O poder simbólico da doutrina jurídica: por um sociologia pública do discurso jurídico

October 3, 2017 | Autor: M. Corrêa Giacomini | Categoria: Ciência Do Direito
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Título: O poder simbólico da doutrina jurídica: por um sociologia pública do discurso jurídico

A configuração do Direito como ciência ou da juridicidade do discurso normativo passa ao largo de uma análise mais profunda do que é e representa a doutrina jurídica. Ao contrário, há uma tendência reducionista para criticar a doutrina jurídica pela sua aparente característica “manualesca” e reprodutiva do aspecto meramente legalista do ordenamento jurídico. A crítica não se propõe, contudo, visar a doutrina jurídica, primeiramente, como um gênero discursivo próprio, e, em segundo lugar, como possuindo uma eficácia e poder que extrapolam o simples quadro dogmático e argumentativo do Direito. Tal poder está diretamente ligado à atual formação superior do Direito, baseada historicamente na cultura doutrinária brasileira, que é responsável pela fala legítima sobre o direito, sobre sua prática e sobre a justificação de sua técnica. Esse estatuto acadêmico de incubação doutrinária do Direito tem fortes vínculos com a própria formação da universidade no Brasil. No que tange à constituição do pensamento jurídico brasileiro, duas faces histórico-políticas fundamentais são consideradas como basilares: a Teoria Geral do Direito e a Filosofia do Direito. Ambas discutem os pressupostos e condições de possibilidade da ciência do Direito, trabalham segundo um recuo ou distanciamento para definir e criticar os objetos do Direito, mas, curiosamente, não discutem o discurso que atravessa massivamente grande parte dos cursos jurídicos, o discurso doutrinário. Desse modo, dá-se a entender que o currículo de Teoria Geral do Direito não introduz, nem apresenta as condições de possibilidade da doutrina, reforçando o insistente e artificial quadro de distância entre aquilo que é considerado disciplinas zetéticas e dogmáticas (que, de certo modo, reproduzem elementos ideológicos da distinção entre prática e teoria, além de reduzir o dogma a uma perspectiva instrumental). A impressão que se daria é que as disciplinas que dependem do discurso doutrinário (civil, penal, processual, etc) “caem do céu”, dissociadas de qualquer tipo de pressuposto epistemológico ou, melhor ainda, reconhecidas como ciência sem que haja nenhum paralelo com o rigor conceitual prescrito nas disciplinas de introdução ao Direito. Deste modo, caberia enfim perguntar: do que se trata o discurso da doutrina jurídica? Por que ele não é incluído como objeto de estudo privilegiado nas disciplinas

de teoria geral e filosofia do Direito, visto que fará parte daquilo que perpassa praticamente todo o curso de Direito? O poder enunciativo do Direito brasileiro é doutrinário. Essa afirmação, um pouco pretensiosa, diz respeito ao poder de homogeneização da interpretação legal, histórico de um centralismo normativo brasileiro, mas também da percepção do Direito como aplicação conceitual da lei.

Não se trata de afirmar, como ocorre

recorrentemente, a categorização de certo “brasilianismo” para a explicação de práticas sociais e de construção de ideias, mas sim de afirmar que a doutrina brasileira tem o poder de combinar elementos que cairiam diante de uma crítica mais detida, mas que continuam a funcionar e obter efeitos normativos. A doutrina jurídica, desse modo, promove uma interdiscursividade que tem a capacidade de articular e combinar ideias que, aparentemente, exigiriam um tratamento metodológico mais exigente. Há, com isso, uma confluência arbitrária de ideias sociológicas, econômicas, hermenêuticas, geográficas, etc; que se articulam, explicita ou implicitamente, de modo “mágico” e moldam o discurso doutrinário, ou seja, um discurso que se pretende científico, interdisciplinar, mas revestido de um poder simbólico de dizer o Direito. Tal poder simbólico, além de conter a característica de unir coisas opostas, como todo símbolo, nos permitiria reconhecer como a lei é representada em seu poder discursivo que, ao mesmo tempo dá sentido e normatiza, ou seja, produz efeitos de força normativa e os legitima conceitualmente. Quer dizer, a doutrina jurídica tem seu meio de efetivação nos campos sociais de luta pela legitimidade de fala ou de discurso sobre a lei, que tem seu sentido reservado por meio do arcabouço conceitual (e estruturante) do Direito. A doutrina, portanto, é responsável por aquilo que pode ser chamado de cientificidade simbólica do direito. Podemos definir esse aspecto simbólico da cientificidade da doutrina jurídica, que emerge de uma análise mais detida do discurso doutrinário, ao seguir um caminho que surge, principalmente, com os trabalhos de Claude Lévi-Strauss(2008), sobre a eficácia simbólica, desenvolvidos contemporaneamente por Pierre Bourdieu (2009). Trata-se, primeiramente, de redimensionar o juízo corrente sobre o que é “simbólico”, procurando-o não caracterizá-lo como aquilo que é insignificante, dispensável e ininfluenciável. Ao contrário, o simbólico possui uma eficácia indutora, promove sentido àquilo que aparenta desordem, caos ou uma multiplicidade desconexa e estabelecem significado para conteúdos morais. O poder simbólico possui força prática de mobilizar ações sociais, através da possibilidade de dizer a norma sem que seja

necessário que se reconheça a autoridade daquele (ou daquela classe social) que a está dizendo. Ou seja, o poder simbólico é aquele que busca sua força discursiva de convencimento no momento em que é reconhecido como não arbitrário, ou imotivado. Ora, esses elementos avaliados acima podem servir de baliza para caracterizar a doutrina jurídica como discurso privilegiado de uma ciência simbólica do Direito. Em primeiro lugar, está o poder de conferir sentido (estruturante) a um conjunto de regras que, a princípio, não poderiam existir sem que seja possível incorporá-la em um conjunto de explicações e de conceitos, ou seja, tudo se passaria como se toda lei devesse ser incorporada ao discurso doutrinário. Em segundo lugar, a doutrina jurídica não apenas estabelece padrões semânticos para os institutos jurídicos, mas os avalia moralmente, como se pode bem observar quando se trata de dizer sobre a propriedade, a família, o “papel” da mulher na sociedade, etc. Nesse sentido, quando se pretende estabelecer uma problemática entre moral e Direito, não se leva em consideração essa forma de entabulamento de valores travestidos de cientificidade. Uma moralidade que, travestida de cientificidade simbólica, impõe seus valores apesar da possibilidade de argumentação jurídica que, hoje, não avaliaria corretamente o poder de dizer o direito da doutrina jurídica. Com isso, a dogmática jurídica, que se caracterizaria principalmente por se assentar no princípio da inquestionabilidade do ponto de partida por meio da lei, é um momento de aplicação não de um dogma, mas de um conjunto representado pela articulação lei-doutrina. Não há dogma, como o qual se desdobraria a concepção de uma ciência dogmática do Direito, mas a construção simbólica da lei e da doutrina que, interdiscursivamente, constituem o sentido doutrinário de aplicação da norma. A decisão judicial não representa apenas a fala de sujeitos que detém a legitimidade e a autoridade para tanto, mas também a legitimidade de dar sentido à lei e dizer o Direito. Essa articulação é o que formaria o dogma, na aplicação do Direito brasileiro. Para se contrapor a esse esquecimento crítico do poder simbólico da doutrina jurídica e de sua cientificidade simbólica, propomos desenvolver a análise dos parâmetros ou estruturas sociais que compõem a autonomia, e por conseqüência proporcionam subsídios à ciência do Direito, e do seu aspecto discursivo, pautado no aspecto de eficácia (simbólica) que o direito positivo ganha ao se apresentar como materialização conceitual dos institutos jurídicos. Neste caso, a sociologia do Direito pode ter um papel importante para tanto analisar os pressupostos de produção

acadêmica do conhecimento e das possibilidades de investigação da audiência extraacadêmica no que tange à legitimidade de quem pode interpretar e falar o Direito. Tomamos como campo teórico-metodológico privilegiado a chamada sociologia pública, um percurso teórico proporcionado pela articulação reflexiva do marxismo e da obra de Pierre Bourdieu, desenvolvido principalmente por Michael Burawoy (2005; 2010), que poderia constituir um discurso contra hegemônico ao poder simbólico da doutrina jurídica, com sua junção de dogma e conceituação. Junto a esse campo público da sociologia, e em inteiro diálogo com ele, pode-se desenvolver a análise crítica da cientificidade simbólica da doutrina jurídica, como ponto de apoio problematizador onde os institutos jurídicos podem ser articulados com o caráter comunicativo, pautados na relevância pública dos problemas emergidos de uma audiência extra-acadêmica e menos voltados para a consecução de políticas públicas e decisões judiciais.

Bibliografia: BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. BURAWOY, Michael. For Public Sociology. In: American Review, Vol. 70, 2005. BURAWOY, Michael. O Marxismo encontra Bourdieu. Campinas: Editora UNICAMP, 2010. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural I. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

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