O Povo Brasileiro - a formação e o sentido do Brasil. Darcy Ribeiro

July 18, 2017 | Autor: Divino Camargo | Categoria: Antropología cultural, Antropología, Darcy Ribeiro, Brasilidade, Antropologia
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RESENHA

Ribeiro, Darcy. O Povo Brasileiro – a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 2006. 435 pp.

Divino José de Camargo

Um dos mais significativos singulares etnólogos brasileiros escreve na perspectiva de responder quem é o povo brasileiro e porque o Brasil não deu certo. Darcy Ribeiro (1922-1997. Notabilizou-se primeiramente por trabalhos relativos às áreas de educação, etnologia, sociologia, antropologia, romances além de vários ensaios. Em 1995 escreveu a presente obra: O Povo Brasileiro, obra em que aborda a formação histórica, étnica e cultural do povo brasileiro. Nascido em Montes Claros – MG. Em 1946 graduou no curso de Ciências Sociais após cursar três anos de medicina e abandonar o curso. Em 1961 foi Ministro da Educação. No governo de João Goulart foi Chefe da Casa Civil. Em 1964, época da ditadura, foi exilado no Chile e no Peru. Em 1976 volta ao Brasil. Foi eleito vice-governador do Rio de Janeiro 1983-1987. Entre os anos 1949 a 1951 trabalhou no Serviço de Proteção ao Índio. Foi participante da criação da Fundação do Museu do Índio e do Parque Nacional Indígena do Xingu. Em 1955 organizou o primeiro curso de Antropologia na Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Foi eleito para a cadeira nº 11, da Academia Brasileira de Letras. É patrono da cadeira nº 28 do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros. Faleceu em Brasília, vitimado pelo câncer, no dia 17 de fevereiro de 1997.
Para descrever pormenorizadamente a formação e o ethos do povo brasileiro por meio de detalhes, amiúde detalhados, a ponto de tornar-se repetitivo divide a obra em 4 grandes partes seguidas de uma quinta onde avalia o futuro da nação brasileira. O tomo inicia a primeira parte intitulada O Mundo Novo abordando a confluência dos diferentes povos formadores da nova nação a partir de matrizes distintas e a formação de um povo singular jamais visto anteriormente e distinto de todos os outros povos em decorrência das culturas sincréticas que então seriam redefinidas na formação desta gente nova à partir da ocupação das miríades de tribos presentes na terra que ele denomina ilha Brasil. Gente nova que se forma com a chegada do protagonista europeu e a alteração cultural promovida pela mistura dos povos que aqui se fariam presentes neste "processo geral de gestação de povos" (Ribeiro, 1995, p. 27) por meio de vasta documentação bibliográfica para chegar-se ao veredito de perceber-se os caminhos que levou o brasileiro a ser o quem ele é. Esta formação se dá em meio a conflitos, inicialmente narra Ribeiro ao citar o historiador protestante Jean de Léry referindo-se a visão e expectativa dos índios com a chegado dos portugueses e franceses.
Amplia-se a problemática ao referir aos objetivos salvacionistas da missão jesuíta e a permissão para a "guerra justa", perpetrada pelos colonizadores com o intuito de aprisionar os índios e fazê-los escravos com a aquiescência da coroa portuguesa e a resistência daquela gente, sempre livre, e incapaz, por natureza de submeter-se ao trabalho forçado, único interesse do branco europeu – dominação; fato que culminaria com o fim da autonomia étnica do silvícola aqui já presente. Distintamente da formação dos povos do Velho Mundo, narra Ribeiro que a formação do povo brasileiro fora singular, aqui plasmada pela mestiçagem em meio à hostilização dos índios que não se submetiam àquela nova condição presente em nome do chamado processo civilizatório que durara todo aquele primeiro século de presença portuguesa aqui ao que posteriormente somariam os negros africanos.
Na segunda parte da obra, percebe-se no início do capítulo a tese de que a gestação étnica do povo brasileiro no seu nascedouro se deu pelo cunhadismo, expressão usada pelo etnólogo para descrever
A instituição social que possibilitou a formação do povo brasileiro [...] velho uso indígena de incorporar estranhos à sua comunidade. Consistia em lhes dar uma moça índia como esposa. Assim que ele a assumisse, estabelecia, automaticamente, mil laços que o aparentavam com todos os membros do grupo. (Ribeiro, 1995, pp. 72)
Este fato tornou-se a nova forma civilizatória eficaz no recrutamento para os trabalhos pesados carentes de ser realizados.
Darcy Ribeiro destina significativo artifício narrativo para relatar o trabalho das missões jesuítas e o cativeiro indígena. A conclusão que ele exara neste capítulo é que naquele processo civilizatório na formação de um novo povo, com a geração de filhos de brancos surgiria o neobrasileiro e brasileiro, processo ao qual denomina "moinho de gastar gente".
Levada aos extremos a ocupação do novo continente tinha por objetivo erradicar, já que não era possível submeter a mão-de-obra indígena à escravidão e a inserção dos negros africanos como força de trabalho supridora das necessidades de produção para satisfazer os desejos consumistas do Velho Continente.
Para responder à pergunta acerca da identidade do brasileiro faz uma narrativa pormenorizada na terceira parte da obra referente as guerras internas desde 1500 até hoje como resultante dos entrechoques entre brancos, negros e índios ao expor que:
Conflitos interéticos existiram desse sempre, opondo as tribos indígenas umas às outras. Mas isso se dava sem maiores consequências, porque nenhuma delas tinha possibilidade de impor sua hegemonia às demais. A situação muda completamente quando entra nesse conflito um novo tipo de contendor, de caráter irreconciliável, que é o dominador europeu e os novos grupos humanos que ele vai aglutinando, avassalando e configuram como uma macroetnia expansionista. (Ribeiro, 1995, pp. 153)
Estes conflitos, agora assoberbados acontecem de maneira ameaçadora em função da ganância e cobiça despertadas nos colonos no afã do enriquecimento ligeiro, além dos enfrentamentos raciais e classistas, pontua.
Neste processo de gestação da empresa Brasil o escritor recorre à obra do padre Cardim, a qual cita para sedimentar o grau de degeneração à qual o índio fora submetido, onde poder-se-ia, para descrever aquele processo de anulação da identidade indígena, usar a expressão usado pelo próprio Darcy Ribeiro, que estava em pleno uso a "máquina de gastar gente", seja pelo ideal civilizador, seja pelo catequisador.
Nesta vertente da condição formativa da identidade brasileira em meio à sua formação marcada pela cultura espoliadora que compreendia a colônia apenas como um lugar de extração de riquezas sem para ela planejar um lugar a ser pensado para a radicação definitiva, sem planejamento surgiram vilas e cidades, lugares onde a industrialização e urbanização aconteceram de forma desordenada em meio às lutas flagrantes de classes, poder, raças, preconceito, fatores que culminariam com o distanciamento social dos povos que estavam formando em meio à uma etnia evidentemente mutante, sem se darem conta, uma nova nação em gestação em meio ao caos anárquico com a chegado dos imigrantes para substituir o trabalho do negro africano. Ribeiro desenvolve esta sua argumentação, oferecendo rico cabedal de provas estatísticas e vasta bibliografia abalizadora para a credibilidade das análises apresentadas sobre a estratificação social brasileira e a evolução urbana que ocorrida naquele período, com todas as suas mazelas, fatores preponderantes na formação tanto do "tipos humanos" que aqui estava sendo formado, quanto do caldo cultural fruto desta ebulição perene resulta em um novo modelo de condições uniformizadores que menos absorve a europeidade, porém distingue-se pela capacidade de "ensinar o mundo a viver mais alegre e mais feliz" (Ribeiro, 1995, pp.242).
Na quarta e última parte desta elucidativa obra, fulcrada em distinta pesquisa bibliográfica onde o autor se faz perceber ao escrever à guisa de conclusão à preço do convite à análise da aventura cultura e intelectual como luz que ilumina a senda a ser percorrida na laboriosa, talvez triste construção do quadro geral que permitirá ao leitor compreender os grupos constitutivos desta nova nação, com gente que já não pertencia a nenhum dos grupos formadores originais e com os quais já não mais eram capazes de se identificar, razão pela qual Ribeiro funda o neologismo, pelo qual se expressa o sentimento destes formados pelos mais distintos povos, denominado "ninguendade".
No cumprimento do mister elucidativo desta multivariegada identidade formativa do povo brasileiro descreve a partir do engenho açucareiro a formação característica e peculiar do que ele cognomina Brasil Crioulo resultante da configuração histórico-cultural da implantação da cultura açucareira que girava em diâmetros opostos e equidistantes notadamente, "o senhor de engenho e o escravo" (Ribeiro, 1995, pp. 251), onde as condições dos engenhos proporcionavam as condições necessárias para ali se "gastar gente", humildes vassalos.
Depois da avaliação da construção do intitulado "Brasil Crioulo" Darcy Ribeiro debruça sobre a tarefa de explicar a formação de um outro dentre tantos "Brasis" por meio da apresentação da movimentação demográfica em direção à região norte facilitada em parte pelo sistema fluvial Solimões-Amazonas o que propiciaria a colonização da região amazônica, correspondente do engenho açucareiro, neste caso, destacado pela produção da lavoura comercial, criação de gado e extração da borracha. Ribeiro apresenta a realidade a qual pretende apresentar desde as reduções indígenas, fruto do trabalho da catequese jesuíta referendada pela coroa portuguesa até a construção final de um povo sui generis resultado do processo adaptativo daquela população ao ambiente tribal ao qual foram submetidos, de onde emerge um cultura altamente peculiar nesta distinta região que se estende do Rio Branco, sem deixar de ressaltar a atividade extrativista que acontecia nos dias da escrita do livro em análise.
Ao citar o texto descritivo da realidade sertaneja de pena de Capistrano de Abreu Darcy Ribeiro abre a narrativa do "Brasil Sertanejo" configurando desde a ocupação da região nordeste do país ladeada por detalhada pintura do abastado cenário marcado por cerrados e caatingas de onde emerge uma economia pobre e dependente que mescla até a criação de gado, a atividade açucareira que, detidamente, caracterizar-se-iam como
uma subcultura própria, a sertaneja, marcada pela especialização ao pastoreio, por sua dispersão espacial e por traços característicos identificáveis no modo de vida, na organização da família, na estruturação do poder, na vestimenta típica, nos folguedos estacionais, na dieta, na culinária, na visão de mundo e numa religiosidade propensa ao messianismo. (Ribeiro, 1995, pp. 307).
Nota-se ainda a evocação arguta de tantos outros traços marcantes e característicos do sertanejo transpostos de forma fulgurante pelos olhos do autor por meio do prisma através do qual narra as peculiaridades de mais um substrato cultural e social formador do povo brasileiro.
Para descrever mais uma das nuances formativas do povo ao qual Darcy Ribeiro se propõe retratar, por meio da análise perspicaz ao contrastar o enriquecimento da costa nordestina, imprime por meio do seu olhar o avassalador empobrecimento que solapava a população paulista marcada pela escassez aventura se a adentrar aos sertões por meio das bandeiras. A resultante desta investida em busca de ouro e riquezas é notada pelo rescaldo destas entradas e as formações familiares próprias na mistura dos bandeirantes gerando
A família [...] patricêntrica e poligínica, dominada pelo chefe como um grupo doméstico com pessoas de árias gerações, essencialmente, o pai, suas mulheres com as respectivas proles e os parentes delas. As índias atreladas ao grupo como cativas eram comborças do pai e dos filhos destes. (Ribeiro, 1995, pp. 334)
Esta investida na busca do ouro conforme narra o estudioso da formação cultural do povo caracteristicamente caipira culminou com os atritos entre os garimpeiros, os donos de terra e a coroa portuguesa ávida pelo fruto exacerbado das taxações. Estes fatos acontecem enquanto lavras se esgotam, povoados nascem fazendo com que se constitua um carácter novo ao qual descreve Monteiro Lobato por meio da figura do Jeca Tatu, a quem ele critica por não ter sido capaz de captar com propriedade, quem de fato era o habitante exótico destas novas plagas, a despeito do desejo de subjugação daquele caipira, ator da produção cafeeira, pelo latifúndio explorador bem como a expropriação de suas terras.
O último capítulo é dedicado à descrição da população sulina, com modos de vida muito diferenciados e distintos de formação caracteristicamente oriunda dos imigrantes europeus aos quais se adiciona para homogeneizar os traços próprios dos antigos gaúchos da bacia cisplatina e os lavradores matutos de origem açoriana.
Acerca deste último tipo brasileiro evidencia as constantes tentativas de separar-se da administração central objetivando a autonomia da região.
O desenvolvimento econômico da região permite que o estancieiro seja transformado em patrão, mas propugnadora de diferenças crescentes que distinguem caudilhos de patrões, mas que em decorrência da assistência do Império longínquo faz com que se configurem em uma etnia distinta da brasilidade remota que começava a gerar o sentimento formativo nacional.
Darcy Ribeiro finaliza a sua obra, depois de traçar os referenciais para dizer quem é o povo brasileiro, e a razão pela qual o delineia como de fato o é, desde a formação de identidade mediante a ação plasmadora da etnia brasileira que prodigiosamente assimila de cada um de seus componentes, traços que juntados constituirão o povo em si com uma visão peculiar de nação com características próprias, marcadas por defeitos (os quais não são poucos) e virtudes, marcadas por variegadas heranças, das quais se recebe por fusão, traços diferentes na composição deste todo que é ser brasileiro. Isto faz sem apontar
Depois desta análise Darcy Ribeiro constrói uma perspectiva avaliativa e desafiadora apontando para aquilo que o Brasil deve ser em razão da sua ampla criatividade artística e cultural, "generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra" (Ribeiro, 1995, pp. 411).
Construir uma resenha crítica acerca de "O Povo Brasileiro" é saber-se obrigatoriamente conduzido a reconhecer que o livro é contagiante pela riqueza dos detalhes narrativos que transportam o leitor para o vívido ambiente e as suas latentes características onde se forjou a ferro e fogo, espada e corrupção, preguiça e cobiça que contagia a cada detalhe narrado. Nota-se ainda, que em tempos de crise pela qual passa o país, somos um povo capaz de acreditar em si mesmo, não deixando que, traços desestimulantes, no período de formação do povo brasileiro, em dias não tanto remotos, não podem conduzir ao desânimo, haja vista a capacidade de burlar as adversidades encontradas na construção do sentimento de pertencimento nacional.
A obra provoca o leitor a pensar sobre o seu papel na construção da nação agigantada já no presente, embora devendo manter-se focada no futuro, considerando a sua grande capacidade adaptativa e plasmadora, todavia apta a promover o novo e se reinventar-se apesar das qualidades negativas que urgentemente devem ser expurgadas.
Apesar de frequentes repetições a leitura do livro é cativante e intrigante ao revelar ao leitor, fatos desconhecidos do domínio público, capitais para descobrir ou formatar a compreensão que dita quem de fato é o brasileiro. Obra fundamental para quem deseja conhecer o que significa brasilidade.
Recomendado não apenas como material de pesquisa para o antropólogo, ou estudante de Direito ou de qualquer outra área de humanidades, mas de qualquer brasileiro que deseje conhecer um pouco mais de si mesmo, à partir de onde deve traçar o futuro tanto para si quanto para a nação culturalmente rica da qual somos elementos caracteristicamente formadores.

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