O PODER JUDICIÁRIO COMO INSTRUMENTO PARA A EFETIVAÇÃO DE DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NO CONTEXTO POLÍTICO-JURÍDICO BRASILEIRO

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FUNDAÇÃO EDUCACIONAL SERRA DOS ÓRGÃOS – FESO CENTRO UNIVERSITÁRIO SERRA DOS ÓRGÃOS – UNIFESO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS – CCHS CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

CARLOS PIETRO GARCIA DE ARAÚJO PAIM

O PODER JUDICIÁRIO COMO INSTRUMENTO PARA A EFETIVAÇÃO DE DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NO CONTEXTO POLÍTICOJURÍDICO BRASILEIRO

Teresópolis 2016

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FUNDAÇÃO EDUCACIONAL SERRA DOS ÓRGÃOS – FESO CENTRO UNIVERSITÁRIO SERRA DOS ÓRGÃOS – UNIFESO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS – CCHS CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

CARLOS PIETRO GARCIA DE ARAÚJO PAIM

O Poder Judiciário como Instrumento para Efetivação de Direitos e Garantias Fundamentais no contexto jurídico-político brasileiro.

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Direito, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito, sob a orientação do Professor José Carlos Zebulum.

Teresópolis 2016 FUNDAÇÃO EDUCACIONAL SERRA DOS ÓRGÃOS - FESO

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CENTRO UNIVERSITÁRIO SERRA DOS ÓRGÃOS - UNIFESO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS - CCHS CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

CARLOS PIETRO GARCIA DE ARAÚJO PAIM

O Poder Judiciário como Instrumento para Efetivação de Direitos e Garantias Fundamentais no contexto jurídico-político brasileiro.

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Direito, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito, sob a orientação do Professor José Carlos Zebulum.

___________________________ Professor José Carlos Zebulum Orientador ___________________________ Professora Caroline da Rosa Pinheiro Membro-examinador ___________________________ Professora Gisele Alves Membro-examinador Teresópolis, ___ de ________ de 2016.

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Prove yourself You are the move you make Take your chances, win or loser See yourself You are the steps you take You and you, and that's the only way (Yes – Owner Of A Lonely Heart) Adventure seeker on an empty street Just an alley creeper Light on his feet A young fighter screaming With no time for doubt With the pain and anger can't see a way out It ain't much I'm asking, I heard him say Gotta find me a future move out of my way (Queen – I Want It All) É este, pois, o dilema: Quanto mais necessitamos de políticas públicas, Em face da miséria que se avoluma, Mais minimizamos o Estado, Único agente que poderia erradicar as desigualdades sociais! (Lenio Luiz Streck) Pobre Constituição Federal! Muito pouco amada! Muito pouco observada. Pobre Constituição Federal! Que de rígida, se torna flexível! (Ministro Marco Aurélio de Mello)

RESUMO

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O presente trabalho tem por objetivo analisar de que forma a Judicialização da Política vem norteando a atuação dos Tribunais com referências aos pleitos de direitos fundamentais, notadamente os denominados direitos sociais, em virtude da necessidade de atuação prestacional pelo Poder Público, bem como se ao Poder Judiciário é lícito a concessão de tais prerrogativas em casos de ausência legislativa e inação dos Poderes Legislativo e Judiciário. Palavras-chave: Direitos Fundamentais Sociais; Judicialização da Política; Aplicabilidade das Normas Constitucionais; Omissão Inconstitucional; Reserva do Possível e Mínimo Existencial.

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SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................... 18 2. CONSTITUIÇÃO E SUPREMACIA CONSTITUCIONAL ............................. 21 2.1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS ...................................................................... 21 2.2. O NEOCONSTITUCONALISMO ...................................................................... 25 2.2. SENTIDOS DE CONSTITUIÇÃO ..................................................................... 31 2.3. CONSTITUIÇÃO E FATORES REAIS DE PODER ......................................... 35 2.4. A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO .............................................. 39 3. APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS ............................ 43 3.1. EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS ............................................ 43 3.2. NATUREZA JURÍDICA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS ...................... 46 3.3. CLASSIFICAÇÃO DE JOSÉ AFONSO DA SILVA .......................................... 48 3.4. INSTRUMENTOS PARA “GARANTIR” A EFICÁCIA CONSTITUCIONAL – A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ..................................................................... 52 4. DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA ..................................................................................... 56 4.1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS ...................................................................... 56 4.2. CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ............................. 60 4.3. DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DE 1998 ....................... 63 4.4. A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O PRINCÍPIO DA APLICABILIDADE IMEDIATA DAS NORMAS DEFINIDORAS DE DIREITOS (ART. 5, § 1° DA CONSTITUIÇÃO DE 1988). ........................................................ 65 4.5. MÍNIMO EXISTENCIAL E RESERVA DO POSSÍVEL ................................... 69 5. O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO DIANTE DAS OMISSÕES POLÍTICAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 .............................................................................. 79 5.1. CONCEITO E ESPÉCIES DE INCONSTITUCIONALIDADE ......................... 79 5.2. CONTROLE DA OMISSÃO INCONSTITUCIONAL ....................................... 83 5.3. ATIVISMO JUDICIAL VERSUS JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA ............ 89 5.4. A OMISSÃO POLÍTICA AOS MANDAMENTOS CONSTITUCIONAIS E O PAPEL DA ATIVIDADE JURISDICIONAL ............................................................ 96 6. CONCLUSÃO .................................................................................................... 103 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 106

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1. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por escopo analisar e compreender a polêmica acerca da legalidade (e necessidade) da intervenção do Poder Judiciário para efetivar direito e garantias fundamentais que, em tese, deveriam ser concretizados por intermédio de políticas públicas, que deveriam ser elaboradas precipuamente pelos Poderes Executivo e Legislativo. Para alcançarmos tal escopo, iniciaremos nossa abordagem pontuando os aspectos relevantes em torno da evolução do Direito Constitucional e da própria noção de Constituição (levando em conta seus aspectos formais e materiais), bem como a relevância que o movimento do Constitucionalismo, com base no qual analisamos as principais manifestações deste no decorrer da história (americana, francesa e inglesa) e de que forma contribuíram para a evolução desse relevante movimento histórico, que busca notoriamente a limitação do poder estatal e a garantia da supremacia legal. Neste diapasão, buscaremos expor, com um pouco mais de profundidade, as temáticas pertinentes ao movimento denominado Neoconstitucionalismo ou póspositivismo, que procurou dar novas feições às constituições em virtude dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, onde muitas atrocidades foram cometidas sob o enfoque meramente positivista do ordenamento jurídico. Como será demonstrado ao longo do presente trabalho, o Neoconstitucionalismo teve como um dos seus objetivos fundamentais inserir uma alta carga valorativa nas constituições, sobretudo por conta da prevalência da dignidade da pessoa humano. No entanto, tal movimento sofre algumas críticas doutrinárias relevantes que iremos explicitar ao decorrer. Nesse sentido, observaremos como os denominados sentidos de constituição são importantes – a despeito de existirem outras de relevância, como a formulada por Manoel Gonçalves Ferreira Filho – para a exata compreensão da forma pela qual cada constituição deve ser concebida e entendida. Nós abordaremos no transcorrer do trabalho os sentidos mais clássicos, as quais: a concepção sociológica, elaborada por Ferdinad Lassale; concepção sociológica, difundida por Carl Schmitt; e concepção jurídica, arquitetada por Hans Kelsen. Dentre as quais, daremos mais ênfase à

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construção teórica de Ferdinand Lassale, em razão de sua relevância teórica para o presente trabalho, o qual entendia que a constituição escrita padeceria ante aos fatores reais de poder – a realidade dominante –, sendo que a constituição seria somente mera folha de papel se não coadunasse com a realidade vigente. Nesse passo, em contraponto aos ensinamentos de Ferdinand Lassale, Konrad Hesse, em sua magnífica obra “A Força Normativa da Constituição”, assevera que a constituição escrita merece ser considerada como objeto de mudança da ordem social, ou seja, busca demonstrar que a constituição possui força impositiva, sendo certo que quando contrastada à realidade deveria ter força pulsante para modificá-la. Noutro giro, buscaremos delinear os principais aspectos atinentes à aplicabilidade das normas constitucionais, onde explicitaremos a polêmica em torno da eficácia das normas constitucionais, bem como explicitaremos a importante classificação engendrada por José Afonso da Silva, que busca demonstrar que as normas constitucionais podem ter eficácia plena, contida ou limitada. Igualmente, serão objeto do capítulo os instrumentos hábeis para “garantir” a eficácia das normas constitucionais, dando especial ênfase à Jurisdição Constitucional. Com efeito, também buscaremos expor a evolução histórica dos direitos fundamentais, notadamente no que concerne às suas dimensões, as quais constituem aspectos de grande valia para compreendermos o movimento progressivo e histórico da evolução dessas categorias jurídicas. Por outro lado, exporemos as celeumas doutrinárias acerca do mandamento constante do § 1º, do art. 5º, da Constituição da República, que constitui importante mecanismo na defesa das pretensões judiciais que tenham por objeto o pleito de direitos fundamentais, dando especial enfoque para o seu alcance, bem como a imprescindível análise da teoria da reserva do possível e do princípio do mínimo existencial, os quais são centrais em discussões acerca da temática proposta no presente trabalho. No último capítulo do presente trabalho monográfico, abordaremos a temática propriamente dita, ou seja, abordaremos a intervenção do Poder Judiciário na implementação das políticas públicas, objetivando demonstrar os principais aspectos que envolvem essa problematização, sobretudo no que se refere às omissões políticas aos mandamentos constitucionais e o controle jurisdicional, bem como as grandes

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discussões sobre o ativismo judicial e a judicialização da política, que às vezes se confundem, mas tentaremos demonstrar que configuram institutos diversos. Por fim, não podemos nos omitir em observar que alguns assuntos, apesar de relevantes para o presente trabalho, não foram objetos da presente explanação, de forma total ou parcial, como as temáticas concernentes à Hermenêutica Jurídica, sobretudo a constitucional, e a devida exposição da importância dos princípios jurídicos, os quais tentaremos fazer breves incursões quando analisarmos a figura do Neoconstitucionalismo.

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2. CONSTITUIÇÃO E SUPREMACIA CONSTITUCIONAL 2.1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS O presente tópico pode começar com várias indagações como, por exemplo, o que seria uma constituição (partindo de seus sentidos formal e material, bem como analisando sua evolução história a partir de importantes revoluções sociais)? E o que se entende pelo movimento chamado constitucionalismo? O escopo deste tópico é enfrentar esses apontamentos. Começaremos

com

o

primeiro

questionamento,

podemos

conceituar

constituição, tomando por base seus aspectos formal e material, como: no que se refere ao sentido formal, também denominada constituição jurídica ou normativa, advinda da quebra de uma ordem jurídica e posterior invocação de um poder constituinte formal, notadamente configurando um poder constituinte originário, conforme ensinamento de Ingo Wolfgang Sarlet1. No que tange ao sentido material, constituição configuraria o estatuto de organização política de uma sociedade, versando sobre os aspectos essenciais para estrutura de um Estado, de acordo com o insculpido por Ingo Wolfgang Sarlet2. Não obstante, com a evolução da concepção de Estado e do próprio Direito Constitucional, o conceito material ou substancial de constituição passou por algumas adaptações conforme os pleitos sociais foram sendo alcançados em determinados momentos históricos. Nesse sentido, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco lecionam que: O conceito material de Constituição, portanto, segue a inteligência sobre o papel essencial do Direito e do Estado na vida das relações em uma comunidade. A Constituição, como ordem jurídica fundamental da comunidade, abrange, hoje, na sua acepção substancial, as normas que organizam aspectos básicos da estrutura dos poderes públicos e do exercício do poder, normas que protegem as liberdades em face do poder público e normas que tracejam fórmulas de compromisso e de arranjos institucionais para a orientação das missões sociais do Estado, bem como para a

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SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilheme e MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012, p. 35. 2 Loc. Cit.

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coordenação de interesses multifários, característicos da sociedade plural3 (grifos nossos).

O nascimento da constituição jurídica moderna se deu no século XVIII, em que pese ter havido outros documentos de notória importância, que para muitos doutrinadores foram considerados antecedentes da citada espécie de constituição normativa, mas com muitos aspectos distintos relevantes, sobretudo no que concerne à feição de norma jurídica hierarquicamente superior, como bem observa por Dalmo de Abreu Dallari4. Importam ressaltar algumas considerações feitas acerca do caráter plurívoco da palavra constituição, alguns sentidos podem ser atribuídos para delimitar a temática em questão. Citaremos alguns aspectos semânticos da palavra sob análise, os quais foram apontados na obra de José Afonso da Silva 5, os quais: 1) conjunto de elementos essenciais que constituem algum instituto; 2) Conjuntos de normas que regem determinada instituição; e 3) A lei fundamental de um Estado. Acerca de Constituição como a Lei Fundamental de um Estado carece de alguns apontamentos, pois não podemos confundir construções teóricas que versam sobre a qualidade de que a norma fundamental seria uma ficção jurídica, ou seja, um fundamento lógico-transcendental que validaria a própria Constituição, sendo, portanto, anterior à própria Constituição, conforme síntese da formatação teórica de Hans Kelsen por Gilmar Ferreira Mendes6, teoria esta que será mais abordada com mais afinco no tópico concernente em explicitar os diferentes sentidos de Constituição. Vencidos estes apontamentos iniciais, importa consignar a evolução do movimento denominado Constitucionalismo, que de início já podemos expungir qualquer pensamento no sentido de que corporificaria o mesmo sentido de Constituição, os referidos institutos traçam caminhos parecidos no decorrer da história, mas não se confundem (e não constituem pressupostos de existência entre si). Podemos conceituar Constitucionalismo como movimento histórico que tem como objetivo limitação do poder e supremacia da lei, em outras palavras, visa efetivar um Estado 3

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo. Ed. Saraiva, 2015, p. 80. 4 DALLARI, Dalmo. A Constituição na vida do povo, p. 28 e ss. Apud SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p. 36. 5 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo. Ed. Malheiros, 2007, p. 37. 6 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gonet. Op. Cit., p. 80.

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de Direito. Importante salientar a evolução do movimento de evolução do constitucionalismo em três realidades históricas diferentes, as quais: desenvolvimento do constitucionalismo no Reino Unido, na França e nos Estados Unidos, advindo de lutas sociais em razão de momentos de instabilidade econômico-política (como as Revoluções Americana, de 1776, e Francesa, de 1789, que constituem marcos iniciais do constitucionalismo moderno7). No que tange à evolução do constitucionalismo no Reino Unido podemos fazer as seguintes observações: um dos fatos mais relevantes da história constitucional ocorreu aqui, a edição da Magna Charta pelo Rei João Sem Terra, em 1215, a qual trazia um rol de garantias (como o due process of law) aos barões feudais, que obtinham a totalidade de terras à época, contra os desmandos da monarquia. Mais tarde, em 1628, o parlamento submeter ao Rei Charles I o documento denominado Petition of Rights, que limitava muito os poderes do soberano. Acerca do Bill of Rights e da Petition of Rights, Luis Roberto Barroso nos informa: A Petição de Direitos protestava contra o lançamento contra o lançamento de tributos sem a aprovação do parlamento, as prisões arbitrárias, o uso da lei marcial em tempos de paz e a ocupação de casas particulares por soldados. A Declaração de Direitos previa a convocação regular do Parlamento, de cujo consentimento dependiam medidas como a criação de leis, a instituição de tributos e a manutenção do exército permanente em tempos de paz8.

Conforme instado, podemos notar que o movimento no Reino Unido visava limitar o poder do monarca, principalmente em aspectos econômicos, pois é constatada nos momentos de atritos políticos que a principal causa é a tributação desproporcional, onde determinadas classes sofrem pesados impostos, os quais eram revertidos, na grande maioria dos casos, para “sustentar” as classes nobres. Observamos que o modelo de evolução constitucional inglês prescindiu de uma constituição escrita (o que se prolonga até hoje), muito embora tenha tido os documentos supracitados de extrema relevância, o que se dá em vista do processo de

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BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 4ª Edição. São Paulo: Ed. Saraiva, 2014, p. 27. 8 Idem. Ibidem, p. 33.

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longo amadurecimento histórico vivido no âmbito do Reino Unido, na constatação de Luis Roberto Barroso9. Ultrapassado o desenvolvimento do constitucionalismo no Reino Unido, abordado em rápidas linhas, nos voltamos ao modelo francês, fruto de muitas lutas sociais e marcado pelo movimento nomeado Iluminismo e pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que trazia no bojo do artigo 16 o novo conceito de constituição10, o qual previa que um Estado onde não garantisse a separação dos poderes e não assegurasse os direitos fundamentais não tem uma constituição. Acerca dos primeiros passos visando à feitura do que seria a primeira constituição escrita francesa, o Rei Luis XVI convocou os Estados Gerais a fim de que se realizasse uma assembleia integrada por representantes das denominadas três ordens francesas (a nobreza, o clero e o povo comum, que configurava o chamado terceiro estado). E por decorrência da pressão imposta pelo terceiro estado que fora instaurada uma Assembleia Nacional Constituinte em 17 de junho de 1789. Ressalte-se, todavia, que em razão do crescente movimento do “povo comum”, tendo em vista que o processo de elaboração constitucional estava abarcando a continuidade da monarquia hereditária, e da queda da Bastilha, abandonou-se o projeto de constituição e criou-se a Declaração de Direitos, a qual abarcava os ditos direitos naturais, notadamente no que tange à liberdade e à propriedade, conforme apontamentos confeccionados por Ingo Wolfgang Sarlet11. Vencido mais um marco histórico no aperfeiçoamento do constitucionalismo moderno, passemos ao processo histórico experimentado pelos Estados Unidos, onde encontramos a primeira constituição escrita em sentido moderno, promulgada em 1787. Os principais anseios que ensejaram a Revolução Norte-Americana foram, sobretudo, em razão dos inícios dos conflitos com a Coroa Inglesa, decorrentes de imposições tributárias e restrições às atividades econômicas e ao comércio, de acordo com as observações de Luis Roberto Barroso12. 9

BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 4ª Edição. São Paulo: Ed. Saraiva, 2014, p. 33/34. 10 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; e MITIDIERO, Daniel. Op. Cit., p. 47. 11 Loc. Cit. 12 BARROSO, Luis Roberto. Op. Cit., p. 38.

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Devido aos referidos conflitos, as treze colônias se desvincularam do Reino Unido e passaram a configurar uma Confederação entre as colônias, porém o acordado não estava sendo satisfatório para as pactuantes. Neste passo, as treze colônias transmutaram os artigos da Confederação em uma Convenção Constitucional 13, a fim de selar a formação de uma Federação, onde as colônias abdicariam de sua soberania em troca de autonomia, mas não somente isso, tendo em vista que ainda havia ameaças por parte do Reino Unido. Sobre os principais elementos da Constituição Norte-Americana, Ingo Wolfgang Sarlet assevera: é possível, tomando por empréstimo a seleção efetuada por Harmut Maurer, elencar os seguintes aspectos: a) a soberania popular como fundamento do Poder do Estado; b) a garantia dos direitos fundamentais para a salvaguarda da liberdade igualdade das pessoas frente ao poder estatal; c) a separação dos poderes, limitados e controlados entre si; d)a Federação, consubstanciada na criação de um Estado comum, mas com a manutenção do formato anterior dos Estados individuais, com a repartição de tarefas estatais entre a União e os Estados federados (grifos nossos)14.

Pelo exposto, podemos encaixar os objetivos precípuos do constitucionalismo nestes três passos históricos de sua concepção moderna, quais sejam: a limitação do poder e a supremacia da lei, perfazendo o denominado Estado Legislativo de Direito, onde a Lei e o Princípio da Legalidade são as fontes de legitimação do Direito, exposição esta feita por Dirley da Cunha Júnior15. 2.2. O NEOCONSTITUCONALISMO Não podemos nos omitir de consignar um movimento mais recente, essencial para a exata compreensão da presente temática, o Neoconstitucionalismo ou póspositivismo, iniciado em meados do século XX, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, o qual ficou conhecido por trazer novos valores e afirmar a supremacia material e axiológica da constituição16, cujo conteúdo passou a filtrar a validade e a

13

BARROSO, Luis Roberto. Op. Cit., p. 38. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Op. Cit., p. 46/47. 15 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Controle Judicial das Omissões do Poder Público. 2ª Edição. São Paulo: Ed. Saraiva, 2008, p. 4 e ss. 16 Idem. Ibidem, p. 9.

14

26

compreensão

de

todo

o

Direito



esse

fenômeno

é

conhecido

como

constitucionalização do direito –, bem como estabelecendo imposições de atuação aos órgãos públicos, não se limitando, apenas, na limitação de poder. José Carlos Francisco17 assenta que o neoconstitucionalismo está fundado em alguns fatos históricos, sendo certo que seu surgimento visa preservação dos direitos humanos e a proteção contra as arbitrariedades da lei, dos quais destacamos: os abusos cometidos na Segunda Guerra Mundial, de proporções devastadoras, com amparo nas leis vigentes – consideradas válidas porque foram editadas com observância aos critérios procedimentais. Buscando demonstrar as raízes do novo constitucionalismo, Lenio Luiz Streck assevera que: Isto é o neoconstitucionalismo: uma técnica ou engenharia de poder que procura dar resposta a movimentos históricos de natureza diversa daqueles que originaram o constitucionalismo liberal, por assim dizer (ou primeiro constitucionalismo). Por isso o neoconstitucionalismo é paradigmático; por isso ele é ruptural; não há sentido em tratá-lo como continuidade, uma vez que seu “motivo de luta” é outro18.

Maria Vitório Alves19 entende que o neoconstitucionalismo surgiu como um novo paradigma para o Estado Democrático de Direito, sendo certo que o termo foi utilizado pela primeira vez em uma conferência em Buenos Aires pela autora italiana Suzanna Pozzolo, objetivando demonstrar um certo modo antijuspositivista de se aproximar o direito. Podemos observar que esta mudança de paradigma importou em algumas consequências estruturais na compreensão do Direito, onde passamos para o Estado Constitucional de Direito, no qual a Constituição passaria a ocupar o ponto central do sistema jurídico, trazendo, por conseguinte, a supremacia constitucional e pulsante carga de valores ao ordenamento jurídico, elementos estes que teriam o condão de irradiar as normas constitucionais por toda a legislação infraconstitucional. 17

FRANCISCO, José Carlos. (Neo) Constitucionalismo na Pós-Modernidade: Princípios Fundamentais e Justiça Pluralista. In: FRANCISCO, José Calos (Coord.). Neoconstitucionalismo e Atividade Jurisdicional: Do passivismo ao ativismo judicial. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2012, p. 59/62. 18 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica, Neoconstitucionalismo e o “Problema da Discricionariedade dos Juízes”. Curitiba: Revista Eletrônica do Curso de Direito da OPET, 2009. Apud ALVES, Marina Vitório. Neoconstitucionalismo e novo Constitucionalismo Latino- Americano: características e distinções. Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v.19, n. 34, p. 133 /135, ago. 2012. 19 ALVES, Marina Vitório. Op. Cit., p. 133/135.

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Contornado os principais elementos trazidos pelo Neoconstitucionalismo, Dirley da Cunha Júnior aduz que: O Neoconstitucionalismo também provocou uma mudança de postura dos textos constitucionais contemporâneos. Com efeito, se no passado as Constituições se limitavam a estabelecer os fundamentos da organização do Estado e do Poder, as Constituições do pós-guerra inovaram com a incorporação explícita em seus textos de valores (especialmente associados à promoção da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais) e opções políticas gerais (como a redução das desigualdades socais) e específicas (como a obrigação de o Estado prestar serviços na área de educação e saúde) 20 (grifos nossos).

Considerando os referidos apontamentos, observamos que o momento histórico fundante da concepção de Neoconstitucionalismo restou por afirmar a supremacia da Constituição sobre os poderes constituídos por este Estatuto Político, notadamente no que tange à introdução de valores nos textos constitucionais, o que se faz extremamente necessário e relevante em Estados que têm por base a auto aplicabilidade de normas de direitos fundamentais, o que não retira, entretanto, a ideia que todo poder emana do povo. Marcus Aurélio de Freitas Barros salienta que com o advento do neoconstitucionalismo houve reflexos importantes no Direito Constitucional, tendo em vista que o constitucionalismo clássico não atendia mais em razão dessa mudança de perspectiva – causada pelo pós-positivismo –, buscando um novo modelo de Estado, onde o referido autor aponta: a inserção da Constituição no centro do debate jurídico; a adoção de nova postura no que tange à efetivação de direitos fundamentais, notadamente os que exigem políticas públicas. Na esteira de acentuar as principais diferenças entre o neoconstitucionalismo e o positivismo jurídico, Marcus Aurélio de Freitas Barros21 aponta que este buscava afastar o direito de concepções morais e filosóficas, equiparando o direito à lei; já o pós-positivismo apontava no sentido de uma leitura moral do direito, buscando aproximação com a filosofia e a concepção de justiça, mas sem ignorar o direito positivado. 20

JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 10/11. BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Controle Jurisdicional de Políticas Públicas: parâmetros objetivos e tutela coletiva. Porto Alegre: Ed. Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 33. 21

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E continua o referido autor22 apontando que a implementação do conteúdo normativo, concernente em valores e opções políticas, conjuntamente com a noção de força normativa e supremacia constitucional, bem como pela abrangência do controle de constitucionalidade adotado pela Constituição da República de 1988, acentuam o atual modelo adotado pelo Estado brasileiro, fortemente influenciado pelas bases do neoconstitucionalismo. Apontando as principais temáticas ligadas ao neocontitucionalismo, José Carlos Francisco aduz que: Essa diversidade de conceitos de “neoconstitucionalismo” é consequência da associação dessa expressão a vários movimentos, vinculando diversas ideias tais como aplicação direta de princípios constitucionais aos casos concretos, fortalecimento do controle de constitucionalidade, busca de justiça na aplicação do direito, novas relações entre direito positivo e moral, neopositivismo ou pós-positivismo, ponderação e teoria da argumentação23.

Nesse passo, resta necessário ressaltarmos os pontos marcantes desse movimento, delineados por Ana Paula de Barcellos constantes dos ensinamentos de Pedro Lenza24, os quais: Estado constitucional de direito, tendo em vista que a constituição passou a ocupar o centro do sistema normativo, coarctando a lei e os Poderes Públicos às suas determinações, ou seja, “A lei e, de modo geral, os Poderes Públicos, então, devem não só observar a forma prescrita na Constituição, mas, acima de tudo, estar em consonância com o seu espírito, o seu caráter axiológico e os seus valores”25; conteúdo axiológico da Constituição, em virtude na observância à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais, não bastando que esses elementos

sejam

somente

reconhecidos

mas

“o

grande

desafio

do

neoconstitucionalismo passa a ser encontrar mecanismos para a sua efetiva concretização”26; e concretização dos valores constitucionais e garantia de condições dignas mínimas.

22

BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Controle Jurisdicional de Políticas Públicas: parâmetros objetivos e tutela coletiva. Porto Alegre: Ed. Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 44. 23 FRANCISCO, José Carlos. (Neo) Constitucionalismo na Pós-Modernidade: Princípios Fundamentais e Justiça Pluralista. In: FRANCISCO, José Calos (Coord.). Op. Cit., p. 54. 24 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 19ª Edição, São Paulo: Ed. Saraiva, 2015, p. 60/62. 25 Idem. Ibidem, p. 61. 26 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gonet. Op. Cit., pág. 54.

29

Nesse contexto, é de notória importância em sede do neoconstitucionalismo o papel do Poder Judiciário, superado o velho papel que era de sua incumbência no positivismo jurídico (ou seja, a mera subsunção da norma ao caso concreto), na concretização dos preceitos constitucionais ante a inércia dos Poderes responsáveis pelas políticas públicas, ou seja, “ao juiz constitucional incumbiria atalhar abusos, cometidos por ação ou omissão do legislador”27. Com

relação

à

transformação

do

Papel

do

Poder

Judiciário

no

neoconstitucionalismo, Daniel Giotti de Paula alude que: Parafraseando Marx, que ao descrever a modernidade, afirmou que tudo é sólido se desmancha no ar, tem-se que a figura de um juiz distante de valores, da política mesma, solitário, buscando simplesmente aplicar autonomamente as regras jurídicas evaporou-se ou, pelo menos, não é mais a representação para os casos difíceis que envolvem sopesar de princípios jurídicos 28.

Noutro giro, observamos que os princípios tomam feições de grande relevância com o advento do neoconstitucionalismo, ocupando espaço central nos ordenamentos jurídicos, ou seja, passariam a ser diretrizes com alto grau de abstração para aplicação do direito voltado à busca pela justiça. No entanto, isso não quer dizer que o intérprete neoconstitucionalista estaria alheio ao ordenamento jurídico posto, mas, como observa José Carlos Francisco29, este funcionaria como instrumento de controle mínimo, porquanto, apesar de os princípios fundamentais possuírem um alto grau de abstração, todos os postulados possuem um conteúdo identificável, sendo certo que “justamente porque foram positivados, servem como orientação e redutores do grau de discricionariedade interpretativa dos operadores do direito”30. Urge realizarmos alguns apontamentos conceituais acerca dos princípios jurídicos, tendo em vista a relevância do mesmo tanto para o neoconstitucionalismo quanto para o presente trabalho. Primeiramente, é sabido que os princípios, assim como as regras, são normas jurídicas, conquanto possuam, diferentemente das regras, um alto grau de abstração, estabelecendo um estado de coisas a ser atingido. 27

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gonet. Op. Cit., pág. 54. PAULA, Daniel Giotti de. Uma leitura crítica sobre o ativismo e a judicialização da política. In: FELLET, André Luiz Fernandes; PAULA, Daniel Giotti de. NOVELINO, Marcelo. As Novas Faces do Ativismo Judicial. 2ª tiragem. Salvador: Ed. Juspodivm, 2013, p. 18. 29 FRANCISCO, José Carlos. (Neo) Constitucionalismo na Pós-Modernidade: Princípios Fundamentais e Justiça Pluralista. In: FRANCISCO, José Calos (Coord.). Op. Cit., p. 65. 30 Loc. Cit. 28

30

Nesta esteira, visando acentuar a eficácia jurídica dos princípios, Ana Paula de Barcellos31 observa que perderam seu caráter meramente axiológico, ético e sem aplicabilidade imediata, para assumirem a posição de normas jurídicas, passando a ocuparem um lugar central no Direito, e não como um elemento externo. Robert Alexy32 define os princípios como mandados de otimização porque podem ser satisfeitos em diferentes graus na resolução do caso concreto, a depender das condições fáticas e jurídicas envolvidas na casuística; o que os difere das regras, as quais podem ser satisfeitas ou não satisfeitas, constituindo comandos de definição. Logo, se uma regra é válida, deve ser cumprida a determinação constante dela. Neste diapasão, impende salientar alguns critérios utilizados para diferenciar os princípios das regras, sendo os quais: modo de aplicação, sendo certo que os princípios seriam aplicados com base na ponderação, ou seja, “operação de balanceamento entre os princípios, por meio da qual se atribui uma dimensão de peso maior a um deles diante do caso concreto”33, já as regras seriam aplicadas com base na subsunção; modo de colisão, que já foi abordada de forma indireta anteriormente. Especificamente com relação ao presente trabalho monográfico, os princípios são de extrema relevância, sobretudo os de ordem constitucional, sejam eles expressos ou implícitos, tendo em vista que, muitas vezes, o direito subjetivo pleiteado não pode ser usufruído devido à ausência da lei reguladora, objetivando que o provimento jurisdicional seja prolatado por e com base nos princípios. Ressalte-se, todavia, que o neoconstitucionalismo sofre algumas críticas doutrinárias, muitas delas com fundamentos consideráveis. No entendimento de Uadi Lammêgo Bulos34 esta nova concepção de constitucionalismo não teria nada de novo, pois as ideias centrais – como rigidez constitucional, mecanismos de controle de constitucionalidade, entre outros – não pertenceriam ao novo constitucionalismo, sendo que seria “a forma de os seus defensores repetirem o que todo mundo já sabe 35”. 31

BARCELLOS, Ana Paula de. Anotação preliminar sobre o conteúdo e as funções dos princípios. In: CANOTILHO, Joaquim José Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; ________ (Coords.). Op. Cit., p. 97/98. 32 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Traduzido por Virgílio Afonso da Silva. 2ª edição. São Paulo: Ed. Malheiros, 2008, p. 90/91. 33 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª edição. São Paulo: Ed. Malheiros, 2014, p. 150. 34 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição São Paulo: Ed. Saraiva, p. 86. 35 Loc. cit.

31

Nesse sentido, Elival da Silva Ramos entende que o neoconstitucionalismo resguarda os princípios de forma exagerada, chegando ao ponto e afastar uma regra constitucional para que haja uma maximização da norma princípio36. Por derradeiro, importa atestar que a temática envolta ao Neoconstitucionalismo será abordada no decorrer do presente, tendo em vista que seus elementos e aspectos marcantes norteiam a atuação jurisdicional voltada à máxima efetivação dos preceitos fundamentais positivados na Constituição da República, sobretudo em tempos de crise, onde existem violações massivas e generalizadas aos direitos fundamentais. 2.2. SENTIDOS DE CONSTITUIÇÃO Vencidos os aspectos históricos de maior relevância na marcha de evolução do estudo do Direito Constitucional, não podemos nos omitir em pincelar as principais construções acerca dos sentidos da Constituição, ou seja, de que modo essa deve ser compreendida e concebida, o que nos remeterá, inevitavelmente, a relembrar alguns momentos de grande importância, não só para o desenvolvimento da acepção de Constituição, conquanto também para a evolução da sociedade. Iniciaremos o enfretamento deste tópico abordando a denominada Concepção Sociológica de Constituição, a qual foi elaborada pelo jurista e intelectual Ferdinand Lassale em sua obra A Essência da Constituição 37. A obra em comento parte da premissa de que a Constituição é o resultado das forças sociais, ou seja, todas as decisões exaradas pela realidade política vigente. Sintetizando a construção jurídico-sociológica feita por Lassale, podemos aferir que Constituição não é algo criado pelo homem, mas sim plena realidade política e social vigente, vale dizer, não é pura forma de “dever-ser”, mas notadamente do “ser” 38. Iremos abordar com mais profundidade, devido sua enorme relevância teórica para o objeto do presente, em tópico próprio, mas não podemos deixar de consignar que Lassale, em sua obra, afirma que as constituições jurídicas de nada servem se não 36

BRITTO, Thays Oliveira de; AGRA, Walber de Moura. Neoconstitucionalismo. In: FRANCISCO, José Calos (Coord.). Op. Cit., p. 18. 37 LASSALE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Prefácio e Organização Aurélio Wander Barros. Epílogo Rosalina Corrêa de Araújo. 9ª Edição. Ed. Freitas Bastos. Rio de Janeiro. 38 Idem. Ibidem, p. 15 e ss.

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estiverem em contraste com os fatores reais de poder, os quais configuram a já referida supremacia da realidade dominante no contexto de um denominado Estado. O citado autor é categórico em aduzir que a constituição jurídica dissonante da realidade constituiria mera folha de papel. Procedida a essa análise sucinta da Concepção Sociológica de constituição, nos atentaremos ao enfrentamento da Concepção Política, difundida por Carl Schmitt em sua obra Teoria da Constituição. Conforme aludido por Dirley da Cunha Júnior39, a obra de Schmitt se explicita quatro conceitos do vocábulo “Constituição”, quais sejam: 1) conceito absoluto; 2) conceito relativo; 3) conceito positivo; e 4) conceito ideal. Enfrentaremos somente o conceito positivo, tendo em vista ser este a preferência do autor da construção teórica e o que mais acresce ao presente trabalho. No que tange ao conceito positivo, Schmitt adverte que este seria o único em que a Constituição se conceberia em sua plenitude, no qual Constituição configuraria a forma e o modo de ser de determinada unidade política40. Em outras palavras, como professado pelo autor em sua obra, Constituição seria a decisão política fundamental 41. Outra questão de suma relevância na obra de Schmitt é a distinção feita entre Constituição e leis constitucionais, onde podemos apontar que aquela corporificaria as decisões de maior relevância para a comunidade, notadamente no que se refere aos direitos fundamentais, estrutura organizacional dos órgãos Estatais, entre outras questões rodeadas de extrema carga de importância na “vida” do Estado. Já com relação às leis constitucionais, Schmitt adverte que estas caracterizariam normas sem a relevância das mencionadas anteriormente, ou seja, regramentos que só seriam inseridos no bojo da Constituição para assegurar sua não modificação por legislação ordinária, como interesses de determinados grupos42. O resultado dessa construção, conforme aduzido por Carl Schmitt, é que o conteúdo referente às normas constitucionais propriamente ditas (aquelas que formariam a Constituição) não poderiam ser reformadas, pois conforme salientado por

39

JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 20/24. Loc. Cit. 41 Loc. Cit. 42 Loc. Cit.

40

33

Dirley da Cunha Júnior43 essas representariam a alma da Constituição, integrando o conhecido núcleo imutável da Constituição, tamanha sua importância para o cotidiano do Estado. Já no que concerne às leis constitucionais, estas poderiam ser reformadas, pelo método previsto na Constituição, que geralmente é de maios alta dificuldade de reforma, porquanto resguardariam as “vontades” de determinados grupos. Nesse passo, passaremos à análise da dita Concepção Jurídica de Constituição, propalada, principalmente, pelo jurista Hans Kelsen em sua obra Teoria Pura do Direito44. Notadamente Kelsen tentou dissociar da ideia de Constituição fundamentos baseados em sociologia, política ou filosofia, os quais não deveriam ser de preocupação do jurista, daí advém o nome de sua famosa obra supramencionada. O referido autor propalava que Constituição configurava uma norma jurídica fundamental, de cunho estritamente jurídico, com sua atuação e observância voltadas, especialmente, a organização do Estado e de seus elementos essencialmente relevantes. É de relevância imensurável ao objeto do presente relatar os dois sentidos de Constituição, quais sejam: sentido lógico-jurídico, no qual tem por principal objeto a norma hipotética fundamental (grundnorm) a qual é considerada pelo autor como uma norma pressuposta, verdadeiro fundamento lógico-transcendental da Constituição, pela exposição é cediço que a norma hipotética fundamental é anterior à própria Constituição, é a primeira e principal fonte legitimadora desta; e sentido positivojurídico, que tem por titularidade a norma positiva suprema, fundamento de validade para todas as normas positivas posteriores a ela. Nesta esteira, na obra de Kelsen ficam evidentes essas “duas espécies” de Constituição, a posta, proveniente do sentido positivo-jurídico, norma superior que fundamenta e orienta todo ordenamento jurídico submisso a sua imperatividade normativa e a pressuposta, advinda do sentido lógico-jurídico, que serve de fundamento de validade para a Constituição posta. Em precisa síntese do exposto, Dirley da Cunha Júnior prescreve que “Essa, a pressuposta ou suposta (assim 43

JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 20/24. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Traduzido por João Baptista Machado. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2003/6ª Edição. 44

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denominada porque é hipotética, não sendo imposta por nenhuma autoridade humana), prescreveria obediência irrestrita àquela, a posta (esta sim é imposta por uma autoridade humana)” 45. Acerca da Norma Fundamental como fator de unidade do Direito, Hans Kelsen assevera que: A resposta epistemológica (teorético-gnoseológica) da Teoria Pura do Direito é: sob a condição de pressupormos a norma fundamental: devemos conduzir-nos como a Constituição prescreve, quer dizer, de harmonia com o sentido subjetivo do ato de vontade constituinte, de harmonia com as prescrições do autor da Constituição. A função desta norma fundamental é: fundamentar a validade objetiva de uma ordem jurídica positiva, isto é, das normas, postas através de atos de vontade humanos, de uma ordem coerciva globalmente eficaz, quer dizer: interpretar o sentido subjetivo destes atos como seu sentido objetivo46 (grifos nossos).

Desta feita, retornamos aos questionamentos acerca da pureza da teoria de Kelsen, ou seja, procedendo a extração de todas as epistemologias não jurídicas da acepção de Constituição. Podemos aludir que tal sentido de Constituição não leva em conta as decisões políticas, constituídas da vontade de determinado grupo político na formação da Constituição de determinado Estado, o que nos remete para os já mencionados fatores reais de poder, que serão analisados com mais atenção no próximo tópico, que, induvidosamente, devem ser levados em conta quando da análise de determinado contexto jurídico vigente, com vistas de estarmos analisando o aspecto jurídico de forma totalmente dissonante do que impera na realidade fática, aí reside a sempre necessária análise do Direito junto à casuística. Ratificando o supracitado, Dirley da Cunha Júnior alude acerca da Teoria Pura do Direito que: A Constituição não pode ser entendida apenas como norma pura, limitada exclusivamente a um enfoque normativo, sem a mínima correspondência com a realidade social e política que visa regular. Ela não é uma norma jurídica cega, indiferente a essa realidade, apática às relações de poder efetivamente existentes em uma determinada comunidade política. A Constituição não está desvinculada da realidade histórico-concreta de seu tempo. Ela só não está condicionada, simplesmente, por essa realidade. A Constituição deve ser entendida, assim, como uma entidade viva, que interage com a situação histórica, com o desenvolvimento da sociedade, e só assim é que cumpre seu papel regulador 47 (grifos nossos). 45

JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 26. KELSEN, Hans. Op. Cit., p. 225/226. 47 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 37. 46

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2.3. CONSTITUIÇÃO E FATORES REAIS DE PODER Como pontuado anteriormente, abordaremos no presente tópico, de forma mais atenta, a obra de Ferdinand Lassale, que visa demonstrar a inutilidade da Constituição escrita perante a realidade fática de determinada comunidade, como, com o passar do tempo, a folha de papel se submete aos anseios dos fatores reais de poder, nas palavras do importante autor. Com base nesse apontamento inicial, podemos extrair da construção teórica de Lassale a completa submissão do ordenamento jurídico, ou seja, de como ele se limitara e limita a observar a realidade dominante do contexto social. A Ordem Jurídica, portanto, seria somente um método de coagir condutas por intermédio da previsão de punições. Nesse contexto, a Constituição serviria somente para manter um determinado status quo, as imposições do conjunto de forças que atuam na política, ou seja, os fatores reais de poder. Conquanto no que consistem os fatores reais de poder? Lassale afirma que são a monarquia, a aristocracia, a grande burguesia, os banqueiros e a pequena burguesia e a classe operária, estes dois últimos guardadas suas especificidades. O autor coloca em ponto de choque a Constituição real (que corporifica os fatores reais de poder) e a Constituição escrita, de modo que torna delicada a conciliação desses termos, como se ambos não pudessem coexistir e, talvez, à época que Lassale formulou a presente arquitetura teórica não fosse realmente viável essa opção, em vista da gritante diferença de classes. Não obstante, Lassale categoricamente afirmava que boa e duradoura era a Constituição escrita que se apoiasse nos fatores reais de poder, pois do contrário, decorrido certo lapso temporal, a Constituição escrita sofreria sucessivas modificações até que estivessem insculpidos em seu bojo os anseios dos fatores reais de poder. Lassale inicia sua exposição teórica buscando o conceito de Constituição e, de pronto, afasta a incidência de qualquer resposta jurídica para o anseio, porquanto o autor é claro em afirmar que nenhuma resposta jurídica seria suficientemente capaz de preencher satisfatoriamente a questão proposta pelo articulista, em razão da inutilidade

36

de definições jurídicas conceituando documentos regentes de determinada comunidade em detrimento de sua verdadeira essência. Acerca da Essência da Constituição, Lassale afirma que: Estas afirmações dão-nos critérios, notas explicativas para conhecer juridicamente uma Constituição; porém não esclarecem onde está o conceito de toda a Constituição, isto é, a essência constitucional. Não servem, pois, para orientar-nos se uma determinada Constituição é, e por que, boa ou má, factível ou irrealizável, duradoura ou insustentável, pois para isso seria necessário que explicassem o conceito de Constituição. Primeiramente, torna-se necessários sabermos qual é a verdadeira essência de uma Constituição, e, depois, poderemos saber se a Carta Constitucional determinada e concreta que estamos examinando se acomoda ou não às exigências substantivas 48 (grifos nossos).

No que tange aos fatores reais de poder, o grande objeto das inquietações de Lassale, que constituem o poder regente de determinada sociedade, ou seja, os que atuam no seio do Estado, configurando uma força ativa e eficaz que subjuga todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que “não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são”49. Nesta esteira, o autor destaca o seu entender acerca da essência da Constituição, que constitui, como resta evidente em razão de suas exposições, a soma dos fatores reais de poder que regem uma nação. Em suma, a Constituição escrita não é nada relevante no contexto social quando dissonante da realidade dominante, o que não podemos deixar de concordar, embora com muitas ressalvas a serem trabalhadas no decurso do presente, devido à falta de efetividade das Constituições modernas. Noutro giro, Lassale expõe com muita propriedade os problemas políticos vividos à época da articulação teórica, notadamente no que tange à participação do povo, reconhecido como o terceiro grupo, nas tomadas de decisões políticas, o que corrobora suas alegações, onde somente o primeiro grupo, formado pelas pessoas altamente abastadas, possuía maior participação, mesmo constituído de bem menos contingente. Lassale demonstra a relação entre as já citadas duas Constituições que podem existir em determinado Estado, a Constituição real e efetiva e “essa outra”,

48 49

LASSALE, Ferdinand. Op. Cit., p. 16. Idem. Ibidem, p. 20.

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notadamente menosprezando e retirando a potencial eficácia do Estatuto Político do Jurídico50, a Constituição escrita, que o autor denomina mera folha de papel. Afirma o autor que todos os países possuíram e possuirão em todos os momentos de sua história a Constituição real e efetiva, que prescinde de documento escrito formal para caracterização, pois se dá no âmbito dos poderes socialmente dominantes. Lassale assevera, de forma magistral, que é um equívoco julgar que a Constituição é uma prerrogativa dos tempos modernos51. Partindo da premissa supracitada, Lassale induz que nos tempos modernos a discussão transpassa da Constituição real e efetiva para a necessidade de uma Constituição escrita nas folhas de papel, a qual tem por fito estabelecer documentalmente a totalidade de princípios e instituições jurídicas do governo vigente. Com base nesse “anseio moderno” Lassale busca a aspiração dessa necessidade. O articulista demonstra que esses anseios são desprovidos de utilidade, a não ser que se consiga uma modificação nos poderes imperantes na realidade de determinada sociedade, pois, do contrário, não teria a necessidade da busca de uma Constituição escrita. Nos momentos finais de sua obra Lassale lança um questionamento (o qual tem sua resposta evidente depois de sua apresentação) “Quando podemos dizer que uma Constituição escrita é boa e duradoura?52”. O autor responde o questionamento de forma categórica! Quando a mera folha de papel corresponder à Constituição real e tiver como viga mestra os fatores reais de poder ela terá esses adjetivos expostos na questão, senão a folha de papel sucumbirá diante da realidade e das forças vitais que impulsionam o país, em eventuais conflitos entre as duas Constituições. Não podemos nos omitir de consignar uma memorável passagem da obra de Lassale, que objetiva reforçar todo alegado em sua construção teórica, constituindo um inusitado exemplo. Vejamos: Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma macieira e segurar no seu tronco um papel que diga: “Esta árvore é uma figueira.” Bastará esse papel para transformar em figueira o que é macieira? Não, naturalmente; E embora 50

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª edição Ed. Almedina, 2000. 51 LASSALE, Ferdinand. Op. Cit., p. 31. 52 Idem. Ibidem, p. 39.

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conseguissem que seus criados, vizinhos e conhecidos, por uma razão de solidariedade, confirmassem a inscrição existente na árvore de que o pé plantado era uma figueira, a planta continuaria sendo o que realmente era e, quando dese frutos, destruiriam estes a fábula, produzindo maçãs e não figos. Igual acontece nas Constituições53 (grifos nossos).

Nesta esteira, Lassale demonstra como a Constituição escrita é fulminada quando dissonante da realidade fática dominante na sociedade, ou seja, a Constituição real e efetiva vai, paulatinamente, se impondo e subjugando à Constituição escrita, como no exemplo vivido pelo autor à época, a Constituição Prussiana de 1850, onde observa que o rei pudesse “continuar a deturpá-la, a transformá-la sem pudor54”. Na conclusão da obra o autor reconhece que os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas sim de poder! Ou seja, como reiteradamente afirmado no decurso desse tópico, a real Constituição de um país, na concepção de Lassale, é aquela que englobam os fatores reais e efetivos de poder. Noutro giro, as Constituições escritas são despidas de poder impositivo e durabilidade quando não estão em fiel harmonia com a realidade dominante, a qual impera no contexto social de determinada comunidade. Por fim, não podemos nos omitir do enfrentamento ao objeto do presente tópico, objetivando pontuar alguns comentários, notadamente no que tange à eficácia da Constituição ficar a mercê da vontade dos poderes dominantes, pois isso constituiria a negação ao sentido jurídico de Constituição, a qual configura norma hierarquicamente superior a qualquer outra no contexto de determinado ordenamento jurídico. Não podemos tratar essas duas realidades, a jurídica e a social, como institutos que se excluem, mas sim como instrumentos harmônicos em busca da efetividade dos preceitos abarcados pela Constituição. Devemos levar em conta que o aspecto histórico e social exerce grande influência na construção do ordenamento jurídico, a qual não se desenvolve de forma alheia ao meio socioeconômico 55. Pelo exposto, como é de notório saber que nenhuma construção teórica é livre de críticas, ressaltamos que o principal contraponto ao pensamento propagado por

53

LASSALE, Ferdinand. Op. Cit., p. 42/43. Idem. Ibidem, p. 43. 55 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 36. 54

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Lassale será enfrentado no próximo tópico do presente estudo, notadamente no que se refere à efetividade dos preceitos constitucionais. 2.4. A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO Como ventilado no fim do tópico anterior, o presente tópico abordará a temática acerca da força normativa da Constituição, especialmente no que tange ao escritos de um dos juristas percussores no tema, o alemão Konrad Hesse, o qual se debruçou sobre a obra de Ferdinand Lassale, procedendo ao enfrentamento teórico no exposto em “A Essência da Constituição”. Importante ressaltar que Hesse reconhece a grande relevância da referida obra de Lassale e não afastou a importância dos fatores reais de poder no contexto constitucional de determinada sociedade, bem como reconhece que as questões constitucionais são, em certo ponto, questões políticas. O autor de “A Força Normativa da Constituição56” reconhece em sua obra que tanto na prática política, como nas questões mais essenciais da vida do Estado, o poder da força se sobressai em superioridade às normas jurídicas, noutras palavras “que a normatividade submete-se à realidade fática57”. Não obstante, Hesse afirma que o efeito determinante exclusivo da denominada Constituição real e efetiva importa na negação tácita da Constituição jurídica, fato este que

desembocaria

na

própria

negação

do

Direito Constitucional como ciência jurídica. Conforme afirmado pelo autor, como a totalidade das ciências jurídicas, o Direito Constitucional também configura uma ciência normativa, as quais se contrapõem às denominadas ciências da realidade, como a Sociologia e a Ciência Política, por exemplo. Nesta esteira, Konrad Hesse alude que se as normas constitucionais se limitarem a somente a prescrever relações fáticas, que por sua dinamicidade são facilmente modificadas e superadas, assim, realmente, a Constituição jurídica seria despida de ciência jurídica. 56

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Traduzido por Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1991. 57 Idem. Ibidem, p. 10.

40

Acerca do embate entre a Constituição jurídica e as relações fáticas, Hesse induz que: Assim, o Direito Constitucional não estaria a serviço de uma ordem estatal justa, cumprindo-lhe tão somente a miserável função – indigna de qualquer ciência – de justificar as relações de poder dominantes. Se a Ciência da Constituição adota essa tesa passa a admitir a Constituição real como decisiva, tem-se a sua descaracterização como ciência normativa. Não haveria mais como diferenciá-la da Sociologia ou da Ciência Política 58 (grifos nossos).

Pelo exposto, Hesse consigna em sua obra alguns questionamentos59 essenciais para a correta compreensão da verdadeira força normativa da Constituição, como: Existe, ao lado dos fatores reais de poder, também força determinante do Direito Constitucional? Qual seriam o fundamento e alcance do Direito Constitucional? A força normativa da Constituição não configuraria uma ficção necessária, a qual objetiva criar a suposição que o direito domina a vida do Estado, quando no plano fático outras forças se mostram dominantes? Com base na obra de Hesse, buscaremos ao longo desse tópico mostrar as respostas do autor aos questionamentos propostos. De início, Hesse determinada que o Ordenamento Jurídico e a realidade devam estar ligados, de forma que uma análise isolada destes fenômenos não seria suficiente para preencher o dificultoso caminho visando solucionar os problemas de força impositiva da Constituição. Assim, categoricamente, o autor afirma que no viés somente jurídico, uma norma está vigendo ou está derrogada e no que tange à realidade fática, a exclusividade desse enfoque acarreta em ignorar o significado de ordenação jurídica. Com base no referido, a radical divisão entre o ser e o dever-ser, no âmbito constitucional, não levaria a qualquer avanço nas questões propostas. Assim, em síntese “Eventual ênfase numa ou noutra direção leva quase inevitavelmente aos extremos de uma norma despida de qualquer elemento de realidade ou de uma realidade esvaziada de qualquer elemento normativo 60”.

58

HESSE, Konrad. Op. Cit., p. 11. Idem. Ibidem, p. 11 e ss. 60 Idem. Ibidem, p. 14. 59

41

Notamos que, como toda e qualquer legislação, a norma constitucional não tem sua existência dissociada da realidade, ambas devem estar caminhando na regulação dos atos estatais. Assim o autor observa que a pretensão de eficácia da Constituição não pode estar separada das condições históricas de sua realização, numa verdadeira relação de interdependência61. Assim, a norma constitucional não pode existir com completa autonomia da realidade fática. Não obstante, Hesse assevera que “a norma constitucional somente logra atuar se procura construir o futuro com base na natureza singular do presente62”. Entretanto, o renomado autor induz que a força normativa da Constituição não reside apenas nessa adequação com a realidade fática e, embora a Constituição não realize nada sozinha, pode haver em seu bojo a imposição de tarefas, sendo certo que quando essas imposições fossem efetivamente concretizadas a Constituição se transformaria em força ativa, caso exista a vontade dos órgãos públicos de atuarem com base na orientação emanada da Constituição. Assim, Hesse identifica que a Constituição se transforma em força ativa quando estiverem presentes na consciência geral, notadamente nos responsáveis pela ordem constitucional, não só a vontade de poder, mas a vontade de Constituição 63. Konrad Hesse adverte que a vontade de Constituição se assenta em três vertentes, as quais: Baseia-se na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside, igualmente, na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita de estar em constante processo de legitimação). Assenta-se também na consciência de que, ao contrário do que se dá com uma lei no pensamento, essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso de vontade humana. Essa ordem adquire e mantém sua vigência através dos atos de vontade64 (grifos nossos).

Nesse passo, com base no entendimento que a Constituição não expressa apenas o emanado de dada realidade, visando os elementos normativos da Constituição através dos quais ela ordena e conforma a realidade políticas e sociais, pois a Carta 61

HESSE, Konrad. Op. Cit., p. 15 e ss. Idem. Ibidem, p. 18. 63 Idem. Ibidem, p. 19. 64 Idem. Ibidem, p. 19/20. 62

42

Constitucional não pode ser encarada como um mero conselho ou aviso, ela tem sim sua carga normativa que tem força ativa quando analisada com a realidade. Sintetizando, a Constituição jurídica “logra conferir forma e modificação à realidade65”. Invocando as vertentes apontadas por Hesse, resta claro o sentimento que o autor expõe que a força ativa da Constituição se mostra mais evidente quanto maior for o sentimento geral de inviolabilidade dos mandamentos constitucionais, no passo que a intensidade da força normativa da Constituição configurava uma vontade de Constituição. Um dos apontamentos mais interessantes do autor no tema é a posição tomada pelas forças que detém condições de violar a Constituições preferem materializar seus preceitos, por conseguinte será conservada sua força normativa, o que deve ocorrer como explicitado pelo autor mesmo em tempos difíceis, onde notadamente a Constituição é colocada à prova pelos fatores reais de poder. Pelo exposto, Hesse demonstra que a Constituição não é, necessariamente, a parte mais fraca nas relações de poder, pois ela contém pressupostos realizáveis, que mesmo nas ocasiões de choque entre realidade e Constituição, ensejam assegurar a forma normativa da Constituição. Outrossim, Hesse assevera que nas hipóteses que esses pressupostos não puderem ser materializados, os problemas e questões constitucionais tomarão as vestes de questões de poder, onde a Constituição jurídica sucumbirá frente aos fatores reais de poder. Por fim, compulsando-nos sobre a obra de Hesse, patente é a necessidade de implantar uma prática constitucional voltada à realização dos pressupostos realizáveis da Constituição, respeitando seus preceitos essenciais e transformando-a em força ativa. Ou seja, conforme precisas lições de Ingo Wolfgang Sarlet, “A efetividade das normas constitucionais diz respeito, portanto, à pretensão de máxima realização, no plano da vida real, do programa normativo abstratamente estabelecido..., como também pontua Luis Roberto Barroso, ao processo do “dever ser” normativo, para o plano do “ser” da realidade social66”.

65 66

HESSE, Konrad. Op. Cit., p. 24. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Op. Cit., p. 183.

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3. APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS 3.1. EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS No presente tópico coarctaremos nossas análises a dois momentos antagônicos – assim qualificados pela doutrina constitucional brasileira – que se referem à vigência e eficácia das normas, conquanto advertimos que a temática causa celeuma na doutrina no que tange aos conceitos atribuídos aos fenômenos em comento. Feitas essas considerações iniciais, partiremos da premissa que as normas constitucionais – sobretudo estas, mas assim o são todas as normas jurídicas – são criadas para serem aplicadas, produzirem seus efeitos jurídicos no “mundo da vida”. Importa ressaltar que existem condições de aplicabilidade das normas constitucionais, que buscam perquirir requisitos para a imperatividade das normas constitucionais, como: “Estará em vigor? Será válida ou legítima? Será apta para produzir os efeitos pretendidos, ou precisará de outras normas que lhe desenvolvam o sentido? Em outras palavras: tem, ou não tem, eficácia?”67. Assim, podemos sintetizar as condições de aplicabilidade das normas constitucionais como: 1) a vigência; 2) a validade (também denominada legitimidade); e 3) eficácia. Com efeito, objetivaremos esmiuçar esses diferentes institutos, notadamente no que tange às consequências dos mesmos nas normas constitucionais. Começaremos pela vigência, instituto que não gera maiores dificuldades de conceituação, porquanto vigência significa que a norma foi regularmente promulgada e publicada, ou seja, a vigência faz a norma existir juridicamente68. Gramaticalmente podemos definir como :“1. Particularidade ou condição daquilo que é vigente; que está em vigor e apresenta resultados;2. Situação ou resultado terminado que se encontra em vigor por não ter sido revogado”69. Assim, notamos que com a vigência a norma jurídica (lato senso) passa a ter obrigatoriedade ou exigibilidade, aspecto este que faz com que os componentes de 67

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 4ª Edição. São Paulo: Ed. Malheiros, 2000, p. 51. 68 Idem. Ibidem, p. 52. 69 Disponível em: http://www.lexico.pt/vigencia/. Acesso em 28/06/2015.

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uma determinada sociedade submetam-se aos seus efeitos, entretanto não podemos nos omitir em salientar que a vigência não se confunde com eficácia, mas sim aquela configura pressuposto desta, o que será mais aprofundado em momento oportuno. Por derradeiro, não podemos deixar de mencionar o fenômeno jurídico denominado vacatio legis – ou sendo mais específico com o objeto do presente, vacatio constitutionis – que configura uma verdadeira cláusula de vigência 70, em outras palavras, um determinado lapso de tempo no qual a nova norma não se aplica oportunidade em que todo regramento anterior regulamentador da mesma matéria e/ou interesse continua valendo, por conseguinte são válidos os atos praticados sob sua égide. No que tange à vacatio constitutionis, a qual tem efeitos iguais ao supramencionado, ocorre na esfera das normas constitucionais, entretanto esse fenômeno é bastante raro, tanto nas Constituições predecessoras à Constituição Cidadã quanto no constitucionalismo universal. Exemplificando os (não) efeitos advindos da vacatio constitutionis, José Afonso da Silva professa: A Constituição do Brasil de 1967 foi promulgada e publicada no dia 24 de janeiro de 1967, para entrar em vigor no dia 15 de março de 1967. A Constituição Federal de 1969 foi promulgada n o dia 17 de outubro de 1969 e entrou em vigor no dia 30 do mesmo mês. Houve, pois, em ambos os casos, um período de vacatio. No caso, vacatio legis constitutionis, ou simplesmente vacatio constitutionis. (...)Não é, pois, comum a vacatio constitutionis, mas sua natureza não difere da vacatio legis em geral. Nesse período, a constituição não regula nada; embora já exista, não existe juridicamente em sua totalidade, porque, praticamente, só atua o dispositivo que marcou o momento de sua entrada em vigor 71.

No que concerne à validade – ou legitimidade – já nos debruçamos sobre esta condição indiretamente quando abordamos brevemente a Concepção Jurídica de Constituição. Insta relembrar que validade constitui o enquadramento das normas jurídicas aos ditames impostos por norma de hierarquia superior. Assim, considerando o escalonamento normativo proposto por Hans Kelsen, a Constituição jurídica é o filtro de legitimidade e legitimação das normas inferiores. Sintetizando, “as normas 70

JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 81 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 4ª Edição. São Paulo: Ed. Malheiros, 2000, p. 54. 71

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jurídicas em geral valem e são legítimas, na medida em que se conformam, formal e materialmente, com as normas constitucionais72”. Vencidos as primeiras condições de aplicabilidade das normas constitucionais, partiremos para o mais relevante deles para o presente trabalho, qual seja: a eficácia, a qual em apertada síntese significa os efeitos produzidos pela norma jurídica no seio social. Nesse passo, iniciaremos a análise com importante diferenciação apontada por Hans Kelsen entre validade (denominada pelo importante autor como vigência) e eficácia, assim sendo, conforme sempre precisa lição de Dirley da Cunha Júnior73, para Kelsen a validade está no plano teórico do dever-ser, enquanto a eficácia está no plano do ser, ou seja, se a norma jurídica em análise é efetivamente seguida e aplicada no âmbito social. Assim, é de fácil percepção que os elementos em questão não se confundem, embora sejam conexos, sendo certo que ambos podem estar em sintonia ou não em determinadas normas jurídicas. Partindo dessa premissa inicial, podemos subdividir a eficácia das normas em duas vertentes, quais sejam: eficácia social e eficácia jurídica. Nesta esteira, eficácia social significa a observância da norma no plano real dos fatos, ou seja, que as condutas perpetradas pelos membros submetidos a determinado regramento sejam efetivamente guiados na forma determinada e proposta pela norma. Já no que se refere à eficácia jurídica, de acordo com os ensinamentos sempre estimulantes e elucidativos de José Afonso da Silva, “a eficácia diz respeito à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica74”. José Afonso da Silva, em sua obra paradigmática sobre o tema em comento, leciona que: Por isso é que, tratando-se de normas jurídicas, se fala em eficácia social em relação à efetividade, porque o produto final objetivado pela norma se consubstancia no controle social que ela pretende, enquanto a eficácia jurídica é apenas a possibilidade de que isso venha a acontecer 75 (grifos nossos).

72

JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 82. Idem. Ibidem, p. 83. 74 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 4ª Edição. São Paulo: Ed. Malheiros, 2000, p. 66. 75 Loc. Cit. 73

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3.2. NATUREZA JURÍDICA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS O presente tópico não gera maiores discussões doutrinárias visando atribuir natureza e conceito às normas constitucionais, sendo certo que muitos pontos relevantes já foram abordados anteriormente. Assim, em simples afirmação, consideram-se normas constitucionais todas aquelas insculpidas na Constituição jurídica. Com efeito, tomando por base o conceito acima referido, doutrinadores de estofo afastam a relevância prática da diferenciação de normas constitucionais materiais e formais76. Entretanto, importa diferenciá-las por amor à completude. Configuram normas constitucionais materiais aquelas que regem os elementos essenciais para a regular vida do Estado, ou seja, são as normas reguladoras de matérias como organização e exercício dos poderes, direitos e garantias fundamentais. Já para as normas constitucionais formais – como resta assentado em sua própria denominação – o relevante é a forma, em outras palavras as normas são consideradas constitucionais simplesmente por estarem positivadas no texto constitucional, a despeito da relevância da matéria para o Estado ou a sociedade. Não obstante, na seara fática todas as normas constitucionais são dotadas de imperatividade, tendo em vista que uma divisão radical entre normas materiais e formais pode desaguar na afirmação equivocada – com máxima vênia aos entendimentos divergentes – que existe hierarquia entre as normas constitucionais ou até mesmo a negação de natureza jurídica para algumas prescrições constitucionais 77. Acerca da imperatividade das normas constitucionais – daqui em diante sem mais separá-las em blocos de normas formais ou materiais – podemos consignar que inexistem normas constitucionais despidas de eficácia (como veremos no próximo tópico existem verdadeiros “níveis” de eficácia), em razão que de “todas elas irradiam efeitos jurídicos78”, sobretudo por conta do modelo adotado de supremacia da Constituição. 76

Por todos: JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 77. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 4ª Edição. São Paulo: Ed. Malheiros, 2000, p. 45/46. 78 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 79. 77

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Buscando esmiuçar a imperatividade das normas constitucionais, bem como suas consequências em caso de inobservância, Dirley da Cunha Júnior assevera que: A imperatividade é da essência das normas jurídicas e, em especial, das normas constitucionais, sem a qual não há falar em normas jurídicas. É seu atributo fundamental. Ela implica num dever de obediência, cuja obrigatoriedade é constrangida pela ameaça de sanção, pois é exatamente a presença da sanção, prevista na própria norma ou resultante do sistema normativo, que garante a eficácia de uma norma jurídica, ensejando sua aplicação coativa quando não é espontaneamente observada79 (grifo nosso).

Como decorrência da imperatividade de todo o corpo constitucional – assim como do cunho jurídico de todas elas emanado – não podemos nos omitir em consignar que restou superada máxima das normas meramente programáticas, ou, melhor dizendo, que suas previsões constituem meras linhas diretivas da atuação estatal, totalmente despidas de eficácia jurídica, pois como observado por Ruy Barbosa: “não há, numa Constituição, cláusulas a que se deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas tem força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular aos seus órgãos”80. Na sequência, apesar da inegável juridicidade das normas programáticas seu descumprimento não tem o condão de gerar nenhum direito subjetivo e/ou exigibilidade, porque não existe um direito delineado e perfeitamente exigível previsto em seu bojo81. No entanto, Luis Roberto Barroso salienta que as normas programáticas geram alguns efeitos imediatos e subjetivos82, quais sejam: 1) os efeitos denominados imediatos, a saber: 1.1) revogação dos atos normativos anteriores que vão de encontro às suas prospecções; e 1.2) acarretam na inconstitucionalidade dos atos normativos a elas posteriores quando incompatíveis com suas previsões. 2) os efeitos considerados como subjetivos: 2.1) a possibilidade de insurgir-se judicialmente ao cumprimento à regras e/ou seus efeitos, desde que dispunham de forma contrária à seus preceitos; e

79

JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 79. Loc. Cit. 81 BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas. 7ª Edição. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2003, p. 121. 82 Idem. Ibidem, p. 122.

80

48

2.2) obtenção de prestações jurídicas norteadas no mesmo sentido e alcance das normas utilizadas como parâmetro do pleito. 3.3. CLASSIFICAÇÃO DE JOSÉ AFONSO DA SILVA Importa

ressaltar

alguns

aspectos

introdutórios

ao

presente

tópico.

Primeiramente salientando que, em que pese existirem outras classificações de grande relevância, não nos debruçaremos sobre as mesmas, tendo em vista que, em maior ou menor grau, se lastrearam na classificação proposta pelo eminente jurista José Afonso da Silva, em sua notável obra “Aplicabilidade das Normas Constitucionais”, a qual já nos foi objeto de auxílio em diversos momentos, e continuará o sendo devido à clareza de suas linhas e à sua imensa profundidade e riqueza teórica. Outra premissa básica introdutória ao presente, já aludida em momento anterior, se funda na ideia que não existe norma constitucional destituída de eficácia, sendo notório que todas elas irradiam efeitos jurídicos causando, desde sua vigência e posterior ou imediata validade, um efeito de conformidade de toda legislação preexistente. Logo, partindo dessa premissa, José Afonso da Silva adverte que ocorre, na verdade, uma possibilidade de contenção da plenitude dos efeitos pretendidos pelo constituinte, enquanto não sobrevier normatização ordinária modulando e regulando seus efeitos83, em outras palavras, o que diverge é o grau de eficácia e aplicabilidade, podendo ser maiores ou menores84. Assim, José Afonso da Silva buscou escalonar as normas constitucionais em uma tricotomia, considerando seu grau de eficácia e aplicabilidade. Nessa vertente as normas constitucionais se dividem em: 1) normas constitucionais de eficácia plena; 2) normas constitucionais de eficácia contida; e 3) normas constitucionais de eficácia limitada. Passadas

essas

breves

considerações

introdutórias,

explicitaremos

as

características mais marcantes de cada modalidade de normas constitucionais

83

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 4ª edição. Editora Malheiros. São Paulo: 2000, p. 82. 84 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 90.

49

propostas pelo grande José Afonso da Silva, por mais que seja dificultoso resumir sua grande obra em um curto espaço. Com efeito, as normas constitucionais de eficácia plena, nas palavras de Meirelles Teixeira reproduzidas por José Afonso da Silva, são aquelas que “produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular”85, ou seja, tem aplicabilidade direta, imediata e integral. Nesta esteira, conforme salientado por Dirley da Cunha Júnior 86, observamos que nos dias atuais há grande adesão a tese que reconhece a eficácia plena à maioria das normas constitucionais, principalmente quando contrastamos as normas constitucionais com o reconhecimento do direito à efetivação do regramento constitucional, que constitui premissa básica a qual nos esforçaremos para demonstrar no presente trabalho. Na sequência, José Afonso da Silva busca demonstrar as condições gerais de aplicabilidade das normas de eficácia plena, nas quais têm que restar claro que o constituinte quis atribuir todos os meios e elementos para sua execução autônoma – vale dizer, sem que fique evidente que o constituinte resguardou espaço para a atuação do legislador ordinário, seja para restringir ou aumentar seu campo de incidência – assim, as normas de eficácia plena “aplicam-se só pelo fato de serem normas jurídicas, que pressupõem, no caso, a existência do Estado e de seus órgãos”87. Na seara das normas constitucionais de eficácia contida, que são dotadas da mesma aplicabilidade direta, imediata, porém não integral – aqui reside o ponto nevrálgico entre as normas constitucionais de eficácia contida e de eficácia plena – o que significa uma margem de possível restrição pelo legislador infraconstitucional aos preceitos estabelecidos pelo constituinte. Assim, como assenta José Afonso da Silva, “com relação a elas, a legislação futura, antes de completar-lhes a eficácia, virá impedir a expansão da integridade de seu comando jurídico88”.

85

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 4ª Edição. Editora Malheiros. São Paulo: 2000, p. 101. 86 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 94. 87 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 4ª Edição. Editora Malheiros. São Paulo: 2000, p. 102. 88 Idem. Ibidem, p. 103.

50

Como peculiaridades mais marcantes das normas constitucionais de eficácia contida, José Afonso da Silva pontua que: I – São normas que, em regra, solicitam a intervenção do legislador ordinário, fazendo expressa remissão a uma legislação futura; mas o apela ao legislador ordinário visa a restringir-lhes a plenitude da eficácia (...). II – Enquanto o legislador ordinário não expedir a normação restritiva, sua eficácia será plena; [...]. III – São de aplicabilidade direta e imediata, visto que o legislador constituinte deu normatividade suficiente aos interesses vinculados à matéria de que cogitam. IV – Algumas dessas normas já contêm um conceito ético juricizado (bons costumes, ordem pública etc.), como valor societário ou político a preservar, que implica a limitação de sua eficácia. V – Sua eficácia pode ainda ser afastada pela incidência de outras normas constitucionais, se ocorrerem certos pressupostos de fato (estado de sítio, por exemplo)89 (grifo nosso).

Com base no acima esposado, José Afonso da Silva busca delimitar a mens legi dessa delimitação da eficácia das normas constitucionais, ou seja, por quais motivos o legislador constituinte deixaria a cargo do ordinário essas possíveis e futuras limitações. Com a finalidade de sanar essas indagações o autor, emanando profunda sapiência e cultura jurídica, nos informa que os maiores limitadores residem nos fins gerais do Estado, sobretudo no que tange às finalidades social, advindas do welfare state. Assim, ao limitar a conduta dos sujeitos privados a finalidade precípua seria a tutela da liberdade de todos, ou seja, “de modo a que o exercício dos direitos por uns não prejudique os direitos dos demais90”. Por derradeiro, normas de eficácia contida pressupõem a regulação exaustiva – de forma que esse comando possa ser exercido de forma autônoma – de determinada matéria pelo legislador constituinte, embora este tenha deixado margem à atuação restritiva do Poder Público, na forma por ele (constituinte) estipulado ou nos termos que a lei estabelecer. Finalizando a classificação proposta do José Afonso da Silva, resta fazer comentários acerca das normas constitucionais de eficácia limitada, em sentido contrário as outras espécies, “dependem de intervenção legislativa para incidirem, 89

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 4ª Edição. Editora Malheiros. São Paulo: 2000, p. 104/105. 90 Idem. Ibidem, p. 114.

51

porque o constituinte, por qualquer motivo, não lhes emprestou normatividade suficiente para isso91”, ou seja, o legislador constituinte define “as bases mínimas” – se podemos assim definir – e atribui ao legislador ordinário a missão de efetivamente implementar aquele comando, por isso podemos afirmar que as normas constitucionais de eficácia limitada são de “aplicabilidade indireta e reduzida92”. Na esteira de definir as normas constitucionais de eficácia limitada, José Afonso da Silva as subdivide93 em: 1) as definidoras de princípio institutivo ou organizativo (também denominada pelo autor como normas constitucionais e princípio institutivo); e 2) as normas constitucionais de princípio programático. Com relação às normas constitucionais de princípio institutivo, podemos conceitua-las como “esquemas gerais, um como que início de estruturação de instituições, órgãos ou entidades94”, ou seja, basicamente, são normas que “definem a estrutura e as funções de determinados órgãos e instituições, cuja formatação definitiva, contudo, se encontra na dependência do legislador ordinário 95”. As normas constitucionais de princípio programático já foram analisadas de forma sucinta no tópico anterior, mas existe necessidade de proceder algumas considerações teóricas mais profundas, notadamente no que tange às observações feitas por José Afonso da Silva. Na busca de um conceito juridicamente adequado para as normas constitucionais de princípio programático Meirelles Teixeira apud José Afonso da Silva prescreve que: Normas constitucionais através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado 96 (grifo nosso).

91

JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 96. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Op. Cit., p. 167. 93 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 4ª Edição. Editora Malheiros. São Paulo: 2000, p. 118. 94 Idem. Ibidem, p. 123 e ss. 95 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Op. Cit., p. 167. 96 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 4ª Edição. Editora Malheiros. São Paulo: 2000, p. 138. 92

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Assim, como já explicitado anteriormente, existe uma clara limitação de materialização das normas programáticas – as quais na maioria das vezes estão relacionadas aos direitos sociais –, entretanto ficam vencidas quaisquer construções teóricas que retiraram o cunho jurídico-normativo das normas programáticas, pois, como já observamos, delas advêm importantes efeitos e, em maior ou menor grau, exigem observância às suas prescrições. Ademais, os argumentos que buscam atribuir a ausência de efeitos às normas ditas programáticas – geralmente tratadas como “meramente” programáticas – são extremamente reducionistas da efetividade constitucional e não se coaduna com a importância da Supremacia Constitucional, constituindo falta de interpretação constitucional adequada, como bem observa Lenio Luiz Streck97. 3.4. INSTRUMENTOS PARA “GARANTIR” A EFICÁCIA CONSTITUCIONAL – A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL Em que pese não ser o objetivo precípuo do presente trabalho, exceto no que tange especificamente à Jurisdição Constitucional, resta necessário efetuar alguns apontamentos básicos acerca dos artifícios jurídicos que visam à viabilização dos preceitos

constitucionais,

sobretudo

quando

estamos

lidando

com

direitos

fundamentais lato sensu. É de saber notório que os legisladores constituintes tiveram profunda preocupação com a efetividade da Carta da República de 1988, de modo que procuraram inserir em seu bojo vários instrumentos aptos a serem manejados em caso de descumprimento aos seus preceitos e regras. Esses instrumentos, nas sempre precisas lições de José Afonso da Silva, que “visam à eficácia e aplicabilidade de todas as normas de direitos e garantias fundamentais”98. Segue o autor, sabidamente, nos informando que esses problemas de eficácia e aplicabilidade incidem, principalmente, nos ditos direitos sociais, em razão da preponderância de normas programáticas neste âmbito. 97

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 4ª Edição. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2014, p. 100. 98 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 4ª Edição. São Paulo: Ed. Malheiros, 2000, p. 164.

53

Dito isso, entre outros, podemos classificar como instrumentos idôneos a fim de combater a inércia aos ditames constitucionais os seguintes: O Mandado de Injunção, o qual se encontra positivado no art. 5º, inciso LXXI, da CRFB/1988, objetivando a defesa das normas definidoras de direitos fundamentais ante a inércia estatal; A Inconstitucionalidade por Omissão, que está insculpida no art. 103, § 3°, da CRFB/1988, com a finalidade de defender as normas constitucionais de eficácia limitada – aqui o objeto é mais amplo, podendo ser objeto qualquer norma constitucional, até as definidoras de direitos fundamentais; e A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a qual encontra azo no art. 102, § 1°, da CRFB/1988, que é uma ação residual em relação às outras ações do controle concentrado, em virtude de possuir um objeto bem mais amplo. Ademais, a despeito dos breves comentários acerca dessas ações constitucionais de grande relevância, que serão abordadas com um pouco mais de atenção quando da análise do controle da omissão inconstitucional, o meio com profunda relação com a temática da presente pesquisa é a Jurisdição Constitucional, a qual para Lenio Luiz Streck “é que a experiência de várias nações tem apontado para o fato de que o Estado Democrático de Direito não pode funcionar sem uma justiça constitucional99”. Com base nas lições de João Luis Esteves 100, podemos conceituar Jurisdição Constitucional como a atividade exercida pelo Poder Judiciário visando à efetivação das normas constitucionais, principalmente aquelas que resguardam os direitos fundamentais. Assim, a Jurisdição Constitucional se materializa de duas distintas formas (ou sistemas), na forma de um controle concentrado de constitucionalidade, o qual busca analisar a lei enquanto abstração, ou concreto, no bojo da análise de um caso concreto, independente da forma do sistema, o controle de constitucionalidade é vital para garantia da rigidez e supremacia constitucional. De acordo com as lições de Dirley Cunha Júnior: De efeito, partindo da premissa teórica de que uma Constituição rígida é suprema ante todos os comportamentos e atos do poder público, é indubitavelmente manifesta a necessidade em que se encontra a própria Constituição de organizar um sistema ou processo adequado de sua própria 99

STRECK, Lenio Luiz. Op. Cit., p. 115. ESTEVES, João Luiz. Direitos Sociais Fundamentais no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Ed. Método, 2007, p. 58.

100

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defesa, em face dos atentados que possa sofrer, quer do Poder Legislativo, através das leis em geral, quer do Poder Executivo, através dos atos normativos e concretos 101.

Nesta esteira, com base na exposição do referido autor, notamos que a Jurisdição Constitucional é de notória importância para o saneamento das omissões política – sejam elas lacunas ou inércias materiais –, especialmente em áreas nas quais a implementação de políticas públicas não tem o condão de alavancar a popularidade das autoridades políticas responsáveis pelo manejo do orçamento público, pois somente por meio desta poderá haver a máxima efetividade dos preceitos constitucionais. Assim, a Jurisdição Constitucional seria responsável pela resolução dos conflitos constitucionais, que guardem parâmetro imediato na constituição, ou como assevera

Dirley

da

Cunha

Júnior102

as

questões

que

envolvam

a

(in)

constitucionalidade dos atos normativos e das omissões e inércias do Poder Público enquanto detentor de competência e poder instituído pela Constituição, a salvaguarda e materialização dos direitos fundamentais e o conflito de atribuições entre os órgãos constitucionais e entidades políticas. Nas precisas lições de João Luis Esteves: [...] a jurisdição constitucional é aquela função jurisdicional exercida para tutelar, manter e controlar a supremacia da Constituição, pouco importando o órgão jurisdicional que a exerça. É parte da administração da justiça que tem como objeto específico matéria jurídico-constitucional de um determinado Estado. No Brasil, a jurisdição constitucional pode ser desempenhada por todos os órgãos do Poder Judiciário, e não apenas por órgãos especializados. Isto é, onde há defesa da supremacia da Constituição, há jurisdição constitucional, indiferentemente do órgão que a realize103.

Nesse passo, resta evidente que com o advento da nova concepção de constitucionalismo – o neoconstitucionalismo – buscou-se cada vez mais dar efetividade as normas constitucionais, e a atuação jurisdicional-constitucional tornouse elemento chave das constituições modernas para garantia de aplicação de suas

101

JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 399. Idem. Ibidem, p. 387. 103 ESTEVES, João Luiz. Op. Cit., p. 58. 102

55

disposições, sobretudo em países com altíssimos níveis de desigualdade e ausência de acesso a condições básicas de vida. Noutro giro, analisaremos de forma rápida os denominados pressupostos da Jurisdição Constitucional, embasando-nos nas lições de Dirley da Cunha Júnior, o qual expõe os seguintes pressupostos: 1) Constituição formal, vale dizer, “conjunto normativo de princípios e regras, plasmado num texto jurídico supremo 104”; 2) Constituição como norma jurídica fundamental, rígida e suprema, notadamente consubstanciado em um processo mais sofisticado de modificação, diverso das demais leis; 3) A previsão de um órgão competente, de forma que “[...]esse controle somente existirá se a própria Constituição previr, expressa ou implicitamente, um ou mais órgãos com competência para realiza-lo105”. Com efeito, talvez o maior desafio das constituições modernas, especialmente as sociais, é de ter suas normas modificando a vida do Estado, de tal maneira que suas prescrições possam realmente ser efetivadas. Nesse sentido, esclarecedoras são as lições de José Joaquim Gomes Canotilho acentuando os problemas fundamentais enfrentados pela Teoria da Constituição, dos quais se destaca o problema de inclusão e de materialização do direito106, consistente na ausência de força pulsante capaz de modificar a sociedade, ao contrário, é a Constituição que se modifica ante aos anseios sociais. Pelo exposto, observamos que é central o papel da Jurisdição Constitucional na defesa da supremacia da Constituição a fim de que as disposições constitucionais não se tornem meras folhas de papel, relembrando as ponderações concertadas por Ferdinand Lassale, sobretudo pelos fatores externos à Constituição. Para finalizar o presente capítulo, de grande valia é a citação de Noah Feldman ressaltando a importância da Jurisdição Constitucional nas democracias, segue “É importante que a Suprema Corte e seus órgãos reconheçam a responsabilidade do governo para proteção da democracia diante dos efeitos prejudiciais do mercado superpoderoso”107. 104

JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 391. Idem. Ibidem, p. 393. 106 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit., p. 1329. 107 FELDMAN, Noah. Apud LEAL, Saul Tourinho. A Nova Face da Jurisdição Constitucional Brasileira. In: FELLET, André Luiz Fernandes; PAULA, Daniel Giotti de; NOVELINO, Marcelo (Coords.). Op. Cit., p. 454. 105

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4. DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA 4.1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS Vencidos os breves apontamentos acerca das normas constitucionais, urge realizar algumas intervenções sobre os Direitos Fundamentais, seu conceito, sua evolução histórica – notadamente com base nas gerações/dimensões dos direitos fundamentais –, suas características marcantes, a problemática relacionada à efetividade e, finalmente, os reflexos doutrinários e jurisprudenciais da reserva do possível e do mínimo existencial, os quais são de grande relevância para o adequado entendimento do presente. Com efeito, podemos conceituar Direitos Fundamentais como os direitos reconhecidos e positivados no âmbito de um determinado Estado, vale dizer, insculpidos em diplomas normativos, em outras palavras “garantidos e limitados no espaço e no tempo, pois são assegurados na medida em que cada Estado os consagra”108. Com base nesse breve conceito a doutrina diferencia os direitos fundamentais dos denominados direitos humanos, sendo estes entendidos com base na teoria jusnaturalista, ou seja, como aqueles direitos inerentes à condição de ser humano, bem como remetem a um caráter supranacional. Nesse passo, impende tecer alguns comentários acerca da temática que envolve as chamadas gerações ou dimensões de direitos fundamentais, de grande importância por remontar a trajetória evolutiva do objeto do presente capítulo. Iniciamos a partir da problemática construída pela doutrina em razão da utilização do termo “geração”, porquanto poderia haver o equívoco em apontar que uma geração de direitos sucederia a outra, existindo um juízo de exclusão, por isso parcela da doutrina prefere o termo dimensão109, tendo em vista que as várias gerações constituem um processo cumulativo ou de complementariedade110. Ademais, mesmo o termo “dimensão” gera 108

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gonet. Op. Cit., p. 147. Por todos: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28ª edição. São Paulo: Ed. Malheiros, 2013, p. 383. 110 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 12ª edição. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2014, p. 54.

109

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certa celeuma doutrinária, tendo em vista que já se usa a expressão para denominar as dimensões objetivas e subjetivas dos direitos fundamentais. Nesse diapasão, começaremos a abordar, especificadamente, as dimensões dos direitos, sobretudo as três primeiras, tendo em vista que há maior consenso no conteúdo das mesmas, ou seja, dos direitos que compõem as referidas gerações. Nesse passo, a primeira dimensão dos direitos fundamentais tem como objeto a liberdade individual ou o significado que tais direitos configuram uma abstenção estatal, visto que a sua fruição depende de uma postura negativa do Estado, consubstanciada em uma não intervenção na esfera privada, ou conforme salienta Paulo Gonet Branco “Daí esses direitos traduzirem-se em postulados de abstenção dos governantes, criando obrigações de não fazer, de não intervir sobre aspectos da vida pessoal de cada indivíduo111”. Ademais, vale ressaltar que tal marco configura um Estado de Direito, notadamente voltado para a liberdade e igualdade formal. Assim, as denominadas liberdades públicas compõem a primeira dimensão de direitos fundamentais, ou seja, os direitos mais básicos do indivíduo frente ao poder estatal. Podemos elencar os seguintes exemplos: direito à vida; à propriedade; e à liberdade. Em linhas gerais são os direitos civis. Acerca dos direitos de primeira geração Paulo Bonavides leciona que: Os direitos de primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado112.

Neste diapasão, resta claro e evidente que os direitos de primeira geração se efetivaram ante a necessidade da proteção individual dos desmandos estatais – por isso são reconhecidos como direitos de defesa e/ou proteção –, o que é de notória constatação quando analisamos a realidade histórica à época de seu surgimento, sobretudo o pensamento liberal do Século XVIII. Assim, os principais documentos que consagraram tal geração foram as Declarações Americana (1776) e Francesa (1789), sob a forte influência dos movimentos históricos que buscavam a cessação dos

111 112

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gonet. Op. Cit., p. 137. BONAVIDES, Paulo. Op. Cit., p. 136.

58

privilégios estatais em detrimento dos cidadãos, entre outros documentos de notória importância113. Em precisa passagem acerca da importância dos direitos de primeira dimensão, Dirley da Cunha Júnior leciona que: “Eles já se consolidaram universalmente, não havendo Constituição digna desse nome que não os reconheça em toda a extensão114”. Com relação aos direitos de segunda dimensão, os quais são de grande importância para a presente pesquisa, tendo em vista seu caráter prestacional, tiveram seu surgimento pela insuficiência do Estado somente se abster em intervir em liberdades pessoas, mas sim efetivamente atuar como grande provedor, alinhado com uma perspectiva de Estado Social (Welfare State), por isso ao contrário do que ocorre na primeira geração, a segunda possui uma conotação positiva, vale dizer “Uma nova compreensão do relacionamento Estado/sociedade levou os poderes públicos a assumir o dever de operar para que a sociedade lograsse superar as suas angústias estruturais115”. Assim, a segunda geração de direitos fundamentais é constituída pelos direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os coletivos. Com o advento da Revolução Industrial europeia do Século XIX observou-se que o papel do Estado deveria ser entendido de uma maneira diferente, conforme já exposto, onde os principais documentos que consagraram tais direitos foram as Constituições da Alemanha (Weimar, 1919) e do México (1917). Assim, conforme poética passagem de Edvaldo Brito “Tudo isso resultou em se defender, em lugar da liberdade que oprimia, a intervenção que libertaria”116. Douglas Eros Pereira Rangel117 entende os direitos sociais como posições jurídicas, ou seja, direitos subjetivos que ensejam a atuação jurisdicional caso haja lesão ou ameaça ao direito pleiteado. Nesse sentido, observa o autor que os direitos sociais visam estabilizar condições desiguais ou como adverte com precisão o autor:

113

LENZA, Pedro. Op. Cit., p. 1028. JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 207. 115 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gonet. Op. Cit., p. 137. 116 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 209. 117 RANGEL, Douglas Eros Pereira. Op. Cit. 114

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[...] implementar as condições fáticas que permitam o efetivo exercício das liberdades fundamentais e que possibilitam realizar a igualização de situações sociais desiguais, proporcionando melhores condições de vida aos desprovidos de recursos materiais118.

Contudo, em virtude de tais direitos exigirem uma contrapartida estatal, grande parte dessas normas estão fadadas a não concretização, principalmente por conta da vontade política e ausência de recursos para tanto, o que está umbilicalmente ligado ao objeto do presente trabalho, pois na ausência política aos mandamentos constitucionais o Poder Judiciário estaria apto e incumbido para fazê-lo, desde que observados critérios que serão delimitados em momento posterior. Com relação ao tema, Paulo Bonavides assevera que: De juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade. Atravessaram, a seguir, uma crise de observância e execução, cujo fim parece estar perto, desde que recentes Constituições, inclusive a do Brasil, formularam o preceito de aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais 119.

Com base as lições acima expostas, observamos que os direitos de segunda geração foram revitalizados pelo postulado da máxima eficácia dos direitos fundamentais, que é de notória importância, principalmente em democracias com graus de desigualdade alarmantes, como no caso brasileiro. Ademais, podemos ressaltar que a referida dimensão possui como sustentáculo a igualdade material ou de fato, consubstanciada na máxima da justiça social ou igualdade de oportunidades, ou seja, diferentemente da primeira dimensão que buscava uma igualdade meramente formal. No que se refere aos direitos de terceira dimensão, nascidos em virtude do desenvolvimento social extremamente precário e mudanças na comunidade internacional, que são marcados pela titularidade difusa, ou seja, aqueles pertencentes a uma indeterminação de sujeitos, buscando a proteção do homem como coletividade social120. 118

RANGEL, Douglas Eros Pereira. Op. Cit. BONAVIDES, Paulo. Op. Cit., p. 583. 120 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p.216.

119

60

Conforme a esquematização formulada por Pedro Lenza: Novos problemas e preocupações mundiais surgem, tais como a necessária noção de preservacionismo ambiental e as dificuldades para proteção dos consumidores, só para lembrar aqui dois candentes temas. O Ser humano é inserido em uma coletividade e passa a ter direitos de solidariedade ou fraternidade121.

Assim,

podemos

apontar

como

direitos

de

terceira

geração:

ao

desenvolvimento; ao meio ambiente preservado; à paz; à preservação do patrimônio histórico; e cultural. A doutrina ainda aponta, além das clássicas dimensões já brevemente expostas, outras tantas dimensões, algumas com relevância teórica – como a quarta dimensão, com diferentes vertentes em Noberto Bobbio e Paulo Bonavides, e a quinta geração, difundida por Paulo Bonavides –, entretanto não entraremos no mérito dessas classificações por não haver um consenso doutrinário acerca de seu conteúdo. Por derradeiro, não podemos nos omitir em comentar uma interessante analogia doutrinária que, com vistas a classificar as três primeiras dimensões de direitos fundamentais, busca relacioná-las com o ideário iluminista da Revolução Francesa, consistente em: liberdade, igualdade e fraternidade. Realmente fica nítida a comparação quando analisamos o cerne de cada dimensão, assim: a liberdade relacionada à primeira dimensão, tendo em vista a necessidade de preservar as liberdades públicas individuais; a igualdade contrastada à segunda dimensão, notadamente pela atuação estatal visando à igualdade material; e a fraternidade casada com a terceira dimensão, em virtude dos direitos transindividuais, pertencentes a uma indeterminação de sujeitos. 4.2. CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Como já expusemos ao longo do presente trabalho, as normas delimitadoras de direitos fundamentais formam o cerne central da constituição em sentido material, junto com as normas de organizações do funcionamento estatal. Dessa forma, é de

121

LENZA, Pedro. Op. Cit., p. 1030.

61

extrema relevância apontar as principais características dos direitos fundamentais, com vistas a delinear o núcleo essencial dessas normas. Começaremos

a

abordagem

comentando

a

historicidade,

importante

característica dos direitos fundamentais, principalmente porque durante a evolução histórica dos direitos fundamentais restaram evidenciadas as lutas e revoluções que ensejaram a implementação de tais normas, conforme da análise das dimensões dos direitos fundamentais. Assim, a historicidade consiste em “Os direitos fundamentais são históricos, na medida em que emergem progressivamente das lutas que o homem trava por sua própria emancipação”122. No que se refere à universalidade, a qual evidencia que os direitos fundamentais são inerentes à condição humana, porquanto são imprescindíveis para a existência digna dos seres humanos, ou seja, tais direitos “destinam-se de modo indiscriminado, a todos os seres humanos”123. Com relação à universalidade, Dirley da Cunha Júnior leciona que: Ademais, a fixação do conteúdo dos direitos fundamentais fica a cargo da consciência geral e do consenso desenvolvido por determinada comunidade em cada momento histórico e cada lugar, de modo que a universalidade não deve ignorar o diferente significado que um “mesmo” direito fundamental assume em contextos distintos, o que impõe uma consideração constitucional das diferentes realidades, como a dos Estados “periféricos” ou “subdesenvolvidos”124

Outra característica relevante é a limitabilidade, consubstanciada na ideia que os direitos fundamentais não são absolutos, podendo ocorrer conflitos entre os próprios direitos fundamentais, de modo que deve haver um juízo de conciliação para que se possa solucionar o lide concretamente posta, desde que a “restrição de um direito fundamental só é possível in concreto, atendendo-se a regra da máxima observância e mínima restrição dos direitos fundamentais"125, ou seja, tais categorias jurídicas somente podem ser restringidas no bojo de um caso concreto, não podendo ser limitadas abstratamente.

122

JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 228. LENZA, Pedro. Op. Cit., p. 1146. 124 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 228. 125 Idem. Ibidem, p. 230. 123

62

Com relação à mínima restrição dos direitos fundamentais, Ingo Wolfgang Sarlet assevera que: A garantia de proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais aponta para a parcela do conteúdo de um direito sem a qual ele perde a sua mínima eficácia, deixando, com isso, de ser reconhecível como um direito fundamental. A ideia fundamental deste requisito é de que existem conteúdos invioláveis dos direitos fundamentais que se reconduzem a posições indisponíveis às intervenções dos poderes estatais, mas que também podem ser opostas a particulares [...]126.

Nesse passo, a inalienabilidade também constitui característica das normas definidoras de direitos fundamentais, consistindo na impossibilidade de transferi-los, em virtude de ausência de cunho patrimonial, embora haja algumas exceções pela própria limitabilidade dessas regras, como ocorre no caso do direito à propriedade. No que tange à irrenunciabilidade, a qual configura que os direitos fundamentais são impassíveis de disposição, conquanto se possa haver ausência de gozo dos mesmos. Exemplo interessante dessa característica, sempre apontada pela doutrina, é a participação em programas televisivos de reality-shows, que importa em renúncia temporária ao direito à intimidade. Já a imprescritibilidade, que decorre da inalienabilidade, consiste na impossibilidade de que os direitos fundamentais se percam com o decurso do tempo, vale dizer que “não prescrevem, porque são sempre exigíveis”127. Outra característica marcante apontada pela doutrina é a concorrência, ou seja, os

direitos

fundamentais

podem

ser

exercidos

cumulativamente.

Assim,

exemplificando, um indivíduo pode estar no gozo de vários direitos fundamentais de forma concorrente. Mais uma característica apontada pela doutrina, é a vinculação dos poderes públicos, consistindo na coarctação dos poderes constituídos às prescrições da Constituição no tocando aos direitos fundamentais, ou seja, sua atuação deve se dar em conformidade e organizada visando a concretização dos direitos fundamentais. Nesse passo, apontando um dos importantes ensinamentos formulados por José Joaquim Gomes Canotilho, Dirley da Cunha Júnior aponta que a vedação ao 126 127

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; e MITIDIERO, Daniel. Op. Cit., p. 344/345. JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 229.

63

retrocesso128 configura uma relevante característica dos direitos fundamentais. Ressalte-se que, como os direitos fundamentais passaram por longo e tormentoso período de evolução, depois que sejam definitivamente reconhecidos “não podem ser suprimidos, ou abolidos, ou enfraquecidos!129. Com efeito, tal garantia é de extrema relevância, pois visa garantir certo grau de segurança para os direitos fundamentais conquistados por lutas sociais, de modo que os afaste de arbitrariedades do Poder Público, em todas as suas esferas, seja nos Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário. José Joaquim Gomes Canotilho citado por Dirley da Cunha Júnior salienta que: [...] deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial130.

Por derradeiro, outra característica relevante dos direitos fundamentais é a constitucionalização, ou seja, seu reconhecimento em um documento de caráter formal, notadamente que seja o diploma superior de determinado Estado, visando seu máximo resguardo ante a atuação do Poder Público. 4.3. DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DE 1998 O escopo do presente tópico é apresentar perpetrar uma breve análise da organização de como a Carta Política de 1988 elencou a matéria pertinente aos direitos fundamentais em suas disposições, bem como se só o que foi positivado na própria Constituição pode ser considerado como direitos fundamentais, visto que, como salientado anteriormente, uma das características marcantes dos direitos fundamentais é a sua constitucionalização. Assim, é notória a evolução democrática da Constituição da República de 1988, sendo, inclusive, cunhada como Constituição Cidadã, tendo em vista que o Brasil

128

JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 230. Idem. Ibidem, p. 231. 130 Loc. Cit. 129

64

acabara de sair de um longo período de ditadura, bem como pela sua longa preocupação com os direitos e garantias fundamentais, estabelecendo um longo rol. De início, trataremos dos direitos fundamentais constantes do Título II da Constituição de República de 1988, que organiza tais categorias da seguinte forma: 1) Capítulo I – Dos direitos e deveres individuais e coletivos, elencados no art. 5º; 2) Capítulo II – Dos direitos sociais, positivados no art. 6º a 11; 3) Capítulo III – Da nacionalidade, insculpida nos arts. 12 e 13; 4) Capítulo IV – Dos direitos políticos, consignados nos arts. 14 a 16; e 5) Capítulo 5 – Dos partidos políticos, constantes do art. 17. Com base nisso, resta clara e evidente a importância que o constituinte deu aos direitos e garantias fundamentais, os alocando logo no início das disposições constitucionais, ou seja, “com a novel posição topográfica dos direitos fundamentais, é nítida a opção da Constituição atual pelo Estado como instrumento, e pelo homem como fim”131. Outra lição relevante é a importância dada aos direitos ditos sociais, quando elencados junto aos direitos fundamentais, o que, como dito anteriormente, afastaria a alegação de que seriam normas “meramente” programáticas, tendo em vista o postulado elencado no § 1º, do art. 5º, da CRFB/88, aduzindo a aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais, o que será analisado de forma mais atenta no próximo tópico deste capítulo. Ademais, o rol constante dos arts. 5º a 17 não é taxativo, ou seja, não visa exaurir o cartel de direitos fundamentais na Constituição Cidadã, o que é de extrema relevância em uma sociedade plural e em desenvolvimento, como é o caso da brasileira, bem como auxilia que o progresso dos direitos fundamentais não fique refém dos caprichos de governantes. Nesse passo, com base na norma contida no § 2º do art. 5 º, a qual dispõe que “Os direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”132. Assim, tal regramento visa 131

JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 241. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília/DF, de 05/10/1988, p. 2. Disponível em 132

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conceder aos direitos fundamentais “uma cláusula que consagra a abertura material do sistema constitucional de direitos fundamentais como sendo um sistema inclusivo e amigo dos direitos fundamentais”133. Para uma adequada compreensão do tema, é de extrema relevância ressaltar a diferença apontada pela doutrina134 entre direitos fundamentais em sentido formal e em sentido material, sendo aqueles os direitos reconhecidos expressamente pelo legislador constituinte e estes os que, mesmo não expressamente reconhecidos, são postos ao lado dos formalmente reconhecidos em razão de seu conteúdo e importância. Assim, os direitos fundamentais, conforme salientado por Ingo Wolfgang Sarlet135, podem ser classificados da seguinte forma em virtude do critério de abertura material: 1) direitos expressamente reconhecidos na Constituição ou em diplomas normativos de natureza constitucional, que se subdividem em: direitos constantes do Título II, dispersos no texto constitucional e em tratados que versam sobre direitos humanos; e 2) direitos implicitamente reconhecidos, em virtude do regime de princípios adotados pela Constituição. Por derradeiro, vale dizer que a Constituição de 1988 em que pese tentar maximizar os direitos fundamentais, com base nesse critério de abertura material ou não tipicidade dos direitos fundamentais, carece de efetividade em vários pontos, sobretudo em virtude de má vontade política, o que fragiliza sobremaneira a democracia brasileira, porquanto não conseguimos garantir os direitos mais básicos aos cidadãos. Assim, analisaremos no próximo tópico a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, constante do § 1º, do art. 5º, da CRFB/88, que também é apontada como uma característica dos direitos fundamentais. 4.4. A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O PRINCÍPIO DA APLICABILIDADE IMEDIATA DAS NORMAS DEFINIDORAS DE DIREITOS (ART. 5, § 1° DA CONSTITUIÇÃO DE 1988).

. Acesso em 25 de setembro de 2015. 133 SARLET, Ingo Wolfgang. Comentários ao art. 5º, § 2º. In: CANOTILHO, Joaquim José Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; ________ (Coords.). Op. Cit., p. 517. 134 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; e MITIDIERO, Daniel. Op. Cit., p. 270. 135 Idem. Ibidem, p. 273.

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De forma cuidadosa, especialmente em relação à efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais, o constituinte buscou inserir um mecanismo capaz de conceder a essas normas aplicabilidade imediata, tendo em vista o flagrante déficit de efetividade de nossas constituições, sendo certo que foi uma norma inovadora no âmbito das constituições brasileiras136. Nesse passo, o § 1º, do art. 5º, da CRFF/88, dispõe que: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”137, com base em uma interpretação meramente gramatical, observamos que os direitos e garantias fundamentais são exigíveis prescindindo de atuação do Poder Público, conquanto, apesar da clareza do texto constitucional, tenha alguma celeuma doutrinária quanto à extensão do referido dispositivo, notadamente quando contrastados aos direitos sociais, que serão mais explorados ao longo do presente, tendo em vista a necessidade de atuação para sua efetiva concretização. De início, vale ressaltar a esquematização teórica formulada por Dirley da Cunha Júnior, o qual aponta no sentido da existência de um direito fundamental à efetivação da Constituição, capaz de fazer nascer um direito subjetivo, ou seja, “propomos considerá-lo como um direito fundamental, acionável e exigível judicialmente como os demais, que impõe ao Estado e ao particular porventura acionado um dever jurídico de prestar algo, positiva ou negativamente”138. Com relação à temática, Dirley da Cunha Júnior alude que: Uma teoria geral dos direitos fundamentais só logrará cumprir a sua vocação de construir uma dogmática moderna, transformadora e emancipatória, liberta, portanto, de ideologias velhas, ortodoxas e ultrapassadas, caso reconheça um direito fundamental à efetivação da Constituição, revelando e despertando esse direito que se encontra em estado latente em nossa Carta Magna e que pode ser deduzido, como um direito fundamental implícito, diretamente do regime (democracia social semidireta) nela consagrado e dos princípios fundamentais que ordenam a ordem jurídico-constitucional (Título I)139.

136

SARLET, Ingo Wolfgang. Comentários ao art. 5º, § 1º. In: CANOTILHO, Joaquim José Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; ________ (Coords.). Op. Cit., p. 513. 137 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília/DF, de 05/10/1988, p. 2. Disponível em . Acesso em: 27 de março de 2016. 138 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 265. 139 Loc. Cit.

67

Nesse passo, o referido autor aponta, especificamente, para a norma constante do § 1º, art. 5º, da CRFB/88, é de aplicação a todos os direitos e garantias fundamentais, independente de estarem ou não no Título II da Constituição da República, desde que, todavia, sejam materialmente reconhecidos como fundamental. Ademais, o autor aponta duas correntes doutrinárias acerca do alcance da norma em questão, a saber: a primeira reza que, assim como salientava Ferdinand Lassale, a Constituição não pode atentar contra a natureza das coisas, sendo certo que apenas são dotados de aplicação imediata os que tenham em seus respectivos dispositivos a completude em sua hipótese e no seu dispositivo 140; a segunda, buscando a máxima efetivação da norma, salienta que todas as normas de direitos fundamentais são imediata e diretamente aplicáveis, mesmo as que tenham conteúdo programático 141. Passados esses comentários iniciais acerca da formulação realizada por Dirley da Cunha Júnior, resta relevante salientar as disposições do autor acerca do referido princípio com relação aos direitos sociais, os quais necessitam de algum tipo de implementação do poder público para sua efetivação, ou seja, necessitarão e algum momento de prestações materiais ou disponibilização de recursos. Nesta esteira, em linhas básicas, o autor busca demonstrar que os direitos fundamentais sociais possuem aplicação imediata devido a postulados de grande valia na nossa Constituição, sobretudo a dignidade da pessoa humana, que visa resguardar condições mínimas para todos. E continua o autor: A toda evidência, não podemos permitir que os direitos fundamentais sociais transformem-se, pela omissão do poder público, em simples aspirações, ideais ou esperanças eternamente insatisfeitas ou, ainda, mera retórica política ou pura proclamação demagógica 142.

De igual forma, Andreas Joachim Krell assevera que: As normas sobre direitos fundamentais são de aplicação imediata, conforme disposto no § 1º do art. 5º da Constituição Federal. Esse dispositivo serve para 140

FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Direitos Humanos Fundamentais, p. 100. Apud JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 272. 141 GRAU, Eros. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 311 e ss. Apud JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 272. 142 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 302.

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salientar o caráter preceptivo e não-programático dessas normas, deixando claro que os direitos fundamentais podem ser imediatamente invocados, ainda que haja falta ou insuficiência da lei. O seu conteúdo não precisa ser concretizado por lei; eles possuem um conteúdo que pode ser definido na própria tradição da civilização ocidentalcristã, da qual o Brasil faz parte. A sua regulamentação legislativa, quando houver, nada acrescentará de essencial: apenas pode ser útil (ou, porventura, necessária) pela certeza e segurança que criar quanto às condições de exercício dos direitos ou quanto à delimitação frente a outros direitos 143.

Noutro giro, quanto à posição menos expansiva do alcance do mandamento constante do § 1º, art. 5º, da CRFF/88, sobretudo no que tange aos direitos não delineados exaustivamente pela Constituição. O argumento principal reside no fato que o referido mandamento não pode violar a natureza das coisas, ou seja, se não houver condições de possibilidade de materialização do direito, mesmo pela via judicial, a norma em questão deverá ceder. Nesse sentido, Paulo Gustavo Gonet Branco assevera que: Quando a norma de direito fundamental não contiver elementos mínimos indispensáveis que lhe assegurem aplicabilidade, nos casos em que a aplicação do direito pelo juiz importar infringência à competência reservada ao legislador, ou ainda quando a Constituição expressamente remeter a concretização do direito ao legislador, estabelecendo que o direito apenas será exercido na forma prevista em lei -, nessas hipóteses, o princípio do § 1º do art. 5º da CF haverá de ceder 144.

Com entendimento similar, José Afonso da Silva145 entende que as normas definidoras de direitos fundamentais individuais, em sua grande maioria, são de eficácia contida e aplicabilidade imediata, ao passo que as configuradoras de direitos sociais também caminham nesse sentido, conquanto os direitos sociais, que necessitam de norma para a sua completude, estariam na seara das normas de eficácia limitada. No entanto, doutrina e jurisprudência buscam atribuir aplicabilidade imediata a todos os direitos e garantias fundamentais, o que afasta a alegação de algumas normas

143

KRELL, Andreas Joachim. Realização dos direitos fundamentais sociais mediante controle judicial da prestação dos serviços públicos básicos (uma visão comparativa). Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 36 n. 144 out./dez. 1999, p. 243. 144 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gonet. Op. Cit., p. 155. 145 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo. Ed. Malheiros, 2007, p. 180.

69

terem apenas um caráter programático, à luz da aplicabilidade imediata de tais normas, ainda que na ausência de lei integradora146. Nesta esteira, buscando explicitar as nuances do mandamento contido no § 1º, o art. 5º, da CRFB/88, Ingo Wolfgang Sarlet aponta alguns aspectos 147 para a compreensão do dispositivo, dos quais destacamos: 1) da referida norma se deve extrair um mandado de otimização de eficácia e efetividade, bem como uma regra impositiva e compromissória para com a aplicação imediata; 2) a exclusão do caráter programático de normas de direitos fundamentais, ou seja, “que não podem ser reduzidas à condição de normas não autoaplicáveis, no sentido de normas destituídas de qualquer eficácia ou aplicabilidade”148; e 3) a ausência de lei integradora não pode constituir fator impeditivo para a aplicação das normas de direitos fundamentais. Por fim, apesar das posições divergentes que buscamos demonstrar ao longo do presente, há convergência no sentido de que a norma do § 1º, do art. 5º, da CRFB/88, busca otimizar a efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais, sobremaneira em virtude do histórico brasileiro. No próximo tópico buscaremos analisar a temática envolta aos denominados “princípios” da reserva do possível e do mínimo existencial, sempre presente nas demandas judiciais envolvendo a aplicação dos preceitos constitucionais definidores de direitos fundamentais, em virtude disso, buscaremos perpetrar uma densa pesquisa doutrinária e jurisprudencial a fim de expor como esses importantes institutos vem sendo trabalhados atualmente. 4.5. MÍNIMO EXISTENCIAL E RESERVA DO POSSÍVEL O presente tópico tem como escopo analisar os institutos do mínimo existencial e a reserva do possível, bem como suas ligações com o exercício da jurisdição constitucional. Assim, procuraremos demonstrar quando a denominada reserva do possível pode(ria) ser alegada idoneamente, em consonância com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45 – onde o Supremo Tribunal Federal

146

Por todos: SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; e MITIDIERO, Daniel. Op. Cit., p. 313/318. 147 Idem. Ibidem, p. 318. 148 Loc. cit.

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buscou delinear alguns requisitos para a sua aplicação –, bem como o mínimo existencial, objetivando a obtenção de uma existência digna ao indivíduo. Nesta esteira, cumpre delinear alguns apontamentos iniciais acerca do que constituem essas teorias jurídicas e quais são suas implicações para com os direitos fundamentais, sobretudo os direitos sociais. Nesse sentido, a teoria da reserva do possível surgiu na Alemanha visando eximir o Estado de cumprir suas obrigações prestacionais em virtude da escassez de recursos financeiros, os quais são essenciais para a realização das políticas públicas para concretizar os direitos de segunda dimensão (direitos econômicos, sociais e culturais). Acerca do surgimento da teoria da reserva do possível, Álvaro dos Santos Maciel e Natasha Brasileiro de Souza asseveram que: Tal princípio, é cediço, tem como berço as decisões proferidas pela Corte Constitucional Federal da Alemanha, no julgamento de um famoso caso ocorrido (n 33, S. 333), no qual uma ação judicial então proposta visava à obtenção de uma decisão que permitisse a certo estudante cursar o ensino superior público, embasado na garantia prevista na Lei Federal alemã de livre escolha de trabalho, ofício ou profissão, tendo em vista que não havia disponibilidade de vagas em número suficiente para todos os interessados em frequentar as escolas públicas. Restou estabelecido o entendimento de que só se pode exigir do Estado o atendimento de um interesse ou a execução de uma prestação em benefício do interessado, se observados os limites da razoabilidade149.

Assim, resta evidente que a teoria da reserva do possível visa compatibilizar os recursos estatais com os direitos fundamentais sociais, conquanto tal teoria possa se tornar um empecilho para a concretização das normas fundamentais, tendo em vista a corriqueira alegação de falta de recursos pelo Poder Público quando instado a se manifestar em demandas judiciais envolvendo da temática. Ademais, antes de entrar especificamente nos pormenores da reserva do possível, impende ressaltar a visão doutrinária acerca das políticas públicas, sendo certo que constituem instrumentos do Estado visando à promoção dos fins almejados pela Constituição República, as quais estão umbilicalmente ligadas aos direitos sociais.

149

MACIEL, Álvaro dos Santos; SOUZA, Natasha Brasileiro de. A Reserva do Possível e a Dignidade da Pessoa Humana Como Fonte de Não Retrocesso Social. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Volume 3, 2008, p. 6/7.

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Em outras palavras, podemos entender o termo políticas públicas como o elo “à atividade promocional do Estado e à realização de fins coletivos”150. Com base no referido, resta evidente que as políticas públicas, em um primeiro momento, devem ser arquitetadas e materializadas pelos poderes políticos do Estado, por intermédio da discricionariedade administrativa visando aplicar da melhor forma os recursos públicos, ficando o Poder Judiciário alheio às questões políticas, sobretudo por conta da capacidade de planejamento que o administrador deve(ria) ter quanto ao manejo dos recursos públicos. Contudo, como já exaustivamente demonstrado no decorrer do presente, hodiernamente

os

responsáveis

precípuos

pela

materialização

dos

direitos

fundamentais restam inertes frente às normas de conduta impostas pela Constituição da República, incumbindo-se o Poder Judiciário, como último intérprete da Constituição, o encargo da efetivação dos mandamentos constitucionais. Acerca das imposições constitucionais, através das normas de conduta, Luis Roberto Barroso leciona que: A norma jurídica de conduta caracteriza-se por sua bilateralidade, dirigindo-se a duas partes e atribuindo a uma delas a faculdade de exigir da outra determinado comportamento. Forma-se, desse modo, um vínculo, uma relação jurídica que estabelece um elo entre dois componentes: de um lado, o direito subjetivo, a possibilidade de exigir; de outro, o dever jurídico, a obrigação de cumprir. Quando a exigibilidade de uma conduta se verifica em favor do particular em face do Estado, diz-se existir um direito subjetivo público151.

Nesse passo, Luis Roberto Barroso assevera que as normas constitucionais definidoras de direitos encaixam-se perfeitamente na referida lição, tendo em vista que obedecem ao esquema “dever jurídico, violabilidade e pretensão”152, ou seja, “Delas resultam, portanto, para os seus beneficiários – os titulares de direito – situações jurídicas imediatamente desfrutáveis a serem materializadas em prestações positivas ou negativas”153. Assim sendo, caso não haja cumprimento espontâneo a essas prescrições constitucionais, surge ao titular do direito a faculdade de exigir seu 150

BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Op. Cit., p. 58. BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas. 7ª Edição. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2003, p. 103/104. 152 Loc. Cit. 153 Loc. Cit. 151

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cumprimento forçado, dentre os quais através da provocação aos órgãos jurisdicionais, desde que observados alguns critérios como demonstraremos no decorrer do presente tópico. Em sede da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45, o Ministro Celso de Mello aludiu que: Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torna-los efetivos, operantes e exequíveis, abstendo-se, em consequência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa ao texto constitucional154.

Nesse passo, o Ministro faz importantes ponderações acerca da referida “legitimidade” excepcional do Poder Judiciário, segue alegando que: É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário – e nas desta Suprema Corte, em especial – a atribuição de formular e implementar políticas públicas, pois, nesse último domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos políticos-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático155.

No que tange especificamente a idoneidade da alegação da reserva do possível, o Ministro Celso de Mello fez importantes ponderações acerca de sua alegação corriqueira pela Administração Pública, sendo certo que tal teoria não pode escusar o poder público em cumprir os mandamentos constitucionais, exceto se demonstrado, objetivamente, o binômio consistente em: 1) razoabilidade da pretensão deduzida em juízo em face do Poder Público; 2) a (in)existência de disponibilidade financeira do Estado. Assim, a mera alegação de escassez de recursos não se mostra suficiente para o acolhimento da reserva do possível neste tipo de demanda. Ademais, a adoção inadvertida da teoria da reserva do possível com base no direito alemão não merece lograr êxito, sobretudo pelo fato de como os direitos 154

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 45. Arguente: Partido da Social Democracia Brasileira; Arguido: Presidente da República; Relator: Ministro Celso de Mello, Brasília/DF, 29 de abril de 2004. 155 Loc. Cit.

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fundamentais sociais são internalizados pela Constituição Alemã, bem como pela realidade social no que concerne à efetivação dos direitos sociais em países com altos índices de desenvolvimento. De forma elucidativa, Andreas Joachim Krell assevera que: Todavia, isso não acontece com os direitos sociais, que quase não constam da atual constituição germânica. Devemos lembrar que os mesmos textos e procedimentos jurídicos são capazes de causar feitos completamente diferentes, quando utilizados em sociedades desenvolvidas (centrais) como a alemã, ou numa periférica como a brasileira. Não se pode transportar um instituto jurídico de uma sociedade para outra, sem levar-se em conta os condicionamentos sócio-culturais e econômicopolíticos a que estão sujeitos todos os modelos jurídicos 156.

Pelo exposto, em sede do Supremo Tribunal Federal, a teoria da reserva do possível tende a ser bastante relativizada, tendo em vista os compromissos delineados pela Carta da República para com os poderes públicos em prol dos cidadãos, sendo certo que para o seu acolhimento a Administração Pública tem que fazer uma demonstração objetiva da ausência de recursos disponíveis para tanto. Noutro giro, em contraponto a reserva do possível, a teoria do mínimo existencial, a qual, em breves termos, significa que ao indivíduo deve ser garantido o mínimo para que possa ter uma existência digna, em harmonia ao postulado constitucional da dignidade da pessoa humana. Classicamente, o mínimo existencial é entendimento como a consagração dos direitos de primeira dimensão, conquanto essa não seja a melhor configuração do instituto, especialmente quando contrastado com os objetivos fundamentais de nossa República Federativa, insculpidos no art. 3º da Carta Política. Nesse sentido, Mariana Filchtiner Figueiredo157 assevera que o mínimo existencial deriva do princípio da igualdade e de outros princípios constitucionais de notória importância, por isso a autora defende que compreende a noção de mínimo existencial tudo aquilo que se demonstra necessário para a manutenção de uma vida digna, sobretudo o que qualifica o indivíduo a agir com autonomia.

156

KRELL, Andreas Joachim. Op. Cit,, p. 243 FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito Fundamental à Saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2007, p. 189. 157

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E continua a autora158, com base nas lições de Robert Alexy, acentuando que como mínimo existencial também consagra a igualdade de fato, resta viabilizada a possibilidade de “exigibilidade de um mínimo a subsistência digna, a uma moradia simples, à educação escolar, à formação profissional e a um nível mínimo de assistência médica”159. De outra banda, Ana Paula de Barcellos160 assevera que o mínimo existencial é composto pelas condições básicas para a existência com dignidade, a qual corresponde a uma fração da dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual deva ser reconhecido a sua eficácia jurídica e o direito subjetivo exigível diante do Poder Judiciário. Nesse sentido, elucidativos são os ensinamentos da referida autora161, que assevera a existência de quatro elementos na composição do mínimo existencial, os quais: a educação fundamental; a saúde básica; a assistência aos desamparados; e o acesso à justiça, este de índole procedimental. Sobre o surgimento da teoria do mínimo existencial – e seu enquadramento como um direito social –, Ingo Wolfgang Sarlet pontua que: A noção de um direito fundamental (e, portanto, de uma garantia fundamental) às condições materiais a uma vida com dignidade teve sua primeira importante elaboração dogmática na Alemanha, com Otto Bachof, para quem a noção do princípio da dignidade da pessoa humana não reclamaria somente a garantia da liberdade, mas também de um mínimo de segurança social, já que, sem os recursos materiais para uma existência digna, a própria dignidade ficaria sacrificada162.

Neste diapasão, podemos apontar como o mínimo existencial os direitos que “se inserem como condições básicas para uma vida digna (mínimo existencial) e que, por sua proximidade com o valor dignidade da pessoa humana, têm aplicabilidade direta e imediata”163, a despeito de serem abstenções estatais ou prestações positivas, em virtude do compromisso constitucional firmado pela República Federativa do Brasil, o 158

FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Op. Cit., p. 189/190. Idem. Ibidem, p. 190. 160 TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios de natureza orçamentária. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2013, 2ª edição, p. 70. 161 Loc. Cit. 162 SARLET, Ingo Wolfgang. Comentário ao art. 6°, caput. In: CANOTILHO, Joaquim José Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; ________ (Coords.). Op. Cit., p. 545/546. 163 BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Op, Cit., p. 147. 159

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fato relevante é garantir ao indivíduo “não só a vida humana em si, mas uma vida a saudável e com certa qualidade”164. Impende ressaltar as lições de José Joaquim Gomes Canotilho, o qual observa que: Das várias normas sociais, econômicas e culturais é possível deduzir-se um princípio jurídico estruturante de toda a ordem econômico-social portuguesa: todos (princípio da universalidade) têm um direito fundamental a um núcleo básico de direitos sociais (minimum core of economic and social rights), na ausência do qual o estado português se deve considerar infractor das obrigações jurídico-sociais constitucional e internacionalmente impostas. Nesta perspectiva, o ‘rendimento mínimo’, as ‘prestações de assistência social básica’, o ‘subsídio do desemprego’ são verdadeiros direitos sociais originariamente derivados da constituição sempre que eles constituam o standart mínimo de existência indispensável à fruição de qualquer direito165.

De igual forma, Ingo Wolfgang Sarlet, citado por Ricardo Lobo Torres, salienta que: Assim, em todas as situações em que o argumento da reserva de competência do legislativo (assim como o da separação dos poderes e demais objeções aos direitos sociais na condição de direitos subjetivos a prestações) esbarrar no valor maior da vida e da dignidade da pessoa humana, ou nas hipóteses em que, da análise dos bens constitucionais colidentes (fundamentais ou não) resultar a prevalência do direito social prestacional, poder-se-á sustentar, na esteira de Alexy e Canotilho, que, na esfera de um padrão mínimo existencial, haverá como reconhecer um direito subjetivo definitivo a prestações, admitindo-se, onde tal mínimo é ultrapassado, tão somente um direito subjetivo prima facie, já que – nesta seara – não há como resolver a problemática em termos de um tudo ou nada 166.

Nesse sentido, Ricardo Lobo Torres167, um dos maiores estudiosos do tema em questão, observa que ao Judiciário é conferido o poder-dever, caso haja viabilidade da pretensão, de entregar prestações positivas, tendo em vista que o mínimo existencial não se encontra atingido pela teoria da reserva do possível. De igual forma, o referido autor salienta que tais direitos fundamentais não se encontram sob a discricionariedade do Legislativo ou da Administração, porquanto estejam assentados nas “garantias 164

SARLET, Ingo Wolfgang. Comentário ao art. 6°, caput. In: CANOTILHO, Joaquim José Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; ________ (Coords.). Op. Cit., p. 546. 165 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit., p. 482. 166 TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios de natureza orçamentária. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Op. Cit., p. 71. 167 Idem. Ibidem, p. 74/75.

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institucionais da liberdade, na estrutura dos serviços públicos essenciais e na organização de estabelecimentos públicos (hospitais, clínicas, escolas primárias, etc.)”168. Com base nas lições anteriores, podemos acentuar que os direitos sociais que estiverem umbilicalmente ligados ao mínimo existencial, ou seja, que estiverem dentro do núcleo básico, não podem ser afastados pela teoria da reserva do possível, tendo em vista que estão relacionados à preservação da dignidade da pessoa humana, a qual não pode ser afastada por uma mera alegação de insuficiência de recursos, porquanto “A reserva do possível não configura carta de alforria para o administrador incompetente, relapso ou insensível à degradação da dignidade da pessoa humana” 169. Não obstante, existem autores que advogam o oposto, ou seja, que na insuficiência objetivamente comprovada de recursos, tal qual como foi aludido na ADFP nº 45/2004, “o que tornará legítima a não entrega da prestação demandada”170, entendimento com o qual concordamos desde que o direito pleiteado não esteja ligado ao mínimo existencial. Nesse mesmo sentido, Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo observam que: Dito isso, o que importa, nesta quadra, é a percepção de que a garantia (e direito fundamental) do mínimo existencial independe de expressa previsão constitucional para poder ser reconhecida, visto que decorrente já da proteção da vida e da dignidade da pessoa humana. No caso do Brasil, embora não tenha havido uma previsão constitucional expressa consagrando um direito geral à garantia do mínimo existencial, não se poderia deixar de enfatizar que a garantia de uma existência digna consta do elenco de princípios e objetivos da ordem constitucional econômica (art. 170, caput), no que a nossa Carta de 1988 resgatou o que já proclamava a Constituição de Weimar, de 1919. De outra parte, os próprios direitos sociais específicos (como a assistência social, a saúde, a moradia, a previdência social, o salário mínimo dos trabalhadores, entre outros) acabaram por abarcar algumas das dimensões do mínimo existencial, muito embora não possam e não devam ser (os direitos sociais) reduzidos pura e simplesmente a concretizações e garantias do mínimo existencial, como, de resto, já anunciado. Por outro lado, a previsão de direitos sociais não retira do mínimo existencial sua condição de direito-garantia fundamental autônomo e muito menos não afasta a 168

TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios de natureza orçamentária. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Op. Cit., p. 74. 169 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1068731/RS. Relator: Ministro Herman Benjamin. Recorrente: Ministério Público Federal. Recorrido: Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em:, https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sSeq=1038100&sReg=200801379303&sData=201 20308&formato=HTML>. Acesso em 16 de março de 2016. 170 AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez & Escolhas: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro. Ed. Renovar, 2001, p. 214/215. Apud BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Op. Cit., p. 149.

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necessidade de se interpretar os demais direitos sociais à luz do próprio mínimo existencial, notadamente para alguns efeitos específicos, o que agora não serão objeto de atenção mais detida171 (grifos nossos).

Em importante reflexão acerca da temática, principalmente quando analisada com a realidade social brasileira, não podemos aceitar que um padrão mínimo social fique refém de condicionamentos do tipo da teoria da reserva do possível – da forma que a mesma é utilizada hodiernamente pela Administração Pública –, não se trata de acreditar que o Direito tem a faculdade de criar recursos financeiros, conforme asseverado por Dirley da Cunha Júnior, conquanto possa se defender a existência de uma preferência no manejo dos recursos, onde “é indispensável a lembrança de que, além de impor a destinação do máximo possível de recursos, a Constituição impõe uma ordem axiológica de gastos públicos”172. Assim, resta evidente pela leitura de alguns

dispositivos

constitucionais

que

os

poderes

constituídos

têm

que

predominantemente buscar promover os direitos humanos fundamentais em detrimento de outros gastos não prioritários. Nesse sentido, Dirley da Cunha Júnior salienta que: Cuida-se, aqui, de se permitir ao Poder Judiciário, na atividade de controle das omissões do poder público, determinar uma redistribuição dos recursos públicos existentes, retirando-os de outras áreas (fomento econômico a empresas concessionárias ou permissionárias mal administradas; serviços da dívida; mordomias no tratamento de certas autoridades políticas, como jatinhos, palácios residenciais, festas pomposas, seguranças desnecessários, carros de luxo blindados, comitivas desnecessárias em viagens internacionais, pagamento de diárias excessivas, manutenção de mordomias a ex-Presidentes da República; gastos em publicidade, etc.) para destiná-los ao atendimento das necessidades vitais do homem, dotando-o das condições mínimas de existência173.

Pelo exposto, devemos ressaltar novamente que o objetivo estatal é servir a coletividade, prestando condições mínimas de existência para promover a dignidade da pessoa humana, em outras palavras “A Constituição brasileira de 1988, nesse

171

SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. Disponível em http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao024/ingo_mariana.htm. Acesso em 22/09/2014. 172 BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Op. Cit., p. 156. 173 JUNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 318.

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particular, é nitidamente confessa quando alçou o homem à condição de fim, e o Estado de meio necessário”174 para a implementação do bem-estar social.

174

Idem. Ibidem, p. 234.

79

5. O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO DIANTE DAS OMISSÕES POLÍTICAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 5.1. CONCEITO E ESPÉCIES DE INCONSTITUCIONALIDADE

80

Apesar de não ser objeto precípuo do presente, procuraremos expor em linhas rápidas as espécies de inconstitucionalidade, notadamente a inconstitucionalidade por omissão, que constitui o grande objeto do presente trabalho, bem como conceituaremos o termo inconstitucionalidade. Nesta esteira, podemos conceituar constitucionalidade e inconstitucionalidade como “uma relação, respectivamente, de conformidade e desconformidade que se estabelece entre a Constituição e o comportamento estatal 175”. Desse modo, a inconstitucionalidade caracteriza pela violação alguma das normas constitucionais em virtude de um ato comissivo ou omissivo do Estado, em outras palavras, a inconstitucionalidade pode resultar de um ato praticado ou através de uma inércia, consubstanciada na ausência de uma prática que a Constituição tenha determinado. Nas sempre elucidativas palavras de José Joaquim Gomes Canotilho, a garantia da constitucionalidade dos atos do Estado objetiva efetivar a completude do Estado Constitucional Democrático, com a efetivação e estabilidade da Lei Fundamental, sendo certo que o controle judicial funciona como um meio para a defesa da ordem constitucional, entre outros meios hábeis para tanto. Vale ressaltar que o doutrinador português aponta pressupostos, quais sejam: 1) força e supremacia normativa da Constituição,

sendo

esta

o

fundamento

de

validade

para

as

normas

infraconstitucionais, motivo pelo qual devem guardar subserviência às prescrições da norma suprema ; 2) controle ligado à ideia de concretização da ordem constitucional; 3) controle e Jurisdição Constitucional, consubstanciada nos diferentes métodos de controle de constitucionalidade dos atos estatais – os quais não serão abordados no presente trabalho. Nesse passo, doutrina e jurisprudência apontam que para um ato ser reputado como inconstitucional deve haver infringência imediata às normas constitucionais, ou seja, “se um ato do poder público estiver em desconformidade com a lei, ele é ilegal, ainda que mediatamente viole a Constituição”176. Noutro giro, a inconstitucionalidade pode tomar variadas formas, em outras palavras, existem várias espécies de inconstitucionalidade, cada uma com suas 175

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II, p. 310/3016. Apud JUNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p.115. 176 JUNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p 117.

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peculiaridades e modos de apuração, sendo este o objeto da abordagem daqui em diante. De início, como já abordamos brevemente, a inconstitucionalidade pode se dar em virtude de um ato comissivo ou de uma omissão do poder público, sendo aquele realizado através de uma ação – a elaboração de um ato normativo viciado, por exemplo –, gerando uma incompatibilidade vertical177, e este em razão da inércia legislativa para com as normas constitucionais de eficácia limitada, onde há exigência do constituinte da atuação do legislador para que a norma constitucional atinja seus efeitos, conforme já analisado na classificação da eficácia das normas constitucionais exposta por José Afonso da Silva, que será mais bem delineada no próximo tópico, tendo em vista sua relevância teórica para o presente trabalho. Outra espécie bastante comentada entre os doutrinadores é que subdivide entre inconstitucionalidade formal ou material, sendo aquela o vício referente ao modo de criação da lei e de outros atos normativos primários, podendo residir o defeito na não observância da autoridade competente para edição do ato e nos requisitos procedimentais, ou seja, o processo legislativo para a edição do ato não foi observado. No que se refere à inconstitucionalidade material, que é perpetrada pela infringência ao conteúdo da Constituição, ou seja, “com a não conformação do ato do legislador, em sua substância, com as regras e princípios constitucionais”178, por isso também é denominado como vício de conteúdo ou substancial. A inconstitucionalidade pode recair sobre a totalidade do ato normativo ou somente por parte do texto, daí se classificar como inconstitucionalidade total ou parcial, sendo esta aquela que atinge somente parte do texto impugnado, como, por exemplo, um artigo, inciso, parágrafo ou alínea. Já a inconstitucionalidade total atinge todo o diploma normativo, como ocorre nos casos de vício de competência, onde o ato, mesmo que materialmente compatível com a Constituição, será declarado inconstitucional na sua integralidade. Outra espécie de inconstitucionalidade apontada é a originária ou superveniente, ocorrendo aquela quando a lei já nasce inconstitucional, ou seja, quando de sua promulgação a mesma já se encontra incompatível com o arcabouço constitucional. No 177 178

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo. Ed. Malheiros, 2007, p. 554. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; e MITIDIERO, Daniel. Op. Cit., p. 783.

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que concerne à superveniente, a qual não é admitida no campo doutrinário e jurisprudencial brasileiro, constitui a hipótese de quebra da ordem jurídica constitucional em decorrência da promulgação de uma nova constituição ou mudança constitucional. Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal entende que não há inconstitucionalidade superveniente, e sim revogação tácita do diploma normativo incompatível com a nova ordem constitucional. Igualmente, diz-se inconstitucionalidade direta quando o ato normativo impugnado viola o texto constitucional de forma primária, ou seja, “não é preciso passar pelo questionamento da compatibilidade do ato impugnado com norma infraconstitucional179”. Com relação à inconstitucionalidade indireta, que constitui a violação primária ao texto legal que o ato está subordinado, e apenas atinge reflexamente o texto constitucional. Denomina-se inconstitucionalidade por arrastamento o fenômeno jurídico que “decorre de um efeito reflexo da inconstitucionalidade imediata” 180, ou seja, podemos exemplificar como um efeito dominó, onde o antecedente atinge o consequente pela condição de dependência de um para com o outro, bem como quando existir uma norma que encontre seu fundamento de validade em outra espécie jurídica. Materialize-se

a

inconstitucionalidade

progressiva

quando

a

norma

infraconstitucional, ainda com status constitucional, está em processo de se tornar inconstitucional, em virtude da “superveniente modificação de determinado estado fático ou jurídico”181. Por fim, vale ressaltar a espécie de inconstitucionalidade apontada por Pedro Lenza, denominada vício de decoro parlamentar 182, orquestrada em virtude dos acontecimentos que ensejaram a propositura da histórica Ação Penal nº 470, conhecida como Mensalão, a qual tramitou perante o Supremo Tribunal Federal. Nesse passo, com suporte na redação do art. 55, § 1º, da CRFB/88, o qual: “é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a

179

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; e MITIDIERO, Daniel. Op. Cit., p. 809. JUNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 121. 181 Loc. Cit. 182 LENZA, Pedro. Op. Cit., p. 300/303. 180

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percepção de vantagens indevidas”183, o referido autor, com base na concessão de vantagens indevidas para a compra de apoio político noticiada na ação penal em comento, aponta a mácula da inconstitucionalidade das leis aprovadas em razão desses atos espúrios, ou seja, “a caracterizar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, pois que maculados a essência do voto e o conceito de representatividade popular”184. Vencidos esses breves e básicos comentários acerca das espécies de inconstitucionalidade, passaremos ao enfrentamento no próximo tópico da análise acerca da omissão legislativa aos mandamentos constitucionais, discorrendo acerca das imbricações teóricas pertinentes ao presente trabalho, bem como dos métodos saneadores da inércia legislativa. 5.2. CONTROLE DA OMISSÃO INCONSTITUCIONAL Em razão de sua relevância para o tema, discorreremos no presente tópico a temática envolta da omissão inconstitucional, ou seja, quando os poderes competentes, notadamente o

Legislativo e o Executivo,

descumprem os

mandamentos

constitucionais, bem como analisaremos alguns métodos de controle desta omissão. Como observamos no tópico anterior não é somente através de atos comissivos que se perpetra uma violação à Constituição, esta também pode sofrer violações por inércias, que podem ser legislativas, quando a autoridade ou órgão responsável não edita o ato normativo competente previsto na Constituição, ou materiais, quando não se concretiza a política prevista na seara constitucional. Assim, “omitir, total ou parcialmente, a aplicação de normas constitucionais, quando a Constituição assim determina, também constitui conduta inconstitucional”185. .

Impende ressaltar, para a adequada compreensão acerca da omissão

inconstitucional, que a mera inércia do Poder Público por si só não ocasiona esta modalidade, mas sim quando a ato que não foi implementado seja previsto de forma certa e determinada por uma norma constitucional, como condição de possibilidade 183

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília/DF, de 05/10/1988, p. 2. Disponível em . Acesso em: 27 de março de 2016. 184 LENZA, Pedro. Op. Cit., p. 302. 185 JUNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 123.

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para que tenha seus efeitos integrais, ou seja, é um não fazer em detrimento da obrigação emanada pela norma constitucional. De forma didática, Dirley da Cunha Júnior assevera que: De observar-se que a inconstitucionalidade por omissão não se afere em face do sistema constitucional em bloco, mas sim em face de uma certa e determinada norma constitucional, cuja não exequibilidade frustra o cumprimento da constituição186.

Neste diapasão, devemos ressaltar os aspectos relevantes em torno das denominadas omissões genéricas e específicas do poder público, expondo em quais casos tal ausência de conduta ensejaria à responsabilização do poder público em virtude de danos causados, como, por exemplo, diante da ausência de um serviço público. Nesse sentido, não é quaisquer omissão que gera a responsabilidade estatal na reparação dos danos porventura causados, como bem salienta Felipe Peixoto Braga Netto a omissão que tem esse condão é “Uma omissão que se revista de cores que revelem que foi inadequada, injusta, a inação do Estado no caso concreto187”. Com relação à responsabilização estatal pelas omissões genéricas em matérias de políticas públicas, José dos Santos Carvalho Filho afirma que: Mas o entendimento dessas demandas reclama a implementação de políticas públicas para as quais o Estado nem sempre conta com recursos financeiros suficientes (ou conta, mas investe mal). Tais omissões, por genéricas que são, não rendem ensejo à responsabilidade civil do Estado, mas sim à eventual responsabilidade de seus dirigentes 188.

Assim, o Estado não poderia ser responsabilizado civilmente em decorrência de omissões genéricas, valendo-se, na grande maioria desses casos, da já exposta teria da reserva do possível, alegação esta que poderá ser aferida procedente desde que reste objetivamente demonstrada a insuficiência de recursos e que o serviço esteja “sendo

186

JUNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 123. NETTO, Felipe Peixoto Braga. Manual da Responsabilidade Civil do Estado. 3ª edição. Salvador: Ed. Juspodivm, p. 190. 188 FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 28ª edição. São Paulo: Ed. Atlas, 2015, p. 592. 187

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realizado dentro do padrão normal esperado, não há que se falar em responsabilizar o Estado”189. Noutro giro, a Constituição da República de 1988 foi sábia em prever institutos para manejo em razão de omissões inconstitucionais, em razão a costumeira ausência de efetividade dos direitos fundamentais previstos nas constituições, que constituem notório ganho democrático, a despeito de seu uso ainda não ter sido internalizado na praxe jurisdicional brasileira. Assim, especificamente para combate às omissões do Poder Público, a Constituição prevê duas possibilidades jurídicas, as quais: o mandado de injunção, que pode ser manejado na individual ou coletivamente, previsto no art. 5º, LXXI, da CRFB/88; a arguição de descumprimento de preceito fundamental, com base constitucional no art. 102, § 1º; e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, positivada no art. 103, § 2º, da CRFB/88. Teceremos alguns comentários acerca do mandado de injunção, porquanto este possui decisões mais relevantes no âmbito da efetivação de direitos fundamentais, com, inclusive, súmula de natureza vinculante editada pelo Supremo Tribunal Federal em razão de reiterados julgamentos deste remédio constitucional.. Nesta esteira, o art. 5º, LXXI, da CRFB/88, prevê que: [...]conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania 190 (grifamos).

Com base na dicção do referido artigo, observamos a preocupação do constituinte em efetivar no seio social os direitos fundamentais, sendo importante instrumento para o combate da síndrome de ineficácia das normas constitucionais. Vale ressaltar que tal remédio, apesar de constar em ordenamentos jurídicos de outros países, possui um objeto bem amplo, de forma que “não há registro, pelo menos no

189

CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. Salvador: Ed. Juspodivm, 2014, p. 334. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília/DF, de 05/10/1988, p. 2. Disponível em . Acesso em: 27 de março de 2016. 190

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âmbito dos sistemas jurídico-constitucionais mais conhecidos, de instrumento nos moldes do mandado de injunção previsto na Constituição Federal de 1988”191. Buscando sintetizar as finalidades do mandado de injunção Gisele Cittadino assevera que: Não há dúvidas de que o mandado de injunção foi concebido pelos constituintes brasileiros com o objetivo de conferir proteção à aplicabilidade dos direitos e liberdades constitucionais de toda espécie, procurando superar, em favor da efetivação do sistema de direitos constitucionais, a inércia dos Poderes Legislativo e Executivo192.

Noutro giro, com vistas a entender os pormenores da evolução da Jurisdição Constitucional no âmbito do mandado de injunção, faz-se necessário expor a evolução jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal no que se refere aos efeitos da sentença definitiva, ou seja, qual seria a resposta jurisdicional da Excelsa Corte ante as demandas envolvendo o referido writ. Primeiramente, o Supremo Tribunal Federal foi instado a se manifestar em sede de Mandado de Injunção nº 107, e adotou uma posição mais conservadora acerca dos efeitos da decisão final, asseverando o papel do Judiciário em sede do remédio seria a declaração de omissão do poder/autoridade/órgão responsável pela edição, ou seja, “não abre ensejo a uma tutela jurisdicional mandamental ou constitutiva, mas, simplesmente, a uma declaração de omissão inconstitucional”193. Resta claro e evidente que com a adoção dessa posição dita não concretista o mandado de injunção não alcançava suas finalidades constitucionais, visto que a omissão inconstitucional já restava evidente. O Ministro Moreira Alves, quando do julgamento do Mandado de Injunção nº 107, consignou em seu voto que: Em face dos textos da Constituição Federal relativos ao mandado de injunção, é ele ação outorgada ao titular de direito, garantia ou prerrogativa a que alude o artigo 5º, LXXI, dos quais o exercício está inviabilizado pela falta de norma

191

SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz. Comentário ao art. 5°, LXXI. In: CANOTILHO, Joaquim José Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; ________ (Coords.). Op. Cit., p. 480. 192 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea. 3ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2004, p. 51. 193 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; e MITIDIERO, Daniel. Op. Cit., p. 788.

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regulamentadora, e ação que visa obter do Poder Judiciário a declaração de inconstitucionalidade dessa omissão[...]194.

Em momento posterior, no julgamento do Mandado de Injunção nº 283, sob a relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, o Supremo Tribunal Federal foi instado novamente em razão da inércia do Poder Legislativo quanto à norma constitucional positivada no art. 8º, § 3º, do ADCT, razão pela qual, além da declaração da omissão inconstitucional do Congresso Nacional, estabeleceu que “caso o legislativo não viesse a atuar, aquele que se dizia titular do direito à reparação poderia requerer a liquidação do seu dano mediante as disposições do direito comum”195. Com base no que foi decidido em sede do MI 283, podemos perceber uma postura mais progressista do Supremo Tribunal Federal, mais coadunada a efetivação e aplicabilidade imediata das normas constitucionais ante a omissão inconstitucional do Poder Legislativo, a qual permanece inerte em vários pontos nos quais a Constituição de 1988 determina expressamente sua atuação. No julgamento do MI 283, o Ministro Sepúlveda Pertence asseverou que: Premissas, de que resultam, na espécie, o deferimento do mandado de injunção para: a) declarar em mora o legislador com relação à ordem de legislar contida no art. 8., par.3., ADCT, comunicando-o ao Congresso Nacional e a Presidência da Republica; b) assinar o prazo de 45 dias, mais 15 dias para a sanção presidencial, a fim de que se ultime o processo legislativo da lei reclamada; c) se ultrapassado o prazo acima, sem que esteja promulgada a lei, reconhecer ao impetrante a faculdade de obter, contra a União, pela via processual adequada, sentença liquida de condenação a reparação constitucional devida, pelas perdas e danos que se arbitrem; d) declarar que, prolatada a condenação, a superveniência de lei não prejudicara a coisa julgada, que, entretanto, não impedira o impetrante de obter os benefícios da lei posterior, nos pontos em que lhe for mais favorável196.

Nesse passo, talvez um dos mais emblemáticos casos julgados pela Excelsa Corte em sede do remédio, o Mandado de Injunção nº 708 de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, onde a Corte foi provocada em virtude da omissão legislativa ao art. 194

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI 107-3/DF. Rel. Min. Moreira Alves, DJU de 21/09/90. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=81908. Acesso em 11 de março de 2016. 195 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; e MITIDIERO, Daniel. Op. Cit., p. 789. 196 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI 283. Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14/11/1991. Disponível em: http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/752112/mandado-de-injuncao-mi-283-df. Acesso em 11 de março de 2016.

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37, VII, da CRFB/88, o qual concede aos servidores públicos. Na oportunidade, além da declaração da omissão inconstitucional do Poder Legislativo, fora aplicada por analogia a Lei nº 7.783/1989, que regulamente o exercício de greve na iniciativa privada, aos servidores públicos. Assevera o Ministro Gilmar Mendes que: 3.4. A mora legislativa em questão já foi, por diversas vezes, declarada na ordem constitucional brasileira. Por esse motivo, a permanência dessa situação de ausência de regulamentação do direito de greve dos servidores públicos civis passa a invocar, para si, os riscos de consolidação de uma típica omissão judicial. 3.5. Na experiência do direito comparado (em especial, na Alemanha e na Itália), admite-se que o Poder Judiciário adote medidas normativas como alternativa legítima de superação de omissões inconstitucionais, sem que a proteção judicial efetiva a direitos fundamentais se configure como ofensa ao modelo de separação de poderes 197.

Noutro giro, no julgamento do MI 712 o Ministro Relator Eros Grau entendeu que, instado a se manifestar acerca novamente sobre o direito regulamentado no art. 37, VII, da CRFB/88, o Supremo Tribunal Federal poderia criar a norma jurídica faltante, o que nos parece uma violação ao Princípio da Separação dos Poderes, que será mais explorado no último tópico do presente capítulo, porquanto não seja facultada ao Supremo Tribunal Federal a edição de normas jurídicas. Na casuística, o Ministro Eros Grau entendeu que a Corte não deveria aplicar por analogia à legislação referente ao exercício regular do direito de greve do setor privado, tendo em vista as peculiaridades entre o serviço público e o privado, mas sim o dever de “traçar os parâmetros atinentes a esse exercício 198”. No entanto, não acreditamos que essa seja a melhor solução para as demandas envolvidas nos mandados de injunção, porquanto o writ é “ação constitucional de garantia da efetividade e do gozo imediato dos direitos subjetivos e não da completude do ordenamento jurídico199”.

197

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI 708/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 31/10/2008. Disponível em: http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/14725991/mandado-de-injuncao-mi-708-df. Acesso em 11 de março de 2016. 198 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI 712/DF, Rel. Min. Eros Grau, DJ 30/10/2008. Disponível em: http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/2926757/mandado-de-injuncao-mi-712-pa. Acesso em 13 de março de 2016. 199 JUNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 544.

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Assim, resta evidenciada a evolução jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal com relação aos efeitos da decisão do mandado de injunção, o que ocasionou o próprio desenvolvimento e relevância do papel da Jurisdição Constitucional na defesa dos direitos fundamentais. Entretanto, advertimos que os poderes constituídos não podem atuar de forma ilimitada, pois a mesma Constituição que atribui o poder-dever também impõe observância aos limites visando o seu exercício regular. Ademais, buscando esquematizar as posições comumente utilizadas nas decisões dos mandados de injunção, Dirley da Cunha Júnior aduz que: Há três posições a respeito: (a) a que defende cumprir ao Poder Judiciário tão somente elaborar a norma regulamentadora faltante; (b) a que sustenta caber uma simples declaração de inconstitucionalidade da omissão, dela dando conhecimento ao órgão competente para a adoção das providências cabíveis e, finalmente, (c) a que prega competir ao Poder Judiciário garantir o imediato exercício do direito fundamental frustrado em face da omissão do poder público200.

Por fim, analisaremos no próximo tópico um assunto de máxima importância para o presente trabalho, as polêmicas em volta da figura do ativismo judicial e da judicialização das políticas públicas, que apesar de muitos tratarem como sinônimos existem diferenças importantes nos institutos. 5.3. ATIVISMO JUDICIAL VERSUS JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA Analisaremos no presente tópico os aspectos relevantes dessas duas vertentes, as quais partem de um mesmo pressuposto: o protagonismo judicial, a efetivação das políticas públicas pelo Poder Judiciário, ante a inação inconstitucional dos poderes precipuamente responsáveis pela implementação, lastreado em um primeiro momento no postulado da inafastabilidade do controle jurisdicional. Buscando explicitar os motivos que ensejam o protagonismo judicial na seara política, Daniel Giotti de Paula assevera que: Reside na incapacidade que as instâncias representativas, até então, têm apresentado para resolver os grandes problemas nacionais, a quase maioria 200

JUNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 544.

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deles constitucionalizados, levando a que o Judiciário passe a ser um dos canais a que se recorra para resolvê-los201.

De outra banda, o termo judicialização da política significa que questões com alto cunho de repercussão social estão sendo decididas no âmbito do Poder Judiciário, e não onde naturalmente deveriam estar sendo discutidas pelo desenho institucional, ou seja, no Poder Executivo e Legislativo, como aponta Luis Roberto Barroso 202, ou seja, configura uma transferência de poder para as instâncias judiciais. Adverte o autor203 que a expansão da judicialização na Constituição Federal de 1988 ocasionou alguns efeitos, os quais: gerou um ganho de poder ao Judiciário, acarretando

em

um

redesenho

do

modelo

democrático;

determinou

a

constitucionalização de várias matérias, antes tratadas nas leis infraconstitucionais ou “matérias que antes eram deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária”204, acarretando a transformação da política em direito, sobretudo em virtude da desilusão quando às instâncias políticas majoritárias; e a abrangência do sistema de controle de constitucionalidade adotado no Brasil. Em outras palavras, Ernani Rodrigues Carvalho conceitua judicialização da política como: Judicialização é a reação do Judiciário frente à provocação de um terceiro e tem por finalidade revisar a decisão de um político tomando por base a Constituição. É um fenômeno que ocorre em escala mundial a partir da combinação das tradições constitucionais e dos arranjos políticos de cada país. A judicialização da política ocorre em sistemas democráticos e requer um Poder Judiciário forte205.

Vale ressaltar que a judicialização da política não é um movimento exclusivo do Brasil, em vários países, em maior ou menor grau, se tem a presença desse movimento

201

PAULA, Daniel Giotti de. Uma leitura crítica sobre o ativismo e a judicialização da política. In: FELLET, André Luiz Fernandes; PAULA, Daniel Giotti de. NOVELINO, Marcelo. Op. Cit., p. 15 202 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Disponível em: Acesso em 13 de março de 2016. 203 Loc. Cit. 204 Loc. Cit. 205 CARVALHO, Ernani Rodrigues, Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem. Rev. Sociol. Polit. Nov. 2004, nº.23. Disponível em: Acesso em 13 de março de 2016.

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de notória importância, como observa Luis Roberto Barroso 206. No entanto, seu modelo em solo brasileiro é ímpar, em virtude da efervescência de direito elencados na Constituição Federal de 1988 – a qual é classificada como uma analítica em razão da quantidade de temas tratados em seu bojo –, bem como os altos índices de desigualdade social, a qual é altamente influenciada pelo fato de que somente uma parcela pequena da população possui acesso a serviços básicos para uma vida digna. No mesmo sentido, José Ribas Vieira 207 defende que a Constituição da República de 1988 modificou profundamente o modelo de jurisdição da política no Brasil, em virtude do longo rol de direitos fundamentais constitucionalizados e pelo fortalecimento de instituições como o Poder Judiciário e o Ministério Público, que deixou de tratar somente de matérias criminais e passou a atuar forte na parte de tutela dos interesses da coletividade. Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho a judicialização consiste “em atribuir ao Judiciário decisões que, nos termos da doutrina clássica da separação de poderes, incumbiriam ao Executivo ou ao Legislativo”208. Para o referido autor, a judicialização da política se materializa em razão de três fatores209, sendo os quais: um de ordem técnico-jurídico, em razão da expansão do controle judicial, sobretudo sobre a política e os atos da Administração Pública; um de ordem sociopolítica, consubstanciado na perda de prestígio dos políticos; e outro de ordem sociopolítica, tendo em vista a visão que os magistrados têm de trabalhar para o bem comum. Felipe Dutra Asensi210 assevera que o Poder Judiciário vem sido cada vez mais instado a resolver demandas envolvendo normas de conteúdo eminentemente social

206

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. disponível em:< www.oab.org.br/aobediora/users/revista/1235066670174218181901.pdf > Acesso em 13 de março de 2016. 207 VIEIRA, José Ribas. Verso e reverso: A judicialização da política e o ativismo judicial no Brasil. Revista estação científica (Ed. Especial Direito) Juiz de Fora, V. 01, n. 04, outubro e novembro de 2009. Disponível em: < portal.estacio.br/media/.../artigo%203%20revisado.pdf> Acesso em: 13 de março de 2016. 208 FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. O Papel Político do Judiciário e suas Implicações. In: FRANCISCO, José Carlos (Coord.). Op. Cit., p. 221. 209 Idem. Ibidem, p. 222. 210 ASENSI, Felipe Dutra. Algo está mudando no horizonte do Direito? Pós-positivsmo e Judicialização da Política e das Relações Sociais. In: FELLET, André Luiz Fernandes; PAULA, Daniel Giotti de. NOVELINO, Marcelo. Op. Cit., p. 212/213.

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com a finalidade de efetivar direitos, os quais deveriam ser implementados pelo Executivo e pelo Legislativo através de políticas públicas. Sobre a evolução da atuação do Poder Judiciário no controle das políticas públicas, Pedro Ivo de Souza e Alexandre de Castro Coura aludem que: De fato, com a evolução da sociedade moderna, as relações sociais foram se tornando cada vez mais complexas, caminhando para um constante questionamento das políticas públicas adotadas pelos representantes populares no exercício de suas funções, de modo que o Poder Judiciário, progressivamente, foi sendo acionado para se manifestar sobre os direitos existentes nas controvérsias políticas, numa visão democrática do Estado de Direito211.

Em virtude dessa expansão do Poder Judiciário em seara política temos como consequência a ingerência jurisdicional em matérias que, em outras épocas, eram eminentemente políticas, o que pode causar discussões acerca da legitimidade e eventuais violações ao princípio da Separação dos Poderes, tema que iremos enfrentar com maior afinco no próximo tópico, onde tentaremos demonstrar as críticas à atuação do Poder Judiciário no controle das políticas públicas. Noutro giro, o ativismo judicial não se confunde com a judicialização da política, pois aquele é entendido como uma postura individual do intérprete, um modo de interpretação da Constituição. Nas palavras de Luis Roberto Barroso “o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance”212. Sobre a origem do ativismo judicial, Luis Roberto Barroso salienta que: Ativismo judicial é uma expressão cunhada nos Estados Unidos e que foi empregada, sobretudo, como rótulo para qualificar a atuação da Suprema Corte durante os anos em que foi presidida por Earl Warren, entre 1954 e 1969. Ao longo desse período, ocorreu uma revolução profunda e silenciosa em relação a inúmeras práticas políticas nos Estados Unidos, conduzida por uma jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais. Todas essas transformações foram efetivadas sem qualquer ato do Congresso ou decreto presidencial213. 211

SOUSA, Pedro Ivo de; COURA, Alexandre de Castro. Controle judicial de políticas públicas. Disponível em: .Acesso em 13 de março de 2016. 212 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. disponível em:< www.oab.org.br/aobediora/users/revista/1235066670174218181901.pdf > Acesso em 13 de março de 2016. 213 PAULA, Daniel Giotti de. Uma leitura crítica sobre o ativismo e a judicialização da política. In: FELLET, André Luiz Fernandes; PAULA, Daniel Giotti de. NOVELINO, Marcelo. Op. Cit., p. 281.

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Procurando delinear os principais aspectos do ativismo judicial, Luis Roberto Barroso214 expõe os principais aspectos do mesmo, os quais: aplicação direta e imediata da Constituição em situações que não haja previsão expressa desse método na Lei

Maior e sem

manifestação

do Poder

Legislativo; a

declaração

de

inconstitucionalidade de atos normativos com base em critérios menos rígidos, ou seja, de modo diverso de quando a inconstitucionalidade é clara e evidente; a imposição de ação e abstenções aos poderes públicos, sobretudo em matérias de políticas públicas. Para Arthur Bezerra de Souza Júnior e Samantha Ribeiro Meyer-Plug o ativismo judicial configura: Por “ativismo judicial” entende-se o papel criativo dos tribunais ao fazerem uma contribuição nova para o direito, decidindo sobre a singularidade ao caso concreto, formando o precedente jurisprudencial, antecipando-se, muitas vezes, à formulação da própria lei. Diante de necessidades que forjam uma determinada interpretação, do texto de lei, é o momento em que o esforço do interprete faz-se sentir. Tem-se como ativismo judicial, portanto, a energia emanada dos tribunais no processo da criação do direito215.

Para Daniel Giotti de Paula216 o principal fundamento do ativismo judicial reside na denominada crise de representatividade popular, tendo em vista que a sociedade, sobretudo com relações às minorias, busca o Poder Judiciário para a concessão de direito, em virtude da omissão do sistema representativo tradicional, o qual, em determinados segmentos da sociedade, não busca a criação e aperfeiçoamento de direitos. Exemplificando, o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347217 reconheceu o denominado Estado de Coisas Inconstitucional no âmbito do sistema carcerário brasileiro, determinando 214

PAULA, Daniel Giotti de. Uma leitura crítica sobre o ativismo e a judicialização da política. In: FELLET, André Luiz Fernandes; PAULA, Daniel Giotti de. NOVELINO, Marcelo. Op. Cit., p. 281. 215 JÙNIOR, Arthur Bezerra de Souza; MEYER-PLUG, Samantha Ribeiro. O Ativismo Judicial no Supremo Tribunal Federal. Disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=6f4b7fd3eea0af87. Acesso em 13 de março de 2016. 216 PAULA, Daniel Giotti de. Ainda existe Separação de Poderes? A invasão da política pelo Direito no contexto do Ativismo Judicial e da Judicialização da Política. In: FELLET, André Luiz Fernandes; PAULA, Daniel Giotti de. NOVELINO, Marcelo. Op. Cit., p. 277/278 217 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 347. Relator: Ministro Marco Aurélio Mello, Requerente: Partido Socialismo e Liberdade. Disponível em: Acesso em 13 de março de 2016.

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Nesta esteira, as principais críticas à concretização de direitos fundamentais, sobretudo os sociais, por demandarem imposições do Judiciário aos outros poderes, está consubstanciada em uma violação ao princípio da separação de poderes, em virtude da interferência direta do Poder Judiciário em terreno em que, em tese, deveria ser do Administrador Público em decorrência da habilidade e experiência técnica no manejo do recurso para as políticas públicas, bem como a já explicitada insuficiência de recursos hábeis para tanto. No entanto, convém antes de entrar na crítica propriamente dita realizar alguns apontamentos acerca da separação dos poderes, a qual está prevista expressamente no art. 2º e protegida como cláusula pétrea no art. 60, § 4º, ambos da Constituição da República. Nas palavras de José Afonso da Silva 228, a divisão ou separação de poderes consiste na confiança em entregar cada uma das funções do Estado (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diversos. E continua o renomado autor229 apontando os motivos pelos quais se adota o referido princípio: 1) especialização funcional, tendo em vista que cada órgão é especializado no âmbito de sua função; 2) independência orgânica, objetivando a necessidade que cada poder tenha efetivamente independência perante os outros acarretando em uma ausência de subordinação. No entanto, como ressaltado pelo próprio art. 2º da Lei Maior, os poderes são “independentes e harmônicos entre si”230, consagrando o modelo de freios e contrapesos idealizado por Montesquieu, significando que os poderes laboram em relação de coordenação e harmonia. Tal afirmação 231 objetiva demonstrar que: 1) respeito recíproco entre os poderes, tanto no que se refere às normas de cortesia quanto às prerrogativas de cada poder; 2) o caráter não absoluto da divisão de funções, tendo em vista a existência de funções típicas e atípicas. Neste diapasão, existem autores que ressaltam que essa clássica visão da divisão de poderes encontra-se ultrapassada em razão que o papel dos magistrados passou da 228

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo. Ed. Malheiros, 2007, p. 108. Idem. Ibidem, p. 109. 230 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília/DF, de 05/10/1988, p. 2. Disponível em . Acesso em: 27 de março de 2016. 231 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo. Ed. Malheiros, 2007, p. 110. 229

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mera subsunção da norma ao caso concreto, porquanto os magistrados também atuem na ponderação de princípios com a finalidade de encontrar decisões que não estão expressamente postas pela legislação, conforme observado por Daniel Giotti de Paula232. Assim, para o referido autor, o magistrado não atuaria somente na desvelação do direito, mas também em sua criação. De igual forma, Thays Oliveira de Britto e Walber de Moura Agra233 salientam que a clássica doutrina da divisão dos poderes, a qual visa impedir governos déspotas, constitui um empecilho para a concretização dos direitos fundamentais, notadamente aqueles de índole eminentemente prestacional. Passando especificamente para as críticas com relação à intervenção jurisdicional na seara das políticas públicas, especialmente por conta que os direitos sociais podem ensejar para a sua fiel concretização de atividade normativa. Com base nisso, indaga-se se o Poder Judiciário poderia atuar de forma a colmatar tais lacunas legislativas e administrativas, sem que para isso caia no decisionismo – algo que cremos ser prejudicial ao regime democrático –, de forma a atuar com no exercício legítimo da Jurisdição Constitucional. Dirley da Cunha Júnior expõe o supracitado questionamento de forma ímpar, perquirindo se: [...]o Poder Judiciário tem legitimidade para, à míngua de norma reguladora que viabilize o exercício desses direitos, suprir a omssão normativa dos órgão de direção política e dispor normativamente sobre as condições necessárias ao imediato exercício dos referidos direitos 234.

Inicialmente, é a própria Constituição Federal de 1988, como vimos, que estabeleceu um amplo modelo de Jurisdição Constitucional, determinando a inafastabilidade do controle jurisdicional e demarcando uma linha eminentemente dirigente e compromissória para com o bem estar social da coletividade. Nesse passo, a atuação jurisdicional na tutela da garantia do mínimo existencial, a despeito do entendimento quando ao seu alcance, configura condição de possibilidade para que os indivíduos alcancem um mínimo de vida com dignidade. 232

PAULA, Daniel Giotti de. Ainda existe Separação de Poderes? A invasão da política pelo Direito no contexto do Ativismo Judicial e da Judicialização da Política. In: FELLET, André Luiz Fernandes; PAULA, Daniel Giotti de. NOVELINO, Marcelo. Op. Cit., p. 272. 233 BRITTO, Thays Oliveira; AGRA, Walber de Moura. Neoconstitucionalismo. In: FRANCISCO, José Carlos (Coord.). Op. Cit., p. 18. 234 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit., p. 326.

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Expondo de forma elucidativa o referido, Leonel Pires Ohlweiler pontua que: O texto da Constituição Federal como grande pacto político e social, já possui uma variedade de fins a serem alcançados pelo Estado e pela sociedade civil. Portanto, é retirada da esfera de liberdade dos agentes públicos a possibilidade de frustração de tais promessas constitucionais, por meio de programas capazes de conduzir os destinos da comunidade para patamares inferiores de democracia235.

Ana Paula de Barcellos236 observa que compete ao Legislativo e ao Judiciário a aplicação da Constituição, sendo que àquele incumbirá a feitura das disciplinas dos mais variados temas, com observância aos ditames constitucionais; no que tange ao Judiciário, caberá a aplicação direta ou indireta dos mandamentos constitucionais no bojo de uma aferição de constitucionalidade, objetivando uma decisão que realize da melhor forma os fins constitucionais. De igual forma, Ingo Wolfgang Sarlet 237 assevera que incumbe ao intérprete e aplicador da Constituição a atribuição do sentido que assegure a maior eficiência possível das normas constitucionais. Ademais, Marcus Aurélio de Freitas Barros238 assevera que o postulado da separação de funções não pode servir como um efeito paralisante ante as reivindicações de cunho social, bem como assevera que tal princípio necessita sofrer uma releitura a fim de atingir seu objetivo histórico de garantir direitos fundamentais contra o arbítrio estatal. E continua o autor: Não se pode, pois, mesmo tendo em conta os parâmetros liberais, num conservadorismo míope, traçar contornos absolutos à supremacia do legislativo e à visão clássica francesa do princípio da separação de poderes, utilizando-o como um anteparo a impedir a concretização de direitos fundamentais, diante de abusos praticados na gestão da coisa pública 239.

Nesse sentido, elucidativas são as palavras do Ministro Celso de Mello entendendo que: 235

OHLWEILER, Leonel Pires. Políticas Públicas e Controle Jurisdicional: uma análise hermenêutica à luz do Estado Democrático de Direito. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Op. Cit., p. 307. 236 BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das Políticas Públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Op. Cit., p. 104/105. 237 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; e MITIDIERO, Daniel. Op. Cit., p. 215. 238 BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Op. Cit., p. 134. 239 Idem. Ibidem, p. 136.

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Salientei, então em tal decisão, que o Supremo Tribunal Federal, considerada a dimensão política da jurisdição constitucional outorgada a esta Corte, não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivo os direitos econômicos, sociais e culturais (...). É que, se assim não for, restarão comprometidas a integridade e a eficácia da própria Constituição, por efeito de violação negativa do estatuto constitucional motivada por inaceitável inércia governamental no adimplemento de prestações positivas impostas ao Poder Público240.

Nesta esteira, é imprescindível a atuação do Poder Judiciário no controle das políticas públicas, não merecendo prosperar as alegações que este estaria invadindo a função precípua dos outros poderes, desde que em virtude do descumprimento dos encargos – leia-se, pela sua omissão – acabem por comprometer a integridade dos direitos de segunda dimensão constantes da Carta da República, atingindo de forma inconstitucional o núcleo mínimo que garante a existência digna dos indivíduos. Buscando engendrar um ponto de partida viável para o controle judicial e jurídico das políticas públicas, Ana Paula de Barcellos241 estabelece que possa haver a interferência jurisdicional, entre outros casos, em: 1) a fixação de metas e/ou prioridades por parte do Poder Pública em temáticas atinentes a direitos fundamentais; 2) o resultado final das políticas públicas; 3) o montante de recursos a ser destinado em políticas públicas de direitos fundamentais; 4) o atingimento ou não das metas elaboradas pelo Poder Público; e 5) a economicidade na aplicação das verbas. Leonel Pires Ohlweiler242 salienta a missão concedida pelo constituinte ao Poder Judiciário consistente na guarda da Constituição, motivo que enseja uma releitura da função jurisdicional. Assim, observa que o controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário enseja do agente pública uma atuação voltada à coletividade, afastando-se das posições que deixem ao bel-prazer dos administradores a coisa pública.

240

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Especial 436.996/SP. Relator: Ministro Celso de Mello, Recorrente: Ministério Público de São Paulo, Recorrido: Município de Santo André. Disponível em: . Acesso em 13 de março de 2016. 241 BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das Políticas Públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Op. Cit., p. 132. 242 OHLWEILER, Leonel Pires. Políticas Públicas e Controle Jurisdicional: uma análise hermenêutica à luz do Estado Democrático de Direito. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Op. Cit., p. 307/308.

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Exemplificando o supramencionado, restou assentado pela Excelsa Corte no julgamento do Recurso Especial nº 436.996/SP o seguinte: Revela-se possível, no entanto, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade dos direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional 243.

Ademais, incumbe ao Judiciário, notadamente ao Supremo Tribunal Federal como instância máxima do Poder Judiciário, como bem observa Luis Roberto Barroso244, o papel de instância contramajoritária, a qual configura que, em nome da estabilidade e integridade do regime democrático e dos direitos fundamentais, no exercício da atividade jurisdicional atue no sentido de atribuir a inconstitucionalidade de leis, mesmo que a Excelsa Corte não seja democraticamente eleita para tanto, como ocorre nos Poderes Legislativo e Executivo, ou seja, como observa o referido autor “Vale dizer: agentes públicos não eleitos, como juízes e ministros do STF, podem sobrepor a sua razão à dos tradicionais representantes da política majoritária” 245; bem como no denominado papel representativo, consistindo no atendimento pelo Supremo Tribunal Federal das demandas sociais e anseios políticos que não foram satisfeitos pelas instâncias majoritárias. De outra banda, Leonel Pires Ohlweiler246 assevera que, além de constituir condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito, o controle das políticas públicas possibilitam a delimitação do campo de ação do agente público. Neste diapasão, o autor acentua247 que, apesar de haver semelhança entre as políticas públicas e atos políticos, com a viragem constitucional possibilitada com o advento do neoconstitucionalismo, resta ultrapassada a postura restritiva do controle desses atos. 243

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Especial 436.996/SP. Relator: Ministro Celso de Mello, Recorrente: Ministério Público de São Paulo, Recorrido: Município de Santo André. Disponível em: . Acesso em 13 de março de 2016. 244 BARROSO, Luis Roberto. Retrospectiva 2012: STF entre papéis contramajoritário e representativo. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-jan-03/retrospectiva-2012-stf-entre-papeis-contramajoritariorepresentativo. Acesso em 13 de março de 2016. 245 Loc. Cit. 246 OHLWEILER, Leonel Pires. Políticas Públicas e Controle Jurisdicional: uma análise hermenêutica à luz do Estado Democrático de Direito. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Op. Cit., p. 303. 247 Loc. Cit.

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E continua o autor: Na medida em que as políticas públicas devem estar voltadas para a materialização de todo um conjunto de preceitos, princípios, direitos e garantias fundamentais, o controle jurisdicional a ser realizado, em última análise, relaciona-se diretamente com o fundamento das políticas públicas. A finalidade do controle será assegurar que tais espécies de ações da Administração Pública estejam pautadas por tal fundamento, no caso, o fundamento que é dado pelo constitucionalismo moderno248.

De tal modo, resta evidente que a atuação do Poder Judiciário em tais casos é imprescindível, notadamente por garantir a Supremacia da Constituição e a efetividade de suas normas, algo básico em modelos constitucionais como o nosso que preveem a existência da imperatividade constitucional. Por derradeiro, o papel do Poder Judiciário, como último intérprete da Constituição, deve ser no sentido de guarnecer o aspecto teleológico da Carta Cidadã de 1988.

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Loc. Cit.

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6. CONCLUSÃO Com o advento do denominado Neoconstitucionalismo o Poder Judiciário ganhou novas feições, principalmente pela introdução de importante margem axiológica no seio das Constituições pós Segunda Guerra Mundial, com especial observância ao postulado da dignidade da pessoa humana, internalizada pela Constituição de 1988 como um fundamento da República, um ponto de partida. A Constituição Federal de 1988, conhecida como Cidadã, buscou catalogar um extenso rol de direitos fundamentais, inclusos nesses os direitos ditos sociais – não podemos excluir os direitos sociais dos direitos fundamentais, sobretudo aqueles que estão umbilicalmente ligados ao mínimo existencial, os quais visam dar garantia de vida digna aos indivíduos de forma indeterminada. Tais direitos, como exaustivamente exposto no presente trabalho, demandam uma atuação positiva por parte do Poder Público, o qual tem o dever de concretizar os mandamentos constantes da Constituição da República. As políticas públicas são os instrumentos governamentais que visam materializar os direitos fundamentais sociais com a finalidade que os direitos cartelizados na Constituição possam ser usufruídos pelos cidadãos. É sabido que as atividades governamentais se implementam por intermédio de recursos públicos, na maioria das vezes escassos ou limitados por natureza. Logo, urge que a aplicação de tais recursos e faça de forma correta, com aplicação nos moldes do determinado pela Constituição, considerando seus fins dirigentes e compromissórios. No entanto, o que se procurou nesse trabalho foi defender que caso esses direitos sociais não sejam efetivados pelo Estado, o Poder Judiciário poderia ser

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acionado para concretizar esses direitos criados pela Constituição Federal. E que essa atuação desse poder não estaria ferindo o princípio da separação dos poderes, uma vez que é dever do Judiciário agir quando ocorrer uma ação ou omissão lesiva a direitos. Com efeito, resta evidente que o constituinte foi cuidadoso ao inserir na Constituição da República vários instrumentos para garantia da efetividade das normas constitucionais, dentre os quais: o princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais, mesmo que seja divergente a noção de seu alcance como buscamos demonstrar durante o presente trabalho monográfico; instrumentos processuais de notória relevância, especialmente o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão; e uma jurisdição constitucional abrangente, capaz de atuar de forma a concretizar os objetivos fundamentais da República insculpidos no art. 3º da Carta Política. Neste diapasão, o Poder Judiciário quando instado, e presentes alegações capazes de demonstrar a omissão dos Poderes Políticos, não pode se omitir em resolver os pleitos envolvendo as referidas demandas, sob pena de também adotando uma postura inerte em total descompasso com os preceitos fundamentais da Constituição, conforme assevera Dirley da Cunha Júnior. Desta feita, a atuação jurisdicional adequada é fundamental para que a Constituição de 1988 não sucumba diante das vontades políticas dominantes, que muitas vezes tomam feições espúrias, enquanto a grande maioria da população (sobre)vive sem acesso aos direitos básicos que compõem o núcleo do mínimo existencial. Ademais, tentou-se examinar a atuação jurisdicional ante as políticas públicas, visando buscar a necessária efetivada dos mandamentos constantes do bojo da Constituição da República, buscando uma atuação do Poder Judiciário em compromisso com os Direitos Fundamentais, vale dizer, de modo que a Constituição não reste morta perante os fatores reais de poder. Desta feita, conclui-se que não há como negar a possibilidade do controle judicial das políticas públicas, notadamente pela ordem constitucional trazida pela Constituição Federal de 1988, desde que de forma excepcional, porquanto, pelo menos em tese, o magistrado não possui o tirocínio técnico do administrador, o que influencia

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na hora da melhor escolha na aplicação dos recursos públicos. De outra banda, observa-se que a teoria da reserva do possível não pode ser alegada com vistas a exortar o Estado ante seus compromissos delimitados pela Constituição da República de 1988, sobretudo por conta da Carta Magna coarctar a atuação do Poder Pública a fim de suprir a garantia do mínimo existencial. Por derradeiro, nos resta reproduzir as belas lições de Leonel Pires Ohlweiler, que assevera: Consequentemente, é fundamental que se tenha a capacidade de pensar a questão das políticas públicas para o Brasil a partir de algumas considerações, por exemplo: a) a imperiosidade de resgatar as promessas não cumpridas da modernidade, indicadas no texto da Constituição, como erradicação da pobreza, construir uma sociedade livre, justa e solidária, etc.; b) que há graves problemas entre os processos de programação governamental como as limitações orçamentárias, daí sendo imprescindível um controle mais eficiente sobre os gastos públicos; c) há no contexto da historicidade governamental do Brasil um modo de ser caracterizado pela concentração de poder e usurpação de funções; d) não se obteve a construção de uma tradição de gestão pública, ficando a estruturação e implementação das políticas públicas ao sabor dos governantes que se sucedem no poder e, finalmente, e) há grandes dificuldades em construir formas participativas de gestão devido a baixo grau de democratização dos espaços públicos, resultado da frágil cidadania que alicerça nossas instituições, em sua grande maioria 249.

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OHLWEILER, Leonel Pires. Políticas Públicas e Controle Jurisdicional: uma análise hermenêutica à luz do Estado Democrático de Direito. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Op. Cit., p. 307.

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