Lá, em consequência das guerras, dos embates menos desequilibrados entre exército nacional e força indígena e da importância política dos caciques, algumas figuras passaram à consciência do país como verdadeiros personagens históricos: Calfucurá, Namuncurá, Pincén, Mariano Rosas, Baigorria, Catriel, Sayweke, Yanquetruz e muitos outros. Calfucurá, chefe de um contingente de dez mil homens e seus dependentes, chegou a criar uma embaixada em Buenos Aires (Jones 1989: 178, 181). Eram líderes de reconhecidas “nações indígenas” com as quais o Estado argentino firmou tratados ou acordos, ainda que enganosos e desrespeitados (Briones e Carrasco 2000). Assim, enquanto no Brasil o destino dos índios era traçado sem que eles tivessem conhecimento e muito menos participação, reduzidos que foram a meros objetos de governo, na Argentina, a formalidade gerada pelo espírito da guerra avultou o porte do sujeito, vencido, mas sujeito com rosto e vontade. Em face desses contrastes tão marcantes, era preciso buscar um contexto nacional onde os povos indígenas fossem também minoria demográfica e política, mas que pudesse intermediar os extremos entre a situação brasileira e a argentina, de modo a enriquecer a análise comparativa com mais elementos empíricos e, ao mesmo tempo, ampliar o escopo e elucidar os contextos dos países sob comparação. Para isso selecionei a Colômbia como o país que talvez melhor exemplifique um terceiro termo na construção do indigenismo e da nação. O que se segue é uma primeira aproximação do que entendo sobre a realidade colombiana. Temas como a a história detalhada da formação

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do país, a descentralização do poder estatal e a proliferação de poderes regionais, a hermenêutica legislativa, a contribuição da literatura, a ação dos missionários, o envolvimento da academia na questão indígena e outros aspectos cruciais do indigenismo colombiano serão analisados no decorrer da pesquisa que foi recentemente iniciada. Apesar disso, o caso do indigenismo na Colômbia já mostra o seu potencial interpretativo. Indigenismo na Colômbia

Numa cápsula, o cientista político da Universidade Nacional da Colômbia, Álvaro Tirado Mejía, assim caracteriza a Colômbia: Colombia ha sido un país muy metido en sí mismo, sin grandes movimientos de inmigración, con una economía mediana, cuando no pobre, si se lo compara con sus homólogos del continente pero, sobre todo, un país que se sale de los esquemas con que se mira a Latinoamérica desde el exterior. En efecto, Colombia brilla por la ausencia de dictadores; posee un sistema bipartidista, una tradición electoral y unos partidos políticos que se sitúan entre los más antiguos de occidente, con instituciones propias de la democracia liberal, pero, al mismo tiempo, ha sufrido una tremenda violencia (Tirado Mejía 1994: 9).

Fonte de orgulho para muitos colombianos, esse respeito ao sistema eleitoral que tem poupado o país de golpes de estado tão comuns nos demais países sul-americanos, não garante, entretanto, a vigência de um regime democrático. A proverbial debilidade do Estado colombiano tem como consequência desastrosa a proliferação de atos de violência que deixa os cidadãos à mercê do arbítrio de grupos regionais que se arrogam o direito ao uso da força para benefício próprio. Há que acrescentar que, dentre os segmentos mais sofridos da Colômbia, estão os povos indígenas, vítimas de massacres, perseguições e expropriações. Neste ponto, a Colômbia se aproxima lamentavelmente dos seus vizinhos do sul. Diversos autores colombianos ou dedicados ao estudo da Colômbia (Bushnell 1994; Múnera 2005, [1998]2008; Rojas 2001; Palacios e Safford

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2002; Laguado Duca 2004; Arias Vanegas 2005; Serje 2005) são unânimes em apontar um traço distintivo do ordenamento nacional. Trata-se da inapetência pela centralização do poder que tem possibilitado a propagação de poderes regionais, e mesmo familiares, tendo como consequência a debilidade do Estado e a instalação endêmica, e mesmo epidêmica, da violência generalizada pelo país que tem afligido a população por mais de 70 anos. Um observador externo não pode se furtar a fazer a pergunta que não cala: por que a Colômbia, neste ponto, difere tanto dos seus vizinhos sul-americanos? Por que ali poderosas forças regionais, aparentemente sem um projeto separatista, proliferam tão folgadamente sem que o Estado central tenha conseguido exercer plenamente suas atribuições weberianas, ou seja, manter o monopólio do uso legítimo da força? Por que o Estado deixa seus cidadãos à mercê da sanha de grupos armados a serviço de interesses particulares? O que há na história colombiana que possa iluminar essa particularidade única no continente? Considerando que a Colômbia teve o mesmo substrato libertário dos seus vizinhos na figura de Simón Bolivar, a possível resposta a essa intrigante pergunta não estaria na passagem de colônia a país independente. Estaria então em alguma peculiaridade de sua colonização espanhola ou poderia ser traçada ainda mais atrás no tempo? Teria a atual fragmentação de poder alguma coisa a ver com a estrutura política pré-hispânica que dominava em especial os Andes colombianos e que estava ausente na Venezuela e nos outros países da região? Na ausência de análises que, até onde vai meu conhecimento atual, silencia sobre este tema específico, tomo a liberdade de sugerir o que segue mais como provocação para novas pesquisas do que como afirmação ingênua ou desavisada. À guisa de “hipótese de trabalho”, e correndo o risco de criar uma ficção, proponho que o substrato indígena na forma dos famosos “cacicados” seja, se não o principal responsável, ao menos um elemento importante na formação de um país que tem sido visto como “Colombia: Una nación a pesar de sí misma” (Bushnell 1994), “Colombia, país fragmentado, sociedad dividida” (Palacios e Safford 2006), ou como “El fracaso de la nación” (Múnera [1998]2008).

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O registro arqueológico e histórico da ocupação da Colômbia, em especial nas regiões andina e caribenha, ressalta a presença do que se tem chamado de “cacicados”, formações político-sociais organizadas em confederações independentes e em competição entre si (Langebaek 1998, 2001; Langebaek e Cárdenas 1996). Sabe-se também pela historiografia que os conquistadores espanhóis, a exemplo do que fizeram nos Andes bolivianos e peruanos, numa primeira fase da conquista, depuseram os grandes líderes e os substituíram sem com isso alterar substancialmente a estrutura de poder vigente (Herrera Ángel 2007). Mantiveram, assim, a tendência à fragmentação regional. Apesar do processo desagregador que usurpou aos índios suas terras e sua força de trabalho, em boa medida, persistiu o substrato organizativo de clãs matrilineares. A exemplo do que ocorreu na Argentina (Shumway 2008), a independência e a constituição do novo Estado republicano trouxeram conflitos entre aqueles a favor do centralismo de governo e os adeptos do federalismo que procurava manter a autonomia regional. Mas, ao contrário da Argentina que acabou optando pelo Estado formal e substantivamente centralista, a Colômbia ficou a meio caminho com um governo formalmente centralizado, mas com um forte contrapeso regionalista. Além disso, a grande fonte de energia por trás das disputas regionais têm sido grupos familiares tão potentes que, com suas forças de segurança particulares, provocaram o surgimento dos grupos paramilitares que ainda hoje continuam aterrorizando o país. Dos clãs muíscas e taironas dos tempos pré-hispânicos às famílias poderosas da atualidade colombiana parece haver uma continuidade inédita na paisagem política sul-americana. Sobre isto não posso deixar de evocar Lewis Henry Morgan quando analisa o surgimento da sociedade civil na Grécia Antiga. Morgan deixa claro que esse longo processo foi acompanhado de longas e violentas lutas internas, em que a “sociedade se devorava” (Morgan 1963: 271). Sua fascinante análise histórica poderia mesmo ser vista como a busca das “formas elementares da vida civil”. A transformação da sociedade grega, de um agregado de parentesco a uma sociedade civil é descrita por Morgan numa

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das passagens mais ricas de Ancient Society de 1877. Vemos como o parentesco vai sendo substituído por uma ordem política até se transformar num novo modelo de sociedade, a polis. O período de transição entre sociedade gentílica (organizada em torno de gentes ou clãs) e sociedade civil durou séculos e foi conturbado pela coexistência e grande competição entre as instituições antigas baseadas no parentesco e as novas baseadas no território, na propriedade privada e na cidadania, certamente, repleto de situações altamente conflituosas. Poderíamos estender a imaginação sociológica de Morgan à situação atual da Colômbia, onde parentesco e Estado ainda não resolveram as suas diferenças, onde poderosas famílias oligárquicas continuam desafiando a ordem estatal, levando terror à cidadania. Se esta interpretação tem algum fundamento, temos no caso da Colômbia uma das maiores demonstrações de quanto os indígenas contribuíram para a formação da nação, sejam quais forem os ingredientes dessa construção. Uma outra característica fala de perto ao tema central do indigenismo comparado, qual seja, a repulsa pelo que tem sido visto como selvageria ou barbárie. Isto se refletiu especialmente na virada republicana da Colômbia no século XIX, quando começou a ser talhada a sua feição de nação independente e elaborada a sua ideologia indigenista. Diversamente do caso argentino, a construção da ideia de barbárie colombiana foi seletiva e não incluía todo e qualquer povo indígena. Se, por um lado, o ônus da incivilização recaiu sobre os povos amazônicos e caribenhos, por outro lado, os habitantes dos Andes receberam o dúbio privilégio de representar os índios legítimos de um passado nobre, admirável e, especialmente, dourado, com seus magníficos e reluzentes adereços de ouro, tornando-os dignos de servir como ancestrais da nova nação. Mas isto não quer dizer que os indígenas andinos tenham sido poupados das vicissitudes da conquista e do colonialismo que dizimou a América indígena, como mostra a abundância de casos de abusos, ilustrados na repetição de massacres na região do Cauca, zona de fronteira cafeeira (IWGIA 1983,

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1884; Jimeno e Triana 1985; Rappaport 1994; Jimeno 2006). Portanto, não custa enfatizar que não me refiro ao “índio” concreto, mas às imagens que se fazem dele. Em flagrante contraste com a nobreza prístina concebida sobre os Andes, os indígenas da região amazônica e do Caribe e os afro-colombianos eram – e são ainda – a epítome da barbárie. Exemplo dessa dicotomia foi a reação indiferente, se não mesmo de alívio, à perda, em 1903, do Panamá, região então considerada a metáfora do fracasso de um modelo de nação: “por sua geografia, por sua composição racial e pelo predomínio de uma cultura popular, o istmo se encaixava perfeitamente no estereótipo das terras incivilizadas e bárbaras” (Múnera 2005: 116). Em suma, a perda daquele grande território foi compensada pelo descarte da barbárie que ele continha, aliviando a Colômbia do ônus de civilizá-lo. Por sua vez, a Amazônia colombiana tem sido palco de imenso sofrimento para os povos indígenas, especialmente na era da borracha (Taussig 1987; Pineda Camacho 2000). Ainda em meados da década de 1960, os indígenas da Amazônia eram considerados como entes subumanos, inclusive aos olhos da lei para a qual matar índios não era crime (Bodley 1975; Ramos 2002: 261). De modo semelhante ao que ocorreu no Brasil a partir de 1988, a constituição promulgada em 1991 trouxe mudanças substanciais ao indigenismo colombiano. Ao declarar que o “Estado reconhece e protege a diversidade étnica e cultural da nação colombiana” (Art. 7°), a nova constituição criou uma série de provisões que garantem o direito indígena às terras ancestrais, aos seus usos e costumes, delegando aos próprios indígenas a responsabilidade de gerenciar seus territórios (Sánchez Botero 2002a). Ainda sem o amparo de legislação ordinária, esta última provisão tem sido objeto de críticas de várias ordens (Padilla 1996; Sánchez Botero 2002b; Villa e Houghton 2004; Jimeno 2008). Comparar a construção da nação colombiana à da brasileira e argentina, imediatamente, revela algumas diferenças flagrantes das quais destaco três: a doutrina do positivismo, a política de imigração e o tributo da arqueologia.

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Ao contrário do Brasil e da Argentina, a Colômbia não sofreu a forte influência do positivismo nem em sua vertente francesa, nem inglesa, nem no âmbito do governo, nem da intelectualidade. Embora alguns pensadores da nação se inspirassem no exemplo da Inglaterra (Uribe Vergara 20083), não foi o positivismo que orientou a formação da nação colombiana, mas a doutrina do laissez-faire (Rojas 2001), ou seja, o liberalismo (González 1997; Palacios e Safford 2002; Laguado Duca 2004) ou uma “filosofia experimental” (Ruben Sierra entrevista, 25/04/2010). Isto significa que o Estado colombiano, para o bem ou para o mal, abdicou de conduzir uma política indigenista coerente (como ocorreu com a Argentina de Roca e com o Brasil de Rondon) com o seu desígnio de “civilizar” o país. Em grande medida, a Colômbia delegou aos missionários o papel de lidar com os índios que enfrentavam a fúria expansionista do setor privado em suas várias frentes. Assim, enquanto o positivismo argentino e o brasileiro contribuíram para a separação do Estado e da Igreja, a filosofia benthamista da Colômbia (Jaramillo Uribe 2001) seguiu a direção oposta, delegando à Igreja atribuições que seriam do Estado (Ruben Sierra entrevista, 25/04/2010). Outro contraste gritante entre a Colômbia, por um lado, e a Argentina e o Brasil, por outro, foi a parca imigração naquele país. Algumas tentativas débeis de governos republicanos para atrair imigrantes resultaram em rotundo fracasso, o que acentuou o já crônico isolamento da Colômbia com relação ao Velho Mundo e até mesmo aos seus vizinhos no continente.4 Como afirma Frédéric Martínez, “la historia de la inmigración en Colombia durante el siglo XIX se caracteriza también por su fracaso casi absoluto” (1997: 7). Ainda que houvesse o anseio de branquear o país com a atração do imigrante ideal – o artesão europeu, (Martínez 1997: 3) – as “políticas 3 Este autor aponta com detalhes os caminhos distintos que a Colômbia e a Argentina trilharam em sua formação, mesmo tendo em comum o papel do higienismo, da criminologia e do racismo em suas respectivas políticas públicas (Ver também Urueña 1994). Sobre isto, ver o caso brasileiro em Murilo de Carvalho (1991). 4 Uma impressão de quem vê a Colômbia com olhos vindos do Brasil é a repetição inesperada dos sobrenomes numa população muito menor do que a brasileira. Não encontramos lá os Schmidts, Genaros, Malufs, Levis e Suzukis tão comuns no Brasil. Sem confirmação estatística, resta arriscar uma pergunta, talvez uma impertinência: seria o aparentemente reduzido universo de sobrenomes colombianos uma consequência da falta de imigração em massa, do efeito fertilizante dos estrangeiros?

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voluntaristas” que comandaram esse anseio ruíram por falta de consistência e recursos materiais. E, conclui Martínez: “La lenta disipación de la quimera inmigracionista llevará, progresivamente, a los ideólogos de la nación – conservadores o liberales – a convencerse de aceptar a una Colombia tal como es, y no como la habían soñado” (Martínez 1997: 44). Portanto, não foi uma avalanche de imigrantes desbravando o “deserto” para enriquecer o país que serviu de justificativa para o extermínio e submissão dos povos indígenas, como ocorreu na maior parte da Argentina e no sul do Brasil. A fronteira econômica da Colômbia independente formou-se, e ainda se forma, principalmente, pelas forças internas ao próprio país, como os setores cafeeiro, mineiro e militar, tanto legítimos como ilegais. Por último, vejamos como a arqueologia tem moldado o imaginário colombiano com relação aos povos indígenas e criado contrastes exacerbados entre os grandes feitos do passado e a indigência do presente. Também aqui a Colômbia representa um contraste com dos dois outros países objeto desta comparação, uma vez que essa atividade não tem gerado consequências sociais ou políticas perceptíveis nem no Brasil nem na Argentina. Refiro-me à arqueologia não como uma disciplina acadêmica, mas como um recurso ideológico que contribui para marcar diferenças sociais. A arqueologia como elemento ideológico separa o passado admirável traduzido, por exemplo, nas espetaculares esculturas de San Agustín, do presente miserável de povos indígenas depauperados e marginalizados. Como afirma o arqueólogo Cristóbal Gnecco, “la negación de continuidad cultural resultó muy útil para deslegitimar las reivindicaciones territoriales de las sociedades indígenas contemporáneas” (Gnecco 2000: 40). “Os sujeitos arqueológicos”, diz Gnecco, “não mudam, desaparecem” (Gnecco 2000: 37). Deste modo, atribui-se civilização aos indígenas do passado monumental e barbárie aos seus atuais descendentes. Destes espera-se apenas que se civilizem e deixem de cobrar seus direitos étnicos. Em flagrante contraste com o atávico glamour das montanhas ou do Caribe, a região amazônica foi eleita pelo próprio Estado como “el lugar propicio para los condenados, mediante la creación de Colonias Penales y centros de confinamiento” (Gómez 2000: 93). Essa marginalidade política 174 -

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e social tem contribuído para perpetuar a marginalização dos povos indígenas da Amazônia colombiana. A caracterização que faz Augusto Gómez expõe a força do imaginário colombiano sobre a Amazônia. la satanización [da Amazônia] se há venido construyendo de dicho espacio e de sus habitantes, hasta convertirla en el ‘infierno’, en el ‘lugar de los condenados’. La difusión de imágenes como, por ejemplo, la del salvajismo y canibalismo de sus pobladores aborígenes (…) ha sido desde siglos atrás, parte de esa construcción de la región, con sus efectos desastrosos … peor aun, si se observa que muchas de esas imágenes negativas (…) persisten hoy en la sociedad colombiana (Gómez 2000: 93). Em última instância, apenas os índios do passado glamoroso, como os muíscas e os taironas, merecem consideração. Índio vivo, seja da montanha, do Caribe ou da Amazônia, é índio perdido se não se submeter aos ditames de uma civilização que continua cega à sua própria incapacidade de servir de exemplo para alguém.

CONCLUINDO Não é demais enfatizar que o estudo do indigenismo como via para entendermos o ethos de uma nação americana é como uma porta que se abre às regiões mais íntimas e recônditas de um país. Ele tem o potencial de revelar o não dito de uma nacionalidade, ou seja, aqueles espaços muitas vezes implícitos que não se quer ou não se pode explicitar. Em última instância, o valor heurístico da comparação – ferramenta privilegiada da antropologia –é permitir chegar a um conhecimento muito mais profundo da nossa própria realidade, refletida no espelho que são os outros, além de minimizar a tendência de nossos países a um provincianismo etnográfico em que os estudiosos se ocupam com demasiada exclusividade em examinar o seu próprio contexto nacional. 5 5 Neste sentido, à guisa de exemplo de alguns trabalhos que ampliam os horizontes de quem se dedica a analisar fenômenos de escala macro, como são as nações, podemos citar o já mencionado Edward Said (1979), Jean e John Comaroff (1991, 1997, 2006), Fernando Coronil (1997), Norbert Elias (1996), Johannes Fabian (1986), James Ferguson (1994), Bruce Grant (1995), Richard Handler (1988), Michael Hersfeld (1987), Elizabeth Povinelli (2002), Michael Taussig (1997), Eric Wolf (1999), entre muitos outros. Todos esses autores fornecem valiosa inspiração teórica para o trabalho um tanto ambicioso

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Ao estudar indigenismo como uma ideologia sobre diferenças culturais, espero poder desnudar o estado-nação nos seus espaços mais recônditos e íntimos, como se a questão indígena fosse uma neurose virtualmente incurável que, de um modo ou de outro, aflige os países americanos em geral. Até que ponto, vasculhando esse subconsciente nacional, é possível desvendar algo de novo? Posso dizer que, no caso do Brasil, ir fundo nos discursos indigenistas e nas imagens criadas sobre os índios tem feito emergir, por exemplo, um traço da brasilidade que me parece inédito, com a possível exceção dos trabalhos de Roberto DaMatta. Refiro-me à ambiguidade como o traço que sublinha o Brasil (Ramos 1998b). Meu desafio é usar o indigenismo para trazer à tona o lado encoberto do país que não fica totalmente exposto em análises sociológicas ou políticas. Quanto à Argentina, há um claro renascimento da indianidade, ou aboriginalidade, como quer Claudia Briones (2002), depois de séculos de negação da existência de índios e da carga negativa que pesa sobre a figura dos “cabecitas negras” em meios urbanos − “muchos de los que ustedes llamaban cabecitas negras éramos nosotros, los indígenas que vinimos a Buenos Aires” (líder mapuche citado em Briones 2002: 80). Esta nova conjuntura traz, necessariamente, consequências importantes e mesmo imprevisíveis. Quando, em 1994, com a reforma da constituição nacional, os legisladores argentinos reconheceram pela primeira vez a presença de índios em território nacional (Briones 2006: 248), eles desmentiram os vultos mais importantes da história republicana do país e deram um recado à população: a Argentina, advertem, não é um país apenas de brancos e, mesmo que exista um anseio de branqueamento por quem não é branco, não é com homogeneidade étnica que se faz uma verdadeira nação. Na Colômbia, dado o seu lugar de minoria dominada, ainda que o país, desde 1991, se proclame pluriétnico, é surpreendente constatar a visível vanguarda política dos povos indígenas quanto às iniciativas de repúdio e combate à violência generalizada naquele país. Como muitos segmentos de desvendar o sentido da nacionalidade num continente onde as nações se erigiram a expensas dos povos indígenas originários, deixando um rastro de ambiguidades, frustrações, ressentimentos e outras questões mal ou não resolvidas no vasto campo da convivência pluriétnica.

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da sociedade rural da Colômbia, os indígenas, tanto dos Andes quanto da Amazônia e da região caribenha, têm sido perseguidos, torturados e mortos pelos vários braços armados que assolam o país, desde grupos paramilitares e revolucionários até o próprio exército nacional (Molano [1985] 2009). A massa de mutilados e despossuídos deixada na esteira de ações agressivas ao extremo por parte desses grupos beligerantes gerou uma nova categoria política: as vítimas. De desvalidas a politicamente ativas, essas vítimas, a duras penas, têm-se mobilizado para tornar públicas as suas perdas e as condições em que se deram, transformando a impotência individual em potência coletiva. Neste contexto, são os grupos indígenas organizados que estão à frente dessas mobilizações com a adesão dos demais segmentos do país (Jimeno 2009; Jimeno et al. no prelo). Esse protagonismo indígena na Colômbia não vem por acaso. Há naquele país inúmeros líderes e pensadores de diversas etnias que, no passado e no presente, se têm destacado por sua atuação política (Gnecco 2004; Muelas Hurtado 2005; Rappaport 2005; Jimeno 2006; Gros e Morales 2009) e intelectual (Guerra Curvelo 2002). O resultado é uma visibilidade em ascensão de figuras proeminentes no campo das relações interétnicas na Colômbia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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O CONTRA O ESTADO E AS POLÍTICAS AMERÍNDIAS algumas meditações clastreanas1 Renato Sztutman2

Transfigurações do “Contra o Estado”

Nas terras baixas da América do Sul, chefia e xamanismo são instâncias por excelência da mediação entre pessoas e mundos. Ainda que a primeira esteja mais diretamente ligada ao trato dos homens entre si e a segunda, ao trato entre os homens e o “outro mundo” – mundo extra-humano, sobrenatural etc. –, não podemos deixar de lado a necessária interpenetração entre esses domínios, o que revela uma ação política particular, isto é, uma cosmopolítica.3 Chefes e xamãs costumam ser, nessas paisagens, figuras complementares: ambos empenham-se na constituição dos coletivos por meio da mobilização de certas relações. Estas figuras podem em certas ocasiões se confundir, mas esta não é a regra verificada nas paisagens em questões, o que aponta um problema para a filosofia política indígena. Tal idéia de complementaridade – que invade outras relações para além desta que apontamos – parece, de sua parte, lançar luz sobre aspectos importantes disso que poderíamos chamar de “poder político” nas terras baixas da América do Sul. Isso porque, com seu efeito pulverizador, 1 Este ensaio é uma versão ligeiramente modificada da palestra que apresentei, em 12 de novembro de 2010, na VII Jornada de Ciências Sociais – “O poder em perspectiva”. Sua intenção é apresentar o problema das políticas ameríndias quando pensadas por meio de um esforço de atualização da obra de Pierre Clastres. Agradeço especialmente aos organizadores do evento, que me estimularam a publicar o texto, bem como a Paulo Maia, Rogério Do Pateo e Karenina Andrade. Noto que essas reflexões remontam a um diálogo sobre o tema das políticas ameríndias que venho estabelecendo há tempos com Beatriz Perrone-Moisés, a quem dedico o ensaio. 2 Renato Sztutman é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo e pesquisador do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo. 3 Inspiro-me na idéia de cosmopolítica, tal como desenvolvida por autores como Isabelle Stengers (Cosmopolitiques I e II. Paris: La Découverte, 2003) , Bruno Latour (“Whose Cosmos, Which Cosmopolitics? Comments on the Peace Terms of Ulrich Beck”. In: Common Knowledge, v. 10, n. 3, 2004)e Eduardo Viveiros de Castro (“Xamanismo transversal: Lévi-Strauss e a cosmopolítica amazônica”. In: Queiroz, R. de C. & Nobre, R. F. (orgs.). Lévi-Strauss: leituras brasileiras. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008).

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ela tende a caminhar ao lado de uma espécie de recusa da concentração de um tal poder nas mãos de uma só pessoa ou grupo de pessoas, recusa que pode se manifestar das mais variadas maneiras, dentre elas, a submissão dos pretensos “poderosos” – aqueles que aspiram mandar, subjugar a ação de outrem – a uma posição de eterna e constante suspeita. Essas idéias de complementaridade e recusa podem ser mais bem compreendidas se nos atermos a algumas etnografias recentes. Tomemos, para começar, alguns exemplos do alto Xingu (estado do Mato Grosso), onde proliferam acusações de feitiçaria, que não raro recaem sobre a figura de chefes e de xamãs que se fazem e se querem “poderosos”.4 Em linhas gerais, no alto Xingu, os chefes são apresentados como pessoas modelares, uma vez que se aproximam com maior êxito dos protótipos míticos, carregando em si um ideal de humanidade e de moralidade. Feiticeiros, de sua parte, consistem no oposto disso tudo. Conforme nos conta Marina Vanzolini Figueiredo, os Aweti, povo de língua tupi, dizem que feiticeiros sequer são “gente”. E se os chefes são antes de tudo, fazedores – de parentes, de coletivos, de festas – os feiticeiros são aqueles que põem tudo a perder, dissolvem os laços e as associações.5 Note-se que no alto Xingu, xamãs, ainda que dotados de prestígio, devido ao trabalho de cura que realizam graças à interlocução com o mundo dos “espíritos”, raramente vêm a ser chefes de aldeia, o que remete ao problema a um só tempo da complementaridade e da recusa, como veremos. Mais especificamente, um xamã deve empenhar-se em estabelecer boas relações entre homens e “espíritos”, sem com isso recobrar para si uma situação de carisma excessivo. Tomemos um exemplo mais preciso. João Veridiano de Franco Neto conta a história de um grande xamã kalapalo, povo de língua caribe, que vinha de uma parentela de chefes, sem jamais

4 O alto Xingu consiste num sistema multiétnico, composto por dez diferentes povos, falantes de línguas de quatro famílias diversas. Para uma apresentação desse sistema ver, entre outros, Franchetto, B. & Heckenberger, M. (orgs.) Os povos do Alto Xingu: história e cultura. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2001. 5 Marina Vanzolini Figueiredo. A flecha do ciúme. O parentesco e seu avesso segundo os Aweti do Alto Xingu”. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Museu Nacional: UFRJ, 2010.

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ter se tornado um chefe de aldeia.6 Este xamã ganhou grande reconhecimento pelas curas que realizava, e atribuía o seu sucesso ao fato de ter como espírito auxiliar ninguém menos do que Jesus Cristo.7 O antropólogo, que vê aí todas as características de um líder carismático messiânico, nota que os médicos que o acompanhavam o diagnosticaram como esquizofrênico. O ponto que gostaria de frisar aqui é que, quando do auge de seu reconhecimento como xamã poderoso, não apenas pelos Kalapalo, mas em outros lugares do alto Xingu, ele foi acusado de feitiçaria, caindo logo em descrédito.8 Vemos aqui a ação de um esquema moral e político que equaciona abuso de poder – no caso, quem cura demais também mata demais – à feitiçaria; e com isso não quero reduzir a feitiçaria a um mero instrumento sociopolítico, uma vez que ela deve ser situada dentro de uma cosmopolítica, que pressupõe a existência de uma multiplicidade de agências, humanas e não-humanas.9 Outros exemplos alto xinguanos, não diretamente associados à feitiçaria, ilustrariam essa cautela diante da figura de líderes dotados de “poder”, seja este propriamente político (no sentido de agir na constituição de coletivos), seja este de outra natureza. Um caso curioso – e desta vez ligado à política partidária – foi narrado por Marina Vanzolini Figueiredo entre os Aweti. Na ocasião de uma eleição municipal, a maioria dos Aweti, que então viviam em uma só aldeia, teria rejeitado candidatos indígenas – dentre eles, o próprio chefe aweti – dando preferência aos candidatos 6 Note-se que, no alto Xingu, a chefia está relacionada a uma regra de descendência, mas não de maneira automática, como evidenciam, mais recentemente, os trabalhos de Aristóteles Barcelos Neto (Apapatai: rituais de máscaras no alto Xingu. São Paulo: Edusp, 2008) e, especialmente, de Marina Vanzolini Figueiredo (Centralização e faccionalismo: imagens da política no alto Xingu. Dissertação ������������������� de mestrado. Rio de Janeiro: Museu Nacional/UFRJ, 2006). Há, além disso, uma polêmica sobre a operação ou não de uma teoria da concepção que valorizaria uma espécie de “substância nobre”, e isso diz respeito tanto às interpretações antropológicas do fenômeno como às diferenças entre os povos alto-xinguanos, que não podem ser desconsideradas. Enfim, o problema da chefia no alto Xingu é bastante complexo para ser tratado nos limites deste ensaio. 7 Esta associação entre grandes xamãs e Jesus Cristo é recorrente em outras partes das terras baixas, tanto em períodos históricos como em tempos atuais. 8 João Verdiano de Franco Neto. Xamanismo kalapalo e assistência médica no alto Xingu. Dissertação de mestrado. Campinas: Unicamp, 2010. 9 Para uma análise original da dinâmica da feitiçaria no alto Xingu e em outros lugares das terras baixas da América do Sul, remeto novamente ao trabalho de Figueiredo(ver nota 5).

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brancos. “Tanto a votação e candidatos brancos quanto a rejeição dos candidatos locais eram explicadas da mesma maneira: ‘o povo dele [do chefe aweti] sabe que ele é ruim’”.10 Em suma, chefe que se candidatou ao cargo foi visto como espécie de usurpador, acionando a idéia corrente de que um chefe que se quer grande demais acaba por se assemelhar a um feiticeiro. O resultado desse episódio, nos conta a antropóloga, foi a fissão da aldeia Aweti, com a partida do chefe e sua família. Este caso não parece demonstrar nem desinteresse nem falta de participação em nossa “política” – no caso, a política partidária, a democracia representativa –, antes revela cautela diante de movimentos de concentração de poder. Essa cautela pode se manifestar, segundo Figueiredo, no fenômeno, bastante usual no alto Xingu, da multiplicação das chefias – fazendo que para cada comunidade haja mais do que um chefe. E isso que vemos no alto Xingu comunica diretamente com outros fatos ameríndios, conectando inclusive fatos etnográficos com fatos históricos. Tomemos um novo exemplo, desta vez relativo aos Tenetehara (povo de língua tupi-guarani) da Terra Indígena Cana Brava (Maranhão), que participaram ativamente das eleições municipais de 2008. Florbela Ribeiro procurou mapear a constituição das diferentes formas de liderança local, tendo em vista que a inserção dos Tenetehara na nossa “política” ocorre a partir de códigos que lhes são próprios, passando pela imbricação entre a formação de blocos de aliados (segmentos ou facções) e laços de parentesco e afinidade. Em suma, a descontinuidade entre a política “interna” e a partidária seria apenas parcial. Seu diagnóstico atentou para uma tendência de dissociação das diferentes formas de liderança: caciques locais, lideranças políticas que fazem mediação com órgãos indigenistas como a Funai e a Funasa e, por fim, os candidatos a vereador. Esse aspecto se via refletido no discurso de lideranças antagônicas que concordavam que a Funai jamais poderia ser ocupada por um só Tenetehara, uma vez que na Terra Indígena em questão, estes se viam divididos em duas grandes facções. Ou esse órgão, enquanto atendendo os interesses daquele povo em geral, seria 10 Marina Vanzolini Figueiredo. “Eleições na aldeia, ou o alto Xingu contra o Estado”. Ms., 2011, p. 10.

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ocupado por dois lideres de facções opostas, ou o cargo deveria passar para alguém de fora. “O que todos eles argumentam”, explica Ribeiro, “é que um cargo de chefia para um Tenetehara representa uma posição hierárquica, que o colocará em relação de desigualdade com os outros. A indicação de uma só pessoa para se posicionar à frente de um órgão de Estado parece introduzir um elemento disfuncional na dinâmica das relações entre os indígenas. Por isso dividiram a Funai entre os Rocha e os Mendes [duas “famílias” influentes] e, com o tempo, muito possivelmente queriam dividir entre outras famílias, como já fizeram com a Funasa. A lógica do Estado aplicada a essa população gerou conflitos internos, os quais eles tentaram resolver a seu modo. Contudo, a configuração proposta por eles nem sempre poderá ser aceita. Uma presidente da Funai autorizou a criação de dois escritórios, outro disse que esse modelo não era viável e os suspendeu. Por isso, entendem como melhor alternativa deixar a política do Estado para os karaiw (brancos)”.11 Em suma, a autora evidencia que a lógica política tenetehara, implicando a operação de facções, não se acomoda bem à lógica da “nossa política”, que sempre exigirá alguma medida de unificação. Para os Tenetehara, a unificação só poderia ser desastrosa, nesse sentido, se ela se mostra mesmo necessária no que tange aos assuntos de interface com o mundo dos brancos, a melhor opção seria apelar para líderes não-indígenas. Assim como no caso aweti, a rejeição de líderes indígenas vem acompanhada de uma crítica do fortalecimento de chefias locais e, portanto, de um desejo de pulverização dos poderes. Poderíamos concluir, com esses casos, que a distinção entre novas e velhas formas de liderança e chefia é menos importante e operante do que um movimento de pulverização, de recusa de unificação e, portanto, de representação de um todo uno. Os exemplos aqui mobilizados, todos eles extraídos de contextos bastante atuais, nos reaproximam da idéia da “sociedade contra o Esta-

11 Florbela Ribeiro. Políticas Tenetehara e Tenetehara na política: um estudo sobre as estratégias de uma campanha eleitoral direcionada a uma população indígena. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2010; p. 164.

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do” proposta por Pierre Clastres no começo dos anos 1960.12 Lancei mão, propositalmente, de exemplos que se afastam do protótipo da “sociedade primitiva” vislumbrado pelo autor. De um lado, nos deparamos com o alto Xingu e sua complexa ideologia da chefia, que envolve uma concepção sui generis de descendência e mesmo de aristocracia; algo que se distancia da imagem do chefe “sem poder” representando uma comunidade pequena, indivisa e una, como propõe Clastres. Do outro lado, temos o imbricamento entre formas por assim dizer “tradicionais” de liderança e a democracia representativa, algo que se verifica tanto no alto Xingu como entre os Tenetehara, povo com longa história de contato com o mundo dos brancos. Ora, esse imbricamento teria sido entrevisto por Clastres sob o signo do “mau encontro”, isto é, a destruição do Ser das populações ameríndias. Ao contrário do que se poderia imaginar, proponho que o afastamento entre os casos apresentados e o protótipo da “sociedade primitiva” clastreana podem revelar a atualidade da tese da “sociedade contra o Estado”, esta que foi alvo de inúmeras críticas teóricas e etnográficas.13 Parece-me que a idéia de “contra o Estado”, sobretudo quando confrontada nas etnografias de povos ameríndios, foi tomada pelos etnólogos de maneira por demais literal, para não dizer ingênua. Gostaria, pois, de examinar esta idéia e refletir sobre suas implicações, o que exige também uma certa avaliação do contexto da produção da literatura etnológica nos últimos vinte ou trinta anos. Segundo Pierre Clastres, a “sociedade primitiva” – generalização que tem como inspiração as sociedades das terras baixas da America do Sul – 12 Mais precisamente no ensaio “Troca e poder: filosofia da chefia indígena”, de 1962, publica-

do na coletânea A sociedade contra o Estado: investigações de antropologia política (São Paulo: Cosac Naify, 2003), de 1974. A imagem da “sociedade primitiva” mantém-se nos demais ensaios do autor, reunidos nesta e na sua segunda coletânea, Arqueologia da violência: investigações de antropologia política (São Paulo: Cosac Naify, 2004), de 1980. 13 Sobre a atualidade do pensamento de Clastres, ver especialmente: Tânia Stolze Lima e Marcio Goldman – “Pierre Clastres, etnólogo da América” (Sexta Feira, vol. 6, 2001) e “Prefácio” (In: Clastres, P. A sociedade contra o Estado: investigações de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify, 2003); Barbosa, Gustavo – A socialidade contra o Estado (Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Museu Nacional/UFRJ, 2002); Sztutman, Renato – O profeta e o principal: a ação política ameríndia e seus personagens (Tese de doutorado. São Paulo: USP, 2005); Viveiros de Castro, Eduardo. “Posfácio: o intempestivo, ainda” (In: Arqueologia da violência: investigações de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify, 2004); Perrone-Moisés, Beatriz & Sztutman, Renato. “Dualismo em perpétuo desequilíbrio feito política”; Manuscrito inédito, 2009.

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é “contra o Estado”, e não “sem” Estado. Dizer que elas são “sem Estado” seria defini-las pela falta, seria privá-las de capacidade de organização e de gestão de assuntos que dizem respeito à vida coletiva. Seria incorrer numa razão etnocêntrica que toma as populações indígenas seja como estagnadas em um estágio primeiro de evolução das formas de governo – tal a saída evolucionista e neoevolucionista – seja como incapazes de estabelecer uma forma propriamente dita de governo – tal a saída estrutural-funcionalista. Para Clastres, não se trata de estagnação tampouco de incapacidade para governar-se, a configuração das sociedades indígenas revelaria, isso sim, mecanismos capazes de promover uma recusa ativa do poder político centralizado, fazendo da “forma-Estado” não a finalidade da História, nem o privilégio de certas sociedades, mas sim uma fatalidade, um acidente, que pode ser prefigurado e portanto conjurado. Em outras palavras, para Clastres, as sociedades indígenas, sociedades contra o Estado, são essencialmente políticas. O ponto – defendido pelo autor em “Copérnico e os selvagens”14 – é que precisamos alargar as nossas noções de “política” e de “poder político”, uma vez que estes não dão conta da realidade indígena. Trata-se de um movimento análogo ao que Lévi-Strauss realizou em seu “alargamento da Razão” e na proposição de um “pensamento selvagem”, que não é exatamente o mesmo que o pensamento “dos selvagens”. Se os indígenas são tão racionais quanto nós mesmos, eles são também tão políticos quanto nós mesmos; mas a sua política não pode ser reduzida aos negócios da pólis – tal a definição aristotélica – e nem o poder que eles reconhecem pode ser reduzido ao monopólio da coerção física – tal a definição hobbesiana. A política dos indígenas estaria baseada, e este é o ponto, não na ignorância nem na impossibilidade deste poder coercitivo, mas sim na sua recusa. Dito de outro modo, como vimos nos exemplos citados, os indígenas sabem muito bem o que poderia ser um grande xamã ou um chefe desmesurado; narram, inclusive, uma infinidade de mitos a este respeito, seja atentando ao perigo de figuras como as de chefes usurpadores e xamãs atemorizantes, seja ridicularizando-as, paro14 In: A sociedade contra o Estado, op. cit.

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diando-as. O poder coercitivo, que está na base de qualquer Estado, pode sim ser reconhecido e localizado; caberia à sociedade proteger-se contra ele e conjurá-lo. Essa recusa e esse reconhecimento são a base na qual Clastres pode pensar a “sociedade primitiva” como “contra o Estado”, e não “sem Estado”, é a maneira pela qual ele qualifica as políticas indígenas, políticas selvagens porque não unificadoras. O legado de Pierre Clastres

Como lembra Bento Prado Jr., Pierre Clastres propiciou de maneira bastante original a articulação entre questões importantes da etnologia e da filosofia política. O filósofo resume assim o percurso de Clastres: “Saindo da filosofia, passando pelo trabalho de campo, lá descobrindo a articulação entre a ontologia do social e a reflexão sobre o poder, ampliando o alcance teórico do primeiro passo na direção de uma crítica das ciências humanas, somos devolvidos às questões fundamentais da filosofia política”.15 Prado Jr. admite que Clastres penetrou os mistérios da política, indo buscar em Etienne de la Boétie, autor do Discurso da Servidão Voluntária, a constatação de que a submissão não é um fenômeno “natural”, mas sim resulta de um ato individual de abdicação da liberdade, passível de ser localizado na história. Com isso, Clastres teria tocado numa interrogação filosófica fundamental. Nas palavras de Prado Jr.: “O que é, afinal, o poder? Seria esta uma questão vã?”.16 Ora, Clastres argumenta que só poderemos entender o poder político quando nos dermos conta que ele pode ser recusado. Trata-se, pois, de uma tese ousada que sugere que a filosofia política ocidental pode ser transformada pela filosofia política indígena. Michel Foucault assumiu certa vez que Clastres é um dos responsáveis em fazer com que o pensamento político deixasse de orbitar em torno da noção moderna de Estado, qual seja, da noção de poder político como algo necessariamente centralizado e coercitivo, como algo necessariamente 15 Bento Prado Jr. “Prefácio” (In: Clastres, Pierre. Arqueologia da violência; op. cit); p. 11. 16 Idem; p. 12.

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negativo, repressivo. Foucault vê em Clastres o desenho de uma noção de “poder como tecnologia”, destacando que o poder político centralizado e a serviço da coerção – Repressão – seria apenas um caso dos diferentes poderes que constituem a sociedade.17 Com efeito, em analogia com a proposta de Kant, Clastres pensou uma “revolução copernicana” para a Antropologia Política capaz de tirar o Estado do centro das atenções, e então apreender formas de pensamento, organização e ação que pulverizam o poder político impedindo que ele seja detido por uma pessoa ou um aparelho. Essas formas podem ser encontradas entre os povos indígenas que reconhecem os poderes e seus perigos, mas recusam a sua concentração. Eles recusam o exercício de relações de poder, que produz a Divisão da sociedade em dominantes e dominados. Mas a “revolução copernicana” de Clastres é certamente menos kantiana do que indígena. O autor pretende deslocar o Estado do centro das atenções e empreender um exame crítico da Razão Etnocêntrica que embasou a Antropologia Política, passando pelos evolucionistas, pela ecologia cultural presente no Handbook of South American Indians, pela antropologia social britânica e pela obra comparativa de um politólogo como W. Lapierre – autor do Ensaio sobre o fundamento do poder político. Esse exame crítico, contudo, não bastaria por si só, pois é apenas no “diálogo” com os povos indígenas que a tal crítica pode se tornar profícua. É somente levando a sério a filosofia política destes povos que isso se tornará possível. E essa filosofia política – por definição “contra o Estado” – pode ser colhida seja nos mitos, ritos e exegeses de sábios indígenas, seja nas práticas da chefia, na guerra, nas acusações de feitiçaria. Como escrevem Tânia Stolze Lima e Marcio Goldman, a antropologia para Clastres é menos uma ciência do homem do que uma “ciência dos selvagens”, no duplo sentido do termo: ciência que estuda os selvagens, estudando a ciência dos selvagens; e põe em xeque, assim, as premissas

�������������������������������������������������������������������������������� Michel Foucault. “Les mailles du pouvoir”. In: Denfet, D. & Ewald, F. (orgs.). Dits et écrits IV. Paris: Gallimard, 1994.

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etnocêntricas da nossa ciência.18 A “revolução copernicana” de Clastres, enunciada em “Copérnico e os selvagens”, não se separa, portanto, de um deslocamento da antropologia como “discurso sobre os outros” para um “dialogo com os outros”, tal como defendido por ele em um pequeno ensaio em homenagem a Lévi-Strauss.19 É justamente nesse diálogo que se torna possível descentrar o nosso olhar e compreender que o Estado não é a finalidade das formas de organização das sociedades humanas, mas sim uma forma particular, regional, e que outras sociedades respondem ao perigo da irrupção de um aparelho de coerção separado da sociedade com um “contra”, com uma “recusa”. De modo geral, Clastres identifica o “contra o Estado” das “sociedades primitivas” em dois aspectos centrais. O primeiro seria a “filosofia da chefia indígena”, subtítulo de seu primeiro ensaio “Troca e poder”, publicado em 1962 na revista L’homme. O segundo aspecto seria a “máquina de guerra”, apresentada no ensaio “Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas”, publicado na revista Libre, em 1977, ano de sua morte precoce.20 Em “Troca e poder” Clastres localiza a recusa do poder político coercitivo na figura do chefe ameríndio, “chefe sem poder”. Salta daí uma filosofia política particular baseada na disjunção entre chefia e poder político coercitivo, algo que contrasta fortemente com a imagem do homem de Estado, aquele que controla os aparelhos de violência. A chefia seria, assim, apenas o lugar aparente do poder21, nesse sentido ele representa o grupo à medida que o faz aparecer. Em suma, o que faria um chefe é simplesmente conferir aparência a seu “grupo”. Temos aí a inversão da relação de poder, tal como 18 Op. cit. ���������������������������������������������������������������������� “Entre Silence et Dialogue”. In: BELLOUR, R. & Clément, C. (orgs.). Claude Lévi-Strauss. Paris: Gallimard, 1979. 20 As revistas em questão dizem muito do percurso do autor. Num primeiro momento, ele está vinculado ao Laboratoire d’Anthropologie Sociale, coordenado por Lévi-Strauss, fundador, aliás, da revista L’homme. Num segundo momento, ele se associa ao grupo “Socialismo e barbárie”, encabeçado por Lefort e Castoriadis, ambos filósofos. Para uma discussão sobre a relação de Clastres com esses dois grupos de intelectuais, ver o “Posfácio” de Viveiros de Castro a Arqueologia da violência; op. cit. 21 Ver interpretação de Marc Richir para a “filosofia da chefia indígena”. “Quelques réflexions épistémologiques préliminaires sur le concept de sociétés contre l’État”. In: Abensour, M. (org.), L’Esprit des lois sauvages: Pierre Clastres ou une nouvelle anthropologie politique. Paris: Seuil, 1987.

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concebida pela filosofia política moderna: não é o chefe que exerce poder sobre o grupo, mas o grupo que exerce poder sobre ele; dito de outro modo, ele é um prisioneiro do grupo. O “poder” – se ele existe – está com o grupo, está com a sociedade, e nisso reside o “contra o Estado”, no sentido de um mecanismo – uma tecnologia, para usar o termo de Foucault – contra o exercício do poder político e sua concentração em alguém ou em algum aparelho que ganha autonomia em relação à sociedade. Mas lembremos: este chefe não tem poder, mas tem prestígio, ele não é qualquer um. Diferentemente dos demais, ele detém um privilégio: a poliginia. Mas este privilégio se dá às custas de uma dívida imensa: ele terá de ser generoso, manifestar o dom da oratória e agir como pacificador. Mais uma vez a inversão na relação de poder: não é o chefe que endivida o grupo, fazendo-lhe pagar tributos, mas o grupo que o torna endividado e, portanto, “preso”. Clastres sugere que a chefia consiste numa ruptura no movimento de reciprocidade – de cônjuges, bens e discursos – que funda as relações sociais, como propôs Lévi-Strauss. E essa ruptura produziria uma relação de poder potencial que os indígenas souberam neutralizar, invertendo o seu vetor. É nesse sentido que eles são contra o Estado: eles reconhecem o poder que pode irromper de uma assimetria, e cuidam para dissipá-lo. Eles negam à Palavra do chefe o lugar de signo, capaz de comunicar uma mensagem de mando, transformando-a em puro valor, aquilo que constitui o prestígio do chefe na medida em que se compromete a produzir um discurso antes de tudo Belo, que diz o Bem da sociedade. Se o chefe adquire um privilegio, a poliginia, isso lhe custará a contração de uma dívida impagável, já que as mulheres são o bem supremo, logo insubstituíveis, como mostrou Lévi-Strauss. E se o chefe é aquele que possui o dom da oratória, ao conteúdo desta deverá ser vazio, para não dizer o mando, mas para enaltecer a linguagem. Em “Arqueologia da violência” Clastres agrega a essa filosofia da chefia indígena um outro aspecto da conjuração do poder político coercitivo: a guerra. Note-se que quando Clastres escreveu “Troca e poder”, ele ainda não tinha feito pesquisa de campo, tendo aproveitado as etnografias de terceiros, bem como o compêndio contido no Handbook of South American

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Indians, organizado por Julian Steward. Já quando escreveu “Arqueologia da violência”, ele tinha passado por quatro diferentes grupos, e estava sobretudo impactado com a breve experiência entre os Yanomami, entre os quais a guerra parecia ser uma realidade inescapável.22 Para Clastres, as sociedades indígenas recusam a unificação política em nome de comunidades pequenas e autônomas do ponto de vista político e econômico; e a maneira de manter essa autonomia seria a perpetuação de um estado de guerra, responsável por um processo contínuo de fragmentação social. A guerra – em seu sentido tanto físico como metafísico – é, para Clastres, o que “multiplica o múltiplo”.23 A guerra é, nesse sentido, contra o Estado, e as “sociedades primitivas”, “para-a-guerra”. Essas comunidades indígenas autônomas e autárquicas eram descritas pelo autor como “comunidades indivisas”, isto é, como não baseadas em relações entre dominantes e dominados. Para ele, sequer a diferença entre homens e mulheres poderia ser pensada ali como Divisão, uma vez que não está baseada na expropriação ou na dominação, mas sim na complementaridade. Se em “Troca e poder” a violência é contra a sociedade”, é a arma do Estado, em “Arqueologia da violência”, outra forma de violência – não mais interna, e sim interna – passa a ser aquilo que se opõe ao Estado, agora fundado num desenvolvimento da troca. A violência guerreira aparece em “Arqueologia da violência”como interrupção de um ciclo de trocas – desta vez entre as diferentes comunidades –, trocas que podem agir em prol da unificação política. E a política “primitiva”, se assim podemos chamá-la, não é – ao contrário do que prescrevem as nossas filosofias políticas – uma política da unificação, ela é, isso sim, uma política da multiplicação, da multiplicidade.24

22 Para uma análise da guerra yanomami, ver Rogerio Do Pateo. Niyayu: relações de antagonismo e aliança entre os Yanomam da Serra de Surucucus (RR). Tese de doutorado. São Paulo: USP, 2005. 23 “Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas”. In: Arqueologia da violência, op. cit. 24 Para uma reconsideração dessa teoria anti-troquista da guerra tendo em vista a idéia deleuziana de multiplicidade, ver o “Posfácio” de Viveiros de Castro para Arqueologia da violência; op. cit.

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É nesse aspecto que Gilles Deleuze e Félix Guattari, autores de Mil platôs, sentem-se particularmente atraídos pela “máquina de guerra” iluminada por Clastres: para eles, essa máquina é o que impede toda unificação, seja de uma forma política – a forma-Estado – seja de uma forma de pensamento – a ciência régia.25 Ainda que não tenha elaborado essa idéia de maneira explícita, Clastres não dissociou a filosofia política indígena de uma epistemologia ou mesmo de uma ontologia “contra o Estado”. Esse aspecto vem à tona quando lemos seus escritos sobre as exegeses de xamãs ou sábios guarani. Um desses sábios – homem mbyá de uma aldeia paraguaia – teria confessado a Clastres a aversão filosófica de seu povo a tudo aquilo que se assemelhe ao Um. Ele associava tudo o que é indesejável ao Um, e tudo o que é desejável ao Dois, o Um sendo o número da terra imperfeita em que habitamos, e o Dois, o número da terra sem mal, a qual os Guarani não cessam de buscar e onde todos são ao mesmo tempo homens e deuses, isto é, recusam a fronteira entre a humanidade e a divindade. Esta reflexão, traçada muito rapidamente no ensaio “Do Um sem o Múltiplo”, careceria certamente de um desdobramento maior. Voltarei a ela mais adiante, quando for tratar de uma formulação quer encontramos em Viveiros de Castro: “o perspectivismo é a cosmologia contra o Estado”. Limites teóricos e históricos do “contra o Estado”

A obra de Pierre Clastres é inacabada em vários sentidos. Em primeiro lugar, não há uma obra de síntese, mas sim dois conjuntos de ensaios – estilo que se define pela sua abertura e por uma espécie de “desrepressão” acadêmica –, uma monografia escrita em tom de crônica, Crônica dos índios Guayaki, e duas coletâneas de mitos e exegeses indígenas, dedicadas respectivamente aos Guarani e Chulupi.26 Os conjuntos de ensaios, que 25 Ver, sobretudo, o platô 12 “1227: Traité de nomadologie: La machine de guerre”. In: ����Mille plateaux: capitalisme et schizophrénie II. Paris, Eds. de Minuit, 1980. 26 Crônica dos índios Guayaki: o que sabem os Aché, caçadores nômades do Paraguai. São Paulo: Ed. 34, [1972]1995. A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos Guarani. Campinas: Papirus, [1974]1990. Mythologie des indiens chulupi. Edição preparada por Michel Catry e Hélène Clastres. Paris: Bibliotèque de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales – Section des Sciences Réligieuses, vol. 98., 192.

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desdobram a idéia da “sociedade contra o Estado”, não estão livres de ambiguidades que muitas vezes conduziram a críticas teóricas ásperas. Muitos autores, menos ou mais críticos em relação a Clastres, o repreenderam por tomar este “Estado” – que a sociedade primitiva é “contra” – de maneira por demais vaga. E também pelo fato de ele transferir a coerção do Estado para a sociedade, o que representaria outra forma de transcendência. Clastres, em alguns de seus últimos ensaios – “O retorno das luzes”, “Os marxistas e sua antropologia”27, por exemplo –, retrucou essas críticas alegando que o que ele entende por Estado é simplesmente a imposição de uma Divisão entre dominantes e dominados, e que ele não se considerava propriamente um durkheimiano, visto que para ele a vida coletiva não tolheria a liberdade, o ponto é que teríamos a tendência de tomar a liberdade na sua versão demasiadamente individual. Os ensaios publicados em 1977, “Arqueologia da violência” e “Infortúnio do guerreiro selvagem”, teriam, por sua vez, problematizado o lugar do Estado entre os indígenas ao se colocarem a pergunta de como a Divisão poderia surgir numa sociedade que preza pela indivisão. Isso tornava a Divisão como horizonte possível, ainda que sua instauração fosse tomada como acidente. Uma nota de pé de página incluída pelo editor da revista Libre no ensaio “Infortúnio do guerreiro selvagem” revelava justamente o interesse de Clastres em refletir tanto sobre as ameaças de irrupção de lideranças e mecanismos centralizadores – tal o caso dos Tupi antigos e dos povos do Chaco – como a arquitetura do Estado Inca que, por mais que tivesse sido instaurado pela Divisão, não poderia ser simplesmente justaposto ao Estado-nação da era capitalista, em que o etnocídio – abolição das diferenças, marca de todo Estado – teria sido levado a enormes consequências. Seja como for, Clastres deixou muitas veredas abertas, e isso inclui a ambiguidade de certas noções por ele manuseadas, como a noção de “poder político”, bem como a proliferação de certos paradoxos identificados nos diferentes devires das sociedades indígenas. Um deles é a possibilidade da guerra, mecanismo por excelência de recusa do Estado, se converter em instrumento de unificação e concen27 Ambos reunidos em Arqueologia da violência; op. cit.

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tração de poder. Outro, mais particular, seria o processo do profetismo tupi, movimento liberador, que não raro recai num mecanismo de produção de lideranças carismáticas de caráter coercitivo e centralizador, promovendo a unificação de comunidades autônomas ou mesmo inimigas entre si.28 Pretendo tratar aqui o caráter paradoxal e a abertura ensaística em Clastres como uma virtude, que pode ser atualizada nos estudos etnológicos mais atuais. No entanto, é antes preciso considerar alguns afastamentos realizados pelos antropólogos em relação à obra de Clastres. Tendo a ver estes afastamentos como pertencendo a duas ordens. Em primeiro lugar, trata-se de um afastamento que tem em vista o descompasso entre a idéia de “sociedade contra o Estado” e os fatos empíricos, não apenas etnográficos, mas também aqueles revelados pela historiografia e pela arqueologia. Em segundo lugar, trata-se de recusar uma visão fatalista no autor, que em muito resulta da constatação de uma contradição inelutável entre a existência de sociedades indígenas num território reconhecido como parte de um Estado-nação. Comecemos pelo primeiro ponto. Alguns etnólogos questionaram a idéia do “chefe sem poder” clastreano, apontando situações em que chefes deteriam de fato poder de mando e coerção, bem como controle sobre a produção comunitária. O exemplos de certos líderes de guerra, reconhecidos pela sua força e pelo temor por eles causado, bem como de certos líderes xamânicos, estes também capazes de meter medo em seus seguidores devido ao reconhecimento de sua capacidade de promover a vida e a morte, passariam a ser acionados promovendo uma revisão sobre os lugares do “poder político” nas terras baixas da América do Sul. Veja-se, nesse sentido, as críticas de Fernando Santos Granero, que compara etnografias de diferentes povos sul-americanos para frisar o aspecto controlador de “doação de vida” – e, por conseguinte, de morte – dos chefes ameríndios,29 bem 28 Ver, a respeito dos paradoxos encerrados pela guerra e profetismo ameríndios, Sztutman; op. cit. Para uma definição clastreana da antropologia como “ciência paradoxal”, ver o “Posfácio” de Viveiros de Castro, op. cit. ������������������������������������������������������������������������������������������������ Fernando Santos Granero. “Power, ideology and the ritual of production in Lowland South America”. In: Man, vol. 21, n. 4, 1986. “From prisioner of the group to darling of the gods: an approach to the issue of power in Lowland South America”. In: L’homme, vol. 126-128. Vital enemies: slavery, predation and the amerindian political economies of life. Austin: University of Texas, 2009.

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como os novos balanços sobre povos de língua arawak, que insistem em reconhecer neles traços fortes de hierarquia e poder ritual.30 Um caso particular dessa crítica empírica às idéias clastreanas é certamente o dos estudos sobre o alto Xingu, encabeçados por Michael Heckenberger. Cruzando descobertas arqueológicas no Parque do Xingu com a etnografia entre os Kuikuro (povo de língua caribe), o autor chega a comparar ideologia da chefia alto-xinguana com os esquemas polinésios, em que uma teoria da substância conduziria a uma espécie de teocracia.31 O grande ímpeto da crítica americanista às idéias de Clastres parece-me ter sido a “nova síntese” produzida entre estudos sobre as terras baixas sul-americanas que pretenderam cruzar perspectivas da etnologia, da historiografia e da arqueologia. O termo “nova síntese” foi conferido pela arqueóloga Anna Roosevelt, que teria evidenciado na várzea amazônica – mais especificamente nas regiões de Santarém e Marajó – a presença de formas políticas por assim dizer “complexas”. Em linhas gerais, Roosevelt caminhou na contramão dos estudos de ecologia cultural que tomavam a Amazônia como território improvável para o florescimento de formas políticas complexas – tais os Estados ou proto-Estados, “cacicados” – devido às suas condições ambientais. Os vestígios da civilização marajoara, por exemplo, costumavam ser identificados a uma difusão mal-fadada da região andina. Roosevelt, de sua parte, interpretou a queda dos cacicados amazônicos pela ação desestruturadora da Conquista européia, e leu todo esse processo por meio de um cruzamento entre evidências (materiais) arqueológicas e relatos etno-históricos, que corroboravam com o retrato de grandes civilizações instaladas na várzea.32 A imagem da “nova síntese” sobre a Amazônia, com toda sua profundidade histórica, contrasta fortemente com a imagem da “sociedade pri30 Jonathan Hill & Fernando Santos Granero (orgs.). Comparative arawakan histories: rethinking language family and culture área in Amazonia. Chicago: University of Illinois Pres, 2002. ������������������������ Michael Heckenberger. The ecology of power: culture, place and personhood in the Southern Amazon (AD 1000-2000). Nova York: Routledge, 2005. ��������������������������������������������������������������������������������������������������� Roosevelt, Anna. “Amazonian anthropology: strategy for a new synthesis”. In: Roosevelt, A. (ed.). Amazonian indians: from prehistory to the present. Tucson: The University of Arizona Press.

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mitiva” de Clastres. Se a primeira vangloria-se pela sua cientificidade dada na capacidade de refazer um longo percurso temporal, a segunda é atacada pelo seu ensaísmo e pela sua insistência de recobrir um Ser do mundo primitivo. A sociedade “contra o Estado” seria, sob a tal síntese, provavelmente o resultado da ação aterrorizante da Conquista. Seria, nesse sentido, menos uma escolha dos indígenas do que do próprio Clastres. A “sociedade contra o Estado”, ou melhor, “sem Estado”, seria resultado de uma involução indesejada, de uma dispersão das calhas dos grandes rios em direção à terra firme amazônica, em que o atomismo sociopolítico figuraria como mais adequado.33 Michael Heckenberger, na esteira de Roosevelt mas se afastando dela, propõe uma etno-arqueologia capaz de cruzar arqueologia, história e etnografia. Em seu trabalho sobre com os Kuikuro, como vimos, Heckenberger revela a centralidade da chefia, que não está dissociada de um poder coercitivo, implicando mecanismos rituais de validação e, assim, uma espécie de “teocracia”. O que veríamos hoje em uma escala reduzida teria, no passado, uma versão ampliada: um sistema regional integrado e hierarquizado revelando uma ideologia que associa chefia e poder ritual.34 Todas essas críticas de ordem empírica teriam o poder de desfazer a força de uma idéia como a da “sociedade contra o Estado”, transformando-a numa ideologia romântica e datada? Como apontei há pouco, talvez a virtude da obra de Clastres resida nas ambiguidades e nos paradoxos por ele enunciados. E ele estava bastante ciente de que a idéia da “sociedade primitiva” – o seu Ser, para mantermos o termo do autor – não correspondia exatamente ao devir histórico das sociedades ameríndias. Ele estava igualmente ciente da diversidade das formas indígenas e das maneiras pelas quais estas “tangenciavam” formas políticas mais “complexas”, por 33 O caráter problemático dessa dicotomia “complexidade das redes sociais no passado” versus “atomismo sociológico no presente” – vigente tanto nos textos dos arqueólogos e historiadores como dos etnólogos – foi discutido na coletânea Redes de relações nas Guianas (São Paulo: Associação Humanitas Editorial/NHII/Fapesp, 2005), organizada por Dominique Gallois. Note-se, a este respeito, as análises presentes nos artigos de Denise Fajardo Grupioni (“Tempo e espaço”) e de Rogério Do Pateo (“Guerra e devoração”), a primeira focalizando a organização social e o parentesco, o segundo focalizando a guerra e suas implicações, sempre tendo em vista as sociedades indígenas da região das Guianas, norte-amazônico. 34 Ver nota 31. Uma crítica ao modelo de Heckenberger sobre a política xinguana pode ser encontrada em Figueiredo, op. cit.

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exemplo, aldeias populosas, conjuntos regionais liderados por chefes de guerra, distinções hierárquicas e até mesmo aristocracias. Leiam-se, nesse sentido, as suas considerações em dois artigos pouco explorados como “Independência e exogamia” e “Infortúnio do guerreiro selvagem”.35 Mas se essas sociedades “tangenciavam” tais formas, isso não significa que elas sucumbiam a elas, isso não enfraquecia seus poderosos mecanismos de conjuração do poder político. A “sociedade contra o Estado”, diriam Gilles Deleuze e Félix Guattari na homenagem que fazem ao autor em Mil platôs, seria melhor vista como um vetor inerente a toda sociedade. Ora, as sociedades indígenas o fariam funcionar de maneira mais eficaz, despendendo mais energia com ela. E o vetor estatal, nelas também presente, seria rebatido com maior ênfase, sendo conjurado a todo momento; o que as distancia de nossa sociedade, em que este vetor se enrijeceu de tal modo que já não pode ceder aos contra-poderes, a não ser por meios radicais, a que convencionamos chamar de “revoluções”. De todo modo, tendo em vista a “nova síntese” entre etnologia, arqueologia e historiografia seria preciso problematizar a noção de “complexidade sociopolítica” que aí emerge. Isso porque essa noção retoma a razão evolucionista, criticada tão bem por Clastres, razão que equaciona o ganho em “complexidade” com a aproximação à forma do Estado. Levando a sério a revolução copernicana de Clastres, podemos dizer que é preciso submeter essa idéia de “complexidade” a um escrutínio que inclui tanto a análise crítica dos enunciados dos autores dessa “nova síntese” como o referido “diálogo” com as filosofias e práticas políticas indígenas. Se avançarmos na consideração sobre o que esses povos pensam com relação às suas formas sociopolíticas e às possibilidades de emergência de algo como um poder coercitivo poderemos dar novos ares ao problema da “complexidade”, o que envolveria uma compreensão mais adequada do caráter assimétrico das relações nas terras baixas da América do Sul. Levando a sério o que Marilyn 35 Para uma análise desses textos de Clastres, ver Lima & Goldman, “Prefácio” (op. Cit.), Sztutman (“Le vertige des guerriers et prophètes sauvages: déploiement d’un paradoxe clastrien” In: Abensour, M. & Kupiec, A. Cahiers Pierre Clastres; no prelo), Figueiredo (“Eleições na aldeia...”, op. Cit.) e Viveiros de Castro (“Posfácio”, op. cit.).

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Strathern escreveu sobre o fato de a oposição entre simples e complexo ser mais um problema de escala do que de realidade,36 poderíamos admitir que a complexidade indígena reside não na evolução ou na involução de formas na história, mas sim na alternância ou “pulsação” entre as formas, o que incluiria a atenção ao modo pelo qual os indígenas tangenciam experiências que tendemos a identificar com as nossas concepções de Estado e de poder político. Voltarei a esse ponto adiante. O afastamento dessa “nova síntese” com relação à obra de Clastres tem um sentido oculto, que é político – como não poderia deixar de ser. Ao assumir que o passado dos povos das terras baixas da América do Sul é marcado por formas sociopolíticas complexas que não se reduzem à difusão dos Andes, estes estudos forjam um passado glorioso e dão dignidade política a povos descritos como pré-políticos ou apolíticos. O problema é, mais uma vez, equacionar dignidade política com Estado. Por que não podemos pensar que é possível ser digno – no sentido de ser agente de seu próprio destino, de governar a si mesmo contra a ameaça de outros – sem sucumbir ao Estado, ao assumir que a melhor forma de viver é recusar a centralização de um poder coercitivo? Mais uma vez uma pergunta clastreana se faz ecoar: qual, afinal, o sentido da política? Há uma segunda ordem que compõe o afastamento em relação à obra de Clastres, e que é política não apenas num sentido oculto. Faço referência mais propriamente à experiência brasileira, desenhada a partir dos anos 1980, de inclusão de maneira positiva da diferença cultural – e, mais especificamente, da questão indígena – na pauta do Estado-nação moderno. Essa experiência de certa maneira contradiz a máxima clastreana de que “todo Estado é por essência etnocida”, isto é, o fundamento do Estado é suprimir as diferenças culturais para assim impor a unificação e a uniformidade, para efetuar a equação entre Estado e nação, e a equação entre nação, cultura e língua. Faço referência ao famoso ensaio “Do etnocídio”, de 1974, e às repetidas constatações de Clastres de que o avanço dos Estados nacionais e das economias de mercado iria necessariamente destruir as 36 Marilyn Strathern. Partial connections. Oxford: Altamira Press, 2005.

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sociedades indígenas.37 Marshall Sahlins reconheceria aí talvez os traços de um “pessimismo sentimental”, uma vez que ele está mais interessado em lançar luz sobre a originalidade das estratégias indígenas de resistência do que em corroborar com a idéia de um ocaso inexorável .38 Não podemos esquecer, no entanto, que no momento em que Clastres escrevia – os anos 1960 e 1970 – a tal crônica de uma morte anunciada não parecia tão implausível. Este era o tempo da expansão radical e predatória do Estado e da economia capitalista – e aqui me refiro sobretudo ao Brasil, ainda que ele não circunscreva sua observação neste país –, que decretava os índios como entraves para a soberania e para o desenvolvimento, tendo como única solução a sua integração na sociedade sob a forma de camponeses. Como sugeria Darcy Ribeiro, o destino dos povos indígenas era a dissolução de suas diferenças em uma “indianidade genérica”.39 Ou, como pensava Roberto Cardoso, os índios estariam se transformando em camponeses e sua única saída era tomar consciência de suas diferentes identidades étnicas para assim resistir ao mundo dos brancos.40 Os anos 1980 fizeram, no entanto, irromper um novo otimismo, ainda que o quadro ameaçador não tenha de modo algum cessado. A primeira razão para esse suposto otimismo é que o decréscimo populacional e o processo de homogeneização foram revertidos: os índios não desapareceram, nem deixaram de lado suas diferenças. A segunda razão foi o desenvolvimento de movimentos indígenas, que passavam a reivindicar direitos territoriais e transformavam identidades em armas políticas. A luta política travada pelo cruzamento dos movimentos indígenas e de diferentes setores do indigenismo acabaria por surtir forte efeito sobre a Constituinte de 1988.41

37 Arqueologia da violência, op. cit. 38 Marshall Sahlins. “O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um objeto em extinção”. In: Mana, vol. 3, n. 1 e 2, 1997. 39 Darcy Ribeiro. Os índios e a civilização. Petropólis: Ed. Vozes, [1970]1993. 40 Roberto Cardoso de Oliveira. O índio e o mundo dos brancos. Campinas: Ed. da Unicamp, [1964]1995. 41 Ver, entre outros, Bruce Albert. “Associações indígenas e desenvolvimento sustentável na Amazônia brasileira”. In: Ricardo, Beto (org.). Povos Indígenas no Brasil: 1995-2000. São Paulo: ISA, 2000.

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Como resume o site do Instituto Socioambiental, com relação às constituições anteriores e ao Estatuto do Índio de 1973, a constituição de 1988 promoveu duas inovações conceituais fundamentais. A primeira é o abandono de uma perspectiva assimilacionista: índio deixa de ser considerado uma categoria transitória, fadada ao desaparecimento. É nesse sentido que se inscreve o direito à diferença, algo que reverbera no reconhecimento da diversidade cultural linguística bem como nas propostas de uma educação diferenciada. A segunda inovação diz respeito aos direitos sobre a terra, entendidos como direitos originários, anteriores ao próprio Estado. Somado a isso estaria a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – ratificada no Brasil apenas em 2002 –, que reforça o princípio de auto-determinação dos povos, assegurando a vigência do direito costumeiro interno e participação políticas dos povos indígenas nas decisões que os afetam. Como vemos, a partir dos anos 1980, há, no Brasil, uma conjunção entre luta política – indigenista e indígena – e a conquista de direitos, trazendo a diferença cultural para a pauta do Estado. Os antropólogos, é claro, tiveram grande parte nisso. Sua militância sempre consistiu em exigir do Estado a garantia dos direitos dos índios bem como a promoção de políticas públicas com o intuito de favorecê-los. Era preciso forjar uma certa ação política, e esta tinha de se apoiar na ferramenta por excelência da democracia representativa: o direito. O suposto pessimismo de Clastres diante do embate dos povos indígenas com o Estado aparecia, nesse sentido, como uma espécie de paralisia. Em um artigo intitulado “O futuro da questão indígena”, Manuela Carneiro da Cunha faz um elogio dos sistemas multiétnicos como condição de sobrevivência dos povos indígenas, e sinaliza a necessidade de implementar parcerias entre estes povos, o Estado e setores da sociedade civil.42 Para ela, o desafio do indigenismo dos anos 1980 era como se valer do Estado e do Direito contra eles mesmos, ou seja, a favor dos projetos de autonomia dos povos. Longe de recair num otimismo demasiado ou num simplismo, as reflexões de Carneiro da Cunha parecem atentar para o fato 42 In: Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

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de que, em vez de nos rendermos ao paradoxo implícito na inclusão dos índios na pauta do Estado, é preciso fazer esse paradoxo render; ou seja, é preciso extrair do Estado e do Direto armas para a resistência dos índios. A idéia de que um certo Estado poderia conter as diferenças sem destruí-las aparece também nas reflexões de David Maybury-Lewis, etnógrafo dos Xavante, coordenador do famoso projeto Harvard Brasil Central na década de 1970 e também fundador da OnG Cultural Survival. Num artigo intitulado “Vivendo Leviatan: os grupos étnicos e o Estado”, Maybury-Lewis escreve que a proposta da criação de Estados multiétnicos deve partir da premissa de que “não há lei natural que impeça que ‘nacionalidades’ ou o que hoje chamaríamos de grupos étnicos convivam com um único Estado”.43 Desse modo, a asserção habitual, tanto na visão denunciadora da “corrente do etnocídio” como na perspectiva desenvolvimentista, de que as demandas do Estado são necessariamente contraditórias com as aspirações dos grupos étnicos pode ser revista considerando-se alternativas para as relações entre os Estados nacionais e as minorias étnicas. Para Maybury-Lewis, é preciso não se ater unicamente a denúncias, mas estabelecer antes de tudo um plano de ação política capaz de transformar o Estado, que deixaria de ser visto como Leviatã para abrigar diferenças. No século XXI há novas experiências de inclusão da diversidade na pauta Estado ainda mais ousadas. Refiro-me àquelas experiências que ocorreram na Bolívia e no Equador com suas novas Constituições Plurinacionais. Como celebra Boaventura de Sousa Santos, em palestra proferida na Assembléia Constituinte do Equador, em 2008, estamos diante de um processo de refundação do Estado, não mais o velho Estado-nação monocultural moderno, mas o Estado plurinacional. Para Santos, essa refundação seria um exemplo de unificação do Estado sem a idéia de uniformidade, seria um exemplo de convivência democrática entre sociedades descentralizadas, que não estaria livre de tensões. Nas palavras deste autor, temos de “inventar a democracia no sentido intercultural e o Estado num sentido plurinacional. A crise do Estado liberal moderno é irreversível e por ������ In: Anuário Antropológico 83, 1984, p. 103.

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isso o Estado equatoriano, se quer inovar será um Estado experimental e isso é realmente novo”.44 Veja-se, em consonância a este discurso, a fala de Luís Macas, político e intelectual indígena, de origem Kichwa, também na Constituinte do Equador: “Estamos condenados a viver juntos. Não vamos poder sobreviver no sistema se não ajudarmos, coletivamente, indígenas e não indígenas, a romper com o sistema”. A luta contra a absorção pelo Estado se daria, assim, por meio da apropriação das próprias armas do Estado. E Macas continua: Nossa “proposta [é a] de descolonizar o Estado e o propor como plurinacional, [é] ao menos conseguir que essa constituinte diminua a distância entre a cidadania equatoriana e preexistência das nacionalidades indígenas ou originárias”.45 Com este exemplo equatoriano me distanciei bastante da realidade brasileira, onde a questão indígena tem contornos bastante diversos. No Brasil, a construção de uma consciência pan-indígena – de um indianismo político propriamente dito – seria bastante recente se comparada a outros países da América Latina. Isso não implica a impossibilidade de refundação do Estado, mas sim a necessidade de um maior aprendizado da experiência moderna do Estado. Poderíamos objetar que a construção desses Estados plurinacionais na Bolívia e no Equador, em que a população declarada como indígena é imensa, teria como modelo um Estado indígena, de matriz andina, capaz de garantir um certo equilíbrio entre a imposição de uma unificação política e ritual e a autonomia das comunidades agrícolas. Como evidencia Salvador Schavelzon, em seu estudo minucioso sobre o processo da Constituinte na Bolívia (processo concluído em março de 2009), uma das questões centrais ali discutidas foi o lugar das comunidades agrárias, estas que representariam um “contra o Estado” dentro do Estado. Ou seja, o desafio seria como trazer para o Estado o sentido da autonomia dessas comunidades, e assim pensar “um Estado que também fosse um não44 Boaventura Sousa Santos. “Las paradojas de nuestro tiempo y la plurinacionalidad”. In: Acosta, A. & Martínez, E. (orgs.). Plurinacionalidad: democracia en la diversidad. Quito: Eds. Abya-Yala, 2009; p. 61. 45 Luis Macas. “Construyendo desde la historia: resistencia del movimiento indigena en el Ecuador”. In: In: Acosta, A. & Martínez, E. (orgs.). Plurinacionalidad: democracia en la diversidad. Quito: Eds. AbyaYala, 2009; p. 98.

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-Estado”.46 Um desafio ainda maior seria o de pensar uma refundação do Estado no caso de certos atores indígenas das terras baixas sul-americanas, para quem o Estado, seja qual for sua geometria, permanece uma experiência alienígena, ainda que não destituída de possibilidade. Alternância e criatividade nas políticas ameríndias

Realizei toda essa digressão, de modo bastante impressionista, para evidenciar uma espécie de contrapartida histórica à idéia clastreana de que o Estado e os povos indígenas são realidades absolutamente contraditórias. Idéia que encontra abrigo no tema do “mau encontro” desenvolvido por Étienne de La Boétie em seu Discurso sobre a servidão voluntária47: mau encontro como acidente irreversível, como perda irreparável da liberdade que constitui o cerne de toda humanidade; mau encontro como desnaturação irreversível. Não acredito que a contradição apontada por Clastres possa ser totalmente diluída. Seja qual for a experiência, sempre persiste um paradoxo ou uma tensão, persiste também o perigo da redução dos povos a “nações”, noções não menos unificadoras e majoritárias. Persiste, portanto, o perigo das políticas indígenas se enrijecerem na interface com a nossa política, perderem justamente o que há de mais interessante nelas: esse movimento de recusa da unificação, essa flexibilidade de pulveriza os focos de poder e impede concentrações, essas linhas de fuga que permitem a tal “multiplicação do múltiplo”. Com a antropologia das últimas décadas, aprendemos a ser mais otimistas, e a ver que esses vetores flexíveis e fugidios das políticas indígenas podem conviver e mesmo combinar-se com os vetores rígidos de uma política de Estado de modo a produzir resistência e autodeterminação. No entanto, é preciso valer-se do pessimismo menos sentimental do que heurístico de Pierre Clastres para nos darmos conta dos riscos envolvidos numa politização dura e, ao mesmo tempo, das potencia46 Salvador Schavelzon. Assembléia constituinte na Bolívia: etnografia do nascimento de um Estado plurinacional. Tese de doutorado. Museu Nacional/UFRJ, 2010. 47 São Paulo: Ed. Brasiliense, [escrito provavelmente em 1549]1982.

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lidades de uma política selvagem, que insiste em recusar as unificações. Uma nova antropologia política tem de cuidar para não reduzir o problema à interação dos povos indígenas com o Estado e, então, conceitualizar os mecanismos criativos destes povos para se organizar e agir politicamente para além e aquém da esfera do Estado e da sociedade envolvente. Penso que esses mecanismos não deixaram de envolver a filosofia da chefia indígena e a “multiplicação do múltiplo” da guerra, que não se reduzem à política de homens, revelando toda uma cosmopolítica. Não deixaram, enfim, de envolver o “contra o Estado”, como vemos no exemplo boliviano de refundação do Estado apresentado por Schavelzon. Em vista da experiência brasileira, nos últimos 20 anos, de criação de associações, formato legal que permite aos índios alegar representatividade perante o Estado brasileiro, Manuela Carneiro da Cunha se pergunta o quê e quem essas associações representam. Ela constata que essas associações não são figuras perenes, mas sim circunstanciais dependendo de projetos de naturezas diversas. A criação de associações que reúnem mais de uma comunidade ou mesmo mais de uma etnia colocaria um problema para a idéia de comunidade como unidade político-econômica autônoma, idéia que certamente não deixou de vigir. O resultado disso seriam conflitos e fissões, bem como crises de representatividade. Nesse ponto, e não por acaso, Carneiro da Cunha recorda Clastres: “é possível, escreve ela, que estes povos tivessem instituições diferentes das nossas numa escala muito mais ampla do que conseguimos perceber por estarmos confinados numa ontologia política gerada no século XVII”.48 Sim, o problema é de ontologia – no sentido de que o problema é mais profundo do que pensamos, pois toda filosofia política está fundada numa base ontológica especifica, numa definição menos ou mais precisa do que vem a ser a humanidade.49 A diferença entre as ontologias modernas e as indígenas não seria tão pequena a ponto de imaginarmos que eles possam ter uma política 48 “‘Cultura’ e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais”. In: Cultura com aspas e outros ensaios; op. cit, p. 338. 49 Ver, para esse debate tendo em vistas as filosofias políticas ocidentais, Marshall Sahlins The western illusion of human nature. Chicago: Prickly Paradigm Press, 2008.

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idêntica à nossa. É preciso levar a sério essas diferenças – e suas escolhas particulares – quando perseguimos as políticas indígenas, sejam aquelas confinadas no interior das aldeias, sejam aquelas que ocorrem em regiões de interstício. É preciso, pois, compreender como se dá a criação de novas formas de associação e de representatividade a partir de formas preexistentes, sem no entanto cair no problema indecidível da autenticidade. A reflexão de Carneiro da Cunha sobre as associações indígenas, que se insere num movimento maior de auto-representação diante da interface com o mundo moderno, atenta para a vigência de mecanismos de organização, ação e segmentaridade irredutíveis ao modelo moderno de política, mecanismos que revelam não formas fixas, mas uma criatividade política propriamente indígena. Criatividade capaz de atualizar a filosofia da chefia, a máquina de guerra ou outras faces do “Contra-um” ameríndio. O exemplo das associações, assim como o da entrada dos índios na trama da política partidária, ora como eleitores ora como candidatos, revelam não apenas o aprendizado deles de um novo fazer política e se representar como índios e como “etnias” para Outrem, mas sobretudo a mobilização de mecanismos conhecidos e desejados. A maneira pela qual os índios entram no mundo da nossa “política” – a democracia representativa, com suas exigências de unificação e de delegação – só poderia ser compreendida, desse modo, a partir das motivações indígenas, e estas implicam mecanismos por vezes estranhos à nossa prática política. Essa reflexão só poderia caminhar com a produção de novas etnografias capazes de perseguir a constituição de “novas” formas tanto de liderança como de produção de coletivos. Novas, ou melhor, relativamente novas, já que pressupõem relações com formas preexistentes. Essas etnografias poderão responder quando estamos diante de um enrijecimento ou quando estamos diante da atualização do que Clastres, vale repetir, chamou de filosofia da chefia indígena e de máquina guerreira. Aposto, portanto, numa releitura atual das idéias de Pierre Clastres, releitura que permite, por exemplo, voltar a pensar a relação entre povos indígenas e o Estado menos como uma contradição sem qualquer chan-

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ce de resolução, do que como uma tensão inelutável que faz, no entanto, brotar outras formas de resistência, outros “contras”. Como evidenciaram Deleuze e Guattari em sua homenagem ao autor, o “contra o Estado” permanece no interior do próprio Estado, fazendo com que o mau encontro jamais se complete.50 É assim que vimos mesmo no interior da política partidária, erguerem-se movimentos contrários à concentração do poder e à consolidação de uma forma de representação política. Isso foi o que nos evidenciaram, entre outros, os estudos de Marina Vanzolini Figueiredo e Florbela Ribeiro citados no início deste ensaio. Aposto, ademais, numa releitura das idéias de Clastres que permitam pensar, num plano agora mais teórico do que histórico, o que significaria esse Estado, esse poder político, contra o qual as sociedades indígenas se voltariam contra. Retornemos, por ora, ao problema das tais formas complexas, ao qual fazem referência os autores da “nova síntese” entre arqueologia, historiografia e etnologia. O problema da conceitualização destas formas está justamente na insistência na metáfora do Estado. Com efeito, tais formas aparecem como caminhos em direção ao Estado, e tudo se passa como se a única maneira de reversão desse caminho tenha sido a tragédia da Conquista européia. Se os índios não tivessem sido interpelados pelos europeus teriam eles se tornado sociedades com ou para o Estado como as européias? Se eles desenvolvessem um Estado este poderia tomar uma forma absolutamente diversa da nossa, a ponto de duvidarmos se ele poderia ser mesmo chamado de Estado? Sabemos muito pouco a esse respeito. Mas nossas suspeitas podem conduzir a conclusões diversas. Por exemplo, podem fazer com que movimentos vistos como “complexificação sociopolítica” sejam tomados como movimentos previstos e mesmo desejados pelos povos indígenas, mas nem por isso – ou talvez por isso mesmo – podemos admitir que eles sejam irreversíveis. Poderíamos concluir que esses movimentos de complexificação sociopolítica evidenciados pelos arqueólogos e etno-historiadores integram, 50 Este seria, por exemplo, o sentido de uma noção como a de “linha de fuga”, esta que impede o enrijecimento das linhas de segmentaridade.

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de fato, uma oscilação ou alternância entre diferentes formas, menos ou mais complexas. Dito de outro modo, o que haveria de complexo nesse movimento não seria um momento ou outro, mas a própria oscilação, a própria alternância entre vetores centrífugos e centrípetos, entre fases de concentração e fases dispersão. O retrato de lideranças mais fortes, beirando a centralização e a coerção, e de esboços de unificação política, dados por um maior grau de integração regional, tal como presente na análise dos vestígios arqueológicos e na historiografia, poderia corresponder menos a um caminho inelutável e irreversível a uma forma de tipo Estado do que a um momento de uma alternância incessante e mesmo prevista. Beatriz Perrone-Moisés, debruçada sobre relatos acerca de confederações entre os povos caribe da região das Guianas e em outras partes da América, conceitualizou esse movimento oscilante – de certo modo, pendular – como um “dualismo em perpétuo desequilíbrio”, propriedade que Lévi-Strauss reconhece como motor de todo pensamento ameríndio.51 Em um ensaio escrito em conjunto, desenvolvemos a idéia de que esse movimento pendular deveria ser pensado como um elemento estrutural de longa duração, sendo portanto capaz de conferir alguma continuidade entre os eventos do passado – apreendidos pelos arqueólogos e historiadores – e os eventos do presente – apreendidos pela etnografia.52 Tentamos manter o sentido mais dinâmico do termo “estrutura”, como algo mais próximo de uma matriz intelectual para a criação de novas formas sociopolíticas. Essa alternância ocorreria, via de regra, entre um pólo dispersivo e um pólo centralizador, evitando toda tendência de fixação em um deles, isto é, mantendo-se contrária tanto à configuração de uma interioridade enrijecida como o Estado quanto a uma situação de pulverização total, significando a abolição da toda vida social.

51 Beatriz Perrone-Moisés. “Notas sobre uma certa confederação guianense”. In: Anais do Colóquio “Guiana Ameríndia: Etnologia e História, coordenado por Dominique T. Gallois. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2006. “O mistério das confederações”. Manuscrito inédito, 2008. 52 Beatriz Perrone-Moisés & Renato Sztutman. “Dualismo em perpétuo desequilíbrio feito política”. Manuscrito inédito.

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Como demonstrei em minha tese de doutorado, que partia da reconsideração dos materiais sobre os antigos Tupi para propor uma comparação mais ampla com outros materiais históricos e etnográficos, profetas e chefes de guerra emergiam em diferentes momentos da história colonial não para apontar o caminho inelutável para o Estado, mas para prefigurar o perigo que representa a irrupção do poder político coercitivo; em suma, para provocar uma espécie vertigem. Esses personagens assinalavam o limite da “sociedade contra o Estado” como imaginada por Clastres, mas de modo algum o seu fim. Revelavam, assim, uma dinâmica muito própria ao modo ameríndio de fazer e desfazer pessoas e coletivos, modo que não se confinava a um patamar puramente humano, mas que se inscrevia numa cosmopolítica, na qual o xamanismo se inscrevia como peça crucial.53 Para terminar essa apresentação, gostaria de discutir a maneira pela qual toda essa discussão sobre política e sobre poder pode conduzir a algumas reflexões recentes de Eduardo Viveiros de Castro sobre o chamado “perspectivismo ameríndio”.54 Haveria, e ele mesmo a enuncia, uma aproximação entre a idéia clastreana da “sociedade contra o Estado” e o pensamento “perspectivista” dos ameríndios, pensamento que recusa a subjetividade como posição fixa e que a distribui pelo cosmos, para além do lugar disso que nós, modernos, chamamos de “humanidade”. Isso que chamamos de “natureza” seria, para eles, povoado por diferentes subjetividades que, de sua parte, veriam o mundo da mesma maneira que os membros da espécie humana, isto é, como ocupando uma posição de sujeito. Escreve o autor no recente Posfácio de Arqueologia da violência que “o perspectivismo, enfim, é a cosmologia contra o Estado. Essa cosmologia se radica na composição ontológica do mundo mítico, aquela ‘exterioridade’ originária para onde estariam projetos os fundamentos da sociedade. Este mundo mítico, contudo, não é realmente exterior, nem interior, nem presente nem 53 Ver Renato Sztutman. O profeta e o principal, op. cit. E “Le vertige des prophètes et guerriers sauvages”, op. cit. 54 A aproximação entre o perspectivismo ameríndio e a ideia de “contra o Estado” está muito presente também no livro de Tânia Stolze Lima, Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva (São Paulo: Ed. Da Unesp/ISA/NuTI, 2005). Infelizmente, não haverá espaço para recuperar este argumento aqui.

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passado, porque é ambos. [...] É assim na esfera virtual do ‘religioso’ que o conceito de sociedade contra o Estado ganha sua verdadeira endo-consistência, ou diferença etnográfica. Clastres nos levou quase lá. Ninguém poderia ter feito melhor; estaremos sempre quase em algum outro lugar”.55 Segundo Viveiros de Castro, este pensamento perspectivista, que não deixa de ser uma forma de ação sobre o mundo, revela uma tendência a estados de “quasidade” em contraste com os estados de unificação e fixidez. Ao interrogarmos, numa entrevista recente, este autor sobre o que seria, afinal, o Estado para os ameríndios – se é mesmo possível falar de tal entidade entre eles – ele nos respondeu o seguinte: a “larva do Estado” seria constituída pelos espíritos, as alteridades, os seres sobrenaturais, que tem o poder de contra-determinar os humanos, de subtrair suas humanidades, ao reduzi-las a entidades não-humanas. Em suma, ao sujeitá-los. O autor sugere que as narrativas sobre os encontros com o sobrenatural poderiam ser qualificadas de “quase-eventos”, pois aquele que sobrevive a esses eventos “quase” perdeu sua humanidade, “quase” sucumbiu ao chamado dos seres do outro mundo. Mas, finalmente, ele foi salvo e pôde contar aos outros o que lhe aconteceu. Viveiros de Castro conclui então: “O sobrenatural não é o imaginário, não é o que acontece num outro mundo. É o que ‘quase’ aconteceu no nosso mundo, e o que o transforma em um ‘quase’-outro mundo”.56 No sentido sinalizado por Viveiros de Castro, o poder político, o Estado clastreano seria, para os ameríndios, o que “quase-acontece”, o que “quase-se-realiza”, mas que não acontece, não se realiza, pois é inibido. Os ameríndios parecem, nesse sentido, recusar a possibilidade que alguma pessoa, que algum órgão detenha verdadeiramente o poder de submeter, de assujeitar os outros. Em vez disso, poderes pulverizados permaneceriam dispersos no cosmos e na sociedade, aguardando para serem parcialmente apropriados. Essa situação se prolongaria desde as relações entre os ho55 “Posfácio”, op. cit; pgs. 43-44. 56 �������������������������������������������������������������������������������������������������� Eduardo Viveiros de Castro. « �������������������������������������������������������������������� Uma boa política é aquela que multiplica os possíveis (entrevista a Renato Sztutman e Stelio Marras)», Sztutman, Renato (org.). Eduardo Viveiros de Castro: entrevistas, Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2008, p. 238.

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mens até as relações entre os homens e os seres do outro mundo. Eu acrescentaria, aliás, o fato de que, para os ameríndios, o sobrenatural, o Exterior, a alteridade mais radical – essa que encarna a figura do perigo necessário para a fabricação de pessoas e coletivos – deve ser pulverizado de modo que não seja capturado por um órgão político separado e autônomo, pois a sua captura significaria o famigerado mau encontro – este que conduz do “quase” ao “absoluto”, da vertigem à queda. Trata-se, assim, e de uma maneira bastante ameríndia, de recusar as formas absolutas em favor das “quase-formações”, de recusar a transcendência num esforço de tornar as forças imanentes. As pistas de Viveiros de Castro podem então nos fazer pensar que o “contra o Estado” clastreano deve também incluir o “quase-Estado”, e assim a imagem de figuras subjetivas “quase-despóticas”, como determinados chefes, “quase-sacerdotais”, como determinados xamãs e profetas, podem ser mais bem compreendidas em um quadro no qual os mecanismos sociais antecipam e conjuram a transcendência do poder político. O “quase” integraria o “contra” na medida em que ele imprimiria uma forma ao perigo que deve ser evitado. Sob esse ponto de vista, as sociedades contra o Estado revelam-se socialidades da vertigem: elas enfrentam o grande perigo ao imprimir nele formas subjetivas, sensíveis e narrativas. Tudo se passa como se fosse preciso expressar o perigo, representá-lo e mesmo personificá-lo; só assim ele ganhará a forma necessária para que possa, enfim, ser conjurado. Essas reflexões rápidas sobre o “quase-Estado” e sua cosmopolítica permitem encontrar entre os ameríndios modos originais de responder a possíveis irrupções do poder político coercitivo. Tal possibilidade estaria dada desde sempre, porém se tornaria mais aguçada nos tempos atuais, quando das interações menos ou mais tensas e intensas entre os povos indígenas e o Estado-nação moderno. Nesse sentido, é possível reler a obra de Pierre Clastres tendo em vista o momento mais contemporâneo desses povos. E é preciso pensar a experiência mais contemporânea desses povos a partir de suas respostas originais, e não simplesmente como a conformação

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a uma nova política, à qual eles permaneceriam alheios. A política indígena só pode ser compreendida em seus termos, mesmo quando ela se aproxima e quase se confunde com a nossa política. Ela quase se confunde, mas não se confunde, pois nesse quase haverá sempre um contra. E essa será sempre uma lição clastreana.

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ANTAGONISMO EM PROCESSO: UMA APROXIMAÇÃO À GUERRA YANOMAMI1 Rogerio Duarte do Pateo2

Abordar os conflitos intercomunitários entre os Yanomami não é uma tarefa fácil. Desde os anos 1960, diferentes modelos analíticos foram elaborados buscando a compreensão do fenômeno, em um longo debate acadêmico que ficou conhecido como “a querela Yanomami” (Fausto, 1999). Nesse debate, a imagem dos Yanomami como “fierce people” perdurou durante muitos anos, sobretudo entre os leitores norteamericanos. Em abordagens mais recentes, esses conflitos tem sido encarados como decorrências da desestruturação de relações políticas pacíficas entre as diversas comunidades, supostamente produzidas pela competição por bens industrializados inseridos entre eles de forma descontrolada3. Por meio da análise de dados coletados entre os Yanomami habitantes da Serra das Surucucus (RR/Brasil), pretendo mostrar como as relações sociopolíticas entre diferentes comunidades se transformam ao longo do tempo segundo um “ciclo de desenvolvimento das relações de antagonismo”, relacionando-se à ocupação do espaço e à definição de unidades sociais em sua interface com os funerais e o universo cosmológico. Para tanto, é necessário retomarmos os elementos centrais que regem as relações intercomunitárias entre os Yanomami. Proximidade / distância

Viveiros de Castro (2002) nota que o gradiente “proximidade/distância” é um aspecto fundamental dos sistemas amazônicos, infletindo de 1 Este artigo é uma edição de parte de minha tese de doutoramento ainda não publicada. Para a versao integral ver Duarte do Pateo, 2005. 2 Professor adjunto do departamento de Ciências Sociais da UFMG 3 Sobre esse modelo ver sobretudo Ferguson 1995.

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maneira decisiva sobre as terminologias de parentesco, sobretudo aquelas de tipo dravidiano. Segundo ele, a superposição desse gradiente ao contraste binário entre consanguíneos e afins se realiza em um regime concêntrico, potencialmente ternário e graduável. De acordo com uma noção cromática de “graus de alteridade”, esse sistema concêntrico possui um dinamismo específico que permite a transição das pessoas entre as diferentes categorias. Entre os Yanomami, Bruce Albert (1985) mostra como a classificação das relações intercomunitárias, somadas à organização social e ao sistema etiológico, fornecem a base para a compreensão da filosofia política envolvida em todo o sistema de agressões. Essas classificações articulam uma teoria patogênica ― ligada ao sistema de agressão/predação ― com um sistema ritual canibal (exo e endo), partilhado por matadores e sepultadores das vítimas. As relações entre a teoria patogênica e os princípios da predação articulam a trama de um espaço social que constitui um verdadeiro sistema de comunicação intercomunitário, integrando os múltiplos elementos envolvidos na representação e na organização de disjunções e transações que fundam a ordem sociopolítica e a simbolização dos constituintes biológicos e metafísicos dos indivíduos.

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A cada uma dessas categorias corresponde uma série de atributos patogênicos específicos, em geral diagnosticados como a origem da maioria das doenças e das mortes ocorridas entre os Yanomami. Assim, as agressões simbólicas de origem humana são intimamente relacionadas à classificação das categorias de alteridade sociopolítica (Albert, 1985; 1992). Analiticamente, podemos distinguir duas formas de atuação que movimentam o sistema de agressões Yanomami: agressões efetivas, por um lado, e agressões simbólicas, por outro. É importante notar, entretanto, que ambos os tipos de agressão são considerados equivalentes pelos Yanomami, que não fazem distinções qualitativas entre eles. Agressões efetivas

As relações de agressão entre dois ou mais grupos de população geralmente se iniciam com a degeneração progressiva das relações de amizade e aliança estabelecidas entre eles durante um determinado período. A fim de infligir ao adversário o mesmo sofrimento causado pela perda de um ente querido (Alès, 1984; Lizot, 1984), a retaliação inicia-se em conexão com um complexo sistema funerário, causando, por um lado, o distanciamento entre as comunidades em conflito, e, por outro, a aproximação das comunidades aliadas em ambos os lados da disputa (Lizot, 1988). A médio e longo prazos, este sistema permite a reestruturação da geopolítica entre os diferentes grupos. Em outras palavras, nada impede que os aliados de hoje sejam os inimigos de amanhã, e vice-versa. As incursões guerreiras são sempre compreendidas como um movimento de retaliação contra alguma agressão anterior, seja ela efetiva ou simbólica, e geralmente se iniciam no interior de um ritual funerário intercomunitário (reahumu) no qual a vingança ― indispensável para uma correta concretização do funeral ― é combinada entre os aliados. O reide se inicia com a realização do ritual guerreiro watupamu (agir como o urubu), que é marcado pela intervenção de todos os xamãs presentes sobre os guerreiros que participarão da incursão em território

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inimigo. Sua ação busca anular a influência nefasta dos princípios sobrenaturais do sono (manaxiripë) e da inabilidade com o arco e flecha (siraripë). Sua intervenção promove também a incorporação de diversas imagens vitais (utupë) de animais e entidades mitológicas, garantindo que as habilidades e disposições relacionadas a elas favorecerão os guerreiros em sua empreitada (Albert, 1985:353-354). O watupamu é, antes de tudo, a encenação da devoração simbólica da carne do inimigo. Para isso, são usadas imagens vitais de animais e insetos necrófagos como mediadores entre a ação dos guerreiros e a posterior digestão simbólica de suas vítimas. Imitando os sons do urubu (ho...ho...ho), todos os participantes enfileiram-se (wayu ithou) no pátio central esperando que um dos mais experientes homens da aldeia confirme, por um grito direcionado ao inimigo, o sucesso do futuro reide. Todos fazem uma grande algazarra quando ouvem, vindo da floresta, o som emitido pela imagem vital de seu oponente. As mulheres depositam, às margens da trilha que leva à região inimiga, os alimentos e pertences necessários para a realização da expedição. Enquanto isso, os guerreiros encerram a encenação depositando alguns ossos de animais no centro da aldeia, concretizando assim a devoração simbólica da futura vítima. Depois de uma boa noite de sono, partem logo cedo em direção a seu destino. Durante o caminho, encenam novamente um combate, no qual um pacote de folhas ou um tronco de árvore representando um corpo humano é flechado por todos, como antecipando o sucesso da incursão. Já próximos a seu destino final, os guerreiros cobrem-se com um pigmento preto produzido com restos de carvão e espalham-se no entorno do local escolhido para o ataque ― geralmente uma roça ou a própria habitação coletiva dos inimigos. Ocultos pela escuridão da noite, dissimulam-se entre os arbustos disponíveis, mantendo os olhos atentos a qualquer movimento que determine o momento ideal para o ataque. Podem ficar imóveis durante horas, aguardando essa oportunidade. Suas vítimas são escolhidas com antecedência. Podem ser homens importantes ou guerreiros valoro-

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sos. Os responsáveis por agressões anteriores ao grupo atacante também são prioridade, mas no caso de nenhuma das vítimas pré-selecionadas estar disponível, qualquer homem adulto pode ser morto em seu lugar. As mulheres são rigorosamente excluídas dos confrontos, sendo atingidas apenas por acidente. Logo após efetuar o ataque, os guerreiros fogem rapidamente para suas habitações de origem, buscando escapar da retaliação imediata de seus inimigos. Ao ocorrer a morte, os responsáveis pelos disparos recolhem-se em um local isolado a fim de realizar o ritual de purificação do matador (unokaemu). Como nos mostrou Albert (1985), entre os Yanomami, os conflitos intercomunitários ― assim como o sistema etiológico ― baseiam-se numa teoria de agressão canibal na qual a devoração ontológica e a devoração física são descritas na forma de um processo simbólico único. A morte do inimigo, levada a cabo por agressões efetivas ou simbólicas, implica a purificação do matador por meio de rituais que visam a impedir o colapso temporal e cosmológico relacionado à contiguidade com o excesso do sangue da vítima. A morte de um inimigo é concebida como um verdadeiro canibalismo simbólico, deixando o matador em um estado ritual de homicídio (unokae), que se caracteriza por uma marca/dívida de sangue (unokë), que o obriga a passar pelo rito de reclusão chamado unokaemu4. Depois de terminado o reide, o matador sente-se impregnado pelo gosto e o cheiro do sangue da vítima, e perde a consciência de seus atos, sendo considerado “sobrenaturalmente” marcado. A imagem vital do urubu, invocada nos rituais que precedem a incursão guerreira, é neste caso concebida como se alimentando do cadáver da vítima, permitindo ao matador a manutenção de sua integridade, tanto ontológica quanto biológica. No nível ontológico, a integridade do matador é ameaçada pela absorção do sangue/imagem vital exógeno e pela confusão de sua identidade individual com a identidade da vítima, enquanto sua in4 Para uma descrição detalhada e análise do ritual de reclusão do guerreiro Yanomami ver principalmente Albert, 1985, cap XI – principal fonte para este texto. Ver também Lizot, 1996.

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tegridade biológica é ameaçada pela aceleração do envelhecimento decorrente dessa absorção (Albert, 1985). No sistema de agressões Yanomami, longe de serem consideradas isoladamente decorrências da penetração de fatores exógenos no interior da sociedade, as mortes decorrentes de conflitos efetivos são inseridas em uma espécie de “triângulo culinário canibal” (Albert, 1992:159-160). Esse sistema articula a omofagia selvagem de espíritos maléficos, a omofagia ritualizada dos inimigos que devoram simbolicamente a carne em putrefação de suas vítimas, e a osteofagia “culinária” e cerimonial dos aliados, convidados a consumir ritualmente as cinzas dos ossos dos mortos dos anfitriões nos grandes festivais funerários intercomunitários. Conflitos abertos são raros, mas não inexistentes. Além das emboscadas, os atacantes podem utilizar-se de chuvas de flechas, e às vezes do fogo em situações nas quais a escalada da violência se intensifica demasiadamente. Agressões simbólicas

Ainda segundo Albert (1985), existem quatro tipos de agressões simbólicas: a feitiçaria de aliança, a feitiçaria guerreira, o xamanismo agressivo e a agressão ao duplo animal. A primeira delas, a feitiçaria de aliança, opera no interior do conjunto multicomunitário, atingindo todos os grupos classificados como amigos (nohimotimë thëpë). Duas de suas formas mais corriqueiras (a feitiçaria amorosa e a feitiçaria comum) possuem efeitos menores e são utilizadas em desentendimentos entre pessoas de sexos diferentes, ou ligados a questões econômicas e matrimoniais. Apenas a terceira forma de feitiçaria de aliança (a feitiçaria por captura de rastro) possui uma letalidade potencial. Geralmente, esse tipo de agressão é utilizado por pessoas ou grupos em posição intermediária entre os co-residentes e os inimigos. Podem ser os aliados em regime de uxorilocalidade (principalmente durante o serviço da noiva), os aliados políticos com os quais não há mais trocas matrimoniais,

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ou ainda os aliados de aliados, que geralmente utilizam-se de terceiros para a efetivação da agressão. Para sua elaboração, restos usados de tabaco ou a terra das pegadas deixadas pela vítima nas trilhas da floresta são recolhidos e embrulhados em um pacote de folhas juntamente com substâncias de feitiçaria. O resultado são inchaços, dores etc. Sua letalidade é garantida quando o pequeno embrulho contendo os rastros da vítima é submetido às mordidas de uma serpente venenosa. Como a feitiçaria de rastro vai de encontro à regra fundamental de ausência de feitiçaria letal no interior do conjunto de aliados, o rastro recolhido por alguém no interior do grupo é, em seguida, repassado a um grupo inimigo, no qual o feitiço é preparado. A feitiçaria de rastro é executada por co-residentes que são “outra gente” (afins efetivos em regime de uxorilocalidade) e é efetivada por inimigos, que se interpõem utilizando suas habilidades no tratamento letal do rastro. Esse tipo de feitiçaria geralmente opera sobre posições intersticiais, concretizando uma forma transicional entre a feitiçaria comum (não letal) e a feitiçaria guerreira (entre inimigos) (Albert, 1985). A feitiçaria de rastro é concebida como uma espécie de predação figurada, e seu autor, da mesma forma que os responsáveis por mortes decorrentes de agressões físicas, passa pelo ritual de purificação do guerreiro (unokaemu). A feitiçaria guerreira, por seu turno, é realizada a partir de incursões secretas (okara huu) efetuadas por um pequeno grupo de homens (okapë) até uma aldeia inimiga distante, a fim de atingir, individual ou coletivamente, seus membros. Para isso são utilizadas diferentes técnicas. Durante o dia, os okapë aproximam-se o máximo possível da habitação de seus inimigos, tentando evitar que alguém dê o alerta, denunciando sua presença. A vítima escolhida é sempre uma pessoa solitária, entretida em alguma atividade a certa distância da casa coletiva. O feiticeiro inimigo esconde-se na vegetação e, por meio de uma zarabatana (horomë a), assopra na nuca da vítima uma pequena flecha envenenada com substâncias de feitiçaria. Os efeitos do veneno são imediatamente sentidos, provocando

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mal-estar, uma alteração na consciência e uma dor intensa no local atingido. Nesse momento, o agressor ataca sua vítima fisicamente, quebrando-lhe a coluna vertebral e os membros, provocando, por meio da destruição do corpo físico e espiritual, sua morte imediata. Da mesma forma que os guerreiros comuns, os okapë fazem uma imitação do urubu (watupamu) quando constatam a destruição de seu inimigo, e retornam, em seguida, para suas casas. Caso os okapë não consigam se aproximar da vítima envenenada, ela pode ser facilmente retirada de seu estado alterado de consciência mediante uma cura xamânica. O feiticeiro pode optar também por “remontar” os ossos de sua vítima, apagando magicamente os traços de sua ação. A vítima, sem a memória da agressão sofrida, transforma-se em um “morto-vivo”, definhando progressivamente no interior de sua habitação. A onipresença dos okapë é cotidiana, e as pessoas evitam ausentar-se sozinhas por muito tempo ou deixar velhos e mulheres a sós. Durante a noite, o ataque dos okapë se dá, sobretudo, por meio do uso de uma substância de feitiçaria identificada por Albert como paxoukë, confeccionada com pêlos de diversas partes do corpo do macaco-aranha (Ateles belzebuth) ou paxo a. Nesse preparado, os pêlos de macaco são misturados a substâncias de feitiçaria comum e despejados secretamente em alimentos líquidos a serem consumidos pela vítima, o que provoca uma diarréia violenta, acompanhada de desidratação e emagrecimento. Para concretizar sua ação, os okapë entram sorrateiramente na casa de seus inimigos ou introduzem o braço pelas frestas, envenenando a água e outros alimentos líquidos deixados sem proteção. A última forma de agressão associada à ação dos okapë é a disseminação de graves epidemias entre os inimigos. Jogando venenos e substâncias mágicas em uma fogueira acesa nas proximidades da habitação de suas vítimas, os okapë buscam produzir sua contaminação pela liberação de poderes maléficos na forma de fumaças deletérias (xawara wakëxi). Albert (1985) nota ainda que as incursões de feitiçaria guerreira (okara huu) põem em evidência o caráter estrutural e institucional da hos-

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tilidade entre os grupos que se situam além do conjunto multicomunitário de aliados. Suas características intrínsecas confirmam a associação da feitiçaria dos okapë aos reides efetivos, identificados como caracteres homólogos e complementares no pensamento Yanomami. Ambas as formas de agressão são intercambiáveis e possuem campos sociopolíticos idênticos; utilizadas contra inimigos próximos e igualmente letais. A feitiçaria guerreira opera como uma forma latente de conflito, perenizando o estado de guerra entre conjuntos multicomunitários inimigos. Acusações de feitiçaria guerreira podem iniciar ou reabrir ciclos de vingança, pois cada morte atribuída à ação dos okapë pode ser retaliada pela realização de incursões de feitiçaria ou pela organização de um reide de desforra. Em resumo, a agressão por feitiçaria guerreira e sua retaliação por meio de uma incursão armada são consideradas termos intercambiáveis de uma transação ritual na qual repousa toda a ideologia Yanomami da vingança, expressa pelo termo unokai nomihiai (fazer-se reciprocamente entrar no estado ritual de homicida). As duas últimas formas de agressão simbólica ― o xamanismo agressivo e a agressão ao duplo animal ― ultrapassam a esfera das interações políticas efetivas, sendo aplicadas contra inimigos antigos ou virtuais e contra inimigos desconhecidos, localizados a distâncias inatingíveis. O xamanismo agressivo ocorre mediante a ação de espíritos auxiliares (xaporipë ou hekurapë) convocados, durante um transe alucinógeno, pelos cantos e coreografias relacionadas a cada um deles. A maioria dos hekurapë é composta por espíritos de animais ou réplicas de entidades sobrenaturais, que se apresentam aos xamãs como seres humanos em miniatura subordinados a sua vontade. Cada espírito auxiliar possui um princípio agressivo sobrenatural, que é utilizado pelo xamã para atacar a imagem vital dos membros de uma comunidade inimiga, ou, no caso de uma ação curativa, extrair ou destruir os objetos patogênicos que afetam os membros das comunidades aliadas. A segunda forma de ação do xamanismo agressivo diz respeito, como vimos acima, ao apoio às incursões guerreiras, voltada a preparar a chegada

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dos wayupë (guerreiros) e a neutralizar antecipadamente seus adversários. A agressão xamânica e a agressão guerreira são concebidas como formas de predação canibal figurada, e, como nos casos anteriores, criam a necessidade da realização do rito de purificação do matador (unokaemu). Enfim, a agressão ao duplo animal encerra a descrição de Bruce Albert sobre as formas de agressão simbólica entre os Yanomami. O duplo animal, um dos constituintes da pessoa, habita regiões ocupadas por grupos distantes e potencialmente hostis com os quais não há nenhum tipo de interação social direta (tanomai thëpë). Ele pode ser atingido em caçadas coletivas ou por ações de feitiçaria. As agressões ao duplo animal são diagnosticadas pelos xamãs e geralmente imputadas às comunidades distantes. Nesses casos, um parente de alguma vítima desse tipo de ataque se encarrega de flechar um animal considerado alter-ego de um membro da comunidade agressora. É importante notar, no entanto, que após a execução do animal-imagem inimigo, o caçador também passa pelo ritual unokaemu. Guerras e devorações

Analisando as diferentes formas que compõem o sistema de agressão Yanomami, Albert nota que o xamanismo agressivo e os combates efetivos são estritamente interdependentes. Ambos são associados no pensamento e na ação, uma vez que o xamanismo agressivo realiza-se mediante combates invisíveis a distância, enquanto os combates efetivos sustentam-se pela ação xamânica. O emprego de uma ou de outra forma de agressão depende da distância geográfica dos inimigos. Quando estes estão localizados muito longe, fora do raio de ação dos guerreiros, o sistema de agressão movimenta-se por meio do xamanismo agressivo. Quando os conflitos se dão entre inimigos próximos, o xamanismo intervém de maneira subordinada. De qualquer maneira, ambas operam em uma esfera sociopolítica homogênea, situada entre os aliados (nohimotimë thëpë) e os desconhecidos (tanomai thëpë), que são os inimigos potenciais (atuais, virtuais ou antigos).

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O xamanismo agressivo aproxima-se também da feitiçaria guerreira dos okapë, pois ambos substituem o enfrentamento aberto, operando de forma simétrica e inversa: enquanto o okara huu caracteriza-se por uma incursão secreta de humanos em busca de vítimas relativamente próximas, o xapori huu (sair na forma de espírito xamânico) é baseado no envio de entidades sobrenaturais invisíveis ao encontro de vítimas relativamente distantes. Nesse modelo, a “guerra” não se reduz a seu aspecto de violência armada coletiva. Ela constitui uma indissociável combinação político-simbólica de três formas fundamentais de troca de agressões entre inimigos de diversos tipos: incursões guerreiras (wayu huu), incursões de feitiçaria (okara huu) e xamanismo agressivo (xapori huu). Assim, as trocas de violências efetivas ou simbólicas se fundamentam, em última instância, sobre um plano ritual baseado em um sistema de trocas de predações figuradas, concretizadas pelo exo-canibalismo guerreiro efetivado no rito de homicídio unokaemu. O modelo desenvolvido por Albert demonstra a existência de um sistema que articula, de maneira coesa, as agressões efetivas com as agressões simbólicas, fornecendo a base de significação que orienta a ação dos Yanomami na esfera intercomunitária. A seguir tentarei mostrar, por meio da apresentação de casos etnográficos, como as especificidades das diferentes formas de agressão efetiva se inserem nesse horizonte, e como um padrão recorrente de distanciamento e reaproximação, derivado das relações de antagonismo, torna visível um ciclo de desenvolvimento dos conflitos. Os conflitos em Surucucus A região da Serra das Surucucus está localizada no coração da Terra Indígena Yanomami, a leste da Serra Parima, região oeste do Estado de Roraima. Sua geografia é marcada por uma dezena de formações granilíticas em torno de um platô de topo plano com altitude em torno de 1.000 metros e paredes abruptas. A área imediatamente ao redor do platô possui um solo arenoso e um relevo acidentado repleto de serras e vales entrecortados por inume-

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ráveis cursos d’água que compõem as bacias dos rios Parima, a oeste, e Mucajaí, ao sul. O relevo montanhoso é intensamente ocupado, abrigando unidades residenciais e roças que parecem apoiar-se em paredões de pedra ou em barrancos inclinados. Ao todo, foram observados na região estudada pelo menos cinco “grupos edogâmicos de vizinhança”, compostos por unidades domésticas dispersas, de tamanhos variados, ligadas por relações histórico-demográficas e pela perpetuação de alianças matrimoniais. Esses conjuntos não são institucionalmente explícitos e não recebem nomes que os identifiquem como grupos corporados ao longo do tempo. Cada unidade residencial que compõe o conjunto considera-se econômica e politicamente autônoma, solidarizando-se com as demais em momentos de conflito e guardando uma idéia de proximidade em geral traduzida pela expressão kami yamaki (nós), em oposição a xomi thëpë (outras pessoas)5. O pertencimento a esses grupos se dá a partir da ocupação coletiva de áreas identificadas por referências toponímicas. Mesmo não sendo nomeadas ou formalmente delimitadas, essas áreas são reconhecidas pelos conjuntos vizinhos e designadas pela categoria urihi (terra/floresta)6 . A composição dos grupos endogâmicos de vizinhança é alterada constantemente, seguindo o movimento das unidades residenciais que se deslocam por sua região devido a questões econômicas (abertura de novas roças/escassez de recursos faunísticos) ou políticas (intensificação ou relaxamento dos conflitos). Nessa movimentação, membros de um mesmo conjunto podem se unir em uma casa coletiva (xapono), ou optar pelo isolamento, posicionando-se em relação às unidades mais populosas ― do ponto de vista geográfico e político ―, segundo critérios pessoais ligados à 5 Apesar de identificarem os membros de um mesmo grupo endogâmico de vizinhança, esses termos possuem um caráter correlativo e contextual, e podem ser empregados para designar relações diversas (Alès, 1990). A utlização de categorias de alteridade que opõe nós/outros entre os Yanomami foi analisada por diversos autores. Ver principalmente: Albert, 1985:cap.VII; Ramos, 1990:96-98; Chagnon, 1968; Colchester, 1982:161-166; Lizot, 1988, 1984a, 1984b; Alès, 1990. 6 O campo semântico da idéia de urihi compreende categorias histórico políticas inclusivas e contextuais, como a região natal ou de residência de um indivíduo (ipa urihi), região de origem ou de ocupação de uma comunidade (kami yamak+ urihipë), o habitat dos seres humanos (yanomam thepë urihipë), em oposição ao dos estrangeiros, inimigos, ou brancos (napë thepë urihipë) (Albert, 2001)

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preservação da autonomia, à distância de suas roças ou à segurança contra investidas inimigas7. O relacionamento entre os conjuntos não é estanque, podendo variar entre a aliança e o antagonismo. A transformação nas relações entre eles obedece a um ciclo de desenvolvimento das agressões que será analisado abaixo, e segundo o qual as alianças, geralmente consolidadas por poucos e frágeis casamentos, estão com frequência sujeitas a boatos e intrigas8, que reaquecem a memória de conflitos antigos e alimentam acusações de feitiçaria, roubo e adultério. Nesses casos, as relações de aliança podem, a qualquer momento, degenerar em violência explícita, e, em caso de morte, converter-se em relações de inimizade. A reconstrução da história dos conflitos na serra das Surucucus surgiu nos relatos indígenas espontaneamente, pontuando sem exceção todas as narrativas de deslocamento levantadas durante entrevistas para o preenchimento de fichas individuais sobre as migrações pelo território. Logo nas primeiras tentativas de mapear os deslocamentos e a composição dos grupos locais, pude perceber que a memória desses conflitos funcionava como um instrumento mnemônico coletivo, intrinsecamente ligado aos locais de residência ocupados no passado. Passei então a explorar intencionalmente essa vertente do pensamento Yanomami, podendo assim reconstruir a história desses conflitos desde pelo menos a chegada dos missionários à região, na década de 1960. Algumas passagens importantes puderam ser reconhecidas em uma série de fontes diversas, como relatórios produzidos por equipes de saúde, documentos da Funai e publicações acadêmicas, o que permitiu sua contextualização temporal e sua ligação com aspectos relacionados à presença de não-índios na região. Os acontecimentos expostos a seguir dizem respeito aos conflitos envolvendo grupos endogâmicos de vizinhança conhecidos como Aykam, Roko e Hakoma theri9, além dos grupos que habitam o norte da região. 7 Sobre escolhas pessoais em relação à residência ver Alès, 1990. 8 Para uma análise clássica da importância dos boatos entre os Yanomami, ver Ramos, 1995:235-237. 9 -teri, ou -theri: Sufixo. Agregado a um nome de lugar, designa, com o sentido de “a gente de...”, “os de...”, um grupo social de residência comum. Ex.: warabawë – theri: termo no qual warabawë é o nome de um rio, e –theri significa “os de...” (Lizot, 1975b:84 – tradução minha).

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O Antagonismo Aykam/Maraxi u

O contato permanente dos habitantes da serra das Surucucus com agentes não-indígenas se deu a partir do início da década de 1960, por meio da instalação de uma missão evangélica na região. Ao chegarem ao local, os missionários foram inseridos em um contexto de acirrados conflitos. Sua presença reorientou a direção das redes de troca que anteriormente eram voltadas para a região do Uraricoera ao norte ― devido à presença de outra missão desde 1957 ― e para a região dos rios Toototopi e Catrimani, já nas terras baixas localizadas ao sul, onde o contato com as frentes de expansão da sociedade nacional fornecia bens industrializados, valiosos em toda a região.

Em ocasião da chegada da Meva (Missão Evangélica da Amazônia) à serra das Surucucus, as populações do Roko e Hakoma viviam juntas, principalmente por razões de defesa contra um inimigo comum, os Maraxi u theri, que nesse processo deslocaram-se progressivamente até a região do rio Couto de Magalhães. A união dos Roko theri e dos Hakoma theri em um único assentamento (Tiritirimopi) deu-se após a morte de quatro homens do Roko e do Hakoma em uma emboscada dos Maraxi u theri. A partir de então, a aliança com o bloco dos Aykam theri consolidou-se a fim de concretizar a vingança e expulsar os inimigos.

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Não há como estabelecer uma data precisa para o início das hostilidades entre os habitantes da serra das Surucucus, encabeçados pelos Aykam theri/ Tiritirimopi theri e respectivos aliados, por um lado, e os Maraxi u theri/ Xiriana, por outro. Acredito, no entanto, que tais conflitos possam estar relacionados com a série de hostilidades responsáveis pelo deslocamento de grupos que habitavam a região na virada do século XIX para o XX e que hoje habitam as terras baixas. Todos esses grupos são identificados genericamente pelos moradores do Surucucus como waika pë. O ápice das hostilidades ocorreu em 195910, quando uma epidemia de gripe oriunda de um pequeno grupo de garimpeiros que trabalhavam no Alto Mucajaí atingiu os Kasilapai, identificados pela população do Surucucus como xiriana e aliado dos Maraxi u theri. Cinco pessoas morreram de pneumonia, e, como de praxe, a epidemia foi considerada resultado de feitiçaria. Após uma série de acusações mútuas, os Maraxi u theri repassaram a responsabilidade pelo ocorrido a um terceiro grupo, os Xiri theri, que habitavam as cabeceiras do rio Mayepo u, ao norte do Surucucus, próximo à atual região do Potomatha. Segundo pude verificar, a população dos Xiri theri fazia parte, na época, do conjunto de aliados dos Aykam theri. Em busca de vingança, nove homens do Kasilapai, acompanhados por seus aliados Maraxi u theri, seguiram para o assentamento dos Xiri theri, que nunca haviam tido contato com grupos xiriana. Segundo John F. Peters (1998), a dificuldade de comunicação entre os dois grupos ― falantes de línguas diferentes11 ― teria acirrado os ânimos. Desconfiados, os Xiri theri recusaram-se a oferecer comida aos visitantes, que decidiram então matá-los em retaliação à pneumonia. De acordo com fontes da região da serra das Surucucus, os Maraxi u theri e seus aliados teriam se oferecido para ensinar aos Xiri theri o “deusimu”, que poderíamos traduzir livremente por “rezar”. Como ainda não haviam tido contato direto com os missionários, os Xiri theri resolveram seguir as lições de seus visitantes: 10 A esse respeito ver Early &Peters, 1990: 65 e Peters, 1998: 210-211. Ver também Chagnon, 1966, cap VI e 1997:190). 11 Os Kasilapai e os demais grupos identificados como xiriana são falantes da língua ninam/yanan.

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ajoelharam-se e, com as mãos unidas, fecharam os olhos. Nesse momento, os Maraxi u theri e seus aliados desferiram os ataques. Versões diferentes afirmam que a maioria dos homens foi morta a golpes de terçado, muitos dos quais degolados. Peters, no entanto, apresenta dados mais detalhados. Segundo ele, dois homens foram golpeados com pontas de flecha de bambu (rahaka), um morto a golpes de machado, e um outro, de maneira indeterminada. Dois feridos conseguiram escapar. Os Kasilapai, então, capturaram três mulheres jovens (moko pë), seguidos pelos Maraxi u theri, que capturaram “várias” (Peters, 1998: 210-211). As mulheres levadas pelos Maraxi u theri acabaram, porém, escapando de seus raptores, retornando em seguida à sua aldeia de origem. Ao que parece, as incursões guerreiras empreendidas pela aliança formada entre os Maraxi u theri e os Kasilapai não se restringiram a seus inimigos da serra das Surucucus. Em sua dissertação de mestrado, Ricardo Verdum (1995:106-108) nota que no verão de 1968 (uma década depois do episódio envolvendo os Xiri theri), integrantes de ambos os grupos participaram de um festival intercomunitário realizado pelos moradores do médio rio Ajarani e do rio Repartimento, conhecidos como Yawaripë. Conforme Verdum, sua presença causou nervosismo entre seus anfitriões por terem reputação de violentos e traiçoeiros. Mas principalmente porque eles chegavam armados com espingardas obtidas mediante trocas e serviços prestados aos missionários protestantes. No relato coletado por Verdum, a ação se inicia na manhã do segundo dia da festa, quando os Kasilapai e seus aliados saíram da casa coletiva dizendo que iam caçar wari (queixada). Após algum tempo retornaram dando tiros e flechando homens e rapazes. O número de mortos não foi determinado com exatidão. Cinco mulheres foram raptadas, mas da mesma forma que na emboscada descrita anteriormente, quatro delas conseguiram escapar. Esse ataque teve como consequência direta o deslocamento dos Yawaripë. Parte de sua população buscou refúgio junto aos não-índios que habitavam a BR-174, enquanto o restante optou por descer o rio Ajarani e instalar-se em dois pontos diferentes.

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Este tipo de ação guerreira foi abordada por Chagnon (1968, 1997:2 e 191-ss) a Alès (2000:146) por meio da análise do termo nomohori, traduzido por “traição” ou “ardil”12. Ambos os autores mencionam sua infrequência, considerando-os casos extremos que demarcam o limite máximo dos níveis de violência. Da mesma forma que a feitiçaria de rastro, que, como vimos acima, é realizada com a participação de pessoas ou grupos em posições intermediárias entre os aliados e os inimigos, o nomohori caracteriza-se pelo envolvimento de grupos com posturas políticas ambíguas, os quais, por razões contextuais, optam por apoiar um dos lados da contenda. Esses “falsos aliados” fazem jogo duplo, atraindo para uma cilada o conjunto de inimigos de seus aliados, surpreendendo-os com um ataque inesperado. Mesmo invertendo o modelo “clássico” de nomohori, segundo o qual são os anfitriões que fingem amizade e posteriormente eliminam seus convidados, os Maraxi u theri e seus aliados Xiriana assumiram o papel de aliados intermediários, vitimando ora os Xiri theri, ora os Yawaripë. No mesmo período, os Xiriana tentavam aproximar-se da missão, beneficiando-se assim dos pagamentos dispensados pelos missionários. Os habitantes do Roko, no entanto, encarregavam-se de rechaçá-los. Em um artigo publicado na revista evangélica Brown Gold, o missionário Bill Moore descreve vivamente um combate testemunhado por ele da janela de uma das casas da missão da Meva, na serra das Surucucus: “There has been some shooting near the edge of the post on two different occasions between the Indians. But on June 27, 1973, we had a 3-hour war in our front and side yards between two Uaicá groups” (Moore, 1973).

12 Trick, nos originais. Lizot (1975) apresenta-nos a definição a seguir : subst. nomohõri :

traquenard, traîtrise, fourberie, tromperie. wa nomohõri ha kuni : dis cela pour tromper. vb. trans. nomohõriãi : inviter une personne avec laquelle on feint d’être ami pour la tuer [nomohõrirei, perf.]. nomohõrimou : attirer dans un traquenard, inviter des personnes à une fête pour les tuer et/ou s’emparer des femmes [nomohõrirei, perf.].

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Na tarde de uma segunda-feira, 25 de junho de 1973, um grupo de inimigos dos habitantes do entorno da missão chegaram para visitar, trabalhar e trocar objetos. Os missionários costumavam utilizar a mão-de-obra indígena em troca de bens industrializados. Por não tomarem parte nos conflitos dos Yanomami, deixavam todos se aproximarem na esperança de potencializar sua ação evangelizadora. A princípio, parecia que o grupo de visitantes iria estabelecer boas relações com a população local, mas, na manhã seguinte, as primeiras flechas foram disparadas próximo ao fim da pista de pouso, e o grupo visitante passou o resto do dia perseguindo uma pequena parte dos habitantes locais. Ao retornarem da perseguição, descobriram alguns homens do grupo inimigo escondidos nas proximidades. Iniciou-se uma grande gritaria. Mais flechas voaram, e os homens que estavam de tocaia retornaram para a mata. O grupo que permaneceu próximo à missão passou a noite gritando e cantando. Na manhã seguinte, 27 de junho, uma mulher do grupo vizinho foi enviada com uma mensagem aos visitantes: “nós estamos chegando para enfrentar vocês”. Em vão, os missionários tentaram fazer com que os visitantes retornassem para suas casas a fim de evitar o confronto. Os guerreiros, porém, não lhes deram ouvido, prepararam suas armas e mantiveram-se prontos para enfrentar seus inimigos. Moore conta que logo após seu almoço, ouviu gritos do lado de fora da casa. O grupo que habitava as cercanias da missão havia chegado para combater os visitantes: “As we looked out our windows we saw hundreds of arrows falling from the sky”. Os enfrentamentos se deram na pista de pouso, a cerca de 100 metros de distância das instalações da missão. Depois de uma hora de conflito, o grupo visitante recuou a fim de se proteger no entorno da casa, onde o combate continuou. Após uma flecha furar o telhado e cair bem no meio da sala dos missionários, os índios começaram a se ferir. Primeiramente, um deles foi atingido na mão; um outro, além de na mão, recebeu uma flechada nas costas.

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Ao todo, quatro guerreiros foram alvejados. O confronto se encerrou com a retirada do grupo do local para suas casas, deixando para trás os inimigos, que tiveram seus ferimentos tratados pelos missionários e rapidamente retornaram à sua região de origem. Os conflitos envolvendo as populações do Surucucus e seus inimigos Maraxi u theri estenderam-se por mais de uma década, quando mudanças na situação de contato causaram o aumento da letalidade dos enfrentamentos. O Surgimento dos Tëpëxina hiopë theri

Com a chegada dos primeiros garimpeiros à região e a saída dos missionários em 1976, o cenário sociopolítico da serra das Surucucus foi reestruturado. Paralelamente, os conflitos foram intensificados em decorrência da inserção de armas de fogo de forma descontrolada. Entre os Yanomami, toda agressão é inserida em um rígido conjunto de códigos de formalização da violência, e cada morte produz a necessidade da vingança. Normalmente, o arcabouço simbólico é acessado e manipulado de maneira criativa, fazendo com que poucas mortes ― sejam elas decorrentes de ataques efetivos ou de acusações de feitiçaria ― movimentem seu ciclo ritual durante anos, fomentando alianças, reides e festivais funerários intercomunitários. A potencialização da letalidade dos ataques pela proliferação das espingardas, no entanto, fez com que as agressões fugissem ao controle dos próprios Yanomami. Grupos inimigos tornaram-se reféns de intensos e incessantes ciclos de vingança, intensificados pela produção de um número de vítimas muito maior em relação ao período no qual apenas flechas, além dos mecanismos de agressão xamâmica e feitiçaria guerreira, eram utilizadas. No mesmo período, um conflito destruiu a aliança entre os Aykam theri e a população do Tiritirimopi. Após um reahumu ― o festival funerário intercomunitário Yanomami ―, um Aykam theri morreu em decorrência de uma epidemia (xawara), e os Roko theri foram acusados de feitiçaria. Houve então um duelo de va-

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ras, e outro Aykam theri acabou morrendo em consequência dos ferimentos. A vingança foi imediata e um homem do Roko foi morto por uma flechada. As proporções do conflito logo atingiram os aliados dos Tiritirimopi theri, provocando sua grande migração em direção ao Tëpëxina u, importante rio localizado ao norte da serra das Surucucus. Uma vez habitando essa região, os Roko theri e seus aliados do Hakoma sofreram uma série de ataques oriundos do Potomatha, um conjunto de assentamentos que na época compunha o grupo de aliados dos Aykam theri. Esses ataques acabaram provocando o deslocamento dos dois grupos para a região do Hakoma, e, após uma fissão causada por uma morte decorrente de relações extraconjugais, a reocupação do Roko e o encerramento dos conflitos. Década de 1990

Na segunda metade dos anos 1990, uma série de novos conflitos voltou a modificar o mapa das relações políticas na região do Surucucus. Após a dissolução da aliança entre os Aykam theri e os Tiritirimopë theri, foi a vez dos grupos que habitam o norte da serra ― Potomatha e Moxahi theri ― distanciarem-se de seus antigos aliados, os Aykam theri. A origem do conflito com os grupos do Potomatha se deu depois de alguns de seus guerreiros atacarem um homem do Mayepo u ― cujos habitantes são aliados históricos dos Aykam theri – e roubarem seus pertences, incluindo uma série de objetos industrializados que haviam sido trocados com os brancos. Em resposta, alguns Pirisi theri dispararam tiros de calibre 20 contra quatro moradores da região do Potomatha13, após um duelo de varas ocorrido dia 8 de maio de 1996. No dia seguinte ao incidente, veio a vingança. Um grupo de homens do Potomatha permaneceu escondido, durante toda a noite chuvosa, entre os arbustos ao lado da pista de pouso de Surucucus, com os olhos pregados na porta de um pequeno xapono denominado Manakasi hami. Ao amanhecer, um de seus morado13 Na realidade, apenas uma mulher e uma criança foram transferidas para Boa Vista em decorrência desses disparos, onde se recuperaram. A esse respeito ver Pellegrini, 1998: 107-110

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res saiu para urinar e foi alvejado pelos guerreiros, que desapareceram em seguida rumo à segurança de sua casa. Essa morte causou uma comoção geral entre os aliados dos Aykam theri, atraindo pessoas de todas as regiões para seu funeral. A partir de então, a inimizade entre os dois grupos tornou-se ferrenha, sustentando-se ao longo dos anos por meio de reides recíprocos. O acirramento das relações de antagonismo com os Moxahi theri, por sua vez, ocorreu de forma mais gradual, culminando em acusações de feitiçaria que levaram ao início dos conflitos propriamente ditos. Pelo menos desde a grande aliança formada para combater os Maraxiu theri, os Aykam theri mantinham relações de amizade com os habitantes do Moxahi. Essas relações, no entanto, revelaram-se frágeis, sendo marcadas por constantes acusações recíprocas de roubo e fuga de mulheres. Por volta de 1997, a morte de um jovem nascido nessa região fomentou o início do ciclo de vinganças. Anos antes, seu pai fora morto por grupos do sul da região durante uma visita ao Surucucus. O jovem, na ocasião criança, foi “adotado” pelos Pirisi theri; cresceu e casou-se entre eles. Em determinado momento, porém, seu pai adotivo foi removido para Boa Vista para tratamento de saúde, e os demais habitantes do Pirisi passaram a atormentá-lo, fazendo-o decidir pelo retorno à sua região de origem. Logo após sua chegada ao Moxahi, o jovem foi vítima de um acidente ofídico, que o levou a morte. No mesmo período, seu “pai” Pirisi theri retornava de Boa Vista, configurando o cenário ideal para a acusação de feitiçaria e a destruição definitiva das relações de amizade entre os dois grupos. Logo em seguida à sua morte, diversas mulheres do Moxahi foram ao Pirisi e acusaram seus habitantes de terem sido os autores, por meio de feitiçaria de rastros, da mordida da cobra. Os Pirisi theri negaram enfaticamente as acusações, repassando a culpa a seus vizinhos do sudeste, os Hakoma theri. Após consultarem estes últimos, as mulheres do Moxahi convenceram-se de que os culpados eram mesmo do Pirisi e os advertiram a não aparecerem em sua região sob pena de serem mortos por seus guerreiros. Iniciou-se então a vendeta.

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A troca de agressões entre os dois grupos teve como consequência direta a formação de uma aliança entre os habitantes do Moxahi e seus vizinhos Potomatha theri, aumentando assim a profundidade das rivalidades. Em 1º de dezembro de 2000, em uma ação conjunta, a aliança Moxahi/Potomatha theri mata o principal líder dos habitantes do Pirisi, o que acirrou os ânimos definitivamente. No dia 17 de fevereiro de 2001, um homem do Roko é eliminado por engano pela mesma aliança, estendendo o clima de revolta aos Roko theri e seus parentes da região do Hakoma. A raiva tornou-se intensa e, em alguns lugares, o desejo de vingança chegou a clamar pela eliminação total do inimigo, seja por meio de uma série de ataques consecutivos ― intermediados pelas festas funerárias ―, seja mediante o envenenamento da água, chuva de flechas e dispersão de epidemias (xawara). *** Os reides recíprocos continuam atualmente em diferentes partes da Terra Indígena Yanomami. A presença de garimpeiros continua criando problemas por toda a área, sobretudo mediante a distribuição de armas e munição entre os índios, que as inserem em seu universo sociopolítico, tornando-os, embora de forma involuntária, dependentes e reféns da própria violência.

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Os casos apresentados acima vão ao encontro das afirmações de Albert, que vê nas agressões efetivas e simbólicas duas faces de um único sistema. Como vimos acima, as incursões guerreiras e o xamanismo agressivo relacionam-se de forma simétrica e inversa segundo a distância dos inimigos a serem atingidos pelos ataques. Da mesma forma, os diferentes tipos de feitiçaria (de aliança, de rastro e feitiçaria guerreira) compõem um sistema coeso com correspondentes no plano das agressões efetivas. Albert nos mostra que a feitiçaria de aliança, caracterizada pela ausência de letalidade, é restrita ao interior do conjunto dos aliados, opondo-se à feitiçaria guerreira, destinada à eliminação dos inimigos que se encontram nos limites da alteridade sócio-geográfica atingível fisicamente pelos okapë. O ponto intermediário entre as duas categorias é ocupado pela feitiçaria de rastro, realizada por pessoas ambíguas que vivem no interior da comunidade da vítima e que necessitam do apoio de inimigos desta para efetivar sua agressão. Da mesma forma, os duelos realizados com troca de socos no tórax, golpes com a lateral de machados ou facões e golpes de varas são restritos a grupos aliados e sua letalidade é apenas acidental. Longe de se inserirem em um continuum de violência no qual a “guerra” seria o limite extremo14, esses duelos opõem-se aos reides, que são reservados exclusivamente a grupos que ocupam a posição de inimigos e que por isso localizam-se a uma distância geográfica que corresponde a esse status. A posição intermediária entre os duelos e os reides é, da mesma forma que na feitiçaria, ocupada por pessoas ou grupos ambíguos. Sua ação se dá, como vimos no caso dos Maraxi u e Kasilapai, por meio do nomohori, momentos nos quais anfitriões ou convidados que ocupam posições intermediárias entre os aliados e os inimigos fingem amizade a fim de utilizar o efeito surpresa na realização de um ataque. A descrição da dinâmica das relações de aliança e antagonismo na região da serra das Surucucus, por sua vez, nos permite vislumbrar processos de aproximação e distanciamento entre os grupos que ali habitam, tornado visível seu caráter estrutural. Impossibilitados pela circunscrição 14 Sobre os “niveis de violência” ver Chagnon 1968.

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social exercida por seus vizinhos de se deslocarem rumo a regiões distantes, esses grupos fornecem a paisagem ideal para que possamos compreender a evolução de suas relações intercomunitárias. Analisando os diferentes conflitos descritos até aqui, é possível elaborar um modelo de evolução das relações de antagonismo composto de 4 fases principais: 1. Marcada por relações de aliança entre dois grupos endogâmicos de vizinhança. Como nos casos dos Aykam e os Tiritirimopi theri contra seus inimigos do Maraxi u, essas alianças são frágeis, efetivadas entre afins potenciais mediante trocas de bens, prestações rituais e poucos casamentos. 2. Com o tempo, essa aliança se enfraquece por motivos diversos: casamentos desfeitos, esposas fugitivas, acusações de furto, avareza e, principalmente, feitiçaria de rastro. Uma tensão latente surge entre os dois conjuntos, até que alguma morte seja imputada a um dos lados. 3. Inicia-se o ciclo de vinganças. Os grupos se distanciam e toda comunicação direta é interrompida. Os afins potenciais passam à condição de inimigos, e os reides-revanche, a marcar o cotidiano de ambos os grupos. As condições de vida tornam-se difíceis. A ameaça constante da presença de guerreiros (wayupë) ou feiticeiros (okapë) impede o cumprimento satisfatório das tarefas cotidianas. O abastecimento de alimentos torna-se precário. O trabalho nas roças e as atividades de caça e coleta são dificultados por razões de segurança, e a possibilidade da realização de deslocamentos repentinos impede qualquer planejamento relacionado à manutenção ou à abertura de novas roças. Muitas vezes é necessário abrigar-se entre grupos aliados, submetendo-se às condições incômodas ligadas ao status de refugiado.

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4. Em casos de conflitos nos quais não há o emprego indiscriminado de armas de fogo, as poucas mortes produzidas durante o ciclo de vinganças tornam-se distantes. Os rituais funerários se concluem e a raiva (hixio), derivada da morte do ente querido, se enfraquece. Nesse momento, ambos os grupos se mostram cansados das condições difíceis, do convívio com o medo e dos choros incessantes que embalam as expedições guerreiras. Inicia-se o processo de reaproximação. Pessoas de idade avançada ou jovens que ainda não participaram dos reides são utilizados como embaixadores na tarefa de restabelecer relações deterioradas. Após algum tempo, os primeiros convites para a participação em festas funerárias são enviados, e, em alguns casos, um novo casamento é selado a fim de encerrar definitivamente a contenda.

CICLO DE DESENVOLVIMENTO DAS RELAÇÕES DE ANTAGONISMO O ciclo de desenvolvimento das relações de antagonismo, exposto acima, ilustra o movimento que marca a dinâmica das relações entre os diferentes grupos endogâmicos de vizinhança da serra das Surucucus. Se a partir desse modelo, olharmos as relações entre eles ao longo do tempo, veremos que enquanto a aliança entre grupos endogâmicos A e B vai paulatinamente enfraquecendo, as relações de antagonismo entre o mesmo

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grupo A e seus inimigos C vão atingindo o ponto de esgotamento. Ou seja, enquanto um processo de distanciamento se opera entre os aliados, um processo simétrico e inverso de reaproximação ocorre entre os inimigos. Observando os casos descritos, vemos como as populações do Aykam, Mayepo u, Roko, Hakoma, Moxahi e Potomatha formavam um único bloco de aliança em oposição ao conjunto dos Maraxi u e Xiriana até pelo menos meados da década de 1970, quando os últimos foram definitivamente afastados da região e iniciou-se a penetração dos garimpeiros. A saída da Meva e o início dos conflitos entre Roko/Hakoma vs. Aykam provocaram um reordenamento das relações de aliança e antagonismo. O bloco de aliança inicial cindiu-se, opondo Roko e Hakoma aos Aykam e demais aliados. Cerca de uma década depois, os Roko theri restabeleceram relações pacíficas em toda a região. Por fim, após um curto intervalo, foi a vez dos grupos do norte de Surucucus (Moxahi e Potomata) unirem-se em uma aliança em oposição a seus antigos aliados (Aykam, Mayepo u, Roko e Hakoma theri), reordenando mais uma vez o quadro de alianças e inimizades. Como espero ter conseguido mostrar no decorrer de minha argumentação, os reides ― geralmente identificados com a guerra Yanomami ― são apenas uma pequena parte de um amplo universo de relações de antagonismo que inclui, por um lado, elementos simbólicos, poderes patogênicos e classificações sociais, e por outro, relações de parentesco, formação de grupos e alternância de papéis rituais ao longo do tempo. As informações a respeito do caráter simbólico e do universo cosmológico ― ambos constituintes do sistema de agressões ― complementam os dados coletados em campo, fornecendo um ponto de vista “de dentro” que dá sentido aos aspectos sociológicos observados. Como vimos, Albert (1985) nos mostra que as relações sociopolíticas entre os diferentes grupos locais (identificados em seu contexto às casas coletivas) se baseiam em um sistema de classificação das relações intercomunitárias que, a partir de um gradiente de proximidade e distância, posiciona os grupos vizinhos em diferentes categorias sócio-espaciais dotadas

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de poderes patogênicos específicos. Essas categorias organizam as relações sociais mediante um sistema de diagnósticos e acusações que dá subsídios ao sistema de agressões e às práticas rituais. As agressões, sempre consideradas atos de retaliação, compõem um sistema que integra ações efetivas e simbólicas de maneira simbiótica, fundamentando a execução de feitiçarias, reides e o envio de espíritos deletérios. Esse sistema baseia-se em uma lógica canibal, comum ao universo da predação, segundo o qual toda morte é considerada fruto da devoração dos elementos físicos e espirituais da pessoa. Essa devoração insere-se no âmbito das práticas funerárias. Por um lado, afins classificatórios sepultadores trocam o consumo ritual das cinzas do cadáver pelos alimentos e a hospitalidade do anfitrião enlutado; e por outro, os mesmos sepultadores compartilham com os inimigos matadores o trabalho de destruição dos traços do morto, efetivado mediante o endocanibalismo funerário dos primeiros e o exocanibalismo guerreiro dos últimos. A separação entre vivos e mortos fundamenta tudo isso. Dessa forma, a existência do mundo dos vivos é garantida pela preservação da periodicidade, sustentada essencialmente pela eliminação de todo e qualquer traço que possa provocar o retorno dos espectros. A transformação das relações entre os grupos de vizinhança, que ora são aliados, ora inimigos, torna-se compreensível quando enfocada a partir das especificidades da posição de afinidade potencial na Amazônia. Como vimos acima, as características intrínsecas do dravidianato no continente ― que tende a sobrepor à classificação fundada no parentesco um gradiente dinâmico de proximidade/distância ― permitem que a relação entre os grupos endogâmicos de vizinhança seja pautada pela transição entre diferentes categorias. Uma vez que a maioria das trocas matrimoniais se dá no interior de um mesmo grupo de vizinhança (mais ou menos disperso segundo condições contextuais), as relações entre esses grupos são restritas ao âmbito da afinidade potencial, espécie de categoria intermediária entre os cognatos (conjunto que inclui os afins efetivos) e os inimigos (entre os quais nenhuma comunicação direta é possível).

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Vimos como a afinidade potencial é marcada pela transitoriedade. Os grupos situados nessa categoria podem ser atraídos para o interior (mediante a efetivação de casamentos entre seus membros), ou expelidos para o âmbito dos inimigos distantes por meio do rompimento das frágeis relações de troca de objetos e serviços rituais. Essa transição é sempre acompanhada pelo deslocamento efetivo no espaço, aproximando os grupos endogâmicos que desenvolvem relações de aliança, e afastando radicalmente os antigos aliados que passam à categoria de inimigos. O desenvolvimento das relações de aliança e antagonismo entre os diferentes grupos endogâmicos de vizinhança da serra das Surucucus mostra como o movimento de aproximação e distanciamento entre eles permite que a complementaridade exercida entre os responsáveis pelo serviço funerário seja estendida à diacronia. Essa alternância entre as posições de aliado e inimigo faz com que a troca dos papéis e atributos rituais envolvidos na eliminação dos traços do cadáver atinja a todos. Inimigos devoradores tornam-se aliados sepultadores e vice-versa, concretizando um sistema de reciprocidade ritual de ciclo longo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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