O POLICIAMENTO COMUNITÁRIO COMO DISPOSITIVO NEOLIBERAL DE GOVERNO NO CAMPO DA SEGURANÇA PÚBLICA

June 1, 2017 | Autor: Anderson Duarte | Categoria: Educação, Segurança Pública, Governamentalidade neoliberal, Policiamento Comunitário
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O POLICIAMENTO COMUNITÁRIO COMO DISPOSITIVO NEOLIBERAL DE GOVERNO NO CAMPO DA SEGURANÇA PÚBLICA GADELHA, Sylvio; DUARTE, Anderson. O policiamento comunitário como dispositivo neoliberal de governo no campo da segurança. In: AVELINO, Nildo; VACCARO, Salvo. Governamentalidade | segurança. São Paulo: Ed. Intermeios, 2014, p. 129-169. Anderson Duarte Sylvio Gadelha

1.

Introdução

Nesse artigo, temos como propósito maior apresentar e problematizar alguns aspectos relacionados ao policiamento comunitário, uma das principais doutrinas de policiamento que, sobretudo na contemporaneidade, tem animado os debates no campo da segurança pública. Para tanto, em segundo lugar, buscamos, além de defini-lo, descrever algumas de suas mais importantes características, retratar algumas de suas distintas versões e situar alguns dos fatores associados à sua emergência, ao seu desenvolvimento e consolidação recentes (valorização do fator educativo, ênfase no estabelecimento de uma interface “amigável” com a comunidade, importância atribuída à relação entre ordem e desordem social - teoria das Janelas Quebradas - e princípios e estratégias de intervenção -“Tolerância Zero”). Tais elementos serão trabalhados na primeira parte do artigo. Por outro lado, para a sua problematização, que terá lugar na segunda parte, recorreremos a algumas formulações analíticas feitas por Michel Foucault

em

Nascimento

da

biopolítica

(2008b),

principalmente

aquelas

especificamente voltadas à governamentalidade neoliberal, tal como exercida nos EUA. Nessa perspectiva, defendemos a ideia de que o policiamento comunitário tanto é efeito de um empresariamento generalizado da sociedade, fenômeno eminentemente neoliberal, como expressão de uma estratégia biopolítica que busca agenciar certa concepção de educação à segurança pública, recorrendo para tanto à mediação da “forma-empresa”.



1º Tenente da Polícia Militar do Ceará e Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da FACED-UFC.  Professor do Depto. de Fundamentos da Educação da FACED-UFC e do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da FACED-UFC.

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A forma de intervenção policial urbana que vem ficando cada vez mais conhecida sob o termo “policiamento comunitário”, é vista geralmente como uma alternativa progressista de mudança à visão tradicional que ainda hoje se tem da atuação da polícia1, atraindo a atenção de setores progressistas, de parte dos quadros da esquerda e, em alguns casos, chegando até mesmo a converter alguns dos representantes desta em defensores e militantes de sua causa. É o que sucede, por exemplo, com Rolim. Com efeito, na introdução ao seu livro, A síndrome da rainha vermelha (2006), obra que se tornou referência no campo da segurança pública no Brasil, o autor mostra como as ideias da Direita tradicional dominaram historicamente esse campo de intervenção do Estado, dando ensejo à criação de políticas que enfatizavam o binômio “Lei e Ordem”, enquanto que a Esquerda, por seu turno, insistia na formulação de políticas sociais como um caminho mais sensato e humanista para reduzir as desigualdades e, assim, amenizar as questões da violência e do crime. Tal opção, entretanto, no entender do autor, a teria levado a negligenciar, senão a abandonar uma efetiva problematização das políticas, estratégias, modelos e técnicas de policiamento. Tendo isso em vista, Rolim (2006, p. 19) presume que seu livro constituiria um verdadeiro “golpe” tanto nas convicções tradicionais de Direita quanto nas de Esquerda, no que tange à segurança pública, uma vez que apresentava, com base no conceito de prevenção, “uma política específica disposta a enfrentar os agenciamentos imediatos que preparam o crime e as práticas violentas e que possa identificar, desde muito cedo, os fatores de risco que os tornam mais prováveis”. Referenciando-se numa passagem do livro de Lewis Carroll, Alice através do espelho, Rolim desenvolve sua hipótese acerca do mal que acomete as polícias brasileiras. Na história de Carroll, em dado momento, Alice encontra a Rainha Vermelha e ambas correm tão rápido que chegam a se sentir 1

Nesse artigo, nossas considerações restringir-se-ão, no geral, à realidade concernente às polícias militares. No Brasil, a visão tradicional que se tem da atuação das mesmas remete a uma instituição estatal fortemente hierárquica, disciplinarizada, centralizada e de feições autoritárias (herdadas principalmente do período ditatorial), cujas ações, de caráter eminentemente biopolítico: a) incidem sobre os modos de vida das populações, sobretudo, das populações pobres e excluídas; b) regulam a tensão, inerente ao (neo)liberalismo, entre liberdade e segurança; c) primam pela defesa e pelo controle da ordem pública, assim como pela prevenção e o combate ao crime, amiúde através de processos de contenção ou repressão, lançando mão da violência, frequentemente de forma abusiva e desmedida; d) fazem com que o exercício do poder (policial, no caso) seja concebido, no mais das vezes, em sua negatividade, como aquilo que censura, limita, interdita, coage, reprime, violenta e mata; e) encontramse implicadas a ilegalismos e à corrupção. Segundo o manual preparado especialmente para o Curso Nacional de Multiplicador de Polícia Comunitária (2006), elaborado conjuntamente pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) e pelo Ministério da Justiça do Brasil (2010), nos últimos cinquenta anos, quatro estratégias institucionais de policiamento foram caracterizadas: combate profissional ao crime (ou policiamento tradicional); policiamento estratégico; policiamento orientado para o problema; policiamento comunitário. Como se pode inferir, a primeira dessas estratégias de policiamento é a que melhor corresponde a essa visão tradicional sobre as polícias militares.

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como se estivessem flutuando. Alice percebe, no entanto, que as duas na verdade não haviam saído do lugar em que estavam inicialmente. Partindo da pergunta “por que a polícia é ineficaz?”, e fazendo em seguida uma analogia entre, de um lado, a situação de Alice e da rainha, e, de outro, a situação da polícia, o autor (2006, p. 37) descreve, então, a síndrome que serve de título ao seu livro: Os esforços policiais, mesmo quando desenvolvidos em sua intensidade máxima, costumam redundar em ‘lugar nenhum’, e o cotidiano de uma intervenção que se faz presente apenas e tão somente quando o crime já ocorreu parece oferecer aos policiais uma sensação sempre renovada de imobilidade e impotência. ‘Corre-se’, assim, para se permanecer onde está, diante das mesmas perplexidades e temores.

Concordamos com Rolim quanto à necessidade de o pensamento de esquerda mudar sua atitude negligente e/ou desdenhosa diante de problemas relativos às políticas e aos modelos e métodos de policiamento. E é exatamente nesse sentido que propomos esse singelo e despretensioso esforço conjunto de análise e problematização dessa modalidade específica e relativamente recente de policiamento, que é a do policiamento comunitário. Em estreito diálogo com a arqueogenealogia e com algumas formulações de Michel Foucault acerca da governamentalidade neoliberal, trabalhamos com uma dupla hipótese: primeira, a de que o desenvolvimento e a consolidação recentes desse modelo de policiamento guardam uma íntima relação com a arte de governar neoliberal de matiz estadunidense, estudada por Foucault em Nascimento da biopolítica; segunda, a de que a significativa adesão de acadêmicos, jornalistas e políticos ao que é propagado por esse modelo de policiamento, dá-se, ao que parece, sem que os mesmos percebam que, por um lado, ele esvazia ou anula grande parte das críticas dirigidas ao sistema tradicional de policiamento e, por outro, não propõe, especialmente no caso das polícias militares, qualquer modificação substancial de seus fundamentos e de sua estrutura. 2

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Na verdade, não é exatamente o policiamento comunitário o responsável pela anulação ou pelo esvaziamento das críticas (históricas, políticas e sociais) endereçadas aos tradicionais modelos de policiamento e de segurança pública. Para Boltanski e Chiapello (2009), por exemplo, o novo capitalismo, transnacional, financeiro, conexionista, empreendeu um movimento estratégico para sua justificação e legitimação, o qual passava por uma dupla operação: a) assimilação das “críticas estéticas” dirigidas ao capitalismo até mais ou menos o final dos anos 1960; b) negação e/ou esvaziamento das críticas sociais urdidas contra esse sistema no mesmo período histórico. Em O novo espírito do capitalismo (2009), os autores afirmam que a justificação e legitimação perseguida por esse novo capitalismo incorporaram uma parte dos valores em nome dos quais ele era criticado. Ora, isso nos obriga a encarar a ideia de que a crítica pode, pelo menos virtualmente, servir de ponto de apoio às próprias mudanças estratégicas almejadas pelo capitalismo quando este se vê sob ataque e instado a

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As relações entre a instituição policial-militar e a instituição universitária, por uma série de razões, sobretudo, políticas e históricas, têm sido marcadas por tensões, má vontade e críticas de ambas as partes. De certo tempo para cá, contudo, esses dois universos parecem ter conquistado alguma aproximação. Como assinala Vasconcelos (2011), constata-se, por um lado, a inserção de vários sociólogos na gestão estatal, e, por outro, uma explosão de estudos e pesquisas sobre a instituição policial, a ponto de os novos peritos, de uma ponta a outra desse “campo”, receberem a designação de “policiólogos”. Ele cita como exemplo o caso do antropólogo Luiz Eduardo Soares, que foi Subsecretário de Segurança Pública e Coordenador de Segurança, Justiça, Defesa Civil e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro, no governo de Anthony Garotinho, entre os anos de 1999 e 2000, e também Secretário Nacional da Segurança Pública no primeiro governo do presidente Lula. O policiamento comunitário, como questão e/ou bandeira levantada por esses policiólogos, parece ser a dobradiça que tem ligado a universidade à polícia. Como tal, merece nossa atenção.

2. Situando e caracterizando questões, imagens e práticas ligadas ao policiamento comunitário: 2.1. Valorização da Comunidade, “Janelas Quebradas” e “Tolerância Zero”:

Com base em dados levantados por Skolnick e Bayley (2006), talvez uma das primeiras versões do que posteriormente viria a ser conhecido como policiamento comunitário tenha surgido há cerca de um século, aproximadamente entre 1914 e 1919, por iniciativa do então chefe da polícia de Nova York, comissário Arthur Woods, para quem uma estratégia capaz de atenuar a imagem negativa da polícia naquela época deveria fazer um uso inteligente da educação. Segundo esses autores (2006, p. 57), a estratégia de Woods consistia em aprimorar a educação dos policiais, com o intuito de incutir nas camadas rasas da corporação “uma percepção da importância social, da dignidade e do valor público do trabalho policial”. Por seu turno, Rolim (2006, p. 70),

metamorfosear-se. Daí a necessidade de exercitarmos uma hipercrítica, ou uma pós-crítica, sempre atenta ao seguinte alerta de Foucault (2010, p. 349): “A crítica não deve ser a premissa de um raciocínio que se concluiria por: eis portanto, o que lhes resta fazer. Ela deve ser um instrumento para aqueles que lutam, resistem e não querem mais as coisas como estão. Ela deve ser utilizada nos processos de conflitos, de enfrentamentos, de tentativas de recusa.”

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valoriza na iniciativa de Woods a tentativa de substituir o par polícia-repressão pelo par polícia-proteção:

A ideia mais revolucionária de Woods era de que a imagem e o papel da polícia não poderiam ser associados à dimensão repressiva natural de seu trabalho, mas que ela deveria ser vista por todos como o equivalente à ideia de “proteção”. Essa seria, possivelmente, uma boa síntese para o que se pretende com a proposta de policiamento comunitário.

Há que se ter em conta, entretanto, que o modelo do policiamento comunitário irá absorver, como um de seus principais fundamentos, uma ideia que é anterior a esse misto de projeto e experiência encabeçado por Woods, ideia essa que remonta à instituição do “modelo inglês de polícia”, o qual, além de valorizar o envolvimento e a participação ativa da comunidade na prevenção e luta contra o crime, construiu sua legitimidade, segundo Santos (1997, p. 160), em torno dos seguintes princípios:

Prevenir o crime e a desordem; reconhecer que o poder policial depende da aprovação do público e deste modo ganhar sua cooperação voluntária; reconhecer que a cooperação do público está na razão inversa da necessidade de utilizar a coerção física; empregar a força física minimamente; oferecer um serviço a todos os cidadãos; manter a relação polícia-público; respeitar o poder judiciário; reconhecer que o indicador da eficácia da polícia é a ausência do crime e da desordem. 3

Dessa primeira ancoragem do policiamento comunitário, merece destaque a ideia de que é importante que a instituição policial valorize a comunidade, cultive uma interface amigável com a mesma e dela obtenha o reconhecimento por seus serviços. Mas, voltando ao caso de Woods, em que pese o valor de sua iniciativa, foi somente após o período que se estendeu da década de 1920 à década de 1960, sobretudo, nos primeiros anos desta, marcados por significativas agitações urbanas, que se pode observar algumas mudanças substanciais na polícia estadunidense, e isso, como

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Por outro lado, a ênfase na ideia de que a polícia não só deve valorizar a comunidade, mas também manter-se próxima a ela, ganhando sua confiança e ensejando, por exemplo, uma colaboração mútua, também pode se encontrada no Japão, na década de 1870, quando, para efeito da segurança pública, foram instituídos os sistemas koban e chuzaisho. O primeiro se refere à criação de inúmeros pequenos postos (contendo entre três e cinco policiais) espalhados pelas regiões urbanas do país, com o intuito básico de prevenir crimes e acidentes. O segundo, por sua vez, segue aproximadamente o mesmo princípio (mas com apenas um policial por posto), só que atuando nas áreas rurais. Tanto num como noutro caso, o policiamento é concebido como devendo constituir uma prestação de serviços à comunidade, ao passo que o patrulhamento é feito a pé, de bicicleta, ou de motoneta.

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salientam Skolnick e Bayley (2006), tanto no que diz respeito ao pensamento, quanto no que se refere aos recursos disponibilizados e às táticas de intervenção utilizadas. Naquele período, a instituição policial viu-se desgastada perante a opinião pública, por conter e reprimir violentamente várias das manifestações em favor da afirmação e garantia dos direitos civis, particularmente no que se refere à população negra, que se mostrava cada vez mais organizada e atuante. Talvez seja razoável admitir que uma nova versão do policiamento comunitário tenha se esboçado justamente nesse período, com o intuito de contornar esse espinhoso problema, atenuando as críticas que eram endereçadas à polícia. Para Skolnick e Bayley (2006, p. 18), esta passou a adotar como “premissa central” a ideia de que o público devia “exercer um papel mais ativo e coordenado na obtenção da segurança”. Saltando para a década de 1980, no artigo The Police and neighborhood safety: broken windows (1982), James Q. Wilson e George L. Kelling apresentaram, no campo da segurança pública e da criminologia, a chamada Broken Windows Theory (teoria das Janelas Quebradas), teoria esta, conforme Wacquant (2001, p. 26), “jamais comprovada empiricamente”, e que consiste, em termos sucintos, ainda segundo o autor (Idem, p. 25), na ideia de que “é lutando passa a passo contra os pequenos distúrbios cotidianos que se faz recuar as grandes patologias criminais”. Logo no início do artigo, Wilson e Kelling se propunham a responder à seguinte pergunta: como pode um bairro se tornar mais seguro quando a taxa de criminalidade não tem diminuído – na verdade, podendo até ter aumentado? A pergunta trazia uma mudança de perspectiva em relação à tradição reinante no campo da segurança pública. Com efeito, note-se que Wilson e Kelling não se perguntavam sobre como baixar efetivamente os índices de criminalidade existentes, mas, sim, sobre como tornar um bairro “qualquer” mais seguro. De passagem, isso nos lembra de um comentário de Foucault (2008, p. 350) sobre uma das explicações neoliberais acerca do crime, para a qual “uma sociedade vai bem com certa taxa de criminalidade”. Mais do que erradicar o crime, trata-se, para os neoliberais estadunidenses, de modulá-lo dentro de padrões por eles considerados aceitáveis, que expressariam um equilíbrio entre a oferta do crime e uma demanda negativa, a qual Foucault designa por “enforço da lei”. Deixemos de lado, contudo, pelo menos por enquanto, as considerações de Foucault sobre os economistas neoliberais da famosa Escola de Chicago, e retornemos à teoria das Janelas Quebradas. Para responder à pergunta sobre como tornar as ruas ou bairros mais seguros, Wilson e Kelling (1982) apontaram dois importantes fatores a serem observados, ambos

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estreitamente interligados. O primeiro deles remetia à instável e importante relação entre ordem e desordem. O segundo, por sua vez, relacionava-se à influência do meio ambiente sobre os indivíduos e suas ações. Examinemos mais detidamente o primeiro desses fatores. Em situações, por assim dizer, de “normalidade social”, as relações de sociabilidade são construídas respeitando-se determinadas tradições e costumes, além de padrões, regras e modelos de conduta, desde os mais informais até os mais formais. Tanto os comportamentos quanto as relações de sociabilidade são modulados por sistemas de sanções que cumprem uma função eminentemente normalizadora, regulamentadora e disciplinarizadora da dinâmica social e das interações sociais; dentre tais sistemas, o mais formalizado é o do Direito. De outra parte, as condutas e as relações de sociabilidade são mantidas e reforçadas pela reafirmação das expectativas que os inúmeros e diferentes atores sociais têm acerca do modo como seus pares ou mesmo seus outros se comportam em determinadas situações e em certas circunstâncias. Nessa perspectiva, a ordem, a estabilidade e a normalidade social implicam, em maior ou menor medida, o respeito ou a observância desse amplo, complexo e multifacetado sistema de regulações sociais. Quando isso não acontece, rompe-se o equilíbrio existente e abre-se espaço para o advento da instabilidade e da desordem. Há de se ter em vista, contudo, que a inobservância e /ou o desrespeito a essas barreiras, convenções ou “acordos” sociais, bem como a consequente instabilidade e desordem deles decorrentes, não podem ser atribuídos sem mais, e propriamente, aos atos ditos criminosos ou infracionais. Nesse ponto, a perspectiva microfísica e psicossociológica de análise que parece subjazer à teoria das Janelas Quebradas de Wilson e Kelling, reveste de maior complexidade a relação entre ordem e desordem social, e lança uma nova luz sobre os processos implicados à gênese e ao desenvolvimento da desordem social e da criminalidade. É precisamente aqui que entra em cena, articulado ao primeiro, o segundo daqueles fatores apontados por Wilson e Kelling, ou seja, aquele relativo à influência do meio ambiente sobre os comportamentos dos indivíduos e sobre suas ações. Para os autores, uma boa compreensão dos processos que estão na origem e que concorrem para o desenvolvimento do vandalismo, da contravenção e da criminalidade, deve não só estar atenta, mas também valorizar fatores que, rigorosamente falando e, em sentido estrito, não são de natureza criminosa, mas, que, não obstante, pelo menos virtualmente, revelam-se como co-determinantes da sensação de insegurança experimentada pelos membros de uma dada comunidade. Tais são os casos de

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comportamentos associados à má educação, ao desrespeito, ao descaso, à falta de civilidade, à baderna, à imprevisibilidade, à desmedida, à inconsequência etc. Assim, a ideia defendida por Wilson e Kelling é a de que, por exemplo, ao perceberem que determinado trecho de uma rua, de uma quadra esportiva ou de um quarteirão estão repletos de lixo, o qual parece acumular-se aleatoriamente com o passar do tempo situação que sugere abandono, negligência ou mesmo total ausência da parte dos poderes públicos em relação ao cuidado e preservação de certas regiões urbanas ou da ordem pública -, os indivíduos que residem ou circulam nesses lugares tendem a reproduzir o comportamento de jogar o lixo displicentemente em locais impróprios e públicos, contribuindo, dessa forma, para a sensação de decadência e desordem urbanas. De maneira análoga, caso se constate, num determinado local, que certa janela de um prédio se encontra quebrada, e, além disso, que nada evidencie que ela será objeto de reparo, a tendência é que aumente o número de janelas quebradas nesse mesmo prédio ou nos que estão próximos a ele e em condições similares. Nesses termos, argumentam os autores, policiais e psicólogos sociais concordariam quanto à ideia de que parece haver uma espécie de sequência e de desenvolvimento que partem de micro condutas transgressoras e que levam a desordens mais graves, como o vandalismo e a depredação do patrimônio público, bem como à criminalidade propriamente dita, disseminando, em consequência, além disso, um sentimento de insegurança social. Por outro lado, esse circuito só parece ser particularmente potencializado quando, como pano de fundo, se observa a sensação de descaso, abandono, decadência e/ou deterioração dos espaços urbanos e da ordem pública. Assinalando que a noção de desordem deve ser entendida tanto no sentido psicossocial, como perturbação da ordem pública, quanto no sentido de degradação das condições ambientais, Rolim (2006, p. 72) resume o essencial dessa teoria nas seguintes palavras:

De fato, as pesquisas indicam que quanto mais alto o nível de desordem em um bairro, maior o número de delitos sérios. Crime e desordem estão claramente relacionados e, ao contrário do que se imagina, a desordem não é um problema “leve” sem relação com os problemas “graves”.

Mas, voltando ao que nos parece mais importante, qual a relação da teoria de Wilson e Kelling com o policiamento comunitário? Skolnick e Bayley (2006, p. 29) afirmam que “a manutenção da ordem, no sentido de Wilson e Kelling, é um programa

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de reorientação do patrulhamento urbano que pode ocorrer sob a bandeira do policiamento comunitário”. Tendo em vista o que foi apresentado acima sobre a relação entre ordem e desordem e, em segundo lugar, sobre como questões ambientais (no sentido lato e estrito) influenciam na conduta dos indivíduos, pode-se inferir que a manutenção da ordem, para esses autores, requer a supressão, ágil de condutas consideradas impróprias, incivilizadas e/ou transgressoras, logo após terem sido detectadas e localizadas. É justamente isso o que permite associar, como o faz Rolim (2006, p. 72), a teoria das Janelas Quebradas a uma espécie de policiamento orientado pelo princípio da “Tolerância Zero”: “De modo paradoxal, é precisamente essa abordagem que tem amparado políticas de ‘tolerância zero’, pelas quais pessoas envolvidas em pequenas transgressões ou condutas antissociais são conduzidas a curtos períodos de encarceramento”. O autor reconhece, pois, que a teoria das Janelas Quebradas deu ensejo à formulação de políticas qualificadas como de Tolerância Zero, isto é, políticas de segurança cujas estratégias visam, mais amplamente, de um lado, a criar e manter comunidades limpas e ordeiras, nas quais os princípios de civilidade e de convivência sejam cultivados e respeitados; de outro, a proceder à gestão e ao controle das violências e do crime. Para esse fim, de acordo com Bonamigo, Bruxel e outros (2009, p. 394), tais políticas focam a ação “na repressão e punição dos delitos, por meio de operações policiais e uso de tecnologias de controle e vigilância da criminalidade”. A política de tolerância zero ficou amplamente conhecida com a implantação, em 1993, de um programa homônimo na cidade de Nova Iorque, por Rudolph Giulianni, ex-promotor federal e eleito prefeito da cidade pelo partido republicano, justamente sob a bandeira do “combate ao crime”. Naquele momento, o chefe do departamento de polícia era William Bratton, também chefe da segurança do metrô da cidade, onde, desde o início da década de 1990, influenciado pela teoria das Janelas Quebradas, experimentava aplicar o princípio de tolerância zero, colhendo bons resultados. Os principais alvos dessa estratégia de policiamento eram não só os chamados “squeegemen” (flanelinhas e sem teto que lavavam os vidros dos carros nos semáforos de trânsito e que intimidavam os motoristas, cobrando-lhes uns trocados), mas também mendigos, pequenos passadores de drogas, pichadores, prostitutas, vagabundos etc., quer dizer, personagens vítimas da exclusão, amiúde associados à decadência moral e social da cidade, bem como à queda na qualidade de vida dos novaiorquinos.

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Dentre as ações estratégicas aplicadas pelo Programa Tolerância Zero, estava um severo controle da produtividade da corporação, realizado pelos chefes de polícia. Nesse sentido, criou-se um programa de geoprocessamento chamado COMPSTAT (sigla em inglês para Computadorized Mapping System), que permitia que cada um dos chefes dos distritos policiais fosse monitorado e responsabilizado pelos seus resultados obtidos, ao mesmo tempo em que era estabelecida uma espécie de concorrência entre tais distritos, à semelhança do que ocorre com empresas que competem entre si no mercado. Nesse sentido, Bratton (Apud Wacquant, 2001, pp. 27-28), chegou a afirmar que estava pronto a comparar seu staff administrativo “com qualquer empresa da lista Fortune 500”. Isso significa, conforme sublinha Wacquant, (2001, p. 27), transformar os comissariados...

... em centros de lucro, o lucro em questão sendo a redução estatística do crime registrado. E cria todos os critérios de avaliação dos serviços em função dessa única medida. Em suma, dirige a administração policial como um industrial o faria com uma firma cujos acionistas julgassem ter um mau desempenho.

Veremos, mais adiante, que essa atitude simboliza exemplarmente o modo como a governamentalidade neoliberal estadunidense concebe a gestão a segurança pública. De qualquer modo, em pouco tempo Nova Iorque se torna a vitrine mundial da doutrina da “Tolerância Zero” e as técnicas de seu programa de policiamento são popularizadas, festejadas e propagandeadas como a panaceia para os problemas de segurança pública em vários países. Ainda segundo Wacquant (2001), o Programa de Giulianni também envolvia a difusão de um conjunto de estratégias discursivas cujas fontes eram, sobretudo, think tanks4 neoconservadores como o Manhattam Institute, O America Enterprise Institute, o Cato Institute e a Heritage Foundation, além de institutos de pesquisa, órgãos políticos, jornalísticos, econômicos e universitários alinhados ideologicamente a eles, os quais diagnosticavam a falência do welfare state tanto nos EUA como, posteriormente, na Europa, motivo pelo qual preconizavam uma nova agenda de ações, comprometida com valores neoliberais ultraconservadores, e arquitetada, segundo Wacquant (2001, p. 18), para atender aos seguintes imperativos: “supressão do Estado econômico”, “enfraquecimento do Estado social”, “fortalecimento

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Institutos de consultoria que analisam problemas e propõem soluções nas áreas militar, social e política.

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e glorificação do Estado penal”, todos vindos a constituir, de certa forma, o que o autor (Idem, p. 136) chama de “novo senso comum penal neoliberal”. O Programa Tolerância Zero foi alvo de várias críticas por parte de grupos minoritários, acadêmicos e de ativistas dos direitos humanos. Ocupemo-nos, nem que seja de forma muito breve e superficial, daquela que, junto à que alude ao exponencial aumento

da população

carcerária (particularmente por

indivíduos de etnia

afrodescendente), talvez seja a principal delas, pois nos possibilita retomar a tentativa dearticular a teoria das Janelas Quebradas à política da “tolerância zero” e ao policiamento comunitário. A derivação do Programa Tolerância Zero da teoria das Janelas Quebradas, no entender de Rolim (2006, p. 72), não só tem sido objeto de críticas pertinentes em todo o mundo, como também falhou em demonstrou qualquer resultado sólido na diminuição do crime. Quando aplicada, “tende a desfazer os laços de confiança entre as comunidades e a polícia, além de estimular condutas arbitrárias e violentas”. É o que vemos no seguinte trecho (Idem, p. 73): Na experiência de Nova York, as reclamações feitas contra a polícia por cidadãos sentindo-se agredidos ou desrespeitados cresceu (sic) 41% desde que a política de tolerância zero foi iniciada, e o total pago pela prefeitura em indenizações às vítimas da brutalidade policial cresceu, em apenas dois anos, de 13,5 milhões para 24 milhões de dólares.5

Ora, o policiamento comunitário, requer, ao contrário disso, que haja tanto proximidade quanto relação de confiança e boa vontade entre a polícia e a comunidade, pré-requisitos necessários para que ambas colaborem um com a outra. Assim, poder-seia pensar que, aparentemente, a teoria das Janelas Quebradas não seria compatível com o policiamento comunitário; que ela, ao dar ensejo a políticas de “tolerância zero”, comprometeria a boa interface necessária ao policiamento comunitário. Rolim (2006, p. 73 – grifos do autor) pondera, todavia, que uma coisa não leva necessariamente a outra, e advoga que é possível, sim, fazer um uso produtivo daquela teoria nesse modelo de policiamento: “De qualquer maneira, a preocupação com a desordem não precisa necessariamente se traduzir em políticas de tolerância zero, razão pela qual sustento que é possível utilizar a ‘Teoria das Janelas Quebradas’ na perspectiva do policiamento 5

Talvez, por esses motivos, o próprio Bratton (Apud Rolim, 2006, p. 72 – grifos do autor) tenha sido levado a reavaliar, de forma mais realista e serena, os pontos positivos e o efetivo alcance de seu Programa: “Afirmar que a política de ‘tolerância zero’ no policiamento mudou a face de Nova York, como se ver-se livre de pedintes pudesse por si só baixar os níveis de roubos e assaltos, é de um simplismo grosseiro. Para ter êxito, tivemos de empregar uma estratégia de qualidade de vida, concertada com uma variedade de estratégias orientadas contra os delitos mais graves”.

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comunitário”. Para concluir essa discussão, lembramos que, a despeito das diversas críticas endereçadas à política neoliberal de tolerância zero, Loïc Wacquant, que talvez seja um de seus críticos mais contundentes e consequentes, assim como do projeto de construção de um Estado penal ao qual ela se encontra estreitamente associada, em Prisões da miséria (2001), mostra como o discurso que a embasava, e que era originalmente uma das bandeiras das frentes de ultradireita, foi posteriormente assimilado pela esquerda, tornando-se uma bandeira progressista e objeto em torno do qual se erigiu relativo consenso.

2.2. Para uma definição e uma imagem mais acabada do policiamento comunitário:

Um último fator a ser considerado para que cheguemos a uma definição e para que possamos esboçar uma imagem mais ampla e acabada do modelo do policiamento comunitário, diz respeito às características de outros dois modelos de policiamento: o estratégico e o orientado para o problema. Embora o estilo administrativo e o objetivo básico do policiamento estratégico continuem sendo os mesmos dos do modelo de policiamento tradicional, isto é, respectivamente, centralização das ações e controle efetivo do crime, o segundo procura sanar os defeitos do primeiro, acrescentando à sua missão reflexão e energia. Segundo o manual do Curso Nacional de Multiplicador de Polícia Comunitária (2006), elaborado conjuntamente pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) e pelo Ministério da Justiça (Brasil, 2010, p. 188), outras características desse modelo de policiamento podem ser apontadas: a patrulha nas ruas é redirecionada e melhor aproveitada, com base em estudos e pesquisas estratégicos; embora haja mais sensibilidade em relação à importância da participação da comunidade, o combate ao crime permanece como exclusivo da polícia; enfatizam-se, em especial, os crimes cometidos por “delinquentes individuais sofisticados (crimes em série, por exemplo) e os delitos praticados por associações criminosas [crime organizado, redes de distribuição de drogas (narcotráfico), crimes virtuais de pedofilia, gangues, xenofobia, torcedores de futebol violentos – como os hooligans, etc.]”; incremento de unidades especializadas de investigação. Quanto ao policiamento orientado para o problema (ou para a resolução de problemas - POP), este, sim, traz consigo algumas novidades relevantes se comparado aos modelos de policiamento tradicional e estratégico. Em primeiro lugar, à importância

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já dada à reflexão, deve ser acrescido o valor atribuído à prevenção. Em segundo lugar, ainda conforme o referido manual (2010, p. 189), o POP pressupõe que os crimes... ... podem estar sendo causados por problemas específicos e talvez descontínuos na comunidade tais como relacionamento frustrante (sic), ou grupo de desordeiros, ou narcotráfico, entre outras causas. Conclui que o crime pode ser controlado e mesmo evitado por ações diferentes das meras prisões de determinados delinquentes. A polícia pode, por exemplo, resolver problemas ao simplesmente restaurar a ordem em um local.

Por ter se tornado mais sofisticado, pelo seu caráter reflexivo, e por valorizar muito mais a participação da comunidade, incentivando-a a intervir na prevenção e no combate ao crime, esse modelo de policiamento pretende ampliar e pluralizar seu leque de opções de intervenção, e isso para além dos patrulhamentos, investigações e detenções. Ainda conforme o supracitado manual (Brasil, 2010, p. 189), a percepção da natureza e da dinâmica de certos problemas, amiúde envolvendo o par ordem-desordem, promove mudanças tanto na atuação como na estrutura da corporação, “aumentando a discricionariedade do policial (aumento de sua capacidade de decisão, iniciativa e de resolução de problemas)”. Por fim, o manual (2010, p. 189) destaca ainda que o POP... ... desafia a polícia a lidar com a desordem e com situações que causem medo, visando um maior controle do crime. Os meios utilizados são diferentes dos anteriores e incluem um diagnóstico das causas subjacentes do crime, a mobilização da comunidade e de instituições governamentais e não-governamentais. Encoraja uma descentralização geográfica e a existência de policiais generalistas e capacitados.

Feita essa breve caracterização dos modelos de policiamento estratégico e orientado por problemas, e aproveitando o que já desenvolvemos até aqui, dispomos agora de elementos suficientes para definirmos e esboçarmos uma imagem mais ampla e precisa da doutrina do policiamento comunitário.

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Segundo o Portal do Ministério da

Justiça do Brasil, (Brasil, 2014, s/p), o policiamento comunitário pode ser definido nos seguintes termos: 6

Até o momento, nos referimos ao policiamento comunitário tratando-o como um tipo, modelo, filosofia ou estratégia de policiamento urbano; no entanto, como se verá a seguir, talvez possamos concebê-lo como perfazendo algo mais amplo e complexo, como, por exemplo, uma nova doutrina no campo da segurança pública, cuja formalização se deu especialmente no curso das últimas três décadas, coincidindo, portanto, com a ascensão e o desenvolvimento do neoliberalismo. Nossa tentativa de definição e esboço dessa doutrina será realizada com base em discursos governamentais acerca da mesma e, pelo menos por enquanto, dando mais atenção à sua descrição do que à sua crítica.

14 ... é uma “filosofia e uma estratégia organizacional fundamentadas, principalmente, numa parceria entre a população e as instituições de segurança pública e defesa social. Baseia-se na premissa de que tanto as instituições estatais, quanto à população local, devem trabalhar juntas para identificar, priorizar e resolver problemas que afetam a segurança pública, tais como o crime, o medo do crime, a exclusão e a desigualdade social que acentuam os problemas relativos à criminalidade e dificultam o propósito de melhorar a qualidade de vida dos cidadãos.

Nessa doutrina, tanto a importância atribuída à comunidade quanto a colaboração que deve pautar a relação entre esta e a polícia, são assim descritas (idem, s/p):

Dessa forma, a polícia comunitária associa e valoriza dois fatores, que frequentemente são dissociados e desvalorizados pelas instituições de segurança pública e defesa social tradicionais: i) a identificação e resolução de problemas de defesa social com a participação da comunidade e ii) a prevenção criminal. Esses pilares gravitam em torno de um elemento central, que é a parceria com a comunidade, retroalimentando todo o processo, para melhorar a qualidade de vida da própria comunidade. Na referida parceria, a comunidade tem o direito de não apenas ser consultada, ou de atuar simplesmente como delatora, mas também participar das decisões sobre as prioridades das instituições de defesa social, e as estratégias de gestão, como contrapartida da sua obrigação de colaborar com o trabalho da polícia no controle da criminalidade e na preservação da ordem pública e defesa civil.

Prosseguindo com esse sumário esboço das principais características da doutrina do policiamento comunitário, vale a pena destacar dois fatores relevantes tanto para que possamos compreender sua articulação à governamentalidade neoliberal estadunidense quanto para que possamos problematizá-la, e a essa articulação, posteriormente. O primeiro deles, como já foi dito, se refere à necessidade de valorizar o papel da comunidade na gestão da segurança, garantindo o seu engajamento nessa missão cívica, tornando-a não só parceira, mas também corresponsável por ela e competente para lidar com a mesma. O segundo fator, por sua vez, diz respeito ao modo encontrado para assegurar as mudanças requeridas à consecução dessa empresa, a saber: a modificação de fatores ambientais que, por seu turno, induzem indiretamente mudanças comportamentais por parte dos indivíduos. Voltaremos a tratar de ambos os fatores mais adiante. No que diz respeito ao Brasil, uma vez concluído o processo de abertura que deveria assegurar uma transição tranquila entre a ditadura militar e a redemocratização;

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após a reconquista de eleições livres e; por fim, após a promulgação da Constituição de 1988, a chamada “Constituição cidadã”, poder-se-ia pensar que estavam dadas as principais condições para que se pudesse repensar a organização da segurança pública, de preferência fazendo com que os órgãos por ela responsáveis pudessem ser expurgados da herança violenta, repressiva e autoritária deixada pelo regime de exceção. Nesse sentido, a concepção de uma nova segurança pública deveria dar especial ênfase à educação, à participação social, ao pleno exercício da cidadania e, por fim, ao respeito e à garantia dos direitos humanos. É por esse prisma que se deve entender um trecho constante no manual do Curso Nacional de Multiplicador de Polícia Comunitária, elaborado conjuntamente pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) e pelo Ministério da Justiça (Brasil, 2010, p. 278 – grifos nossos), relativo à necessidade de uma nova doutrina de policiamento, a qual acarretaria mudanças tanto na formação de agentes do corpo de bombeiros, quanto na de policiais civis e militares, isso sem falar na própria reestruturação dos órgãos de segurança pública: Desde 1998, o Ministro da Justiça, por intermédio da Secretaria Nacional de Segurança Pública, estabeleceu estudos propondo a criação de uma base comum de formação profissional para todos os profissionais de segurança, objetivando, assim, criar uma doutrina básica para atuação nessa área.

Em tese, pelo menos parte significativa dessa nova doutrina básica deveria estar sintonizada com os valores e princípios do policiamento comunitário. Este, além de já se encontrar mais ou menos fundamentado e organizado como estratégia de intervenção, e de já vir sendo diferencialmente experimentado nos EUA, Canadá, Japão, México e Colômbia, conforme as peculiaridades e circunstâncias próprias a cada um desses países, possuía ainda o atrativo - em se tratando de seu possível uso para marketing político, social e empresarial - de se alinhar com relativa facilidade a toda uma tradição humanista, ao exercício da cidadania plena, à valorização e consagração dos direitos humanos - tanto no plano nacional quanto no internacional -, bem como ao respeito à diversidade e às minorias, temas de grande apelo na agenda politicamente correta para o novo milênio. Por outro lado, contudo, restava a difícil tarefa de assimilar, adaptar e aplicar a doutrina do policiamento comunitário à realidade brasileira, compatibilizando-a, por exemplo, com outras tendências, antigas e atuais, presentes e atuantes no campo da

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segurança pública, as quais muito provavelmente interfeririam tanto na criação e no acabamento daquela nova doutrina básica, quanto nas efetivas condições de exequibilidade da mesma, facilitando-a, ou não. Quanto a esse desafio, definitivamente, as coisas se complicam. Para que se tenha uma dimensão de apenas parte das dificuldades e dos obstáculos que se colocam ao projeto de fazer com que a nova doutrina de segurança assimile os valores, princípios e práticas que informam o policiamento comunitário, permitam-nos reproduzir essa longa, mas oportuna e esclarecedora passagem de Marcelo Freixo (2012, p. 17):

No final do século XX, o viés conservador do processo de transição política do regime ditatorial para o estado de direito culminou com a vitória do autoritarismo no Brasil. Apesar de a Constituição de 1988 ter alterado as premissas gerais da ordem republicana com a normatização de uma série de princípios inovadores, o país manteve viva a mesma cultura militar que, desde os tempos da Corte portuguesa, designa as instituições de controle social. Cultura que foi aperfeiçoada durante o período do Estado Novo e consolidada ao longo dos “anos de chumbo”. Apesar de todos os esforços empreendidos durante a década de 1980, o movimento de democratização do país não conseguiu atingir nem o fetiche pela hierarquia nem a vocação bélica das agências de segurança pública do Brasil. Essa visão militarizada de segurança pública promoveu no setor policial e penitenciário uma pauta de ações de controle dos espaços populares com o fim de neutralizar distúrbios públicos, gerir riscos disciplinares da pobreza e reafirmar a autoridade do Estado (em um momento em que sua legitimidade é questionada em todas as outras esferas), tendo como base a sustentação de certos ‘mitos científicos’ relacionados à política de segurança pública (entre os quais se destacam a teoria das janelas quebradas, a tese da tolerância zero, o discurso moralista da impunidade e a doutrina da guerra contra as drogas). Sob a lógica de que a todo Estado mínimo corresponde um Estado penal, o governo passa a cumprir a função de controle penal do “refugo humano” descartado pelo projeto político hegemônico. (...) O alvo preferencial é jovem, negro e pobre, e a ação policial se traduz numa estatística mórbida. De acordo com o Mapa da Violência 2012, do Instituto Sangari, as taxas de homicídio no Brasil de 2010 foram em média duas vezes maiores para vítimas de cor negra, em comparação com os homicídios de brancos. Batizada de Choque de Ordem, a mesma política justifica ainda a repressão dos trabalhadores informais, como ambulantes, e a internação compulsória da população de rua. A flexibilização das garantias legais, somada à privatização de serviços e setores fundamentais e à mutilação das redes de amparo social e assistencialismo público, permitiu ao Estado brasileiro assumir, paralelamente a seu “não intervencionismo econômico”, um papel de governo cujo principal sintoma é a “expansão hipertrofiada” do setor penal-policial.

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A parte restante das dificuldades e dos obstáculos a serem transpostos não é menos significativa, e remete, segundo Soares (2009) a fatores, tais como: baixos salários; em consequência, a necessidade de se recorrer a “bicos” na segurança privada, informal e/ou ilegal; rivalidade histórica entre as polícias civil e militar, o que mina esforços no sentido de promover a unificação ou integração de ambas, ou ao menos uma cooperação entre elas; excessiva centralização, hierarquia rígida, vertical e falta de autonomia na ponta operacional; caráter reativo e inercial das corporações policiais, as quais, além disso, se mostram avessas à avaliação e ao controle externo. Não bastasse isso, acrescenta Soares (2009, p. 6), há que se ter em conta ainda uma esdrúxula “cadeia de omissões”: “A justiça acata, acriticamente, a postura resignada – e, nesse sentido, lamentavelmente cúmplice – do Ministério Público, das autoridades policiais, da segurança pública e do poder executivo.” A esses fatores, pode-se acrescentar a formação precária de oficiais e policiais; a falta de preparo técnico para lidar com a comunidade e suas lideranças; a conivência, senão o envolvimento quase inevitável com a corrupção e a gestão de ilegalismos. No que tange a essa questão, vale a pena transcrever o preocupante quadro traçado por Jacqueline Muniz e Domício Proença Jr. (2007, pp. 40-41): O jovem policial que “entra na segurança” vai se dando conta de que se enredou numa malha invisível de favores e favorecimentos que se estabelece e se expande. Quem “entra no bico” “deve muito e a todo mundo na polícia”: o colega que arrumou a segurança, o superior que acomoda o turno, o colega que “tira plantão” no seu lugar. Torna-se refém e partícipe de um tráfico de influências. Vê-se compelido a respeitar o “código de silêncio”, a fazer vistas grossas diante de “desvios de conduta” mais graves que o “bico”. O “bico” coloca o policial entre a convivência e a conivência com os abusos e as apropriações do poder de polícia. Uma “convivência forçada” com práticas clandestinas e ilegais, que fomenta conivências mais ou menos envergonhadas com outras “irregularidades” como as “comissões” de jogos ilegais, os “acertos” na prisão de pessoas ou na apreensão de ilícitos. Ou como as “milícias”, ligas comunitárias de “autodefesa”, organizadas por policiais em favelas do Rio, que monopolizam recursos públicos de segurança e os redistribuem, mediante taxas, como arranjos privados de proteção.

3. Governamentalidade neoliberal, empresariamento da sociedade e segurança:

3.1. Ancoragens e características gerais da governamentalidade neoliberal:

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Após o sobressalto causado pela crise de 1929, da década de 1930 à primeira metade da década de 1970, a gestão biopolítica da vida das populações, pelo menos no que se refere aos países ocidentais desenvolvidos capitalistas, guardadas suas peculiaridades, deu-se, dentre outras coisas, mediante: fortes investimentos na produção e inovação tecnológica; um tenso, mas relativamente estável acordo - de inspiração keynesiana - entre capital e trabalho; a implantação tanto de políticas públicas inclusivas para as classes trabalhadoras quanto de políticas assistenciais às classes mais pobres políticas essas associadas ao fortalecimento do welfare state.7 Por um lado, tais mecanismos, haja vista que direta ou indiretamente implicados à disciplinarização das classes trabalhadoras e à regulamentação da vida das populações pobres, asseguravam certo equilíbrio e certa estabilidade à ordem pública; por outro lado, garantiam a formação de uma classe média apta ao consumo em grande escala, o que, pelo menos em parte, assegurava a dinamização da economia. Em linhas gerais, e sob o signo de uma “fobia do Estado”, o neoliberalismo se desenvolveu tendo por referência, por um lado, uma “ancoragem alemã” e, por outro, uma “ancoragem norte-americana”. Ao passo que a primeira remetia a problemas relacionados à República de Weimar, à crise de 1929, ao desenvolvimento do nazismo, à crítica ao mesmo, e à reconstrução da Alemanha no pós-guerra, a segunda, por seu turno, se via às voltas com dificuldades ligadas à política do New Deal - criticando a política de Roosevelt – e, particularmente após a II Grande Guerra Mundial, investindo contra a tendência intervencionista do Estado em administrações democratas como as de Truman, Kennedy e Johnson. Apesar de distintas, essas duas governamentalidades neoliberais tinham alguns pontos em comum. Por exemplo, ambas se defrontavam, em termos doutrinários, com o pensamento de Keynes; em segundo lugar, ambas combatiam toda sorte de dirigismos e intervenções estatais, planificações da economia, fossem elas socialistas, nazistas, ou, ainda, inspiradas pelo keynesianismo. Em terceiro lugar, partilhavam o interesse por personagens, teorias e livros que, originalmente gravitando em torno da escola austríaca (neomarginalismo austríaco) e interligando-se à Escola de Friburgo, ganharam circulação e ressoaram posteriormente junto às análises econômicas empreendidas nos EUA, particularmente pelos economistas da Escola de Chicago (à qual nos reportaremos mais adiante). Mas, em quarto lugar e, sobretudo,

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No Brasil, deve-se assinalar ainda, que, tão importante quanto o processo de industrialização, houve também um especial desenvolvimento do sistema previdenciário, particularmente no período que se estende de 1934 a 1959.

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como afirma Foucault (2008, p. 159), essas duas versões da governamentalidade neoliberal se viam diante da necessidade de responder a uma importante questão desafiadora, qual seja: saber se, de fato, uma economia de mercado podia servir “de princípio, de forma e de modelo” para um Estado em relação ao qual todos - seja à esquerda, seja à direita - pareciam desconfiar. Além disso, ambas guardavam uma peculiaridade que as distinguia da governamentalidade liberal, a saber: ao passo que nesta estava em jogo instituir, circunscrever e manter sob vigilância estatal uma liberdade econômica de mercado, nas primeiras, diversamente, como assevera Foucault (2008, p. pp. 158-159), tratava-se de “adotar a liberdade de mercado como princípio organizador e regulador do Estado, desde o início de sua existência até a última forma de suas intervenções. Em outras palavras, um Estado sob a vigilância do mercado em vez de um mercado sob a vigilância do Estado”. Isso requeria, por sua vez, que se atribuísse ao mercado um considerável poder de formalização, isto é, um poder capaz de informar e regular tanto o Estado como a sociedade. Para provar que essa formalização econômica era viável, os neoliberais alemães se viram obrigados a promover uma série de deslocamentos, transformações e inversões que sinalizavam, por sua vez, com outras descontinuidades entre o liberalismo e o neoliberalismo. Dentre elas, duas nos interessam em particular, a saber: de um lado, a importância atribuída ao mecanismo da concorrência - em detrimento do mecanismo da troca -; de outro, mudança na forma de conceber o ponto de aplicação das intervenções governamentais, - que, então, passava a ser a sociedade -, doravante formalizada com base no modelo da empresa. No liberalismo, o modelo e o princípio do mercado residiam na concorrência, na troca, na liberdade econômica e na não intervenção do Estado. No neoliberalismo, por seu turno, tratava-se de valorizar mais a desigualdade, no que tange à concorrência, do que a equivalência, no que ela diz respeito à troca. Assim, era a concorrência, sobretudo, o fator capaz de assegurar a racionalidade econômica. Para os ordoliberais alemães, diz Foucault (2008, p. 163), a concorrência, remetia a um “jogo formal de desigualdades”, e não a um “jogo natural entre indivíduos e comportamentos”. Ora, prossegue Foucault (2008, p. 164), assim concebida, ela demandava uma política de sociedade “infinitivamente ativa”, a qual deveria se constituir tanto como fator condicional para a construção do melhor estado de concorrência possível, quanto como fator organizador, de fato, do espaço concreto e real em que a concorrência deveria atuar. Além disso, tal política não poderia se exercer através de uma delimitação

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recíproca de áreas diferentes, tais como as que seriam, respectivamente, da alçada do mercado e da alçada do Estado. Em vez disso, ela vai caracterizar uma governamentalidade ativa que justapõe totalmente, à política governamental, os mecanismos de mercado indexados pela concorrência. Nos termos de Foucault (2008, p. 165): O governo deve acompanhar de ponta a ponta uma economia de mercado. A economia de mercado não subtrai algo ao governo. Ao contrário, ela indica, ela constitui o indexador geral sob o qual se deve colocar a regra que vai definir todas as ações governamentais. É necessário governar para o mercado, em vez de governar por causa do mercado.

A necessidade de uma atividade, de uma vigilância e de uma intervenção permanentes remete não só ao caráter fortemente intervencionista desse neoliberalismo alemão, mas também à natureza das intervenções por ele preconizadas, isto é, ao “como mexer”, ao estilo governamental a ser adotado. Essa breve revisão nos permite-nos passar, a partir de agora, à abordagem das políticas de sociedade desenvolvidas pelas governamentalidades neoliberais alemã e estadunidense, o que, por sua vez, abre caminho para que abordemos a questão da segurança pública e, por fim, para que retomemos e problematizemos o policiamento comunitário.

3.2. Políticas de sociedade neoliberais:

Quando se fala em política social, numa economia de bem-estar social, três coisas de imediato são evocadas: a) que ela deve servir de contrapeso a processos econômicos selvagens que induzem efeitos de desigualdade, senão de destruição na sociedade; b) que ela deve ter como principais instrumentos a socialização de certos elementos de consumo e a transferência de elementos de renda, na forma de subvenções às famílias e; c) que ela deve ser feita numa relação diretamente proporcional ao crescimento econômico. Pois bem, o neoliberalismo alemão irá questionar esses três princípios orientadores. Em primeiro lugar, os ordoliberais argumentam que a política social não pode se definir como contrapeso, isto é, como mecanismo de compensação aos efeitos nefastos dos processos econômicos, nem tampouco pode ter como objetivo equalizar, mesmo que relativamente, a repartição de acesso dos indivíduos aos bens de consumo. Por quê? Porque a desigualdade, que implica todo um jogo de diferenciações,

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está na base da concorrência econômica, isto é, ela é própria desse mecanismo formalizador da vida social. Em princípio, ela é a mesma para todos e envolve a todos, razão pela qual se deve deixá-la agir, no sentido de que é ela, com suas oscilações para mais e para menos, que tornará possível a regulação social. Nesse sentido, tentando colocar-se no lugar desde o qual os neoliberais perspectivam essa questão,8 diz Foucault (2008, p. 196):

A única coisa que se pode fazer é tirar dos rendimentos mais altos uma parte que, de qualquer modo, seria consagrada ao consumo ou, digamos, ao sobreconsumo, e transferir essa parte de sobreconsumo para os que, seja por razões de desvantagem definitiva, seja por razões de vicissitudes compartilhadas, se acham num estado de subconsumo. E nada mais.

Em segundo lugar, a política social desejada pelo ordoliberalismo não pode se orientar pela socialização do consumo e da renda, pois o que lhe interessa verdadeiramente é uma capitalização generalizada da sociedade, estendida a todos os indivíduos de todas as classes, de maneira a que eles próprios se encarreguem, na medida do possível, de garantir sua proteção contra os mais variados riscos, sejam eles individuais (de doença, de acidentes) ou coletivos (de danos materiais), fazendo uso de seguros os mais diversos. A política social ordoliberal, assim, confunde-se com um processo de privatização, em que se vai pedir à economia, pedido este que se expressa, em realidade mais como um pedido à sociedade, para que todos os seus indivíduos busquem ter rendimentos suficientemente elevados que lhes permitam, seja individualmente, seja pela intermediação coletiva de sociedades de ajuda mútua, garantir-se contra os diversos riscos que envolvem suas existências. O curioso é que, assim definida, essa política social parece ser individualizada: ao invés de uma coletivização, tem-se uma individualização da política social. Em terceiro lugar, resta que, para os ordoliberais, a única política social realmente digna desse nome não é outra senão o crescimento econômico. Como diz Foucault (2008, p. 198), é ele, o crescimento econômico, que, “por si só, deveria permitir que todos os indivíduos alcançassem um nível de renda que lhes possibilitasse os seguros individuais, o acesso à propriedade privada, a capitalização individual ou familiar, com as quais poderiam absorver os riscos”. Para que o mercado seja possível, 8

O que, convenhamos, é bem diferente do que ter simpatia por essa posição, ou mesmo do que aderir a ela, como sugere equivocadamente Geoffroy de Lagasnerie (2013).

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para que seja possível torná-lo o regulador geral e, ao mesmo tempo, o princípio de racionalidade política que, mediante os mecanismos de concorrência, deverá informar a todas as práticas governamentais, estas têm de intervir em toda a sociedade, em sua trama e em sua espessura. Mas, introduzir a regulação do mercado como princípio regulador geral da sociedade não significa, como no caso do liberalismo, instaurar uma sociedade mercantil, uma sociedade de consumo, ancorada na troca. Significa, isso sim, instaurar uma sociedade empresarial, ancorada nos mecanismos concorrenciais. É justamente esse o projeto de política social que deveria ser levado às ultimas consequências na “economia social de mercado”, mas ele não o foi, e isso em virtude de uma série de razões que não cabe aqui situar. De qualquer modo, esse projeto não só repercutirá consideravelmente junto ao anarcocapitalismo estadunidense, mas será radicalizado pelo mesmo, abandonando-se todos os pruridos que os ordoliberais alemães tinham em relação a atenuar, junto à sociedade, os efeitos perversos da fria e desenfreada concorrência econômica.

3.3. Governo, empresariamento do socius e produção de vida precária no anarcocapitalismo estadunidense:

Para maximizar a concorrência e a competitividade e, além disso, para estabelecer a política infinitivamente ativa a que nos referimos acima – a qual deveria permitir e assegurar que os princípios de mercado permeassem todos os aspectos da vida social -, a arte de governar neoliberal estadunidense promoveu dois movimentos complementares e solidários entre si: por um lado, um verdadeiro empresariamento da sociedade; por outro, uma flexibilização/despadronização do mercado de trabalho. O primeiro se refere a um conjunto de fatores que remetem à disseminação da formaempresa por todo o socius. Ele se dá a ver, por exemplo, dentre outras coisas: pela privatização do espaço público; pela comoditização das relações humanas (ou mercadização da vida); pela disseminação de uma cultura do empreendedorismo e de uma cultura de contabilidade/auditoria; pelo funcionamento de processos e políticas de produção de subjetividade que induzem à emergência de “indivíduos micro-empresa” (ou indivíduos empresários de si mesmos), os quais operam e orientam suas condutas obedecendo a valores e princípios oriundos de um ethos empresarial ou corporativo. Isso significa que tanto as organizações sociais quanto os indivíduos necessitam provar permanentemente seu valor, valor este amiúde aferido através de testagens e/ou

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avaliações de desempenho - da eficácia, eficiência, flexibilidade, competitividade, capacidade inovadora, inventividade e pró-atividade demonstradas por um indivíduo ou uma organização ao longo de certo período de tempo. Tudo tem de ser convertido em algo mensurável e computável, de maneira a favorecer a operacionalização da gestão e do controle dos indivíduos e organizações. Isso significa, por fim, o desenvolvimento de novas tecnologias de monitoração, controle e modulação de condutas e ações. Tal controle, bem como sua valorização e derivação da área do management, são exemplarmente descritos por Leys (Apud Apple, 2005, p. 39) no seguinte trecho:

Há uma proliferação de auditorias, isto é, o uso de conceitos derivados da área de negócios e de supervisão independente para medir e avaliar o desempenho por parte de agências e empregados públicos, de funcionários públicos e professores de escola, até de professores de universidade, e médicos: são auditorias de meio ambiente, de valor de dinheiro, gerencial, judicial, de dados, de propriedade intelectual, médica, de ensino e tecnologia, que surgiram e que, em diferentes graus de estabilidade institucional e de aceitação, deixaram pouquíssimas pessoas intocadas por esses deslocamentos. 9

Quanto à flexibilização/despadronização do mercado de trabalho, Standing (2013, p. 22 – grifos do autor), aludindo ao ponto de vista defendido pelos neoliberais, resume o que nos parece essencial: A menos que os mercados de trabalho se flexibilizassem, os custos trabalhistas aumentariam e as corporações transfeririam a produção e o investimento para locais onde os custos fossem mais baixos; o capital financeiro seria investido nesses países, em vez de ser investido “em casa”. A flexibilidade tinha muitas dimensões: flexibilidade salarial significava acelerar ajustes a mudanças na demanda, especialmente para baixo; flexibilidade de vínculo empregatício significava habilidade fácil e sem custos das empresas para alterarem os níveis de emprego, especialmente para baixo, implicando uma redução na segurança e na proteção do emprego; flexibilidade do emprego significava ser capaz de mover continuamente funcionários dentro da empresa e modificar as estruturas de trabalho com oposição ou custo mínimos; flexibilidade de habilidade significava ser capaz de ajustar facilmente as competências dos trabalhadores.

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Veremos, mais adiante, que essa realidade também se aplica à polícia militar e ao policiamento comunitário.

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Articulando essa flexibilização ao complexo e amplo fenômeno da globalização, temos, dentre seus principais efeitos, o aumento das desigualdades sociais e a produção de uma vida precária, personificada coletivamente pela emergência do que Standing (2013) designa por “precariado”. O termo alude a uma espécie de “classe em formação”, a um coletivo cada vez maior de pessoas que passaram a viver sob regimes de trabalho inseguros, em condições mais ou menos informais, sem reconhecimento e sem proteção, mas também sem que possam ser identificados sem mais nem à classe pobre, nem à operária, assim como tampouco à classe média. Se nos ocupamos aqui do precariado, é porque ele pode vir a constituir um risco à segurança pública, e, nessa condição, objeto de intervenções policiais. Standing (2013, p. 25-26 – grifos do autor) nos fornece mais elementos para que possamos ter uma ideia da natureza desse novo coletivo social: Em qualquer caso, a divisão entre mão de obra remunerada e empregado assalariado, e ideias de ocupação, se dissolve quando consideramos o precariado. O precariado tem características de classe. Consiste em pessoas que têm uma relação de confiança mínima com o capital e o Estado, o que as torna completamente diferentes do assalariado. E ela não tem nenhuma das relações de contrato social do proletariado, por meio das quais as garantias de trabalho são fornecidas em troca de subordinação e eventual lealdade, o acordo tácito que serve de base para os Estados de bem-estar social. Sem um poder de barganha baseado em relações de confiança e sem poder usufruir de garantias em troca de subordinação, o precariado é sui generis em termos de classe. Ele também tem uma posição de status peculiar, não se encaixando em alto status profissional ou em atividades artesanais de médio status. Uma forma de explicar isso é dizendo que o precariado tem um “status truncado”. E (...) a sua estrutura de “renda social” não se mapeia perfeitamente conforme velhas noções de classe ou ocupação.

Por outro lado, o empresariamento generalizado da sociedade, a flexibilização do mundo do trabalho, a globalização e a emergência do precariado, uma vez articulados entre si, também se encontram estreitamente relacionados não só ao reordenamento, à complexificação e a uma dinamização ímpar da vida urbana, mas também a um embaralhamento das fronteiras da legalidade nas grandes cidades, tal como ocorre, no Brasil, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Como tudo isso ressoa significativamente no campo da segurança pública, permitam-nos transcrever o seguinte trecho de Telles (2013, p. 12 – grifos da autora,):

Na São Paulo dos anos 2000, uma transitividade entre o informal, o ilegal e o ilícito. Nas suas dobras, jogos de poder e relações de força

25 nos quais se tem uma chave de inteligibilidade da violência que atravessa a experiência urbana. E que se desdobra no que o filósofo Giorgio Agamben chama de “estados de exceção”, práticas e situações instauradas no centro da vida política (e de normalidade democrática), fazendo estender uma zona de indeterminação entre a lei e a não-lei, terrenos de fronteiras incertas e sempre deslocantes que produzem as figuras do homo sacer, vida matável, em situações entrelaçadas nas circunstâncias de vida e trabalho dos que habitam ou transitam nesses lugares.

Tais estados de exceção, devemos concebê-los, desde o advento do neoliberalismo, não só como permanentes, mas também como configurados para além do âmbito meramente jurídico-político, como é característico das análises empreendidas por Agamben. Ou seja, devemos tomá-los como fenômenos cuja ancoragem é, sobretudo, econômica. Eles estão umbilicalmente ligados ao aumento à patologização e à criminalização da pobreza 10, bem como aos altos índices de violência observados nas grandes cidades, principalmente ao impressionante número de homicídios cometidos pela polícia, comparável, segundo Telles (2013), ao de regiões ou países que enfrentam guerras civis ou conflagrações letais.

3.4. A situação paradoxal do policiamento comunitário como dispositivo de governo neoliberal no campo da segurança pública:

Em face da caracterização feita, ao final da primeira parte desse artigo, da situação, dos problemas e dos impasses enfrentados pelas polícias militares brasileiras no presente, e considerando-se os fatores abordados nessa segunda parte do mesmo, pode-se dizer que o policiamento comunitário constitui um dispositivo de governo voltado à segurança pública, que se encontra numa situação paradoxal: de um lado, ele deve aproximar-se, alinhar-se e integrar-se à comunidade e aos seus cidadãos, estabelecendo com eles uma relação amigável de respeito à sua dignidade, de confiança e de colaboração, requisitos necessários, pelo menos em parte, para proporcionar-lhes 10

Como faz constar Standing (2013, p. 201- grifos do autor): “O estado neoliberal é neodarwinista, no sentido de que reverencia a competitividade e celebra a responsabilidade individual irrestrita, com uma antipatia a qualquer coisa coletiva que possa impedir as forças de mercado. O papel do Estado é visto principalmente como o estabelecimento e fortalecimento do Estado de direito. Mas o Estado de direito nunca foi minimalista, como alguns neoliberais o descrevem. Ele é intrusivo e tem a intenção de refrear o inconformismo e a ação coletiva. Isso se amplia para o que Wacquant (2008, p. 14) chamou de “anatematização pública de categorias desviantes”, com destaque para os “bandidos de rua”, os “desempregados”, os “parasitas”, os fracassados, os perdedores com falhas de caráter e deficiências de comportamento.”

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segurança e proteção; de outro lado, talvez tal missão só se mostre realmente exequível e realista, caso tanto a instituição quanto a corporação policiais sofram transformações radicais nos princípios, valores, modelos e práticas de funcionamento que as orientam, o que, nas atuais condições objetivas, parece muito improvável, senão quase impossível. Se levarmos realmente a sério a doutrina do policiamento comunitário, teremos de concebê-la como franca e efetivamente orientada e comprometida com a salvaguarda e a afirmação dos Direitos Humanos, bem como, em consequência, com o exercício da plena cidadania. Ocorre, todavia, que vários autores, tais como Alves (2005); Santos (2013a, 2013b,); Santos e Chauí (2013); Symonides (2003); Bobbio (2004); Douzinas (2009); Dimenstein (2001); Barretto (2013); e Souza (2013) parecem admitir que os Direitos Humanos também se encontram numa situação paradoxal, uma vez que sua consagração mundial, particularmente desde a segunda metade do século passado, tem coincidido com inúmeras e recorrentes provas de que os mesmos têm sido flagrantemente desrespeitados, senão coincidido com manifestações inequívocas e extremas de exploração e barbárie em várias partes do mundo (inclusive, com a conivência de potências econômicas capitalistas que celebram a democracia, a exemplo dos EUA, França, Inglaterra e Alemanha, para ficar só nesses casos). Isso tanto os leva à desmoralização, quanto dá ensejo à sua instrumentalização cínica, sobretudo, por parte de regimes autoritários e/ou ditatoriais. Outro problema de porte colocado à implantação do policiamento comunitário no Brasil, diz respeito à formação a ser dada aos policiais militares. Quanto a esse aspecto, limitar-nos-emos, aqui, a assinalar que não se vai longe apenas com a implantação de algumas modificações curriculares e com a introdução de disciplinas e conteúdos relacionados aos Direitos Humanos e/ou ao exercício da cidadania, pois há que articulá-los com uma permanente e efetiva problematização das práticas e das relações de saber-poder que têm lugar na relação entre a corporação e a comunidade e, sobretudo, no âmbito da própria corporação. Mas a questão é se esta se presta a isso. Para concluir nossas considerações, gostaríamos de nos deter num aspecto que, em nosso modo de entender, vincula significativamente o policiamento comunitário à governamentalidade neoliberal de estilo estadunidense. Ele se refere à tentativa de formatar a corporação e a ação policial segundo práticas, valores e princípios corporativos, de mercado, fazendo com que também o policiamento possa ser pensado e exercitado conforme os ditames da forma-empresa. Parece-nos que os mentores, entusiastas, ou responsáveis pela implantação do policiamento comunitário no Brasil,

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têm garimpado noções originalmente forjadas nas áreas de gestão e do management, com o intuito de transplantá-las sem mais ao campo da segurança pública. Sintoma disso é a introdução, no processo de formação de agentes multiplicadores de Polícia Comunitária, de disciplinas, tais como “Gestão Pela Qualidade na Segurança Pública”, “Gestão de Projetos”, e outras encontradas no manual oficial do Curso Nacional de Multiplicador de Polícia Comunitária (SENASP, 2010), publicado pelo governo federal. Um forte indício de que essa tendência está em curso é encontrado, por exemplo, no seguinte trecho da apresentação da disciplina “Gestão Pela Qualidade na Segurança Pública” (Brasil, 2010, p. 183): “Há razões convincentes para a polícia acreditar que chegou a hora de alterar suas políticas e práticas, principalmente adequálas às práticas já utilizadas na administração de empresas privadas”. Na sequência (Idem, p. 197), mostram-se as transformações, sobretudo, culturais, que deverão acompanhar essa mudança de valores, de organização e de ação da polícia: O policiamento comunitário vai muito mais além que simplesmente implementar policiamento a pé, ciclopatrulha ou postos de policiamento comunitário. Ele redefine o papel do policial na rua de “Combatente” (combate ao crime), para solucionador de problema e ‘ombudsman’ do bairro. Obriga uma transformação cultural da polícia, incluindo descentralização da estrutura organizacional e mudanças na seleção, recrutamento, formação, treinamento, sistemas de recompensa, promoção e muito mais.

Ocorre, todavia, que tais fatores são concebidos sem que possam promover, de fato, transformações substanciais na estrutura e no funcionamento das corporações policiais, o que sem dúvida seria o mais apropriado ao modelo democrático subentendido e proposto pela doutrina do policiamento comunitário. Não bastasse isso, as dimensões e a complexidade implicadas a tal transformação são ingenuamente reduzidas a questões de natureza administrativa e gerencial, empobrecendo-as e, o que é mais grave, praticamente esvaziando seu caráter político. Toda uma agonística das relações de forças implicadas à produção de sentido, de significação, ou à desconstrução dos mesmos (o que tem lá sua positividade) dá lugar a uma série de clichês, fórmulas e fetiches da gestão, bem como a um controle e a uma contabilidade gerenciais, que tendem a valorizar, mais do que tudo, fatores ligados ao desempenho (performance) e, como vimos, anteriormente, fatores ligados à concorrência. Essa formatação empresarial da polícia termina por criar, por exemplo, sistemas de monitoramento de índices de “produtividade”, gratificação por atividades como apreensão de armas e, mais

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recentemente, o estabelecimento de metas de redução de índices, com direito à premiação para as áreas mais eficientes e produtivas. Por outro lado, os próprios policiais agora passam a ser vistos como “ativos” da corporação, para o que são instados e incentivados a desenvolverem seu capital intelectual. Assim, nesta reprogramação neoliberal das condutas e da ética profissional, termos como “pró-atividade”, “autonomia”, “liderança”, “flexibilidade”, “capacidade de relacionamento interpessoal”, dentre outros, não só são valorizados, mas passam também a ser encarados como frutos de esforço, investimento e treinamento individual, uma ascese a ser empreendida por cada policial, constituindo o perfil valorizado e desejado pela polícia comunitária. Como localizar isso na prática, no cotidiano da corporação e das intervenções policiais junto à na população? Citamos, como exemplo, um caso ocorrido no ano de 2011 no Ceará, quando um oficial da Polícia Militar determinou aos seus comandados a realização de pelo menos 25 abordagens diárias, alertando-os, além disso, que, caso não as fizessem, sofreriam pena por “transgressão disciplinar grave”. Felizmente, o comando geral da instituição foi notificado pelo Ministério Público acerca da ilegalidade de tal medida.

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É necessário insistir que essa questão de aferição da

produtividade e da eficácia dos policiais não constitui um fato isolado, ou um erro isolado de um oficial da instituição. É um sintoma da execução dos pressupostos do policiamento comunitário, pois, como dizem Skolnick e Bayley (2006, p. 86): “O policiamento comunitário não cria só um problema de reestruturação das normas de hierarquia do comando; é necessário, também, reconstituir as normas de policiamento por meio das quais o comandante mais alto consegue julgar a eficácia da polícia”. A polícia comunitária cearense, conhecida pelo nome “Ronda do Quarteirão”, em seu projeto, também prevê a adoção de uma série de indicadores de desempenho com vistas ao alcance de suas metas. Inclusive, o primeiro indicador, que é o tempo de resposta às chamadas de emergência, é baseado no índice alcançado pela polícia de Nova York, quando da execução do Tolerância zero. Para o governo do estado do Ceará (2007, p. 60): “A adoção de indicadores contribui para mensurar o desempenho e para a aplicação de melhorias contínuas. Qualquer inflexão dos gráficos deverá ser explicada de forma razoável e convincente, em vez de uma explicação meramente plausível ou intuitiva”. O projeto do “Ronda” (Idem, p. 06) estabelece ainda os seguintes dados a

11

Para maior detalhamento do caso, ver: CAOCRIM reprova meta de abordagens policiais. Ministério Público do Estado do Ceará, Fortaleza 30 mar. 2011. Disponível em: . Acesso em 18 jan. 2014.

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serem aferidos, controlados e examinados pelo Estado: “Taxa de furtos, taxa de roubos, taxa de homicídios, taxa de sequestros, taxa de delitos envolvendo drogas”. Tais índices são calculados em sua proporção por cada 100 mil habitantes e há uma constante cobrança aos comandantes de frações policiais em relação à melhoria de tais índices, como se fossem gerentes responsáveis pelos resultados de uma empresa. Mais recentemente, em meados do mês de dezembro de 2013, dois estados brasileiros com importantes experiências de policiamento comunitário aderiram ao sistema de metas de produtividade em segurança pública: São Paulo, cujo projeto anunciado no dia 19/02/2014 tem como pilar, segundo a própria Secretaria de Segurança 12, “a adoção da meritocracia na gestão das polícias, uma prática comum na iniciativa privada. Daí a necessidade de um programa de metas com bonificação por resultados”. Já a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS-CE), no dia 17 de dezembro, dividiu o estado em 18 “áreas integradas de segurança”; em cada uma delas passaram a atuar em conjunto um delegado da Polícia Civil, um oficial da Polícia Militar e um oficial do Corpo de Bombeiros, os quais funcionam como gerentes da área, sendo cobrados e prestando contas diariamente acerca da sua “produtividade”.

De

acordo com essa iniciativa, trimestralmente, as delegacias e batalhões que conseguirem atingir as metas mensais estabelecidas pela SSPDS, deverão receber gratificações financeiras.13 Segundo temos observado, a aferição da eficiência e da eficácia tem sido diária, com tendências ao aumento do número de registros policiais, com vistas ao aumento de índices de produtividade, tal como já preconizava William Bratton, com sua Tolerância Zero em Nova York. De outra parte, todo o frisson em torno das permanentes avaliações de desempenho que buscam atestar a eficácia e a eficiência do policiamento comunitário, se prestam muito bem ao marketing e ao proselitismo políticos, bem como a usos eleitoreiros, na medida em que concorrem para a espetacularização das ações dos governos estaduais voltadas ao campo da segurança pública. Bonamigo, Bruxel e outros (2009), em pesquisa realizada em Chapecó (SC), entre 2007 e 2009, buscaram avaliar duas experiências em segurança públicas, então em curso naquele período, uma seguindo os princípios da política de tolerância zero, ao passo que a outra inspirada na 12

Cf.: Policiais receberão bônus por redução na criminalidade. Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo. 19/12/2013. Disponível em: . Acessado em 18/01/2014. 13 A esse propósito, cf.: BEZERRA, Leonardo. SSPDS adota sistema de metas para reduzir índices de criminalidade em 2014. Diário do Nordeste. 17 dez. 2013. Disponível em: . Acessado em 18/01/ 2014.

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doutrina do policiamento comunitário, conjugando-a com o uso de novas tecnologias de vigilância e controle para a gestão das violências. Essa segunda experiência envolveu a criação e o funcionamento de cinco Conselhos Comunitários de Segurança (Consegs), compostos tanto por membros das polícias civil e militar como por integrantes da comunidade. A avaliação final que fazem dessa experiência (2009, p. 397) destaca a dificuldade em se viabilizar e em se sustentar justamente o que de mais importante se defende essa doutrina, isto é, a integração da polícia à comunidade e a participação ativa desta na gestão de questões relacionadas à segurança pública:

Ainda com relação à participação da comunidade, nos diversos Consegs constatou-se o seu decréscimo ao longo dos anos. Essa diminuição pode ser associada a alguns modos de funcionamento observados: a) os membros dos Consegs realizam poucos encontros com o restante da população da região para discutir sobre as questões de segurança locais, resultando em um afastamento entre as ações do (sic) Consegs e as demandas da (sic) comunidade (sic) abrangida (sic) por ele (sic); b) há certa oposição e o descrédito com referência à filosofia e objetivos da Polícia Comunitária por parte de integrantes da Polícia Militar vinculados aos Consegs; c) há negligência por parte do Estado, que não propicia as mínimas condições de trabalho e de infraestrutura para o funcionamento de um policiamento comunitário; alguns membros se utilizam do espaço do Conseg para política partidária, ficando o mesmo associado a um determinado partido político.

Todos esses fatores nos tornam céticos quanto à possibilidade de avanços no campo da segurança pública, mesmo com a tentativa de reorganizá-lo e modulá-lo segundo os preceitos do policiamento comunitário. Prevalece no horizonte a lógica de um Estado Penal, tal como analisado por Wacquant, cujas intervenções se dão sob o signo da militarização da segurança pública, promovendo, no setor policial e penitenciário, de acordo com Freixo (2012, p. 17), “uma pauta de ações de controle dos espaços populacionais com o fim de neutralizar distúrbios públicos, gerir riscos disciplinares da pobreza e reafirmar a autoridade do Estado (...)”.

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