O preposto no direito comum e no especial

August 24, 2017 | Autor: Erik Gramstrup | Categoria: Teoria Geral do Direito
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O PREPOSTO, NO DIREITO COMUM E NO ESPECIAL ERIK F. GRAMSTRUP Juiz Federal Mestre e Doutor em Direito Professor da PUC/SP

INTRODUÇÃO – O PROBLEMA VISADO Visamos abordar no presente artigo a figura do preposto, supostamente óbvia, mas ainda sujeita a alguns mistérios por falta de abordagem sistemática, que compatibilize os diversos tratamentos que tem merecido no direito privado positivo, de modo a permitir uma compreensão orgânica e científica desse instituto. Ou. quando menos, um ensaio dessa compreensão. A primeira dificuldade a vencer está no fato de a preposição ter sido tratada, do ponto de vista legal, pelo direito especial, antes de ter sido cogitada pelo ius commune. Como se sabe, a Consolidação das Leis do Trabalho cogitou do preposto com prioridade, formando-se a respeito um manancial jurisprudencial. Acresce que esse tratamento deu-se sob a ótica do processo do trabalho, de modo que a casuística formada a respeito não se ocupa, necessariamente, da preposição sob a ótica do direito material. É preciso indagar, então, que contribuição o direito do trabalho pode ser aproveitada para a compreensão do instituto civil, tanto do ponto de vista do diálogo da CLT com o Código Civil, como também dos critérios e soluções aventados pela jurisprudência e doutrina juslaborais. Percorremos aqui o mesmo caminho, mas no sentido oposto, dos aficcionados ao direito do trabalho, que costumam perquirir que impacto o Código Civil de 2002 teria para sua área de interesse: nos indagamos que critérios de decidibilidade do direito especial teriam proveito para o direito comum. Estendemos essa discussão para a situação do preposto perante os Juizados Especiais. Mas não se esgota nisso nossa perquisição. Outra dificuldade está na interpretação e aplicação dos textos do próprio Código Civil. O preposto não é apenas um instituto do direito de empresa. Ele interessa à pessoa jurídica em geral, não apenas àquela cujo objeto é a atividade empresarial. Ademais, diz também com a pessoa física preponente. Lembremos, inicialmente, que o CC/2002 aborda a responsabilidade civil do preponente por atos do preposto (art. 932, inc. III). Esse preponente não é apenas a pessoa jurídica, nem somente aquela dedicada ao exercício de atividade empresária. Mais que isso, o Código se refere claramente ao preposto de pessoa natural, ao se reportar ao preposto do leiloeiro, que não pode comprar em hasta pública (art. 497, inc. IV). Cuida do preposto do transportador, iniciada quando recebe aquele a coisa transportada (art. 750). Nada obstante, o preposto só é tratado de modo abrangente em seguida às disposições aplicáveis à sociedade empresária, é dizer, em princípio é do preposto do empresário que cuidam os arts. 1.169-1.178 do Código Civil. Essa falta de sistematicidade é desconcertante, quanto mais porque

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aplicada a um termo – preposição – não definido claramente pelo legislador. Se essa falta de definição é vantagem ou defeito, é uma questão a investigar. Por fim, há que analisar se o preposto é ou não um “representante”. Ora, a representação é visada pelos arts. 115-120 do Diploma Civil. Estaria o preposto dentre as figuras subsumíveis nesse regime Ou seriam preposição e representação noções estranhas e incompossíveis Vale mais à pena acender uma vela, por fraco que seja para alumiar o assunto, do que praguejar contra a escuridão. Eis aí nosso programa de trabalho. PRESSUPOSTOS DE TRABALHO Em toda investigação jurídica, há pressupostos metódicos e ideológicos que nem sempre são aclarados pelo estudioso. Julgamos conveniente, inclusive por honestidade intelectual, proferir algumas palavras sobre os nossos, mesmo correndo o risco de deixarmos algo de lado. Primeiramente, nossa visão do direito civil é a de que se trata do ius commune, querendo com isso dizer que o direito civil é o direito comum das relações privadas, aplicável na resolução de controvérsias à falta de disposição especial. Isso pode parecer uma sinecura, mas não é. Tem-se recusado aplicação ao Código Civil em situações que poderia regular, inclusive satisfazendo o sentimento de justiça, por influência de uma versão extremista da “teoria dos microssistemas”. Como se sabe, segundo essa divulgada visão, o direito contemporâneo seria um arquipélago de sistemas especializados, relacionados entre si pela Constituição. Normalmente, a exposição dessa teoria vem acompanhada de considerações, de fundo mais ideológico do que dogmático, sobre a perda de supremacia do Código Civil ou mesmo sobre a inconveniência da codificação. Não temos objeção a essa idéia em si, mas sim à sua versão extremada, ou ao seu manuseio por pessoas ingênuas e despreocupadas com a unidade do Ordenamento, que tem conduzido à multiplicação de lacunas e de aberrações jurisprudenciais. Nossa visão é a de que o Código Civil, animado pelos princípios da socialidade, eticidade e operabilidade, bastante diverso em espírito do seu antecessor – afinal consagra amplamente a função social e a boa-fé objetiva – é eficiente para regular, NA FALTA de disposições especiais, não apenas as relações comerciais, como também – sempre subsidiariamente – as individuais de consumo e as individuais de trabalho. Convém aclarar isso com exemplos. Há mal-entendidos sobre o que significa a decadência prevista pelo art. 18 do Código do Consumidor. Decorridos aqueles prazos bastante reduzidos, de 30 e 90 dias, para o caso de vício do produto ou do serviço, ficaria o consumidor ao desamparo de tutela jurídica? Não seria isso incompatível com os próprios princípios da legislação consumerista No nosso modo de ver, não é necessário estabelecer analogias forçadas com a responsabilidade por fato do produto ou do

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serviço (art. 12). Basta compreender, à luz do ius commune, a distinção, aplicada à hipótese vertente, entre decadência (do direito de formalizar reclamação junto ao fornecedor do produto ou serviço vicioso) e prescrição (da pretensão de reparação, in natura ou em espécie), cujos prazos são regulados pelo Diploma Civil, de modo plenamente satisfatório do ponto de vista da proteção do hipossuficiente. Compreendida essa relação entre o micro e o macrossistema, fica claro por que os prazos do Código do Consumidor parecem – mas não são – ser tão curtos. É que eles de referem apenas ao ato de reclamar, de formalizar queixa junto ao fornecedor para que tome providências de saneamento do vício. Não são prazos que prejudiquem o ajuizamento da pretensão, desde que a reclamação tenha sido tempestivamente deduzida. Outro mal-entendido está na forma como se tem compreendido a prescrição das demandas de reparação por correção insuficiente por parte de instituição financeira, das contas vinculadas ao fundo de garantia por tempo de serviço – FGTS. Os tribunais têm - a nosso modo de ver indevidamente - invocado uma pretensa lacuna, a resolver por analogia, forcejando a incidência do prazo de prescrição das contribuições sociais devidas ao mesmo Fundo. Ora, se é correto o fundamento – universalmente aceito pela jurisprudência – de que o FGTS não é uma receita pública e, além do mais, é patrimônio dos trabalhadores ligados ao sistema de contas vinculadas, não há lacuna alguma, pois a pretensão de recomposição é tipicamente privada. Não pode haver falta de previsão legal, pois o prazo de cobrança é o geral, de dez anos. Ainda que o leitor discorde de nossa posição pessoal quanto às duas situações exemplares, poderá ao menos compreender nossa postura metodológica, que procura poupar o ordenamento de incompletudes desnecessárias, derivadas má compreensão – ou às vezes até de má-vontade – no que se refere às relações entre o direito comum e o especial. Nosso segundo pressuposto de trabalho diz respeito a um tema mais específico, o que condiz com o significado da representação em direito privado. Esse termo polissêmico é de tipo analógico – quer dizer, representação é palavra que evoca vários sentidos diversos, mas correlacionados – e tem sido obnubilado, há muito, pela incorreta identificação da representação com o mandato. Pois bem, para nós, pode haver representação sem mandato, bem como mandato sem representação. Um exemplo da primeira seriam os casos historicamente apelidados, pela doutrina, de “representação legal” e “representação judicial”. Exemplo de mandato sem representação seria o de procuração em causa própria, não no processo, mas no plano material. O mais importante, e que de momento deve ser conservado em memória, é o fato de que a representação nem sempre é voluntária, nem inexoravelmente vinculada ao contrato de mandato, sendo necessário apurar que pontos de contato poderia ter com a preposição. A PREPOSIÇÃO NO PROCESSO DO TRABALHO

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Como dissemos acima, a preposição teve tratamento mais prestigioso no direito do trabalho, anteriormente ao direito comum, o que nos conduz a inquirir, imitando a História, que serviços pode nos prestar a doutrina e a jurisprudência especializadas. A CLT refere-se em diversas ocasiões à preposição. Veda ao empregador ou seu preposto proceder revista íntima em empregadas (art. 373-A/CLT). Faculta ao empregador dar por rescindido o contrato de trabalho, se o empregador ou seu preposto praticarem ato lesivo à sua honra e boa fama (art. 483, “e”). Obriga ao preposto, tanto quanto ao empregador, prestar os devidos esclarecimentos à inspeção do trabalho (art. 630, § 3º). Mas, de todos os dispositivos consolidados, o mais famoso é justificadamente o art. 843, § 1º, que regula a substituição, em audiência, do empregador pelo preposto, desde que este tenha conhecimento dos fatos, acrescentando-se que suas declarações obrigarão o proponente. Semelhantemente, dispõe o art. 861, consolidado 1. Vejamos que subsídios foram acrescentados pelos operadores do direito para a compreensão e incidência do precitado art. 843. Primeiro – e surpreendentemente – a jurisprudência dos tribunais do trabalho não avalia a condição “que tenha conhecimento do fato” como inerente à participação do preposto em audiência, substituindo do empregador. Não é considerada um pré-requisito, mas sim um ÔNUS, no sentido de que o desconhecimento dos fatos pelo preposto implica na presunção de veracidade daqueles alegados pelo reclamante. Na visão dos pretórios, haveria aqui uma “confissão ficta”, derivada da preposição. Por ser muito explícito quanto ao ponto, transcrevemos excerto de julgado do Eg. 14o. Regional: “Acrescente-se à fundamentação supra a confissão do preposto, que afirmou desconhecer a existência de pagamento de ajuda de custo em favor do recorrido, fato este que enseja a confissão ficta quanto à matéria fática, nos termos do artigo 843, § 1.º, da Consolidação das Leis do Trabalho, que “faculta ao empregador fazer-se substituir pelo gerente, ou qualquer outro preposto que tenha conhecimento do fato, e cujas declarações obrigarão o proponente”. Ora, se o preposto pode depor em nome do empregador, obviamente, precisa ter ciência acerca das alegações do empregado para que tenha condições de fornecer ao juízo elementos que contribuam para o esclarecimento dos fatos que envolvem a controvérsia. Fazer-se representar por preposto que não conhece os fatos alegados pela parte autora é o mesmo que se recusar a depor ou não comparecer, conforme o disposto no artigo 343, §§ 1.º e 2.º do Código de Processo Civil. Assim, como o preposto não soube precisar o horário de início do trabalho do obreiro, deve prevalecer a jornada declinada na inicial.”2

Considere-se, em sentido parecido, esta ementa do TRT da 23 a. Região: “CONFISSÃO FICTA - DESCONHECIMENTOS DOS FATOS PELO PREPOSTO. Na Justiça do Trabalho existe a permissão legal ao empregador de se fazer substituir por preposto, desde que este, nos termos do § 1º, do art. 843, da CLT, possua conhecimento dos fatos, objeto da lide, para que, ao prestar depoimento pessoal, traga elementos que contribuam para formação da convicção 1

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Art. 861/CLT – “É facultado ao empregador fazer-se representar na audiência pelo gerente, ou por qualquer outro preposto que tenha conhecimento do dissídio, e por cujas declarações será sempre responsável.” TRT/14ª REGIÃO, P. n. 00957.2006.002.14.00-6, julgado em 13 de fevereiro de 2007.

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do magistrado. Ao se fazer representar por preposto que não conhece os fatos alegados pela parte adversa, incorre a parte em confissão ficta sendo o mesmo que se recusar a depor ou não comparecer, o que implica em presumi-los verdadeiros, com fundamento nas normas contidas no artigo 844, da CLT e 343, § § 1º e 2º, do CPC.”3

Não discrepa disso precedente do Tribunal Superior do Trabalho: “Não basta o comparecimento do preposto da reclamada à audiência para que não seja decretada a pena de confissão. Necessário se faz tenha ele conhecimento dos fatos do litígio (art. 843, § 1.º, da CLT). A declaração, em audiência, do desconhecimento dos fatos equipara-se à recusa ao comparecimento à audiência ou à recusa ao próprio depoimento (arts. 844 da CLT e 343, § § 1.º e 2.º, do CPC) – hipótese em que cabível a aplicação da pena de confissão.”4

Bastam esses entre os muitos julgados no mesmo sentido. Em que pese uma certa vacilação a respeito do diagnóstico – pois com frequência se confundem dois institutos processuais, o da presunção de veracidade de fatos não impugnados com o da confissão ficta de quem omite depoimento pessoal – o resultado prático da jurisprudência especializada tem sido o mesmo – os fatos descritos na inicial da reclamação é que serão considerados como verdade formal, para efeito de julgamento da pretensão. Essa pluralidade de fundamentos – embora não quanto ao efeito prático, insistamos – é ainda acrescida por orientação jurisprudencial que considera “revel” (fundando-se, aliás, na literalidade da CLT, art. 37, par. único) o reclamado que, embora representado por advogado, não comparece, sem justa causa, ou não envia preposto que o substitua em audiência 5. A razão de ser do art. 843, § 1º, consolidado, é de longa data conhecida. Na verdade, há mais de uma. De um lado, deve ser facilitada a possibilidade de conciliação em audiência. De outro, a instrução processual pode incluir o depoimento pessoal. Uma e outra seriam comprometidas pelo fato de que o empregador ou seu administrador não possam, em razão de suas próprias atividades, estar fisicamente presentes no ato judicial. Daí que se possam fazer substituir, sem que isso comprometa os legítimos interesses da parte reclamante. O segundo ponto – também surpreendente, mas não tanto para quem está habituado à construção jurisprudencial das normas jurídicas – está em que, se os tribunais não consideram o conhecimento dos fatos uma condição de participação do preposto na audiência (mas apenas um ônus cujo desatendimento implica em confissão ficta), de outro lado acrescentam um requisito não expressamente previsto pelo texto legal: o preposto há de ser empregado do preponente, salvo em duas situações, a do empregador doméstico e a do micro ou pequeno empresário. Nos termos do Enunciado n. 377, da Súmula de Jurisprudência do TST, “exceto quanto à reclamação de empregado doméstico, ou contra micro ou 3 4 5

TRT/23a. Reg., RO-00487.2002.001.23.00-1, julg. em 12 de novembro de 2002. TST, RR 3.808/88, Rel. Ermes Pedrassani, Ac. 3.ª T. 319/89. Em. n. 122 da Súmula do TST: “A reclamada, ausente à audiência em que deveria apresentar defesa, é revel, ainda que presente seu advogado munido de procuração, podendo ser ilidida a revelia mediante a apresentação de atestado médico, que deverá declarar, expressamente, a impossibilidade de locomoção do empregador ou do seu preposto no dia da audiência.”

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pequeno empresário, o preposto deve ser necessariamente empregado do reclamado. Inteligência do art. 843, § 1º, da CLT e do art. 54 da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006. (ex-OJ nº 99 - Inserida em 30.05.1997)”. De onde, essa exigência de vínculo empregatício entre preponente e preposto (salvo as duas exceções hoje cogitadas) Talvez do desejo de assegurar o cumprimento da finalidade legal (alguém presente ao local de trabalho haverá de conhecer os fatos) e de evitar fraudes (o emprego supõe uma ligação formalmente inequívoca entre preponente e preposto). Como quer que seja, sempre haverá oposição residual, ao menos em sede doutrinária, à Súmula n. 377/TST, seja em vista da ausência de previsão legal, seja porque a ressalva feita ao pequeno empresário ameaça a legitimidade da respectiva regra. De resto, o próprio TST tratou de criar uma outra exceção, mais casuística, ao admitir que ex-empregado pudesse figurar como preposto, justamente porque conhecia os fatos relevantes para o processo6. Há outros detalhes que deixaremos de lado, porque não interferem no instituto da preposição em si. É chegada a hora de indagar: que lições o estudioso do direito comum pode tirar dos suprimentos acima colacionados Que colaboração, considerados os textos do Código Civil, ousaria acrescentar Trataremos da segunda questão em momento mais apropriado, pois ainda não procedemos a exegese do CC. Quanto à primeira, pensamos ser possível assentar as seguintes teses: 1a.) A preposição do processo trabalhista nada tem a ver com a representação voluntária, apesar da antiga praxe de apresentar-se “carta de preposição”. Externamente, isso se deduz do fato, cristalino, de que tal instrumento jamais exigiu todos os requisitos que se buscariam na procuração. A representação afeiçoada à figura do preposto é mais de ordem legal que convencional. Portanto, é condicionada pelo texto e pelas finalidades que se possam extrair da lei. Se elas são, realmente, as duas que relacionamos – propiciar a conciliação e um importante elemento de instrução processual, o depoimento pessoal – tal será a extensão da representação. E essa palavra é aqui referida com um senso muito vago, pois alguns prefeririam dizer “presentação”. Como diz a lei, o preposto substitui o empregador; fá-lo presente à audiência, como se fosse ele. Deve-se atribuir a isso o fato de a jurisprudência exigir, em regra, o vínculo laboral – para “presentar” o empregador autenticamente, é preciso que se trate de alguém que vivenciou os fatos; que teve com eles contato pessoal (ou pelo menos que poderia ter essa espécie de contato) e não soube deles por terceiro;

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TST, 4a T., RR-733473/2001.6, de que destacamos a seguinte asserção: “De outra feita, não se verifica a alegada contrariedade à Súmula n.º 377 desta Corte, porquanto o verbete não faz nenhuma alusão ao limite temporal do contrato de trabalho do preposto se este deve ser um empregado atual da empresa, ou se é permitido à Reclamada fazer-se representar por um empregado que, à época dos acontecimentos, tinha ciência dos fatos tratados na Reclamatória.”

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2a.) O sócio-administrador (a quem assimilamos o administrador não-sócio) não é “preposto” (nem deve ser confundido com o “gerente”, preposto geral). Ele também representa (ou melhor, “presenta”) a pessoa jurídica, mas por razões diversas. Faz presente a pessoa jurídica empresária em audiência por conta do estatuto, do contrato social, aos quais se associa a lei. Nós enxergamos aqui, por isso, um misto de representação voluntária e legal, que não se confunde com o mandato. Enfim, trata-se da pessoa jurídica encarnada em um órgão que a “presenta”, por fundamento diferente daquele aplicável ao preposto; 3a.) Há uma semelhança parcial (mas nunca identidade!) entre a “presentação” pelo preposto e aquela praticada nos atos da vida civil, em relação ao absolutamente incapaz. Este também é substituído por alguém, por impossibilidade de praticar pessoalmente o ato. A diferença – dentre outras – mais visível está em que a impossibilidade do empregador de comparecer à audiência é fática e eventual; a do civilmente incapaz é de direito e permanecerá enquanto durar tal condição. Em nenhum dos casos a “presentação” é voluntária, portanto seria um contra-senso assemelhá-las ao mandato; 4a) A restrição introduzida pela jurisprudência especializada – de que, via de regra, o preposto há de ser empregado – obedece a considerações de ordem prática e instrumental (como demonstram, ademais, as objeções dos que não partilham desse ponto de vista majoritário), não interferindo na compreensão teórica do que seja o instituto da preposição. O PREPOSTO PERANTES OS JUIZADOS ESPECIAIS A lei que instituiu os juizados especiais cíveis (Lei n. 9.099, de 1995 - em lugar dos antigos juizados de pequenas causas) estipulou que as partes hão de comparecer pessoalmente (art. 9o.), dispensada a assistência de advogado se o valor for inferior a 20 salários mínimos. Se o réu for pessoa jurídica, no entanto, ou “titular de firma individual” (empresário pessoa física), pode fazer-se representar por preposto “credenciado” (art. 9o, § 4o.). O exame dos arts. 17 e 21, da mesma Lei n. 9.099, torna evidente o motivo crucial dessa exigência de comparecimento pessoal: é da própria essência dos Juizados que a conciliação seja intentada. Somente se restar impossível – e as partes não optarem por juízo arbitral – seguirse-á a audiência de instrução e julgamento. O não-comparecimento do demandado também implicará na prolação de sentença (art. 23). Entretanto, vencidos os obstáculos e obtida conciliação, ela será, depois de reduzida a termo, homologada por sentença, com eficácia de título executivo (art. 22, § único). A importância do comparecimento pessoal é ilustrada por outras disposições da Lei n. 9.099. Demandado ausente é tido por revel (art. 20), reputando-se verdadeiros os fatos alegados pela parte demandante. Além disso, como se admitem “todos os meios de prova moralmente legítimos” (art. 32), é certo que o autor pode solicitar o depoimento pessoal do requerido. Ainda que a Lei n. 9.099 só se reporte à aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, no que se refere a certos aspectos da execução (arts. 52 e 53), impossível deixar de invocá7

lo quanto à regulação das provas, ao menos no que não contrarie os princípios dos Juizados (oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade). Desse modo, se a parte requerer (ou mesmo o Juiz entender que deve se realizar de ofício) o depoimento pessoal da outra e esta recusá-lo, poderá sofrer a “pena de confissão ficta” (art. 343, § 2o/ CPC). Pensamos que, no Juizado, não haja prejuízo nenhum para a eficiência e para a celeridade caso se adote essa solução – afinal, as partes são obrigadas a comparecer pessoalmente. Essa digressão ilustra a importância do preposto, substituto do dirigente da pessoa jurídica ou do empresário individual. Há algumas semelhanças notáveis com o processo do trabalho, caso nossa interpretação seja considerada aceitável – o preposto comparece para permitir a conciliação e, eventualmente, ter o seu depoimento pessoal tomado. Isso porque não seria factível impor ao dirigente ou ao empresário individual que se fizessem presentes sempre. É preciso notar, por outro lado, que a Lei n. 9.099, no que se refere à literalidade textual, tem duas grandes diferenças com respeito à CLT. Como já terá notado o leitor atento, a primeira alude a preposto “credenciado”, o que a última não exige expressamente. Em contrapartida, a Consolidação impõe que o preposto tenha conhecimento dos fatos (com as conseqüências que já analisamos) e a Lei dos Juizados, estranhamente, não aponta explicitamente nesse sentido. Alguém poderia argumentar, em face desse silêncio, que o preposto – diferentemente do que acabamos de sustentar – não pode ter seu depoimento pessoal tomado. Afinal, dele não se exige que tenha ciência dos fatos. A se admitir tal interpretação, seria necessário intimar pessoalmente o administrador da pessoa jurídica (ou o empresário individual) para prestar depoimento. Mas essa alternativa hermenêutica parece contrariar os princípios que regem os Juizados. Pois isso imporia dilação e formalidades (intimação pessoal para depor) contrastantes com a simplicidade, a eficiência e a rapidez que se esperam nessa sede. Assim, pensamos que nossa interpretação seja a mais correta: o preposto – que é faculdade e não obrigação de certos demandados – faz-se presente não apenas para transigir, mas eventualmente para ter seu depoimento pessoal ouvido. Logo, ainda que a lei não o imponha por expresso, é altamente desejável que tenha ciência dos fatos discutidos. Se for tomado seu depoimento e nada souber, haverá confissão ficta. O outro ponto em que os processos (trabalhista e sumaríssimo dos Juizados) aparentam distanciar-se está no requisito do credenciamento do preposto. Já vimos que a Justiça do Trabalho consolidou o entendimento de que ele há de ser empregado do preponente (e essa é a posição prevalecente, apesar dos protestos minoritários). A Lei n. 9.099 não supõe esse vínculo formal, só se reportando ao “preposto credenciado”. Isso induziria a crer que bastaria um título que o legitimasse, por exemplo, a tradicional “carta de preposição”. No entanto, a praxe dos próprios Juizados Especiais vai além, em outro notável exemplo de elaboração jurisprudencial do Direito. Insistimos, ingênuos são os que negam esse papel dos juízes e tribunais. Consideremos, de início., o seguinte julgado:

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REVELIA - Pessoa jurídica - Preposição - Impossibilidade de aferir-se no momento da audiência a regularidade da carta de preposição - Reconhecimento - Recurso não provido.

A ementa, como sói ocorrer, não foi muito feliz. O que de fato se julgou foi a correção do procedimento do juízo “a quo”, ao deferir prazo para a regularização da carta de preposição, pois não se sabia inicialmente quem assinara pela pessoa jurídica. O espírito do julgado foi no sentido de que uma falha puramente formal, sem intuito de fraude, deveria ser tolerada e retificada no prazo marcado, em atenção ao princípio da celeridade. Sem embargo – pensamos - de que esse mesmo princípio poderia ser invocado para dar-se solução diversa ao caso. Esse ponto, porém, não é o que nos interessa. O interessante está na caracterização que o julgado faz da preposição. Afirma-se, com base em renomada doutrina, que o preposto é aquele que tem “relação de dependência” com o preponente, tanto faz se para a prática de ato isolado ou de atividade, se permanente ou transitório. A partir daí, conclui-se que o preposto obriga o “empregador ou comitente”7. Linha também liberal foi adotada pelo Fórum Nacional dos Juizados Especiais. Admite o enunciado n. 99/FONAJE que, atingido o acordo, mesmo sem “carta de preposição” (portanto, sem o “credenciamento” de que cogita a lei), sua “validade” possa ser conservada pela ulterior juntada do instrumento (rectius: o ato se considera ratificado). Mas essa tolerância limita-se à hipótese de sucesso na transação. Em caso contrário, o comparecimento por preposto não credenciado implica na decretação da revelia8. Com base nessa orientação (embora citando o antigo enunciado n. 42/FONAJE, ora substituído pelo de n. 99), já se decidiu o que segue: “O réu foi devidamente citado e intimado para comparecer a audiência de tentativa de conciliação, com a advertência de que deveria se fazer representar por sócio-gerente ou preposto munido de carta de preposição e cópia do contrato social (cf. fls. 20 e 21). Ocorre que o preposto que compareceu à audiência não apresentou naquela ocasião nenhum documento que comprovasse aquela condição. Nem mesmo o advogado presente exibiu a procuração que o habilitasse a atuar em nome do banco-réu (cf.fls. 22). Assim, acertado foi o reconhecimento da revelia, pois o artigo 9.°, "caput", da Lei n.° 9.099/95, prevê a necessidade de comparecimento pessoal das partes à audiências, acrescentando, no § 4.°, que, sendo o réu pessoa jurídica ou titular de firma individual, poderá ser representado por "preposto credenciado". Segundo ensina Ronaldo Frigini, o preposto dever estar "munido de documento da empresa (em papel timbrado ou não), mas que deixe clara a possibilidade de representação integral" (Comentários à Lei dos Juizados Especiais Cíveis, Mizuno, 3.a ed., pág. 181). Cita referido autor, ainda, julgado da la Câmara Recursal do Juizado Especial de Pequenas Causas do Rio Grande do Sul, no sentido de que "não é dado á pessoa jurídica, recebida citação no interregno de vinte dias que antecederam a audiência inaugural, fazerse representar por pessoa não portadora de carta de preposição, impondo-se a aplicação da pena de revelia" (obra citada, pág. 181). Para Ricardo Cunha Chimenti, "a carta de preposição outorgada por instrumento particular deve ser assinada por dirigente com amplos poderes 7

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RECURSO N° 89.09.001298-4, 1a Turma do Colégio Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Estado de São Paulo, julg. em 04/02/2009. “Enunciado 99 - Substitui o Enunciado 42 - O preposto que comparece sem carta de preposição, obriga-se a apresentá-la no prazo que for assinado, para validade de eventual acordo, sob as penas dos artigos 20 e 51, I, da Lei nº 9099/1995, conforme o caso (aprovado no XIX Encontro – Aracaju/SE).”

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(circunstância que muitas vezes exige a apresentação em audiência dos atos constitutivos da empresa e suas modificações)." (Teoria e Prática dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais e Federais, Saraiva, 9.a ed., pág. 108).”9

Como se vê, apesar de um dos precedentes citados mencionar “dependência”, não induzem a crer que haja necessidade de relação de emprego entre preponente e preposto. Aliás, um deles expressamente registra que tal dependência possa estar relacionada com a prática de ato eventual, enquanto que a relação de emprego é não-eventual. Daí concluirmos que esse tipo de vínculo seja inexigível, contanto que o preposto esteja corretamente credenciado. Mas permanece, em vista de tudo que já discutimos, a necessidade ocasional de o preposto ter conhecimento dos fatos, sendo essa a regra do processo trabalhista. Desconfiamos que essa seja a razão – ou uma delas – que leva certos julgados a concluir em sentido oposto, o de que o preposto há de ser empregado. Vejamos um exemplo: “A empresa ré foi citada e, no mesmo ato, cientificada de que o preposto deveria fazer parte do quadro da empresa, situação que deveria ser comprovada em audiência (fls. 22). Na audiência de Conciliação, entretanto, o preposto não apresentou nenhum documento para demonstrar que tinha vínculo empregatício com a empresa-ré e essa hipótese eqüivale a ausência injustificada da pessoa jurídica, dando ensejo à aplicação do art. 20 da Lei 9099/95. Não se pode olvidar que, no Juizado Especial, a presença da parte em audiência é obrigatória, razão pela qual o credenciamento do preposto deve estar comprovado no momento da realização do ato. Inadmissível a concessão de prazo para credenciamento de preposto, em face do princípio da igualdade das partes. A propósito, é importante ressaltar que, se a pessoa física tem que estar presente na audiência, a jurídica também e isto só é possível com a presença de representante legal, nos termos do artigo 12 do CPC, ou de preposto com vínculo empregatício. Não sendo assim, a pessoa jurídica seria representada por procurador, o que não é possível no Juizado Especial, em razão do princípio da isonomia. Se a pessoa física não pode se fazer representar por procurador em audiência, a pessoa jurídica também não pode, tanto que sempre é feita a distinção entre preposição e procuração. Pelo que se infere dos autos, a empresa ré, demonstrando descaso para com o preceito legal, "terceirizou" a função de preposto, o que é inadmissível, sobretudo no sistema do Juizado Especial, onde nem mesmo a presença do advogado tem o condão de suprir a ausência da parte. Como se não bastasse isso, no caso em análise, a carta de preposição foi assinada por advogado terceirizado, o que também não é admitido no sistema. Não se pode ignorar que, como tem sido reiteradamente decidido pelos Órgãos Jurisdicionais e inclusive pelo Conselho de Ética da OAB, o advogado não pode cumular sua função com a de preposto. Se não pode exercer a função de preposto, o advogado terceirizado não pode também assinar a carta de preposição, como o fez neste caso (fls. 32). Nessas condições, não tendo sido regularizada a representação no momento oportuno, a requerida deve mesmo sujeitar-se aos efeitos da revelia. A representação irregular no ato da audiência eqüivale a ausência injustificada.”10

Nada há que objetar quanto à conclusão. O preposto não estava credenciado, nem houve transação, de onde se segue a revelia. Nesse caso, não há que conferir prazo para regularizar o credenciamento. Além disso, humanamente, compreende-se a indignação – que os julgadores não fazem questão de esconder 9

Recurso n. 18.678, 1a. Turma do Colégio Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Estado de São Paulo, julg. em 20/01/2009. 10 Recurso Inominado n° 10.836, 4a Turma Cível do Colégio Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Estado de São Paulo, julg. em 24/06/2008.

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– com a extrema negligência da parte demandada, que beira o desprezo pelo Poder Judiciário. Fazer-se presente por pessoas despreparadas para oferecer conciliação ou completamente estranhas ao ocorrido é, de fato, sabotar o funcionamento eficiente dos Juizados. Mas, se o resultado é indisputável, o tecido da fundamentação deixa vários fios soltos. É forte a tentação de comentá-los. Primeiro: por que o preposto haveria de ser empregado, como o julgado afirma, sem justificar? Já vimos que a Lei n. 9.099 – tal como a CLT, no processo do trabalho - não o impõe por expresso. Melhor examinando o decisum, há um motivo sugerido – ele clama contra a “terceirização” do preposto. Diante disso, é possível entrever suas razões de decidir ocultas. Essa figura – que no processo do trabalho é chamada de “preposto profissional” – em nada colabora para o cumprimento das diretrizes que regem o funcionamento dos Juizados Especiais. É completamente ignorante dos fatos. Vacila quanto à conciliação (ou a recusa), porque não se sente autorizado a tanto. O problema está nessa dimensão pragmática – trata-se de um “não-preposto”, alguém que não tem a menor condição de estar no lugar de outrem. Se a doença é essa, o remédio preconizado pelo julgado é exagerado. Não haveria necessidade de exigir o vínculo empregatício, mas se poderia admitir outro qualquer, que viabilizasse preencher as finalidades da preposição: transigir e depor, quando exigido. Há outro detalhe curioso, o referente ao advogado terceirizado. Esse ponto não faz parte de nossa linha de raciocínio principal, portanto não devemos gastar grande espaço com ele. Mas seu interesse prático é tão grande, que não há como dizer a respeito apenas uma palavra. Por que o advogado terceirizado não poderia assinar carta de preposição? Essa asserção nos parece equivocada – é claro, desde que o advogado detenha poderes instrumentados em procuração, malgrado seja “terceirizado”. Da premissa assentada pelo julgamento não se seguem as conclusões. Que o advogado não possa cumular essa função com a de preposto, sabe-se disso a partir do exame das normas que regulam a ética profissional 11. Há também precedentes que apontam para a impossibilidade de o advogado ser constrangido ao depoimento pessoal12. Mas a partir daí há um “non sequitur”, quando se estende esse raciocínio para o corolário de que não poderia subscrever a carta de preposição (desde que com poderes para tanto). Talvez o problema tenha sido o da falta de clareza do mandato, mas a motivação não permite avançar na discussão. 11

Nesse sentido, Enunciado n. 98/FONAJE, que substituiu o Enunciado n. 17 - É vedada a acumulação SIMULTÂNEA das condições de preposto e advogado na mesma pessoa (art. 35, I e 36, II da Lei 8906/1994 combinado com o art. 23 do Código de Ética e Disciplina da OAB) (aprovado no XIX Encontro – Aracaju/SE). 12 “Justifica-se tal proibição, pois o preposto está sujeito a ser ouvido em depoimento pessoal, presumindo-se confessados os fatos na hipótese de recusa de depor, o que não poderia ser aplicado ao advogado por força do sigilo profissional decorrente da relação profissional com o cliente, ou mesmo na hipótese de relação de emprego. A revelia foi bem decretada, possibilitando o julgamento antecipado, não havendo cerceamento de defesa ou ofensa ao contraditório, não comportando o recurso a discussão de matéria não suscitada ou discutida no processo (art. 515, § Io, CPC).” (RECURSO N°: 27.683, 1a Turma do Colégio Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Estado de São Paulo, julg. em 21/01/2009),

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Como fizemos na situação anterior, a do preposto trabalhista, façamos agora, à guisa de conclusão parcial, algumas considerações: 1a) Coerentemente com o que já sustentamos, o preposto não é um representante voluntário, no sentido de que deva exibir poderes específicos para transigir. Seu papel, nos Juizados Especiais, é apontado pela lei. A “presentação” do preponente é muito mais legal que convencional, embora se tenha de reconhecer um resíduo da última em duas circunstâncias – a de que a preposição seja uma faculdade do preponente e a de que a escolha da pessoa caiba a ele. Mas o papel da vontade encerra-se aqui. Como se percebe do espírito dos julgados citados, é preciso que o preposto esteja preparado para cumprir o seu papel, de acordo com os princípios de celeridade, eficiência e informalidade que regem os Juizados Especiais. Portanto, não há que exigir do conteúdo da carta de preposição que tenha o mesmo conteúdo que se buscaria em um instrumento de mandato. Basta apenas que ela identifique o preposto e seja possível averiguar que quem assina pelo preponente tinha poderes para, por sua vez, representar a pessoa jurídica. Transigir e depor são os papéis conferidos por lei ao preposto credenciado; é quanto a esses aspectos que insistimos no caráter legal da “presentação”; 2a.) É também dessa perspectiva que enxergamos a qualidade que o preposto deve ostentar. No processo do trabalho, há orientação sumulada por Tribunal Superior, da qual o aplicador da lei não pode se esquivar por razões de segurança jurídica, no sentido de que o preposto deva ser empregado. Já investigamos por que se chegou, naquela seara, a esse resultado. Razões semelhantes (o desejo de que a preposição possa cumprir suas finalidades, no seio dos Juizados Especiais) tem inclinado alguns, na esfera cível, a exigir que, também nela, seja o preposto empregado. Esse medicamento é inadequado ao diagnóstico da doença, como asseveramos. É excessivo a ponto de eliminar o paciente junto com a moléstia. Para a lei, basta que o preposto esteja credenciado. Se, além de sua literalidade, quisermos prestigiar os princípios dos Juizados, basta exigir que o preposto tenha alguma relação com os fatos a propósito dos quais haja de depor e que esteja em posição de negociar. O fato de ser empregado não é garantia, por si, do preenchimento de nenhum desses papéis. Normalmente, o preposto terá algum tipo de ligação (inclusive eventual, como já discutido) com o preponente, mas não vemos por que deveria ser, necessariamente, o vínculo formal de emprego13; 3a) Não é o caso de se aplicar ao preposto, no âmbito dos Juizados Especiais, o art. 1.170 do Código Civil. Seu credenciamento, mesmo sem expressos poderes, é suficiente para aferir o vínculo de preposição; e, desse vínculo, surge a legitimação para transigir. Quem confere esse poder é a lei e não há que cogitar 13

Essa, a orientação do seguinte precedente: “Revelia - Preposto - Inexistência de vínculo profissional - Irreleváncia - Revelia inexistente - Recurso provido.” (Recurso Iníominado n ° 8082, Ia Turma Cível do Colégio Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Estado de São Paulo, julg em 20/08/2008)

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de mandato, insistamos. Do contrário, a carta de preposição teria de conter todos os requisitos daquele contrato consensual, o que não é o caso. Advogado constituído necessita de poderes expressos e específicos; preposto credenciado, não. Há quem possa se apavorar com essas idéias, com base no fato de que elas atribuem grande significação à figura estudada. Mas as objeções que farão estarão contaminadas por três graves deficiências. Primeiramente, a de que estarão embrutecidos e acomodados com a praxe de certas empresas valerem-se de pseudo-prepostos. Pois bem, em tal caso, a culpa in eligendo por eventuais prejuízos é só delas. A segunda, a de que estarão aceitando, nesse caso, que alguém alegue, em seu benefício, a própria torpeza. Se alguém indica negligentemente o preposto, e disso resulta um mau acordo, é ele, e não a outra parte, que deve arcar com os danos. E a terceira, a de que provavelmente não terão, os objetantes, apreço pelo bom funcionamento da Justiça. A figura do preposto é extremamente relevante justamente porque, bem preparado, será ele um personagem fundamental no processo sumaríssimo dos Juizados. Tal relevância está diretamente ligada à consecução de um eminente valor social, que é o da eficiência do Poder Judiciário. Como isso nos parece evidente, não é demasiado concluir que a lei configurou a preposição com os ornatos necessários para que cumpra seus propósitos – isto é, o preposto é representante (ou “presentante”) sem mandato (nada obstante tenha de ser credenciado; mas credenciar não é o mesmo que constituir procurador). O PREPOSTO NO DIREITO COMUM O Código Civil de 2002, que revogou a parte geral do velho Código Comercial de 1850, tratou do empresário, das sociedades, do estabelecimento empresarial e de certos institutos que chama de complementares. Dentre estes, estão o registro, o nome empresarial e os prepostos. No fundo, o Código Civil preserva até certo ponto a tradição de considerar os últimos “agentes auxiliares” do comerciante (empresário). Porque é assim que o Código Comercial (art. 74) tratava dos feitores, guarda-livros, caixeiros e “outros quaisquer prepostos das casas de comércio”. O revogado Diploma imputava claramente a responsabilidade dos atos dos prepostos aos preponentes, desde que nomeados por escrito pelos comerciantes e inscritos nos extintos tribunais do comércio. Assim ocorria com os atos praticados dentro dos estabelecimentos e relativos aos giros dessas casas; com o recebimento de entregas pelos encarregados para tanto; com os assentos realizados pelos prepostos nos livros. Estabelecia também a indelegabilidade, ou pessoalidade, dos atos dos prepostos. Em toada semelhante, mas não idêntica, o Código Civil, na parte em que dedica o maior número de dispositivos ao assunto, regula o preposto do empresário. E o faz da seguinte maneira: a) Os atos do preposto são pessoais. Se ele fizer-se substituir, responderá pessoalmente pelos atos do substituto; b) O preposto não pode negociar por conta própria ou de terceiro, salvo de autorizado pelo preponente. Nem pode participar de operação do mesmo

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gênero da que lhe foi cometida. Do contrário, responderá por perdas e danos e o preponente poderá reter os lucros; c) A entrega de bens ou documentos ao preposto, encarregado pelo preponente para esse fim, equivale à realizada a este último. Se no recebimento não houve ressalva, está perfeito e acabado; d) Há um tipo de preposto permanente, encarregado do exercício da empresa, o gerente. Com isso se afeiçoa a linguagem jurídica à ordinária, que apelida de “gerente administrativo” ao antigo feitor. Por isso não se deve mais chamar de sócio-gerente o administrador da sociedade. Ao gerente devem ser outorgados poderes (segundo as formas que veremos adiante), mas as limitações da outorga só são oponíveis ao terceiros quando registradas ou por eles conhecidas, comprovadamente; e) Outra espécie de preposto expressamente tratada é o contabilista, habilitado a promover assentos nos livros do empresário. Veremos, ele pode ser externo ou interno; f) “O gerente pode estar em juízo em nome do preponente, pelas obrigações resultantes do exercício da sua função” (art. 1.176/CC). O alcance desse dispositivo é tão amplo que preferimos aduzir comentário mais adiante. De todo o exposto, pode ficar a impressão de que as pessoas afeitas à preposição seriam empregados. Mas não é bem assim. De início, observe-se que a lei civil não se ocupa de caracterizar a relação interna entre preponente e preposto, salvo para estabelecer responsabilidades recíprocas. O preposto responde por atos culposos e o preponente, por atos daquele, por conta da preposição. Nada indica qual seja o regime de trabalho. Ademais, a doutrina costuma classificar os prepostos em internos e externos, conforme o local em que laboram; e em dependentes e independentes, conforme estejam ou não subordinados ao preponente14. Se essa divisão se justifica, principalmente a derradeira, então é uma falácia identificar o preposto pelo vínculo de dependência ou ainda pelo vínculo empregatício. Um preposto independente não é empregado, porque lhe falta atributo próprio dessa condição, quanto mais se for externo. É bem conhecido o exemplo do contabilista, que pode ser dependente ou autônomo. Assim sendo, parece confirmar-se nossa impressão de que a jurisprudência exagera quando, por preocupações de ordem prática – que já assinalamos – pressupõe relação de emprego como nota inerente da preposição. Mas o dispositivo que mais chama a atenção e, justamente no tópico que nos ocupa, é o art. 1.176. Ele estabelece, com todas as letras, a substituição do preponente em juízo pelo gerente, no que se refere aos atos praticados pelo último. Não se trata apenas de que esteja apto a receber citação. A lei não se 14

Vide, a respeito, VANESKA DONATO DE ARAUJO in HIRONAKA, Giselda M. F. Novaes e HERKENHOFF, Henrique Geaquinto, Direito de empresas, São Paulo: RT, 2008, p. 41/2.

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conteve nisso: ela diz “estar em juízo”. De sua literalidade é possível extrair muito mais. E, se isso não bastasse, o dispositivo em questão está em plena consonância com o que disciplinam a CLT e a Lei dos Juizados. A diferença está em que estas se preocupam com a conciliação, com a audiência e eventualmente com o depoimento pessoal, enquanto que o Código Civil foi mais longe. Mas o espírito é o mesmo – o gerente só pode estar em juízo por conta dos atos de que tem conhecimento. A dicção “pelas obrigações resultantes do exercício de sua função” parece indicar que ele possa estar em juízo no pólo passivo, independentemente de carta de preposição, desde que possa ser identificado de algum modo como gerente. Esse preposto é interno e dependente, portanto, de ordinário, será empregado. Mas isso pouco importa – o que interessa é que se trate daquele preposto descrito pelo art. 1.172/CC. Diante do destaque dado ao gerente, chega a ser escandaloso o desprezo que a doutrina vota ao tema. Seria necessário um esforço para caracterizar melhor a gerência. As dificuldades principiam por conta da vacuidade da própria preposição. Um começo seria dizer, na linha das observações anteriores, que o gerente é interno (está relacionado com o estabelecimento-sede ou filial), dependente, permanente e suas atribuições são mais gerais que as de outros prepostos. Além disso, ele costuma ter hierarquia sobre os demais auxiliares. RICARDO FIÚZA tenta assim estabelecer suas notas distintivas: “Gerente é apenas o agente dependente, com vínculo empregatício, subordinado aos administradores ou ao titular da firma individual, mas com ascendência sobre os demais colaboradores da empresa no âmbito do estabelecimento-sede ou em sucursal, filial ou agência em que exercer suas funções. O gerente responde pelo exercício das atividades próprias da empresa no limite das atribuições que lhe sejam delegadas em instrumento de mandato específico”.15

Porém, se isso significa um bom começo, não se deve ser tão rígido a ponto de exigir que todas essas características estejam simultaneamente presentes, para identificar o gerente. Nos tempos atuais, pode muito bem ser que o gerente chefie poucos, ou mesmo nenhum outro empregado. Ele não está necessariamente ligado a um estabelecimento único, mas pode ter sido encarregado de uma região que abranja diversos deles. Outra palavra de cautela deve ser dita a respeito da outorga de poderes. Essa expressão, “outorga”, passa a idéia de que deva ser conferido instrumento com o conteúdo de uma procuração. Pensamos que de fato essa seria a forma ordinária no caso do gerente. Mas tal materialização da outorga não deve ser interpretada tão estritamente. Primeiro, porque no próprio regulamento interno da empresa pode ser que haja elementos que permitam divisar as atribuições do gerente. Em segundo lugar, mas não menos importante, por conta do princípio da boa-fé e da teoria da aparência. Se, no contexto e nas circunstâncias do ato, era razoável crer que o gerente detinha atribuições para praticá-lo, o terceiro de boa-fé há de ser poupado de eventuais prejuízos. O 15

FIUZA, Ricardo. Novo código civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 1.045.

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mesmo se diga se aquela era a rotina observada naquele estabelecimento empresarial. Não se pode deixar de lado grande papel que o costume de longa data teve em matéria comercial. O mundo empresarial tem seus próprios standards, criações originais e excêntricas, divorciados da formalidades jurídicas, que de modo algum podem ser ignorados pelos operadores do Direito, sob pena de se cometerem graves injustiças por conta de reles obsessão procedimentalista. Dessarte, ousamos dizer que a outorga ao gerente pode provir de quatro fontes: a) consuetudinária; b) contexto ou circunstâncias de seu trabalho; c) regulamento (escrito ou não) interno da empresa; e d) mandato, sendo essa a forma evidentemente mais aconselhável. Se o empresário-preponente quiser impor limitações à outorga, terá o ônus de adotar esta última e também o de arquivar o instrumento no Registro de Empresa. Se não o fizer, ou escolher outro modo de proceder a outorga, terá o ônus de provar que o terceiro prejudicado conhecia as limitações. Pedimos escusas aos espíritos mais formalistas para dizer que o mandato não é comum e que o empresário de má-fé não pode enriquecer sem causa, às custas de terceiros, por não ter adotado a forma mais segura. Quanto mais porque o Código Civil adota o princípio da boa-fé como um de seus vetores fundamentais. Ainda uma vez, para o leitor ficará mais claro o que quisemos dizer ao admitir que possa haver representação sem mandato. O que se deve lamentar é o fato de o Código Civil, cujo projeto era confessadamente conservador, não se ter dignado cuidar da preposição em geral. Ainda que as regras comentadas tenham um viés unificador do instituto, elas ainda se ressentem do particularismo do direito empresarial. E de tudo que dissemos pode-se ver que o preposto tem relação com diversos campos do Direito, notadamente o processual. Há notável uma exceção, porém. De um modo geral a preposição existe para estabelecer uma relação de imputação dos atos do preposto ao preponente; e correspondente responsabilidade do preposto perante o preponente, quando aja com culposamente; e perante terceiros, quando aja com dolo (art. 1.177, parágrafo único, CC). De modo mais amplo, a relação de imputação por atos ilícitos não se limita ao preposto do empresário, como se infere do art. 932, inc. III, do Código Civil: são responsáveis pela reparação “III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele”. Essa responsabilidade é iniludivelmente objetiva (art. 933). A se levar a sério o art. 942, parágrafo único, do CC, é também solidária. Mas nos interessa de momento a própria locução legal – o “empregador ou comitente” responde pelos “empregados, serviçais e prepostos”. Isso mostra que o preposto pode ser não-empregado, a menos que se suponha, injustificadamente, que a lei contenha expressões inócuas. A nosso ver, a lei multiplicou os termos descritivos com a intenção de dar elastério ao regime, permitindo propositada vacuidade na expressão “prepostos”, a qual se deve atribuir a maior largueza possível. É mais um motivo para não torná-la coincidente com a relação formal de emprego. SUMÁRIO DAS CONCLUSÕES 16

Seja-nos permitido sumariar algumas idéias-guia, que podem ter ficado perdidas no meio dos detalhes e dificuldades debatidos: 1) O preposto é caracterizado, em nosso sistema jurídico, de forma propositadamente vaga. Parece que à lei convém mais que a relação preponente-preposto seja identificada como sendo de fato do que de direito. A preposição está para a relação de emprego e outras relações de trabalho como a posse está para a propriedade. Preposto é, literalmente, quem foi posto à frente de uma tarefa; o encarregado de uma atividade. Essa atividade pode ser externa ou interna ao estabelecimento. Pode ser desenvolvida de modo subordinado ou não. Desse modo, não convém identificar o preposto com o empregado, nem se deve constrangê-lo em algum outro tipo de clausura. É instituto sui generis. Não é mandato, nem agência, nem comissão. 2) No campo do processo, às vezes se tenta identificar o preposto com o empregado para obter certos fins valiosos. É que o preposto no processo do trabalho e no procedimento dos juizados especiais pode ser chamado a depor e a transigir. Portanto, não pode ser um qualquer. A necessidade de que esteja habilitado para tais atos, no entanto, não deve ser resolvida pela redução da preposição à relação de emprego. Inclusive porque pode haver empregado que não tenha ciência dos fatos e não se sinta apto a participar da conciliação. Como dizem PRUX, HENTZ e ALMEIDA, “o preposto poderá ser empregado do empresário, porém, não será necessariamente”16. É preciso encontrar outra solução para a qualificação do preposto em Juízo; 3) O preposto não raras ocasiões representa, ou melhor, “presenta”, sem que isso decorra de mandato. Ocorre uma imputação de seus atos ao preponente independentemente de haver sido constituído procurador. O caso mais amplo de imputação decorre de atos lesivos à pessoa ou ao patrimônio de terceiros, atribuídos ao preponente mesmo sem culpa deste. Casos mais específicos estão no processo do trabalho e dos juizados especiais (recusa de depoimento pessoal; revelia por conta de preposição irregular). Todavia, o Código Civil alude a uma situação em que o prepostogerente poderia “presentar” o preponente, no pólo passivo, mesmo no processo civil comum. No plano do direito de empresa, o preposto também pode praticar atos imputáveis ao preponente. Não se olvide, a respeito disso, a teoria da aparência. Somente em relação ao gerente se alude à outorga expressa de poderes, mas nem nesse caso achamos que ela se limita ao mandato. Pode ter outras origens, consuetudinária, regulamentar e contextual. A outorga por mandato é apenas a mais segura e conveniente, do ponto de vista do empresário, porque por esse meio pode registrar as limitações de poderes e, desse modo, torná-las oponíveis a 16

PRUX, Oscar Ivan et alii, Comentários ao código civil brasileiro – vol X, Rio: Forense, 2006, p. 345.

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terceiros. A preposição é um bom exemplo de que devemos nos acautelar contra o velho vício francês, de confundir todas as modalidades de representação com a voluntária (ideologia do contratualismo). 4) A disposição mais geral de nosso direito, no que tange ao preposto, é a que comanda a responsabilidade civil objetiva do preponente. Em seguida, vêm as normas que tratam do preposto do empresário. Depois, outras que tratam de situações particulares: o preposto na conciliação e na audiência; o preposto do transportador; o preposto do empregador em face de outros empregados; o preposto do leiloeiro etc. Sequer nos atrevemos a parecer exaustivos. Essa variedade de disposições mostra que o instituto é mais importante do que parece; e que o legislador e a doutrina são devedores de abordagem mais sistemática e orgânica, que lhe dê o devido prestígio e facilite seu reconhecimento e aplicação.

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