O potencial arqueológico da comunidade quilombola Lagoa das Piranhas, Bom Jesus da Lapa, Bahia

May 27, 2017 | Autor: F. Simões | Categoria: Historical Archaeology, African Diaspora Studies
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Anais da VII Semana da Consciência Negra e IV Seminário das Comunidades Quilombolas do Território Velho Chico: resistências históricas e culturais de populações afro-brasileiras. Bom Jesus da Lapa, v. 1, nov. 2016. (ISSN 2525-9474) O POTENCIAL ARQUEOLÓGICO DA COMUNIDADE QUILOMBOLA LAGOA DAS PIRANHAS, BOM JESUS DA LAPA, BAHIA

Fernanda Libório Ribeiro Simões1 Janaína de Almeida Netto2 Wesley dos Santos Lima3 RESUMO: O presente trabalho apresenta os resultados iniciais da visita técnica realizada na Comunidade Quilombola Lagoa das Piranhas, situada no município de Bom Jesus da Lapa no Estado da Bahia. A visita teve como objetivo avaliar o potencial arqueológico e histórico no local em que a comunidade se encontra. Foi possível visualizar em superfície a presença de material ósseo humano, fragmentos de vidro, faiança fina e sílex lascado. Assim, a pesquisa avalia o uso político, pela comunidade do Quilombo Lagoa das Piranhas, de uma pesquisa arqueológica que apresente a procedência desses artefatos. PALAVRAS-CHAVE: Arqueologia; Quilombo; enterramentos.

1. Apresentação A partir do projeto intitulado: “Quilombando: estágio de vivência em quilombos do território Velho Chico”4, que busca integrar a universidade com as comunidades remanescentes de quilombos, foi realizada uma visita técnica ao Quilombo Lagoa das Piranhas para uma avaliação do potencial arqueológico no local. Essa visita foi oriunda de uma demanda da comunidade ao identificar os vestígios arqueológicos em superfície e cadastrar o Quilombo Lagoa das Piranhas como um sítio arqueológico no CNSA (Sítio Quilombo de Piranhas - BA00466). A avaliação do potencial arqueológico foi elaborada a partir de um levantamento de superfície, verificando as áreas com balanço sedimentar negativo próximas as residências e a zona intertidal da própria lagoa. Os resultados apresentados mesclam as informações obtidas através do relato oral da comunidade, da ficha do CNSA, materiais identificados em superfície. 1

Bacharela e mestra em Arqueologia. É professora assistente do curso de História da Universidade Federal do Oeste da Bahia e coordenadora do grupo de estudos Arqueologia do Oeste da Bahia. E-mail: [email protected] 2 Graduanda do curso de Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades pela Universidade Federal do Oeste da Bahia. E-mail: [email protected] 3 Graduando do curso em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Oeste da Bahia. E-mail: [email protected] 4 Parceria UNEB e UFOB para a VII Semana da Consciência Negra e IV Seminário das Comunidades Quilombolas do Território Velho Chico, 2016.

2. Fundamentação Teórica e Metodológica

A exclusão é um vocábulo que para algumas pessoas têm um significado quase que inexistente, pois estiveram sempre situadas na história do lado oposto a margem do ar que tantas outras a respiraram. Seus reflexos não só estigmatizaram milhares de africanos, arrancados brutalmente de suas terras para servirem de escravo no Brasil e em outros países, como também sufocaram por muito tempo, quiçá até os dias atuais, seus afrodescendentes, menosprezando assim sua cultura, costumes, identidade, território, direito e dignidade. [...] o resultado mais interessante do EPIGEN-Brasil refere-se às origens africanas dos brasileiros, que oferece uma nova perspectiva com base em estudo da população do Brasil, que foi o principal destino da Diáspora Africana. De fato, o Brasil recebeu sete vezes mais escravos africanos (aproximadamente 4 milhões) em comparação aos Estados Unidos (aproximadamente 560 mil), durante um período maior (4 séculos vs. 2 séculos nos Estados Unidos). (TARAZONA-SANTOS, 2015, p. 241).

Muitos acadêmicos, pesquisadores e estudiosos de diversas áreas do conhecimento buscaram resgatar, afirmar, reafirmar e impor a importância do negro e sua influência no cenário nacional e mundial como produtor de transformação, integração e ressignificação mediante o contato e vivência em diferentes contextos sociais, culturais, territoriais, espaciais e temporais. Esses estudos convêm para não só contextualizar o negro na História e em sua própria história, mas concomitantemente proporcionar aos seus afrodescendentes, reconhecimento e respeito de sua identidade étnica perante a sociedade atual e a legislação que a rege. Novas descobertas, sobretudo no Brasil, deixam antever que não houve um único e monolítico modelo de escravidão. Pensando nessa multiplicidade e variedade do fenômeno da escravidão, os estudos da diáspora africana são de suma relevância na busca de interpretações plausíveis confirmadas nas escavações de sítios arqueológicos. (RODRIGUES, 2012, p.5).

Dentro deste contexto as pesquisas em torno da diáspora africana na esfera da Arqueologia tiveram uma relevância significativa para a fomentação do conhecimento obtido a partir da cultura material, deixadas por comunidades negras, encontradas em boa parte no continente americano, bem como o uso de informações atreladas a outras áreas do conhecimento. Segundo Lucio Menezes Ferreira (2009):

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[...] o estudo arqueológico da diáspora africana permite delinear a diversidade de identidades culturais que os escravos forjaram na América. Permite, ainda, circunscrever os espaços de formação das comunidades escravas e os distintos universos multiculturais que construíram. As comunidades escravas da América, com efeito, não se formaram apartadas do mundo que as cercava, como se estivessem engolfadas num mar de pureza cultural. É assim que a arqueologia da diáspora africana se coaduna com os enunciados da teoria social, como, por exemplo, os lançados por Bhabha (1994) e Hall (1996): as identidades culturais são sempre posicionais e contextuais, híbridas e moventes, fazendo-se na diáspora. Afinal, nas identidades culturais, como diz Vertovec (2009), repousam sempre elementos transnacionais. (FERREIRA, 2009, p. 269)

O que Ferreira (2009) elucida muito bem é a percepção ampliada e interdisciplinar que se tem proporcionada por meio desta linha de pesquisa ao objeto de estudo, que passa a ser condicionado não só a uma perspectiva de aspecto transnacional, mas também a uma dinâmica social, política, cultural, de conflitos, dominação e resistência em meio a movimentos interacionais propiciados por imposições de trânsito. Visto que “O conceito de Diáspora Africana deve ser compreendido levando-se em conta o aspecto forçoso e involuntário dessas migrações.” (RODRIGUES, 2012, p. 2). Cicalo e Vassallo (2015) buscam, em suma, conceituar algumas discussões que permeiam os estudos no âmbito da “diáspora africana”, fundamentando-se no ponto de vista de alguns teóricos. Para eles:

[...], como enfatizado nos trabalhos de James Clifford (1994) e Paul Gilroy (2001). Esses autores evidenciam como o uso do conceito, criado inicialmente em referência à dispersão da comunidade judaica, se estendeu gradualmente para outras comunidades. Entre outros usos, a ideia tem sido aplicada amplamente para descrever o processo de remoção forçada de cativos africanos durante o tráfico negreiro e a recomposição, híbrida e heterogênea, dos seus laços políticos e sociais em outros contextos geográficos. Esse novo conceito de movimentos diaspóricos não se caracteriza necessariamente por um desejo ou um projeto de volta a uma terra de origem, como na tradição judaico-sionista (Safran, 1991). Diáspora pode se entender hoje, de forma mais ampla, como algo em oposição a fronteiras, enraizamento e Estado-nação (Clifford, 1994, p. 308). (CICALO. VASSALO, 2015, p. 242-243)

Como se pode perceber, o conceito de diáspora dentro do contexto africano, delimitado e estabelecido, ainda está em discussão, entretanto os pontos colocados acima complementam e direcionam nas abordagens de distintas linhas de pesquisas dentro deste campo, uma vez que a “A arqueologia da diáspora dos dias atuais está marcada por redefinições alicerçadas em uma prática de autocrítica, bem fundamentada em novas 3

descobertas, outras abordagens e negociação de posições muitas vezes antagônicas.” (Rodrigues, 2012, p.5). No Brasil, de acordo com Symanski (2014), “a arqueologia da escravidão foi inaugurada no final da década de 1970, com os estudos de Guimarães e Lanna em cinco quilombos do Vale do Jequitinhonha e da Serra da Canastra, Minas Gerais” (SYMANSKI, 2014, p.182), entretanto a arqueologia da diáspora africana, de acordo com ele:

[...] ainda é recente no Brasil. Duas revisões da literatura tratam do tema: o trabalho de Funari discute as pesquisas em quilombos, sobretudo o de Palmares, [...] enquanto o de Singleton e Souza faz uma ampla revisão dos principais temas e pesquisas nos Estados Unidos, em Cuba e no Brasil, até o ano 2005, [...]. (SYMANSKI, 2014, p.182)

Contudo, a Arqueologia no Brasil é um campo altamente atrativo devido à riqueza, extremamente significativa, de sítios arqueológicos de centro-africanos espalhados por todo o seu território nacional.

Neles se encontram tantos, fontes materiais, como cachimbo,

cerâmica, etc., como também vestígios humanos, sendo estes, também de interesse da bioarqueologia, campo de pesquisa que ascendeu no cenário internacional devido aos avanços “técnicos e metodológicos desenvolvidos” (SOUZA, 2009, p.89). Souza e RodriguesCarvalho (2013) apontam que:

Atualmente, a bioarqueologia avança por abordagens mais complexas, que iniciam na interpretação de estruturas funerárias e deposicionais contendo ossos humanos. Metodologias aplicáveis não apenas pelo especialista, mas também por arqueólogos generalistas, vêm sendo testadas com sucesso em campo e laboratório, auxiliando na identificação, documentação, resgate e interpretação de deposições de ossos humanos em sítios arqueológicos. (SOUZA E RODRIGUES-CARVALHO, 2013, p.1).

A bioarqueologia obtém dados que antes não seriam possíveis de se conseguir apenas no contexto dos estudos arqueológicos. De acordo com Souza (2009), a bioarqueologia passa de “ciência embrionária entre a antropologia e a arqueologia”, século XVII. (Souza, 1988. Apud SOUZA, 2009, p.90), para, devido à influência de Ernest Hooton (1930 apud SOUZA, 2009, p.90), “[...] dialogar com a mortalidade, os sinais de doenças, as variações dentro dos grupos de sexo, idade, posição social [...].”, no início do século XX. (SOUZA, 2009, p.90), como também o uso de “[...] técnicas biomédicas complementares, como a histologia e a radiologia, permitiram evidenciar dimensões ocultas e de grande interesse para o diagnóstico em paleopatologia.” (SOUZA, 2009, p.90). 4

No âmbito dos estudos da arqueologia no contexto das diásporas africanas, a utilização da bioarqueologia como sendo uma das metodologias de pesquisas para a análise e levantamento de dados de vestígios humanos em sítios arqueológicas quilombolas, contribui, e muito, para ampliar as percepções e dimensões do objeto de estudo, visto por uma perspectiva interdisciplinar e transdisciplinar. A Arqueologia busca resgatar a história do passado destas comunidades, mas é no presente que ela é reivindicada e pensada para as gerações futuras, neste caso desvendar o passado das comunidades afro-brasileiras é também dialogar com essa temporalidade, estabelecer uma memória, edificar identidades, e tornar herança para a posteridade. Entretanto:

[...] não é suficiente à presença de certos atores para que a memória da diáspora africana seja valorizada. É necessário levar em conta o contexto e, nesse caso, o sistema ético-jurídico e político que prevalece na sociedade no momento histórico em que os atores individuais e institucionais operam e interagem. (CICALO. VASSALO, 2015, p. 260).

Infelizmente, ainda hoje, não basta apenas o indivíduo se reconhecer como pertencente de comunidades quilombolas ou comunidades afrodescendentes, ele tem que provar e buscar perante a sociedade e a lei que, inclusão social e identidade-étnica que lhe são de direito.

3. Resultados

A análise das variáveis empregadas na obtenção dos dados (relatos, CNSA e material em superfície) apontam para um grande potencial para pesquisas arqueológicas no Quilombo, quem permeiam a Bioarqueologia, Arqueologia da Diáspora Africana, Etnoarqueologia e Arqueologia Pública. Foram identificados diversos enterramentos dispersos e expostos por intempéries (os relatos indicaram a existência de mais de oito indivíduos em uma abertura de poço artesiano), fragmentos de faiança fina inglesa (entre séc. XVIII e XIX) e fragmentos de sílex lascado. A partir dessa verificação inicial não é possível estabelecer se os enterramentos estão relacionados com a ocupação em um período histórico ou pré-colonial, sendo necessária a realização de intervenções sistemáticas de ampla superfície para a caracterização do contexto arqueológico. Sobre o conjunto arqueológico identificado foram registrados crânios infantis e adultos, ossos longos, ossos alongados e cinturas pélvicas; borda de faiança fina estilo shell 5

edge, produzida na Inglaterra entre 1775 e 1860; fragmentos de vidro com marcas de sopro; e fragmento de sílex com alterações térmicas.

4. Considerações

A principal demanda da comunidade com a pesquisa arqueológica é saber a procedência desses enterramentos dispersos por todo o quilombo. Ao considerarem todas as possibilidades que uma pesquisa arqueológica pode apresentar, existe uma inquietação dos moradores em saber se há algum tipo ligação (social ou sanguínea) com os enterramentos. Os idosos relatam que desde a infância percebem essas ossadas em superfície, mas não possuem a identidade dos enterramentos, não sendo possível fazer uma ligação direta através da memória coletiva. É notório destacar como a região quilombola Lagoa das Piranhas se encaixa na discussão acerca das migrações ocorridas do litoral para o sertão, como também se atrela ao estudo da arqueologia da diáspora africana. Um território que ainda não foi descrito com suas particularidades, mas que conserva na memória local de sua comunidade e de forma material, vestígios humanos, de edificações e artefatos como cerâmica, que necessita de uma urgente intervenção, que favoreça a pesquisa e o levantamento de fontes que possa proteger a história dessa comunidade. Uma história que deve ter o seu uso político bem estabelecido dentro da luta quilombola.

5 - Referências Bibliográficas

CICALO, André. VASSALLO, Simone. Por onde os africanos chegaram: o cais do Valongo e a institucionalização da memória do tráfico Negreiro na região portuária do rio de janeiro. Horizontes Antropológicos: Porto Alegre, 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ha/v21n43/0104-7183-ha-21-43-0239.pdf Acesso em: 02 de Nov. 2016. FERREIRA, Lucio M. Sobre o conceito de arqueologia da diáspora africana. MÉTIS: história & cultura, v.8, n. 16, 2009. Disponível em: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/viewFile/961/682 Acesso em: 02 de Nov. de 2016. RODRIGUES, Miguel Tadeu. Arqueologia da Diáspora Africana. 2012. Disponível em: https://www.academia.edu/4960571/Arqueologia_da_di%C3%A1spora_africana Acesso em: 02 de Nov. de 2016. SOUZA, Sheila Mendonça de; RODRIGUES-CARVALHO, Claudia. ‘Ossos no chão’: para uma abordagem dos remanescentes humanos em campo. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. 6

Ciências Humanas, v. 8, n. 3, 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/bgoeldi/v8n3/05.pdf Acesso em: 02 de Nov. 2016. SOUZA, Sheila Maria Ferraz Mendonça de. Bioarqueologia e Antropologia Forense. Arqueologia Histórica de Mato Grosso do Sul, 2009. Disponível em: https://www.academia.edu/2120070/Bioarqueologia_e_Antropologia_Forense Acesso em: 02 de Nov. 2016. SYMANSKI, Luís Cláudio P. A Arqueologia da Diáspora Africana nos Estados Unidos e no Brasil: Problemáticas e Modelos. Afro-Ásia, 2014. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/afro/n49/06.pdf Acesso em: 02 de Nov. 2016. TARAZONA-SANTOS, Eduardo. Brasil e a idiossincrasia da miscigenação. v. 22, n. 1 e 2. Rev. UFMG: Belo Horizonte, 2015. Disponível em: https://www.ufmg.br/revistaufmg/downloads/22/16-Artigo-16-p232-249.pdf Acesso em: 02 de Nov. 2016.

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