O poder político vem do cano de uma arma

October 16, 2017 | Autor: A. Fonseca de Castro | Categoria: História do Brasil, Museología, Guerra do Paraguai, Troféus de guerra
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90 ANOS DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL em debate (1922-2012)

MUSEU HISTÓRICO NACIONAL

90 ANOS DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL em debate (1922-2012)

RIO DE JANEIRO | 2014

Presidenta da República

90 anos do Museu Histórico Nacional

Dilma Vana Rousseff

em debate (1922-2012)

Ministra da Cultura

Organização

Marta Suplicy

Aline Montenegro Magalhães Rafael Zamorano Bezerra

Instituto Brasileiro de Museus Presidente Angelo Oswaldo de Araújo

Revisão

Santos

Fernanda Maria Santos Silveira e

Museu Histórico Nacional

Cristina Loureiro de Sá

Diretora Vera Lúcia Bottrel Tostes Diagramação Livros do Museu Histórico Nacional

Avellar e Duarte Serviços Culturais

Editor Vera Lúcia Bottrel Tostes Produção Editorial Avellar e Duarte Serviços Culturais

M188 90 anos do Museu Histórico Nacional em debate / organização: Aline Montenegro Magalhães, Rafael Zamorano Bezerra – Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2014. 272 p. : il.; 22,5 cm. – (Livros do Museu Histórico Nacional) Livro baseado no Seminário Internacional: 90 anos do Museu Histórico Nacional em debate (1922-2012), de 01 a 03 de outubro de 2012. ISBN: 978-85-85822-20-0 1. Museus. 2. Memória. 3. Patrimônio. 4. Coleções. 5. Museologia. I. Título. II. Magalhães, Aline Montenegro. III. Bezerra, Rafael Zamorano. IV. Série. CDD 069

As opiniões e conceitos emitidos nesta publicação são de inteira responsabilidade de seus autores, QmRUHÁHWLQGRQHFHVVDULDPHQWHRSHQVDPHQWRGR0XVHX+LVWyULFR1DFLRQDO eSHUPLWLGDDUHSURGXomRGHVGHTXHFLWDGDDIRQWHHSDUDÀQVQmRFRPHUFLDLV

O poder político vem do cano de uma arma Adler Homero Fonseca de Castro*

O título deste artigo é uma citação de Mao Tsé-Tung, o líder da China comunista entre 1949 H  H UHÀHWH XPD SRVLomR TXH Mi p EHP FRQKHFLGD H UHSHWLGD QD SROtWLFD H QD GLSORPDFLD independentemente da justiça dos argumentos, uma das formas que os líderes encaravam a maneira de se obter e manter o poder político era – e infelizmente, ainda é – por meio do poder das armas. Como escreveu Maquiavel: As principais bases de cada estado, novos assim como antigos, ou compostos, são boas leis e boas armas; e como não há boas leis onde o estado não é bem armado, segue-se que onde eles são bem armados têm boas leis.1

Seguindo essa linha de raciocínio, o Museu Histórico Nacional não podia deixar de acumular ao longo dos anos uma grande coleção de armas, pois elas eram vistas como uma representação do poder político, simbolizando contextos que já foram tratados em outros artigos destes Anais.2 De fato, uma pesquisa no arquivo virtual dos Anais do Museu, localizou nada menos que 97 referências à palavra troféus na sua base de dados; a palavra se referindo, entre outras coisas, às armas capturadas ao inimigo em campo de batalha. Portanto, não deveria ser uma novidade tratar FRPRXPDGDVFROHo}HVPDLV³YLVLWDGDV´GR0+1VHXVFDQK}HVUHXQLGRVHPXPDiUHDHVSHFt¿FD e determinada do prédio da instituição, o Pátio Epitácio Pessoa. * Historiador, pesquisador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e coautor do livro Armas: ferramentas da paz e da guerra. 1 MACHIAVELLI, Nicoló. The Prince. Chicago: The University of Chicago Press, 1952. p. 18. 2

Por exemplo, há o texto de autoria do abaixo-assinado “Do troféu de guerra ao copo de geleia”. (Anais do Museu Histórico Nacional n° 27, 1997) e o de José Neves Bittencourt, “Um museu de história do século passado, observações sob a estrutura e o acervo do Museu Militar do Arsenal de Guerra, 1865-1902”. Anais do Museu Histórico Nacional n° 29, 1997.

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Contudo, essa coleção é anômala, especialmente na atualidade, quando as ciências sociais se WUDQVIRUPDUDP (P WHUPRV PXVHRJUi¿FRV QRUPDOPHQWH QmR VH Yr PDLV HVVH WLSR GH H[SRVLomR que trabalha quase exclusivamente com um só tipo de objeto, pois, com exceção de museus PRQRJUi¿FRV TXH WUDWDP GH DVVXQWRV EHP HVSHFt¿FRV R PDLV XVXDO HP PXVHXV GH KLVWyULD p “misturar” os objetos nas exposições, de forma a passar o conceito que a curadoria da exposição procura transmitir com sua proposta. Esse é o padrão geral do Museu Histórico Nacional nos dias de hoje, de modo que conhecer a exposição do Pátio dos Canhões e suas idiossincrasias parece-nos um assunto relevante para se abordar a questão da evolução – ou não – da museologia moderna e da forma de se ver e tratar a história por meio dos objetos. As “bocas de fogo” ou as “peças de artilharia”, como os canhões também são conhecidos, formam uma coleção de 45 objetos expostos no pátio, com mais algumas outras – que já estiveram no local – que estão guardadas na Reserva Técnica ou foram cedidas em empréstimos de longa duração a outras instituições museológicas. São objetos de grandes dimensões, algumas pesando diversas toneladas; de ferro, bronze e aço, feitos em diversos países, desde o século XVI até o XX. Também são itens que podem ser vistos como “frios”: coisas destinadas a causar mortes e ferimentos. De forma racional, poderíamos esperar que eles gerassem um interesse muito reduzido, ainda mais considerando que o Brasil é um país em que os aspectos militares do presente ou do passado não são uma preocupação da sociedade, não fazendo parte da memória coletiva das pessoas. Outro problema, esse de natureza museológica, é que um canhão, apesar de ser facilmente reconhecível como tal, não é um objeto de fácil entendimento para o visitante que não detém um conhecimento muito especializado sobre a história da tecnologia militar – ou seja, praticamente a totalidade do público que vai ao Museu. Para compreender as informações contidas nos objetos é QHFHVViULRXPSURFHVVRGHGHFRGL¿FDomRHKiSRXFDVSHVVRDVTXHWrPFRQKHFLPHQWRVRXLQWHUHVVH para trabalhar com a curadoria desse tipo de acervo. Mesmo com esses argumentos válidos, os canhões do MHN são uma parte marcante da exposição permanente. (Considerando que hoje em dia se usa mais o termo exposição de longa duração, usamos o termo “permanente” no seu sentido estrito, pois, ao contrário do que promove a museologia mais recente, essa parte do circuito de visitação do museu é realmente permanente, já que foi montada em 1940 e não mudou desde então.) O interesse por essa coleção é tal que o espaço expositivo recebeu seu nome informal por causa dos objetos – é o “pátio dos canhões”, mesmo com RVHXQRPHR¿FLDOVHQGRRXWUR Apesar dos problemas da plena compreensão sobre os canhões, é verdade que existe, de fato, uma fascinação por parte das pessoas com as coisas que explodem, causam destruição ou criam riscos – basta ver o interesse pelos programas de televisão dedicados a mostrar desastres,

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FDWiVWURIHVJXHUUDVRXDWpHVSRUWHVUDGLFDLVFRPRFRUULGDVGHFDUURV$WpRJRVWRSRU¿OPHVGH aventura pode ser um sinal de que as pessoas se interessam pela expectativa de ver um ato violento. No entanto, somente isso não explicaria o porquê da própria existência da coleção e suas origens. E o conhecimento dessa origem é um indício de como a questão dos fatos militares foi tratada ao longo dos anos. De início quais seriam as razões da fascinação pelos canhões? Isso não é um problema simples nem recente. Na verdade, pode-se dizer que é parte da natureza humana: desde antes dos registros KLVWyULFRVRKRPHPVHHQYROYHHPFRQÀLWRVHDWpPXLWRUHFHQWHPHQWHDDWLYLGDGHEpOLFDWLQKDXP aspecto vital na vida das pessoas. Mesmo hoje em dia, quando há o ideal – ainda não atingido, mas por todos almejado – de uma paz universal, a questão militar não é algo que possa ser ignorado, pois afeta a vida de todos, mesmo quando isso não seja muito perceptível. Por exemplo: em 1838, o orçamento do governo paraguaio dedicado a questões de defesa era nada menos que 94,5% do total de gastos governamentais.3 Ou seja, praticamente tudo o que o governo de lá arrecadava era voltado para a questão militar. No mesmo ano, o Brasil também dedicava uma boa parcela de seu orçamento para a defesa, correspondendo a 36,5% dos gastos do governo.4 E isso não é um aspecto que se restringe a um passado longínquo: em 1960, o orçamento do governo norte-americano dedicava 47% de suas despesas à área de defesa – 9% de tudo o que a população norte-americana gastou naquele ano!5 Considerando que esses valores são referentes a momentos que os respectivos SDtVHVQmRHVWDYDPHQYROYLGRVHPFRQÀLWRVH[WHUQRV¿FDFODURTXHLQGHSHQGHQWHPHQWHGDYRQWDGH de paz das pessoas, a questão militar é algo com que temos de conviver, mesmo em tempos de paz. Obviamente, o problema da relevância dos assuntos militares no governo não é recente, o crescimento dos gastos governamentais com a questão da defesa, que também obviamente implica fortes impactos em toda a sociedade, pode ser associada à própria existência do estado moderno. Sobre isso, há, por exemplo, a tese sobre a “Revolução Militar”, na qual se faz uma relação direta entre a formação dos autuais países e assuntos ligados a táticas surgidas no século XVI.6 Segundo o autor da proposta a necessidade de se manter em pé de guerra grandes exércitos teria forçado ao surgimento de uma máquina burocrática – os modernos governos – para que os monarcas pudessem DUUHFDGDURVX¿FLHQWHSDUDVHSDJDURVVROGDGRV 3

WHITE, Richard Alan. Paraguay’s Autonomous Revolution: 1810-1840. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1978. p. 208.

CARREIRA, Liberato de Castro. +LVWyULD¿QDQFHLUDHRUoDPHQWiULDGR,PSpULRGR%UDVLORio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980. v. 1, p. 255.

4

5

For Your Eyes Only. Strategy and Tactics Magazine, n. 55, March/April, 1976. p. 23.

6

Cf. ROBERTS, Michael. The Military Revolution, 1560-1660. In: ROGERS, Clifford J. The Military Revolution Debate: Readings on the Military Transformation of Early Modern Europe. Oxford: Westview Press, 1995. p. 13-35.

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Na verdade, mesmo quando vemos a tradicional divisão dos períodos históricos, a guerra DSDUHFHFRPUHOHYkQFLDRPDUFRPDLVXVDGRQR%UDVLOSDUDGHVFUHYHUR¿PGD,GDGH0pGLDHRLQtFLR da Idade Moderna é a tomada de Constantinopla pelos turcos em 1452 – um evento de natureza militar, no qual os grandes canhões, a arma da “modernidade”, tiveram um papel fundamental na destruição das muralhas da cidade, construídas dentro dos padrões medievais. E o exemplo de Constantinopla é apenas um dentre todo um conjunto de eventos que foram marcados pela ação dos exércitos e, mais importante para este artigo, pelo uso da artilharia: os antigos castelos medievais tinham muralhas altas para não serem facilmente escalados, e, para reduzir seu custo, a largura dos muros não era muito espessa. Isso não era um problema marcante na época em que as máquinas de assédio eram as catapultas e os aríetes – era muito difícil romper um muro de pedra. Contudo, o canhão mudou essa situação, pois seu projétil, vindo em uma velocidade muito alta, quebrava com facilidade a alvenaria dos muros em suas bases, facilitando a queda. Na Guerra dos 100 Anos (1337-1453), apesar de todas as vitórias inglesas sobre a cavalaria medieval, que resultaram na ocupação de uma grande parte da França, a partir do momento que a posse de canhões se tornou comum, a guerra mudou, pois os exércitos franceses foram capazes de destruir as bases da ocupação de seu país, reconquistando em apenas quatro anos tudo o que tinham SHUGLGRDRORQJRGHPDLVGHXPVpFXORGHFRQÀLWR±FRPDDUWLOKDULDXPDGDVEDVHVGRVLVWHPD SROtWLFRHHFRQ{PLFRGRIHXGDOLVPRRVFDVWHORVGHL[DUDPGHVHUH¿FLHQWHV(VVHIRLXPHYHQWR de fundamental importância, não só em termos bélicos, mas também em termos sociais: um dos PRWLYRVGDWUDQVIRUPDomRVRFLDOTXHRFRUUHXQR¿QDOGD,GDGH0pGLDHLQtFLRGD,GDGH0RGHUQD foi, justamente, o declínio do poder dos senhores feudais e o surgimento de estados centralizados, governados por monarcas, no sentido estrito da palavra: mono (um) e archa (governante). Ou seja, ao contrário do esquema anterior, em que o rei era apenas um dos senhores feudais de um país, o primeiro entre pares, ele passava a ser o único governante legítimo e com real poder, pois era o detentor do único poder militar efetivo. A transformação na estrutura de governo já mencionada não ocorreu de forma instantânea, foi unilateral, já que era possível a uma família nobre construir lentamente um castelo que era praticamente inexpugnável, mas comprar um número razoável de canhões era muito mais complexo, por sua fabricação implicar grandes despesas, que tinham de ser pagas de forma praticamente instantânea, empregando uma mão de obra altamente especializada. Ademais, os canhões eram produtos muito caros por causa do custo da matéria-prima e por não poderem ser fabricados em série: cada boca de fogo era feita usando-se o método da cera perdida, em que o molde onde o objeto era fundido tinha de ser destruído durante o seu uso. A implicação era

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que, se um nobre podia comprar um ou dois canhões, ele certamente não teria condições de adquirir um grande número deles, como os reis, que dispunham de mecanismos mais aperfeiçoados GH¿QDQFLDPHQWR Naturalmente, a transição para uma força militar totalmente estatal não foi um processo instantâneo, apesar de ter-se dado de forma relativamente rápida, tendo em vista as centenas de anos de duração da Idade Média, durante a qual os aspectos do controle pela nobreza dos modos de fazer a guerra dominaram. Deve-se dizer que o Museu Histórico Nacional tem em suas coleções objetos TXHSRGHPLOXVWUDUDQmROLQHDULGDGHGHVVDPXGDQoDFRPRSRGHVHUH[HPSOL¿FDGRSHORVFDQK}HV feitos para navios corsários ou mercantes – um dos troféus de guerra do Pátio dos Canhões é uma SHoDKRODQGHVDIXQGLGDSDUDD&RPSDQKLDGDVËQGLDV2FLGHQWDLVHPXPREMHWRUHOHYDQWH para ilustrar determinado momento da história do Brasil, mas que não é ligado a um governo e sim a uma empresa privada. Apesar da sua posição como companhia de comércio, ela conduziu a guerra contra Portugal no Brasil entre os anos de 1624 a 1654. Outro canhão, cuja história é lamentavelmente ignorada, foi fundido por um artesão alemão com a inscrição em português: “A Deus peço seu favor [para] nas batalhas que tiver sair vencedor”, seguido da data de 1631. O fundador do museu, Gustavo Barroso, teceu a hipótese de que se tratava de um canhão feito para ³>@XPQDYLRGHDUPDGRUHVMXGHXVSRUWXJXHVHVTXHGHD¿]HUDPRFRPpUFLRGR%UDVLO DVRPEUDGDEDQGHLUDGD&RPSDQKLDGDVËQGLDV2FLGHQWDLVDUPDGRVHPJXHUUDFRQWUDRVSLUDWDV europeus e barbáricos”.7 Apesar de isso ser uma conjectura, já que, como dissemos, trata-se de um objeto cuja história é efetivamente desconhecida, o argumento de Barroso parece ser consistente, não podendo ser descartado de imediato – certamente esse objeto não foi feito para um governo, pois não tem o brasão real e sim o que parece ter sido um escudo de um nobre, que foi raspado, fato bastante interessante, pois alguém tomou a iniciativa de “apagar” o sinal de que aquele objeto não pertencia a rei ou a governo algum. Mesmo com a resistência cultural de segmentos da sociedade em aceitar que os governos estavam estabelecendo um monopólio do uso da violência legítima, é fato que DSHQDV DV HQWLGDGHV TXH FRQWURODVVHP R DSDUDWR ¿VFDO FDSD] GH OHYDQWDUUHFXUVRV SDUD HTXLSDU e manter forças armadas de porte tiveram condições de manter sua autonomia política, face ao poder de outras entidades. Isso é bem visível durante os processos em que o número de unidades políticas autônomas, os países independentes, foi reduzido de milhares para menos de duzentos hoje em dia, assim como ocorreu na Europa, que veio a controlar praticamente todo o mundo no século XIX. 7

BARROS, Sigrid Porto de. Armas que documentam a guerra holandesa. Anais do Museu Histórico Nacional. v. 10, 1949. Rio de Janeiro: SEDEGRA, 1959. p. 31-32. Apud BARROSO, Gustavo. Catálogo comentado da exposição do Museu Histórico Nacional aos pavilhões do “Mundo Português” e do “Brasil Independente” (1940). p. 30.

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Tudo isso ajuda a explicar porque os canhões adquiriram, de fato, uma grande importância no esquema militar, sendo o equipamento mais caro e complexo usado nos exércitos de terra dos séculos XVI ao XIX. Mas sua importância não pode ser medida apenas em fatores estritamente concretos e objetivos, pois a dimensão psicológica que os objetos tinham não pode ser relevada, tendo sido criado todo um sistema de mitos sobre os canhões. Uma característica dessa mitologia, ainda relativa ao monopólio da violência legítima pelo estado, é a resistência das pessoas a esse processo, como se observa nos Estados Unidos, onde a própria constituição autoriza o porte de arma entre os civis, os quais possuem até mesmo armas de alcance militar, como fuzis e armas automáticas. Mesmo no Brasil, onde há longa tradição de restrições à posse de armas por civis, em 2005, quando foi feito o plebiscito sobre o comércio de armas e munições, praticamente dois terços da população votou contra a proibição total à venda desses produtos – em dois estados, a votação contrária superou 85% dos votos. Essa rejeição não se deve a um problema prático, concreto, pois não há uma necessidade real de as pessoas possuírem armas – é uma questão psicológica, de medos e receios sobre a redução de direitos. Mesmo tendo em vista as restrições que as sociedades colocam a uma total proibição da posse de armas, uma coisa é tomada como certa em todos os países do mundo onde existe um estado organizado: canhões capazes de funcionar são de propriedade exclusiva dos governos, que não desejam dar meios de destruição de maior escala à população geral. Daí se entende perfeitamente que os canhões franceses fabricados no reinado de Luís XIV, de 1661 até 1776, tivessem a inscrição Ultima Ratio Regis – “a última palavra dos reis”, já que as peças de artilharia, além de serem importantes em combate (quando efetivamente representavam a “última palavra”) eram um monopólio dos reis. A partir dessa ideia era apenas um pequeno passo para que os canhões fossem vistos como uma representação do próprio rei e, por extensão, do país ao qual governavam. Isso era facilitado SHORIDWRGHDPHQWDOLGDGHGRSHUtRGRSyVUHQDVFLPHQWRVHULQÀXHQFLDGDSHODVLGHLDVDUWtVWLFDVGR Barroco, de forma que praticamente tudo o que era feito naquela época era muito decorado, e os canhões não eram exceção: tornaram-se verdadeiras obras de arte, aumentando ainda mais o valor material e simbólico dos objetos. Esse papel de representação do estado assumido pelos canhões pode ser visto nas peças portuguesas e brasileiras existentes no acervo do MHN, incluindo os canhões fabricados em outros países da Europa para o uso de Portugal, além de objetos de grande apuro artístico, como os fabricados por Jacomo Rocca, artesão de Gênova, fartamente decorados e com detalhes que lembram esculturas, a ponto de poderem ser considerados como tal (um fragmento de um dos canhões de Rocca, em forma de cabeça de guerreiro, foi incorporado às coleções do Museu

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Histórico como se fosse uma escultura). Esse papel artístico também se observa na presença dos brasões, sempre em posição de destaque nos canhões. Com esses brasões, um museu pode basear sua exposição sobre um processo histórico, como é o caso de um canhão português, fundido na Inglaterra, que tem não só o brasão real português, mas também o do marquês de Pombal. Segundo a lenda, um canhão como o de Pombal teria sido feito por um artesão português enviado para a Inglaterra pelo próprio marquês para aprender as técnicas de fundição inglesas, já que Portugal, no século XVIII, tinha perdido a tradição de fabricante de bons canhões, se tornando um importador de material de artilharia. Independentemente da veracidade da lenda, os brasões permitem trabalhar com a ideia da decadência das indústrias portuguesas, a ponto de necessitarem importar materiais que antes tinham sido feitos no país, por outro lado, é notável a importância da Inglaterra como fornecedora de bens manufaturados. Mais importante, a SUHVHQoDGREUDVmRGRWRGRSRGHURVRPLQLVWURFRQ¿UPDVXDLPSRUWkQFLDQDSROtWLFDSRUWXJXHVD FHUWDPHQWH3RPEDOQmRWLQKDVHXH[pUFLWRSDUWLFXODUPDVFRQVHJXLXDVVRFLDUVXD¿JXUDDGR próprio rei. E isso de forma indelével e perene, com a simples aplicação de seu brasão no corpo de um canhão. 9ROWDQGRDRWySLFRWH[WRRVGRLVIDWRUHVGHOLQHDGRVDQWHULRUPHQWHDH¿FiFLDUHDOGRVFDQK}HV como armas no campo de batalha e os valores simbólicos associados a eles, resultaram que as peças de artilharia se encaixassem bem em uma prática que vinha da antiguidade e que persiste até os GLDVGHKRMHDFROHWDJXDUGDHH[LELomRGHPDWHULDOFDSWXUDGRGHLQLPLJRVFRP¿QVGHFHOHEUDUD vitória de um estado ou sistema político sobre outro. Esses objetos eram transformados em troféus, coletados pelos governos tal como um clube de futebol faz até hoje, apesar de aquele “jogo” entre as nações ser muito mais mortal. Do ponto de vista da coleção de canhões do Museu Histórico Nacional, é importante frisar que muito antes de existirem museus militares ou de qualquer outro tipo, os governos guardavam cuidadosamente em seus arsenais os canhões capturados como símbolos políticos. A coleção de armas da Royal Armouries, da Inglaterra, é um dos maiores museus de armas do mundo, reúne canhões estrangeiros desde o século XV, sendo interessante notar que o estabelecimento, originalmente um arsenal, recebia visitantes, cobrando entradas desde o século XVI.8 Por outro lado, deve-se mencionar que se a manutenção dos troféus era um dos objetivos dos governos, seu retorno também era uma preocupação. Não por causa de seu valor monetário ou bélico, mas como uma forma de “apagar uma desonra” resultante de uma derrota no campo de batalha. Um exemplo disso pode ser visto no caso de 1814, quando o diretor do Invalides, o 8

Para uma história da coleção da Armouries, ver: BLACKMORE, H. L. The Armouries of the Tower of London, I Ordnance. London, Her 0DMHVW\¶V6WDWLRQDU\2I¿FH

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hospital de inválidos militares em Paris, onde os troféus eram depositados, queimou as bandeiras preservadas no hospital para que não fossem recuperadas pelos inimigos. Aqui no Brasil também houve a coleta de canhões nos arsenais e, depois, nos museus militares, FKHJDQGRVHDRSRQWRGHDWpLQVWLWXLo}HVFLYLVRID]HUHP2,QVWLWXWR+LVWyULFRH*HRJUi¿FRGR Pará tem uma pequena coleção de canhões, incluindo um capturado em Caiena. Mas o uso de coleções de bocas de fogo como símbolos vai além de seu uso como elemento de lembrança das vitórias militares. A estátua do General Osório, militar de grande reputação na Guerra do Paraguai, foi feita com o bronze de troféus de guerra paraguaios capturados no campo de Batalha. A estátua do proclamador da República Marechal Deodoro, localizada na Praça Paris (RJ), também foi feita com o bronze de canhões – curiosamente, o Museu Histórico Nacional cedeu quatro peças de seu acervo para isso, trocando-os pelas bocas de fogo que tinham sido originalmente destinadas a serem destruídas, consideradas como de maior valor histórico. Outro exemplo no Brasil foi o caso dos canhões capturados dos holandeses quando de sua rendição em 1654: um dos itens da paz com a Holanda, assinada em 1663, foi a exigência dos holandeses pela devolução desses canhões, dezenas deles tendo sido enviados de Recife para a Europa,9 de forma que esses canhões são raros no Brasil agora. A devolução certamente não se devia a um possível uso militar das peças de artilharia, muitas delas de qualidade inferior, já bastante antigas e até obsoletas no ano da paz. Também a Holanda não estava envolvida em um FRQÀLWRQRPRPHQWR$VVLPFRPRQmRHUDXPSUREOHPDPRQHWiULRMiTXHRXWUDH[LJrQFLDGDSD] foi o pagamento de uma pesada indenização por parte de Portugal. A tudo isso deve ser somado o fato de que as bocas de fogo não pertenciam originalmente ao governo holandês, apesar de o governo tê-las reinvidicado, eram, na verdade, propriedade de uma empresa privada, a Companhia GDVËQGLDV2FLGHQWDLVGHIRUPDTXHDKLSyWHVHTXHQRVSDUHFHHYLGHQWHpTXHRVKRODQGHVHVQmR TXHULDPTXHWURIpXV¿FDVVHPQDVPmRVGRVOXVLWDQRV O desejo de obter e manter troféus explica porque o Museu Naval e o Museu do Exército, criados na década de 1860 e cujos acervos dariam origem à coleção de canhões do Museu Histórico Nacional, coletaram diversas peças. Hoje em dia, o MHN tem canhões das seguintes origens:

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O arquivo ultramarino contém 24 documentos que enviam conhecimentos de carga de canhões de Recife para Lisboa. Ver, por exemplo, carta do almoxarife da Fazenda Real da capitania de Pernambuco, Gregório Cardoso de Vasconcelos, ao rei [D. Afonso VI], sobre o envio do conhecimento das peças de artilharia remetidas para o reino pela nau de guerra Santa Ana, da qual foi mestre José Alves Pinhão Verde. Recife, 15 de março de 1663. Mss. Arquivo Ultramarino.

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País de fabricação

Canhões

França

2

Itália

4

Paraguai

3

Holanda

4

Ignorado

4

Espanha

6

Brasil

11

Inglaterra

16

Portugal

16

Tabela 1: Origens dos canhões do MHN.

Não se pode dizer que todos os objetos da tabela anterior tenham sido recolhidos como troféus, pois o histórico de todos eles não é conhecido: alguns foram feitos por outros países para Portugal, outros foram comprados pelo governo imperial, nos dois casos se destacando a Inglaterra, tradicional fornecedora de material bélico, tanto para Portugal, como para o Brasil. Evidentemente, as peças feitas em Portugal e no Brasil não podem ser consideradas como troféus, pelo menos no sentido clássico da palavra, mas para o antigo museu, elas, estando associadas a vitórias militares RXDR³SDVVDGRJORULRVR´GDQDomRFHUWDPHQWHDVVXPLDPXPVLJQL¿FDGRPXLWRVHPHOKDQWH3RGH ser esse o caso das bocas de fogo usadas pelo Exército Brasileiro na guerra do Paraguai ou o SHTXHQRFDQKmRGDÀRWLOKDGH-RmRGDV%RWDVKHUyLGDJXHUUDGH,QGHSHQGrQFLDTXHHUDOHYDGRHP procissões cívicas na Bahia antes de ser incorporado ao acervo do Museu. De qualquer forma, a probabilidade de as outras peças estrangeiras terem sido preservadas como marco da memória de um estado nacional idealizado, vencedor, se aproxima da certeza, ainda mais quando consideramos que o próprio museu trabalhou ativamente para criar essa impressão. É o caso de um grande canhão francês, do reinado de Luís XIV, que estava na fortaleza de Santa Cruz até 1901.10 Não há informações sobre o objeto, a documentação original do Exército apenas PHQFLRQDQGRTXHWHULD³YDORUKLVWyULFR´±RTXHFHUWDPHQWHHUDYHUGDGHMXVWL¿FDQGRVXDLQFOXVmR no Museu de Artilharia. Contudo, o primeiro diretor do MHN, Gustavo Barroso, indo muito além, 2)Ë&,2QžGR,QWHQGHQWH*HUDO*HQHUDOGH%ULJDGD$QW{QLR9LFHQWH5LEHLUR*XLPDUmHVDR'LUHWRUGR$UVHQDOGH*XHUUD&HO João Cândido Jacques, mandando recolher ao Arsenal de Guerra um canhão de bronze com a efígie de Luiz XIV que foi reputado de valor histórico. 5 de julho de 1901. Mss. Arquivo Nacional.

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conjecturava que era um troféu, capturado na invasão francesa ao Rio de Janeiro, em 1710.11 Isso apesar dessa hipótese ser altamente improvável devido às gigantescas dimensões do objeto, adequadas apenas ao uso em navios, o que não foi o caso da derrota de Duclerc, uma invasão por terra. De qualquer forma, para o diretor do museu, era importante criar uma associação entre os REMHWRVH[SRVWRVHXPIDWRPLOLWDUGHLPSRUWkQFLDPHVPRVHHVVDDVVRFLDomRQmRIRVVHFRQ¿UPDGD Tudo isso explica porque o museu antigo coletava troféus de guerra, já que com isso estaria inserido em uma postura social em que se julgava ser necessário criar uma identidade nacional baseada em um forte nacionalismo, a visão de uma nação se sobrepondo a outra. Só que em termos sociais e, como consequência, de história e museologia, a situação mudou. Em função da experiência traumática da Segunda Guerra Mundial, causada em grande parte pelo discurso extremamente chauvinista das potências nazifascistas, a visão de uma supremacia nacional passou a ser contestada em quase todo mundo. No Brasil, essa posição crítica foi a que dominou as ciências sociais e, portanto, a proposta das antigas exposições do Museu Histórico Nacional foi considerada inadequada. O resultado foi uma mudança gradual na abordagem do museu quanto aos aspectos históricos. Um sinal disso está no que não pode ser visto hoje no acervo do Museu Histórico Nacional: os canhões da Segunda Guerra Mundial. O exército, ao voltar da Itália em 1945, trouxe certo número de bocas de fogo usadas pelos alemães e italianos, capturadas no campo de batalha – 26 desses canhões foram dados ao Museu, justamente na ideia de se incorporarem à coleção de troféus já H[LVWHQWH+RMHQRHQWDQWRQHQKXPGHOHVHVWiHPH[SRVLomR'HIDWRDSHQDVXP¿FRXQR0XVHX PDVHVWiHPXPD5HVHUYD7pFQLFD2VRXWURVIRUDPHQYLDGRVSDUDR0XVHXGD5HS~EOLFDQR¿QDO da década de 1960, que por sua vez os devolveu ao Exército na década de 1970. O caso dos canhões capturados aos nazistas mostra de forma inequívoca como a visão das ciências sociais mudou: objetos que antes eram vistos como de importância fundamental para a formação de um museu de história passaram a ser desprezados e, literalmente, descartados. Isso, por si, não seria um problema, pois mudanças na forma como o MHN trabalha com a história são visíveis em quase todas as áreas de suas exposições. Atualmente se dá mais importância ao cotidiano do que aos “grandes personagens”; a uma história mais recente, em oposição à visão anterior, de buscar enaltecer as “raízes da nação”; se procura abordar mais os processos históricos que os “fatos marcantes”, e assim por diante. Do ponto de vista do Brasil, contudo, problemas internos agravaram a questão da posse de troféus: com um passado relativamente recente ligado a uma ditadura militar, houve toda uma 11

BARROSO, Gustavo. Segredos e revelações da história do Brasil: o mistério da morte de Duclerc. O Cruzeiro, Rio de Janeiro. p. 20-24, 23/07/1949.

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postura acadêmica contrária à defesa dos valores tradicionais das forças armadas. Praticamente tudo que o Exército tinha feito passou a ser questionado de forma muito crítica, muitas vezes sem uma postura objetiva: se vinha de uma atividade militar, seria apontado como algo ruim. A isso se juntava o mito do “brasileiro cordial”, que tentava passar a ideia de que o país não era uma nação que se envolvesse em guerras de agressão – tal informação é falsa e até os dias atuais não foi corrigida na forma de pensar da população. Não que a pouca importância que se dava aos assuntos do passado militar fosse um problema de data recente, como já apontado em um artigo dos Anais de 1947, em que se menciona campanhas políticas anteriores de devolução de troféus de guerra.12 Na linha da criação do mito do “brasileiro cordial”, o próprio governo da ditadura militar devolveu troféus de guerra ao Paraguai em duas ocasiões distintas, nos governos Geisel (1971) e Figueiredo (1980).13 0DV HQWmR ¿FD D SHUJXQWD VH KDYLD D SURSRVWD PXVHROyJLFD H KLVWyULFD GH PXGDQoD GH abordagem com relação aos troféus, por que, de todas as áreas do Museu Histórico Nacional, o Pátio dos Canhões se manteve praticamente imutável desde 1940? Isso parece ser particularmente estranho, considerando que nesses setenta anos o Museu passou por diversas reformulações de grande porte, com profundas mudanças até na arquitetura do prédio. Uma explicação óbvia é o problema do próprio material exposto, de grandes dimensões e peso, difícil de ser rearranjado. De fato, quando o autor deste artigo trabalhou no museu, se chegou a discutir uma nova proposta PXVHRJUi¿FDSDUDRSiWLRVHPTXHKRXYHVVHXPDUHPRomRGHREMHWRVPDVDSHQDVRUHDUUDQMRGRV mesmos de forma mais lógica do que a atual, inexistente. Só que até isso foi inviável, devido aos enormes custos envolvidos. Entretanto, se os custos com uma grande mudança na organização espacial dos objetos não eram possíveis de serem arcados, pode-se dizer que houve uma alteração radical na proposta conceitual da exposição. Como já descrito, não é mais aceitável o extremo nacionalismo, no qual as exposições dos museus eram montadas objetivando demonstrar a superioridade de um estado sobre outro.14 Dessa forma, apesar do arranjo dos objetos não ter se alterado, o uso que era feito deles mudou. Atualmente, os objetos são simplesmente descritos por meio de informações mais básicas, como no caso do canhão El Cristiano, o troféu de guerra mais conhecido do país, capturado aos paraguaios em 1868. Sua legenda atual informa apenas que se 12

DUMANS, Adolpho. A ideia da criação do Museu Histórico Nacional. 5LRGH-DQHLUR*Ui¿FD2OtPSLFDS

13

Sobre esse assunto, ver: FERNANDES, Lia Peres. Guerra contra a memória. A devolução de peças do acervo do Museu Histórico Nacional. In: Anais do Museu Histórico. v. XVII. 2010. 3DUDXPDGLVFXVVmRGHVVDYLVmRYHU0XVHXVHUHSUHVHQWDo}HVGDQDomRQRSyVFRORQLDOLVPRUHÀH[}HVVREUHRVSDVVDGRVFRQVWUXtGRVQR Museu Histórico Nacional. MAGALHÃES, Aline Montenegro. TOSTES, Vera Bottrel Lúcia. A democratização da memória: a função social dos museus ibero-americanos. CHAGAS, Mário de Souza et alii. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2008.

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trata de um obuseiro fundido no Paraguai e utilizado contra encouraçados brasileiros. O ideal seria um texto objetivo, que permite ao visitante estabelecer seus próprios juízos de valor sobre o assunto, fugindo de todas as ideias preconcebidas e, portanto, preconceituosas, de “certo” e “errado”, de “bom” ou “mau”. De um ponto de vista conceitual, cabe apontar, contudo, que a mudança de perspectiva da KLVWRULRJUD¿D H GD PXVHRORJLD TXH IRL DGRWDGD QR 0XVHX +LVWyULFR 1DFLRQDO QmR p XQLYHUVDO museus no exterior continuam a adquirir e expor com ênfase troféus de guerra: o Musée des Blindés, de Saumur, na França, tem um carro de combate Cascavel, construído no Brasil para a Líbia, mas que foi capturado pelos franceses no Chade.15 Outro caso é o “canhão da Babilônia”, construído para Saddam Hussein no Iraque, como parte de seu programa armamentista. Partes dessa boca de fogo foram apreendidas na Inglaterra, em 1990, e se encontram expostas em diversos museus daquele país. Os Estados Unidos têm, inclusive, uma legislação para troféus de guerra adquiridos por soldados, o Control and Registration of War Trophies and War Trophy Firearms (Controle e registro de troféus de guerra e armas troféus de guerra), baixada em 1969.16 Ou seja, nem todos renegam a forma tradicional de se trabalhar com os troféus. Mais importante, do ponto de vista da museologia antiga versus a moderna, é notar como existe uma forte resistência a essa mudança de visão. Em 2010, o então vice-presidente do Paraguai, Frederico Franco, solicitou a devolução do canhão El Cristiano, para “que se inicie a cicatrização do nosso povo”, em função da Guerra do Paraguai, terminada há 140 anos. Tal assunto gerou certa discussão na imprensa e na internet, com artigos e opiniões contrárias e a favor da devolução. A proposta de entrega do canhão foi encampada pelo Ministério da Cultura, que chegou a designar recursos para a remoção do objeto e para a construção de um monumento aos dois países no MHN, no lugar de onde ele seria removido. E o assunto chegou a ser tópico de discussão do Conselho Consultivo do Iphan, a quem caberia à emissão de uma opinião a respeito, já que El Cristiano, sendo tombado como Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, só poderia ser devolvido após ser “destombado”, o que só pode ser feito pelo Presidente da República. O debate sobre o tema foi extenso, porém, apesar das opiniões contrárias, o presidente do Iphan resolveu que nenhuma SRVLomR R¿FLDO VHULD WRPDGD R TXH IRL VHJXLGR SHOD 3UHVLGrQFLD GD 5HS~EOLFD 2 FDQKmR DLQGD permanece no MHN, pelo menos por enquanto. 15

Disponível em: . Acesso em: jan. 2013.

16

Disponível em: . Acesso em: jan. 2013. Deve-se notar, contudo, que a tomada de troféus particulares por soldados norte-americanos no Iraque e no Afeganistão foi proibida. Nas palavras do porta voz do comando central, capitão Bruce Frame: “Nós não fomos para o Iraque ou o Afeganistão para conquistá-los, mas para liberá-los [...] Levar coisas desses países envia a mensagem errada.” Disponível em: . Acesso em: jan. 2013. Tradução nossa.

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2TXHQmRVHGLVFXWLXQDpSRFDIRLTXHDSUySULDVROLFLWDomRHUDXPDUHL¿FDomRDWUDQVIRUPDomR em uma coisa concreta, do que era apenas a ideia abstrata – e muito controversa –, de que haveria XPD VXSHULRULGDGH GH XP SDtV VREUH RXWUR $¿QDO D JXHUUD DFRQWHFHX p XP IDWR KLVWyULFR D GHYROXomRGHXPREMHWRQmRYDLDSDJDUHVVDKLVWyULDRXPRGL¿FiODFRPRHUDSURSRVWR2TXHVH pretendia com o pedido de devolução do vice-presidente Franco era aceitar uma visão positivista e determinista, de que há apenas uma história a que, no caso, seria a do Paraguai como vítima. Devese dizer que, de certa forma, a atual exposição do Pátio dos Canhões, procurando ser “neutra”, dá VXSRUWHDHVVHSRQWRGHYLVWDMiTXHDFRQVWUXomRKLVWRULRJUi¿FDGHTXHR3DUDJXDLIRLXPDYtWLPD p GRPLQDQWH QR SDtV SRU FDXVD GD ELEOLRJUD¿D SURGX]LGD QR SHUtRGR GD GLWDGXUD TXH DVVXPLX um papel hegemônico nas escolas, o que só atualmente está senda revista. Quando o museu não estabelece uma postura crítica ante os fatos, se aceita como correta a posição de que os paraguaios seriam vítimas históricas de uma injustiça a ser reparada. Mas seria essa posição a única ou a correta? Uma visão histórica, igualmente válida, apontaria que o governo ditatorial do Paraguai foi o responsável pela guerra, iniciando as hostilidades com a invasão do Mato Grosso e da Argentina, cometendo atrocidades nos territórios ocupados e provocando uma guerra que custou milhares de vidas brasileiras, argentinas e paraguaias. Quem estaria certo nessa questão? Aceitar que um lado está com a “razão”, não importa qual seja, é aceitar como correta a visão de que um troféu, de fato, representa a supremacia de um país ou a ideia política sobre outro. Seria o mesmo que dizer que a museologia da década de 1940 é a correta, que o “relógio” das propostas museológicas e históricas deveria ser parado ou até retroceder. Do ponto de vista do autor destas linhas, voltando ao título deste artigo, a posição é que o poder político não deveria vir do cano de uma arma – ou pelo menos da manipulação das ideias HPWRUQRGHXPDQWLJRFDQKmR±PDVVLPGDUHÀH[mRVREUHDVRFLHGDGHHVHXSDVVDGR,VVRQmR se obtém “apagando” o passado, e sim discutindo-o. Poderíamos dizer que a atual exposição no Pátio dos Canhões, sendo neutra, não faz isso, mas o potencial para a discussão está lá, podendo ser usado a qualquer momento. E, nesses termos, a proposta do museu sobre uma exposição “neutra” se ajusta bem ao espaço, que, como já foi mencionado, é de uma exposição permanente. Posições e visões sobre a história mudam e essas mudanças podem ser abordadas com o uso de UHFXUVRVPXVHRJUi¿FRV3DUDHVWHDXWRUQmRpQHFHVViULRQHPGHVHMiYHOWRPDUQHQKXPDPHGLGD irreversível para isso.

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