O poeta tem conta no banco: Notas sobre arte e política em Manaus na década de 1960

July 31, 2017 | Autor: Vinicius Amaral | Categoria: Amazonas, Poesia Brasileira, Ditadura Civil-Militar
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"O poeta tem conta no banco": Notas sobre arte e política em Manaus na década de 1960.
Vinicius Alves do Amaral
Resumo: Pensaremos as transformações no campo artístico cultural amazonense nos anos 60 através do livro de Aldísio Filgueiras: Estado de Sítio (1968). Sustentamos que ele busca dialogar tanto com uma tradição literária local, no qual estão inseridos a Academia Amazonense de Letras e o movimento conhecido como Clube da Madrugada, quanto com os embates que agitavam então os centros culturais do Brasil em torno dos limites da arte engajada.
Palavras-chave: Aldísio Filgueiras, Arte, Manaus.
Abstract: We'll discuss the changes in Amazonian cultural artistic field in the 60s through the Aldísio Filgueira's book: State of Siege (1968). We advocate that it seeks to dialogue with both a local literary tradition, in which are inserted the Amazonian Academy of Letters and the movement known as the "Clube da Madrugada", as it clashes with the then waved the cultural centers of Brazil around the boundaries of engaged art.
Keywords: Aldísio Filgueiras, Art, Manaus.

Seria política e cultura demais para um homem só? Eis uma pergunta que com certeza não afligiu apenas Paulo Martins, o protagonista de Terra em Transe (1967). Este poeta criado pela mente de Glauber Rocha oscila entre ajudar o povo e servir ao poder numa relação que se torna a tal ponto insustentável que o próprio se vê existencialmente encurralado.
Há extensa bibliografia que cuida das atitudes dúbias dos artistas e intelectuais, tomados ora como categoria social distinta ora como mera fração dominada da classe dominante. Pierre Bourdieu não refuta a última concepção, mas acrescenta importante ressalva à leitura social do mundo cultural: há fortes pressões sociais agindo sobre a produção artística, uma vez que é impossível ao artista se desvencilhar da posição que ocupa no mundo social, mas não há como negar o peso de certos códigos estéticos nas obras, reflexos de certa autonomia alcançada pelos artistas.
O campo artístico é construído historicamente por diversos atores sociais. Uma boa pista desse processo são os embates e confrontos que assumem uma posição central em determinado contexto exatamente por mobilizar indivíduos e grupos. Almejamos aqui analisar os termos de uma dessas discussões através do livro Estado de Sítio (1968) de Aldísio Filgueiras. Mas quem é Aldísio Filgueiras? Talvez um raro fragmento autobiográfico nos ajude a conhecer um pouco desse personagem polêmico.
Quando eu nasci, aquariano de 1947, a segunda guerra mundial terminara há dois anos. Tem uns carinhas da minha geração que acreditam nisso até hoje. Eu não. A luta continua: meu primeiro livro, "Estado de Sítio", 1968, foi premiado e devidamente censurado. Muitas cópias foram encontradas no meio da rua, mas ninguém se lembrou de autografar uma para mim. Escrevi Malária e Outras Canções Malignas, 1976. Com o Márcio Souza, que não acredita que a guerra mundial terminou, assinei Dessana – Dessana uma cantata amazônica com sotaque de blues e rock. Alguém se lembra do Teatro Experimental do Sesc? 14 anos de insurreição.
Fundado em 1968, como consequência de um curso de artes cênicas promovido pelo ator paulista Nielson Menão no Serviço Social do Comércio do Amazonas (SESC-AM), o Teatro Experimental a que se Filgueiras se refere entrou para a lista de preocupações do regime civil-militar por conta das ousadas obras que encenaram. Sua estreia se deu em 1969 com uma adaptação de Calígula de Albert Camus chamada Como Cansa Ser Romano nos Trópicos. Rapazes seminus besuntados com pomada e se contorcendo no palco quebraram a expectativa da plateia de encontrar uma peça clássica. A entidade assistencial protegeu seus artistas até 1982, quando o TESC foi fechado por uma nova diretoria. Filgueiras fez parte desse conjunto atuando ora como dramaturgo, ora como ator e até como compositor musical.
Embora colaborasse na imprensa diária manauara desde o início dos anos 60 por meio de alguns poemas, a primeira iniciativa mais concisa de Filgueiras no mundo das letras se deu com Estado de Sítio, inscrito no Prêmio Jaraqui de Literatura. O concurso literário organizado pela União Brasileira de Escritores em 1968 garantia ao vencedor a publicação de sua obra. Mesmo sendo vitorioso, o livro de Aldísio Filgueiras foi impedido de ser publicado devido ao clima de repressão desenfreada que a promulgação do Ato Institucional n. 5 instaurou. Só em 2004 seria publicado pelas Edições Muiraquitã.
Portanto, na representação que faz de si na passagem citada acima sua experiência tanto com o teatro quanto com a poesia são costuradas pelo seu compromisso político. Ser dono de um livro censurado e reconhecido como um dramaturgo incômodo atestaria seu engajamento. Na pequena introdução que faz para Estado de Sítio seu lugar no meio artístico local parece dever a outro fator:
Mas Estado de Sítio, com todo respeito e falta de humildade, é o fim do artesanato. (...) Estado de Sítio é o nosso primeiro produto industrial (consumo experimental interno), a partir de matéria-prima nossa: experiência humana + linguagem útil + mais técnica moderna de composição e comunicação. A arte não é um veículo de comunicação?
Na visão do Poetinha, como é popularmente chamado, ninguém tinha se envolvido em intento semelhante ao que se propunha naquele momento. A Academia Amazonense de Letras e o Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, instituições criadas em meados da década de 1910, estavam ainda mergulhadas numa vertente do pensamento social que encontrou em Euclides da Cunha um de seus maiores expoentes. O Clube da Madrugada, movimento artístico de feições modernistas, tinha por objetivo, como fica claro em seu manifesto e nas experiências posteriores de seus membros, criar uma arte eminentemente amazônica, condizente com a realidade social da região. Para Filgueiras, tanto uns quanto outros se furtaram da aventura da linguagem.
No longo poema Informação do Amazonas encontramos a menção a algumas coisas das quais o homem no Amazonas sente saudade, coisas que nunca viu, coisas que chama de "mínimas primárias": "pão por exemplo, amor terra espelho". Ora, a ausência de espelho simboliza uma identidade interditada. Principalmente no nível da comunicação. Em palestra proferida na década de 1980, o poeta lembra que "a língua portuguesa tem mais de 100 anos de dominação na Amazônia, como idioma e pensamento oficiais. Está cheia de vícios e erros. Ainda é uma língua que nos trai".Em outras palavras, sem uma reinvenção artística formal e temática todas as experiências sobre uma pretensa identidade amazonense seriam meramente superficiais.
Na busca por essa "linguagem útil", Filgueras faz uso de muitos elementos do cotidiano de um jovem estudante daqueles tempos (porque, afinal, ele o era): do cinema, do material publicitário, dos jornais e até da oralidade. Em Malária e Outras Canções Malignas ele flerta com a antiga proposta de Mário de Andrade de uma "filosofia da maleita", associando a doença tropical com uma percepção sensorial própria da Amazônia. Seu primeiro livro, portanto, pode representar um ensaio dessa implosão radical da "amazonidade" e sua consequente reconstrução.
Contudo, Estado de Sítio também pode ser entendido como um cartão de apresentação. Esta é sua tentativa mais formal de se inserir num campo artístico polarizado entre os jovens candidatos a artistas amazonenses e os senhores da Academia e do Clube da Madrugada. Natural que enfatizasse mais as rupturas, apontadas como consequências de insuficiências estéticas dos outros movimentos culturais, que as continuidades. Sobre a experimentação da escrita, por exemplo, havia precedentes muito próximos do autor, como os poetas Elson Farias, Jorge Tufic, Ronald de Chevalier e os escritores Antísthenes Pinto e Benjamin Sanches.
Mas voltemos à Estado de Sítio. A primeira parte é dedicada ao mundo ribeirinho, desenhando-o como universo prenhe de privações graças à natureza portentosa e ao arcaico sistema extrativista. Nos demais segmentos a cidade é o pano de fundo, mesmo assim a situação não parece muito animadora: viúvas desoladas, operárias sendo assediadas em fábricas, famílias sendo dissolvidas pela fome, tudo isso forma o painel revoltante da Manaus de Filgueiras.
O capitalismo industrial, simbolizado pela Zona Franca de Manaus, e o imperialismo norte americano são alvos de inúmeras críticas. Mas outro importante inimigo eleito pela poética filgueireana é a moral provinciana. Assim, retratando os pequenos dramas do dia-a-dia e conectando os fios de uma indignação difusa, a obra do Poetinha pode assumir o papel do que Bourdieu chamou de discurso heterodoxo, uma narrativa capaz de abalar a construção social do consenso. A imagem de uma Manaus onde "não há orgulhos separando classes" tampouco discriminação racial, largamente difundida por meios de comunicação e defendida explicitamente pelo sociólogo André Araújo, passa a ser severamente atacada. Outro alvo é a espécie de memória oficial que insiste numa visão branda da ditadura civil-militar na região.
Há uma passagem que muito nos interessa. Nela se encerra uma interpretação muito oportuna do momento em que o livro foi escrito.
Os escaravelhos tomaram a cidade
e os namorados morreram surpresos
nos bancos elétricos da praça.
De repente, as abelhas aprenderam
a fazer urânio
com as flores envenenadas
e os pássaros verdes ensinaram
ao sol como chocar granadas.

Ninguém gritou o ventre do tempo
cheio de hóstias anticoncepcionais
contra a pluralidade dos séculos.

O poeta é responsável pela
Humanidade.
Mas o poeta tem cu e tem medo.
O poeta tem conta no banco.
Que os versos remetam ao golpe de 1964 com sua transformação apocalíptica do cenário está claro. O que chamamos atenção é para difícil constatação que vem ao final: o poeta, simbolizando o artista no geral, era muito mais limitado do que imaginava. Ideologicamente estava comprometido com a transformação, mas suas condições sociais lhe traíram. Ora, esse eu-lírico desiludido em nada lembra o autor voluntarista do prefácio:
Sou um poeta político:
A geração da morte
não floriu
sobre o meu peito
Entender essa contradição é compreender os rumos da arte no Brasil pós-64. Nos anos sessenta, como consequência dos processos sociais e políticos (industrialização seguida de urbanização, por exemplo) da década anterior, há uma expansão do campo artístico nacional. Frederico Coelho lembra que o consumidor ideal de arte na época eram os jovens universitários que moravam nos grandes centros urbanos. Ao mesmo tempo uma tendência estética que prima pela conscientização do papel histórico do povo aos poucos torna-se hegemônica. Há autores que associam esse fortalecimento da "arte revolucionária" à uma influência do ideário comunista, outros do projeto populista. Seja como for, a intelectualidade passa a ser polarizada entre "engajados" (adeptos dessa corrente) e "alienados" (todos que não coadunassem com todos os preceitos do primeiro grupo).
Com o golpe a fé na transformação social através da arte não sumiu, mas foi seriamente abalada. Não teriam aqueles homens e mulheres envolvidos com os Centros Populares de Cultura, preocupados em produzir obras didáticas o suficiente para atingir os trabalhadores, subestimado também seus destinatários? Por outro lado, o regime civil-militar incentivou com sua modernização conservadora uma intensificação da indústria cultural no país o que motivava mais questões. Em que medida o artista manipula e é manipulado pela mídia e pelas grandes gravadoras? Entre 1964 e 1968 os questionamentos sobre o alcance do modelo de produção artística são revisados através dos seguintes pontos elencados por Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves:
O redimensionamento da relação com o público, a crítica à militância conscientizadora, a valorização das realidades 'menores' ligadas à experiência cotidiana e a recusa do ideário nacionalista-populista, em favor de uma brasilidade renovada (que buscava em Oswald de Andrade um ponto de referência) definem, em linhas gerais, essa nova disposição.
Os versos de Filgueiras, escritos entre 1965 e 1967, assumem então o tom de uma crítica afinada com o que vinha sendo difundido pelos cantores tropicalistas, os artistas plásticos do movimento neo-concretista e os realizadores do Cinema Novo. Não se tratava de um adeus ao engajamento, mas a procura por uma nova forma de conjugar cultura e política. O poeta "cujas mãos tem tradição de foice e martelo" não escolhe uma rota bem definida: há momentos em que a crítica lúdica ao engajamento e a provocação comportamental lhe aproximam do desbunde, prática cultivada por elementos mais ligados à contracultura, mas em outros reitera alguns conceitos e ações presentes tanto nos partidos de esquerda quanto em outras esferas intelectuais mais tradicionais.
Dizer que "o poeta tem conta no banco", que ele "tem cu e tem medo", pode ser também uma forma de criticar a insustentabilidade da arte. Para garantir sua subsistência o artista mais cedo ou mais tarde comprometeria sua fidelidade política. No Amazonas, o magistério, a imprensa (Filgueiras, por exemplo, optou por essa alternativa) e o funcionalismo público eram os caminhos habituais dos intelectuais da terra por longos anos. A antiga demanda por uma profissionalização do campo artístico local parece ter sido ouvida pelo primeiro governador nomeado pelo alto comando "revolucionário", o historiador Arthur Cézar Ferreira Reis. Este promoveu uma série de eventos culturais durante seu mandato que culminariam com a realização do Seminário de Revisão Crítica da Cultura Amazonense em 1967 e com a criação da Fundação Cultural do Amazonas no ano seguinte, já durante o governo de seu sucessor, Danilo Mattos Duarte Areosa. A proposta do Seminário era traçar as diretrizes de uma política cultural com a participação da classe artística local. Mas o projeto sofreu profundas alterações quando precisou ser aplicado, evidenciando a razão primeira dessa inesperada política cultural "democrática": normatização do campo cultural pelo Estado com vistas a minar a influência da esquerda nesse cenário.
Pensar o Amazonas através da arte não é uma tarefa fácil. Na obra analisada percebemos o quanto seu autor esforça-se para reafirmar a importância da luta política no debate estético sem escorregar num discurso panfletário, como aquele que enlouqueceu Paulo Martins. E o debate parece cada vez mais atual diante de uma das reações mais comuns a essa tradição simplificadora do jogo político e estético: o conformismo. Claro que não há ainda um consenso sobre qual o melhor meio de se escapar das amarras do sectarismo e da acomodação. Beatriz Sarlo, por exemplo, sugere que se invista em uma forma de se conceber a relação entre cultura e política como instâncias diferentes, mas não excludentes. Em outras palavras, abandonar a busca por um primado da cultura sobre a política (ou vice versa) e abraçar a tensão produzida pelo contato entre dinâmicas diversificadas. Assim sendo, política e cultura nunca seriam demais para um homem só.


Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Amazonas. Orientador: Patrícia Rodrigues da Silva. E-mail: [email protected].

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