O Poeta Pobre e a sua constituição como um autor marginal contemporâneo.

September 24, 2017 | Autor: Ornella Beterraba | Categoria: Literatura Marginal
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O POETA POBRE E A SUA CONSTITUIÇÃO COMO UM AUTOR MARGINAL CONTEMPORÂNEO¹

Ornella Erdós Dapuzzo (FURG)²

O acervo deixado por Írio Rodrigues, constituído em sua maioria de
poemas abrangendo variadas temáticas como o amor, a religiosidade, o
saudosismo materno, etc. traz, também, assuntos que giram em torno do
sentimento de inquietude acerca da inversão de valores da sociedade
contemporânea. Morador de São José do Norte – RS, o poeta que se
autodenominava pobre, utilizou-se da arte poética como um meio de criticar
a classe dominante e dar voz a uma parcela da sociedade que se
encontrava/encontra excluída, tanto no que concerne às questões
socioeconômicas, quanto à arte em geral.
Pensar o caráter marginal dentro da literatura ainda é bastante
controverso tendo em vista a dificuldade de se estabelecer a definição de
marginalidade no âmbito literário. Além disso, o entendimento de
marginalidade ainda se mantem com um caráter pouco científico, intricando a
delimitação de quem, por que e como são esses marginais. Contudo, ao
assumirmos as ideias propostas por Ponge (1981), podemos supor que a
literatura marginal se estabelece como aquela não pertencente às obras da
classe dominante. Salientamos que mesmo essa definição ainda é passível de
problematizações, uma vez que, como menciona o teórico "o estado de
marginalidade pode ser muito transitório, muito efêmero;" (PONGE, 1981).
Além disso, ao pensarmos o termo marginal, devemos ter em mente a
transitoriedade existente na significação estabelecida à expressão. Em
outras palavras, o que no século passado era estigmatizado, hoje, para
alguns, perde o sentido pejorativo e passa a ser uma espécie de elogio,
pois evoca uma simbologia de independência e autonomia literária, como
explica MATTOSO (1982):
Na verdade, marginal é simplesmente o adjetivo mais usado
e conhecido para qualificar o trabalho de determinados
artistas, também chamado independentes ou alternativos
(por comparação com a imprensa nanica, teoricamente
autônoma em relação à grande imprensa e contestadora em
relação ao sistema). (MATTOSO, 1982, p.8)
Ainda no que diz respeito à busca de uma teorização sobre a definição
de literatura marginal, Gonzaga (1981) nos apresenta um esquema no qual
possibilita caracterizar a Literatura como sendo marginal em três
diferentes tipologias. O estudioso aponta que a obra, para estar inserida
dentro do que entendemos como à margem, tende a se encaixar em pelo menos
um dos seguintes aspectos: marginais da editoração; marginais da linguagem;
marginais pela temática abordada.
Tomando como exemplo o autor Írio Rodrigues, podemos estabelecer que
ele está inserido, em um primeiro momento, no que o teórico considera
marginal da editoração. A respeito disto Gonzaga (1981) explica que são
autores de obras que não seguem os padrões normais de editoração,
distribuição e circulação. Além disso, compõem produtos graficamente
inferiores em que o raio de ação raramente transcende o local onde foram
produzidos. No que concerne ao modo de distribuição da obra de Írio, fica
nítido que o poeta não se encaixou no círculo da editoração padrão, uma vez
que grande parte de sua obra teve difusão artesanal, ou seja, vendas em
rodas de conversas e mesas de bar, com valores simbólicos e espontâneos.
Ao expor a obra do Poeta Pobre como marginal dentro do mercado
editorial, vale dar menção ao livro impresso no ano de 2003. Coletâneas
2003, apesar de ter sido impresso e tido espaço em eventos formais como a
Feira do Livro de Rio Grande, não contou com uma editora padrão, tendo como
colaboradora uma Gráfica da cidade (Salisgraf). Portanto, fica claro que a
falta de editoras e a limitação de espaços para a circulação da obra são
pontos elementares que fazem da obra do autor se inserir em um dos aspectos
conceituados como Literatura Marginal.
Além da questão do meio editorial, podemos pensar uma outra
perspectiva trazida por GONZAGA (1981) no que concerne à marginalidade
literária: o espaço e a voz do excluído dentro das obras. A respeito disso,
o estudioso afirma:
Esta terceira manifestação da literatura proclamada
marginal ligaria-se mais ao problema da escolha de
protagonistas, situações e cenários do que à adesão a uma
linguagem experimentalista. Embora alguns dos autores
dessa tendência autodefinam-se como malditos, não pairam
acima ou abaixo do organismo social, como queriam os
malditos do romantismo europeu. Sua rebeldia dá-se no
momento em que tentam enquadrar, no corpus artístico, as
frações eliminadas do processo de produção capitalista.
(GONZAGA, 1981, p.151).
Em Coletâneas 2003 (2003), de autoria do Poeta Pobre, deparamo-nos com
diversas poesias e crônicas em que o sujeito poético e/ou narrador
diretamente critica a ostentação e superestimação material advinda das
classes dominantes, parcela social esta que, frequentemente, nega ou não
percebe o real impacto que as suas condições de vida causa nos menos
favorecidos. É possível percebermos isso através da poesia intitulada "A
legião dos desgraçados" (2003) em que o autor problematiza, ao longo das
estrofes, a desigualdade social, atentando para o quão menosprezadas são as
pessoas das classes inferiores:
Debaixo das marquises/ onde dormem os infelizes,/ Sobre as
folhas de jornais/ Quantos morrem congelados/ Dormindo
desabrigados/ Nas cruéis noites hibernais.// São as
vítimas do relento/ Que ali morrem sonolentos/ Sem um
gemido de dor/ Atirados à má sorte/ A sofrer até a morte/
Ao relento, que horror// E os direitos humanos/ Onde
estão? Só vejo insanos/ Pelas ruas a padecer,/ Virando
latas de lixo/ Disputando com os bichos/ Resto de pão pra
comer.// Crianças, jovens e velhos/ Andarilhos neste
mundo,/ Num sofrimento profundo/ Loucos de fome e de
frio,/ É a legião dos desgraçados/ Que anda por todo o
lado/ E a sociedade não viu.// A sociedade assassina/
Quase sempre dobra a esquina/ Sem ao menos olhar pra
trás,/ Por que se olhar de frente/ Vai ver bandos de
indigentes/ E por eles pouco faz.// Gente simples e
esquecida/ Que a vida condenou/ A viver como indigente,/
Seus crimes foram carentes/ E a sociedade os matou.
(RODRIGUES, 2003, p. 41)
Nota-se que, ao longo do poema, o eu-lírico se utiliza de uma
linguagem que, embora formal, desperta a atenção do leitor pelo impacto
proporcionado. Ao relatar o sofrimento daqueles que nas ruas (sobre)vivem,
o sujeito poético caracteriza a sociedade como "assassina", uma vez que, ao
negligenciar a existência e condições em que os "indigentes" vivem, torna-
se cúmplice de um sistema segregador e desigual. Além disso, ainda
analisando as escolhas lexicais, nos defrontamos com palavras como
"infelizes", "insanos", "andarilhos" e "desgraçados", todas caracterizando
ora os sujeitos ora o modo de vida desfavorecido a que são submetidos,
demonstrando, logo, a maneira como são percebidos ou referidos.
Ainda em Coletâneas 2003 (2003), Írio Rodrigues apresenta uma série de
crônicas que abrangem diferentes temáticas. Dentre tais escritos,
destacamos "As Realezas terrestres" em que é possível percebermos outras
características ainda de cunho bastante crítico, como por exemplo, a
reprovação à classe dominante pelos disfarces acionados para mascarar a
verdadeira condição humana: mortal. Ao enfatizar tal condicionamento que o
homem possui, o narrador desenvolve questões como a cultura consumista
desenfreada, uma vez que os sujeitos contemporâneos normalmente são
induzidos a crer na necessidade de apropriarem-se de bens os quais são
desnecessários a suas vidas, como podemos perceber no trecho a seguir:
Mera ilusão, presunção tola da imperfeição humana que está
condicionada a vãs fantasias e caprichos da matéria que
disfarça seus odores mais pesados com finas essências e
parfuns franceses, importados da Europa, mas que na
realidade não dissimulam os odores insuportáveis de um
corpo em putrefação no túmulo onde não há lugar para tais
vaidades infelizmente e onde todos nós, pobres mortais,
via de regra, somos idênticos devido as mesmas
circunstâncias. (RODRIGUES, 2003, p.11).
Paralelamente à supervalorização do capital e daquilo que dele provém,
o Poeta Pobre ainda questiona a maneira individualista que a as classes
abastadas tendem a viver, repetitivamente as criticando pela inversão de
valores e consequentemente culpando-as pelo afastamento e desprezo no que
concerne às desigualdades que marcam a sociedade pós-moderna.
Vale salientar, ademais, que a presença da religiosidade é uma
característica marcante nos textos do autor. Ao passo que ele traz diversas
críticas ao modelo social vigente e suas consequências, apoia-se nos
ensinamentos religiosos como um meio de salvação e igualdade entre todos.
Quando deparamo-nos com a forte presença da Religião (Católica), notamos
que é por ela e a partir dela que o poeta traz a sua argumentação e
testemunho acerca do que considera moral e ético nas ações dos sujeitos.
Podemos perceber esta marca nas estrofes finais da poesia intitulada "O
livro de Deus", presente em sua coletânea de poemas Poeta Pobre- Poesias
(1998):
São os reis, os da luxúria,/ Que desconhecem as agruras/
De um mendigo sofredor, Que anseia um gesto nobre/ Do
rico, do que lhe sobre,/ Implorando por favor.// Um gesto
de amor fraterno,/ Porque vive no inferno/ Da miséria e da
dor./ E que irá morrer um dia/ Na mais triste agonia,/
Tudo por falta de amor.// E não se esqueçam os ricaços/
Que a vida passo a passo/ Nos conduz prá eternidade./ E
que Deus, lá no infinito,/ Tem no Seu livro escrito/
Nossos gestos de bondade.// E por fim compensará/ Os
caridosos do mundo,/ De sentimentos profundos,/ Os
voltados para o bem. Porque a vida é transitória,/ Só
estes terão a glória,/ De estarem com Deus no além.
(RODRIGUES, 1998, p. 5-6).

Ao longo das estrofes fica bastante claro para o leitor que a crença
religiosa é o apego final para o sujeito poético. Podemos entender este
fato em uma perspectiva na qual a religião é vista como um objeto norteador
da vida. Em outras palavras, é através da religiosidade e de sua moral que
o poeta e o sujeito poético denunciam as práticas de vida do homem
contemporâneo. Ainda que haja uma grande presença de questões religiosas na
maioria de seus escritos, Írio Rodrigues não exclui o tom revoltoso quando
tematiza e dá voz ao excluído. Pelo contrário, o autor traça uma relação
entre a ética religiosa e a civil, como podemos observar nas seguintes
estrofes retiradas de "Um senhor da nobreza" (2003):
Pobre de ti, Senhor da nobreza,/ O quanto é falsa a tua
realeza/ Os teus castelos de prazeres vãos/ Não destes
conta em tua vaidade/ Que para Deus, rico na verdade/ É
quem pratica o bem de coração.// Não partilhaste em meio a
riqueza/ Uma migalha de tua farta mesa/ A quem pedia
respondeste não/ Fechaste a porta para o indigente/ Mas
hás de vir aqui novamente/ Através da reencarnação.// Sem
cumprirá em ti a lei, e um dia/ Hás de tornar pedinte a
quem pedia/ A mesma porta tu irás bater/ Só que ao invés
de rico abastado/ Virás a terra pobre e desgraçado/ A
implorar um pão para o viver. (RODRIGUES, 2003, p.23).
À vista disso, é possível reafirmarmos que, ao se utilizar de
referências religiosas, o poeta sugere quão prescindível é o acúmulo
material, uma vez que este afasta o homem daquilo que, de acordo com o
poeta, é a real significação da vida: o amor ao próximo.
Já à respeito da linguagem utilizada nos escritos do poeta, deparamo-
nos com um afastamento daquilo que GONZAGA (1981) traz em sua teoria. O
modo de escrita que o poeta pobre apresenta ao longo das obras analisadas
aproxima-se à linguagem culta e normativa, sendo quase inexistente a
presença de léxicos e/ou organizações sintagmáticas que fujam da norma. A
respeito disso é possível pressupor que a intenção do autor esteja, não em
criar um experimentalismo vocabular, mas sim em demonstrar a possibilidade
de exibir a vida e o sujeito excluído sem se fazer necessário o uso de seus
dialetos e gírias recorrentes.
Fica compreendido, portanto, que Írio Rodrigues apresenta em seus
escritos algumas características que nos possibilitam apontá-lo como um
escritor marginal contemporâneo. Observamos isso tanto no que se refere às
questões literárias - como a temática abordada - quanto ao fato de ter
sido um sujeito de classe baixa, expressando propriedade para relatar
sentimentos e pensamentos tanto críticos quanto poéticos a respeito do
assunto, sendo, então, porta-voz de muitos outros da comunidade onde vivia.


Referências Bibliográficas:
http://www.iriorodrigues.furg.br/index.php?option=com_content&view=article&i
d=6&Itemid=12 (Acesso em Janeiro de 2014)
GONZAGA, Sérgius. In: FERREIRA, João-Francisco (org). Crítica Literária em
nossos dias e literatura marginal. Porto Alegre: Editora da Universidade,
UFRGS, 1981.
MATTOSO, Glauco. O que é poesia marginal. São Paulo: Brasiliense, 1982.
PONGE, Robert. In: FERREIRA, João-Francisco (org). Crítica Literária em
nossos dias e literatura marginal. Porto Alegre: Editora da Universidade,
UFRGS, 1981.
RODRIGUES, Írio. Poeta Pobre: Poesias. Rio Grande, 1998.
______. Írio. Coletânea 2003. Rio Grande: Salisgraf, 2003.
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