O pretexto da intenção pícara

July 25, 2017 | Autor: A. Marcos Quinupa | Categoria: Literature
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O PRETEXTO DA INTENÇÃO PÍCARA Antonio Marcos Quinupa Graduado em Letras Acadêmico do Curso de Direito 1. O pretexto da intenção Pícara 2. O Romance Picaresco 2.1 Uma definição 2.2 Um histórico 3.Os Clássicos Picarescos 3.1 El Lazarillo de Tormes. 3.2 Guzmán de Alfarache 3.3 El Buscon 3.4 Desdobramento do romance picaresco 4.Memórias de Um Sargento de Milícias 4.1 Memórias de Um Sargento de Milícias por Antonio Candido 5.Memórias Sentimentais de João Miramar, Oswald de Andrade 5.1 Campos da crítica sobre João Miramar 5.2 Memórias Sentimentais de João Miramar e o pretexto da intenção da intenção pícara 6. Considerações Finais

Este artigo tem o objetivo de estudar a presença do picaresco na obra Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade. O interesse em desenvolver esse estudo, deu-se a partir da apresentação de um trabalho desenvolvido e apresentado em sala de aula, em que foram „detectados‟ traços do „romance picaresco‟ na obra de Oswald de Andrade. Considere-se aqui o contexto histórico em que surgiram e se desenvolveram romances clássicos, como: Lazarillo Del Tormes, Guzmán de Alfarache e El Buscon, nos séculos XVI e XVII. ABSTRACT The article that follows has the objective to study the presence of the picaresque in Memórias Sentimentais de João Miramar of Oswald de Andrade. The interest in developing the present study came up after a presentation of a scholar paper, developed and presented in classroom, what carries features from the picaresque novel detected in Oswald de Andrade´s above mentioned work. Likewise, the present study considers the historical context in which picaresque classical novels emerged and progressed in the XVI & XVII centuries. Este artigo tem o objetivo de estudar a presença do picaresco na obra Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade. Romance característico dos

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Clássicos Espanhóis Lazarillo Del Tormes, Guzmán de Alfarache e El Buscon, que representou o início de um novo estilo literário dando um novo significado e importância à literatura espanhola. A denominação do „romance picaresco‟ é em função de uma nova forma narrativa oposta ao relato dos cavaleiros andantes, em que os protagonistas narram suas estórias, então os leitores passaram chamar esses romances de „pícaro‟. O interesse em desenvolver o estudo, deu-se a partir da apresentação de um trabalho desenvolvido em sala de aula, em que foi „detectado‟ traços do „romance picaresco‟ na obra de Oswald de Andrade. Considere-se aqui o contexto histórico em que surgiram e se desenvolveram romances clássicos nos séculos XVI e XVII.

1. O PRETEXTO DA INTENÇÃO PÍCARA Todo gênero narrativo está caracterizado por certos rasgos das estruturas sociais e dos personagens, desde o Império Romano, com as narrativas de Petrônio, em Satiricon, passando pelos clássicos romances picarescos espanhóis, Lazarillo Del Tormes, Guzmán de Alfarache e El Buscon, perpassando a transição noveleiraromântica com Don Quixote de la Mancha, chegando a Oswald de Andrade, instigando características permeantes da figura do pícaro transpondo tempo e espaço. Elucidar tais inferências será transpor no tempo e no espaço aspectos interessantes e intrigantes, não com objetivo de esgotar a figura do pícaro, nem como um conjunto de obras, mas sim como pretexto. Podemos pensar em Graciliano Ramos: construiu em Paulo Honório, de São Bernardo, tragicamente, a figura do “pícaro” como picareta, com humores melancólicos hipocrateanos, termos aplicados à biologia no tratamento dos humores, dos ânimos (bom e mau humor). Hipócrates, célebre médico da Grécia Antiga (460 a.C. –377 a.C., observava os quatros humores: o sanguíneo, o colérico, o fleugmático e o melancólico, este se manifesta através da bílis negra, ocasiona um comportamento satúrnico, refletido na personagem de Paulo Honório, que assume como culpa “desta vida agreste que me deu uma alma agreste” 2, 1

A partir das análises de BERGSON, atribui-se a fonte do cômico à percepção de mecanismo reproduzido na ação humana: “daquilo que é mecânico calcado no que é vivo”. “As posturas, gestos e

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pois desgraçadamente nascera pobre e sendo funcionário da fazenda São Bernardo, tenciona tornar-se proprietário dela. Em oposição ao personagem José Chelinini, ambiguamente cômico2, Chelinini, criado por Oswald de Andrade, em Memórias Sentimentais de João Miramar, “um perdido, mas comprava aos quilos a apologética dos colegas”. É nesses moldes cômicos (bom humor) que se constitui o pícaro oswaldiano. Assim, Paulo Honório, como Lazarillo de Tormes tiveram como ponto de partida o mesmo pretexto, aquele para se tornar proprietário de São Bernardo, este com intenção de adquirir um guia – “En este tiempo vino a posar al mesón um ciego, el cual, pareciéndole que yo sería para adestralle, me pedió a mi madre”.

2. O ROMANCE PICARESCO 2.1 Uma definição Em O Romance Picaresco, de Mário González, o autor debruça seus estudos na figura do „pícaro‟ a partir do romance espanhol. González apresenta em seu trabalho que foi na Espanha, por volta de 1550 à 1650, que surgiu a denominação do „romance picaresco‟ em função de uma nova forma narrativa oposta ao relato dos cavaleiros andantes, em que os protagonistas narram suas histórias, a partir de então os leitores passaram a chamar esses romances de „pícaros‟ e os críticos batizaram de „romance picaresco‟. Seu trabalho é estabelecido a partir dos romances clássicos espanhóis, Lazarillo Del Tormes, Guzmán de Alfarache e El Buscon, como a „picaresca européia‟, para os romances que procuram resgatar as tradições estabelecidas na Espanha o autor considera-os como neopicaresco e paraneopicaresco os romances que tratam apenas de alguns aspectos existentes nos romances picarescos, considerado pelo autor como uma aproximação „forçada‟ das características picarescas.

movimentos do corpo humano são risíveis na exata medida em que esse corpo nos faz pensar em mera mecânica” (BERGSON, 1899). Patrice Pavis, 1999. 2

RAMOS, Graciliano. Apud. BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix. 1994 (pág. 403).

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Segundo González, devemos inferir à Picardia não como uma obra, nem mesmo como um conjunto de obras, mas sim como um intertexto; correlação entre os textos analisados pelo autor. Para entendimento e análise de obras com tais inferências, justifica-se a sugestão do autor, no entanto, à análise do pícaro em pleno desenvolvimento, percebe-se a necessidade de o vermos como um pretexto, pois o pícaro sempre está às voltas de um objetivo. O termo pícaro significa um tipo inferior de servo, sobretudo ajudante de cozinha, sujo e esfarrapado, o pícaro vai se movendo, mudando de ambiente, variando a experiência e vendo a sociedade em conjunto. Como os pícaros, Leonardo vive um pouco da sorte, sem planos nem reflexão, mas ao contrário deles nada aprende com a experiência, um elemento importante picaresco é essa espécie de aprendizagem que amadurece e faz o protagonista recapitular a vida à luz da consciência, motivo pelo qual segue em frente. Quanto ao anti-pícaro, portanto, nesta e outras circunstâncias, como a de não procurar e aguardar pelos superiores, constituem a meta suprema do malandro espanhol. Os pícaros são dominados pelo senso do espaço físico e social, pois o pícaro anda por diversos lugares, por vários grupos e camadas. O fato de ser um aventureiro desclassificado se traduz pela mudança de condições é a mudança de padrões, e fazendo dele um modelo de ficção realista moderno. Desse modo podemos colocar na esteira do „romance picaresco‟ Satiricon, de Petrônio, como um romance „pré-picaresco‟ devido das características dos romances na cena: em que Gitão, um Rei Romano, oferece um banquete, e Trimálquio, estudante sem dinheiro, em suas andanças por Roma, participa do banquete oferecido sem ser convidado, inventou que tinha consultado um médico, e este não sabia dos males de que padecia o estômago. Sua desculpa era para alimentar-se, “creedeme, cuando el flato Del estómago se sube la cabeza, todo el cuerpo padece” (PRETÔNIO, 1965, pág. 65).

2.2 Um histórico

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O Romance picaresco surgiu no fim do século XVI e início do século XVII apresentando aspectos realistas para uma literatura que já estava saturada da novela cavalheiresca medieval, que já tinha seu fim decretado devido às circunstâncias econômicas e sociais da Espanha da época. Lazarillo de Tormes representou o início de um novo estilo literário dando um novo significado e importância à literatura espanhola. À origem dessa novela não se tem conclusão definitiva, “para muchos comentaristas, la picaresca se originó como uma reacción que se oponiá al pastor idealizado y al héroe caballeresco, um personaje antiheroico y asperamente real: el pícaro” (Pablo Jauralde, 2001). Também não existe, para González, nem mesmo uma definição do que seja a novela picaresca, por algumas razões: (i) a grande quantidade de obras que se aproximam do modelo picaresco dificultam sua aproximação com o mesmo „tema‟, (ii) para que se possa estabelecer um critério de avaliação da picardia, faz-se necessário a análise de diversos pontos da obra. Alguns críticos acharam lógico estabelecê-los a partir de Guzmán, por ser ele o protótipo da picardia; outros a julgam como um todo homogêneo e abstrato; alguns querem estabelecer uma fórmula narrativa, no entanto, ninguém se arrisca a criar uma definição. González afirma que a picaresca não deve ser confundida como uma obra e sim ser vista como um intertexto; o que para Bakhtin é a função do texto deixar ver ou entrever as mesmas informações entre textos, também devemos estabelecer períodos que podem vincular-se a diferenciações histórico-geográficas, que marcam fases de evolução. Em outro caso, a novela picaresca é um reflexo de uma realidade e não ela em si, ainda que vejamos a picardia como a narrativa de uma única fábula com pequenas variantes ou que a limitemos, em seu discurso, a uma estreita receita sem alternativas, devemos entender que o romance picaresco traz um tipo de discurso que integra o pícaro a um contexto histórico. Sua narrativa é desnuda e intensa, não se parece em nada com a extensa série de aventuras e conselhos morais das novelas de cavalaria. A picardia é desenvolvida em ambientes marginalizados da sociedade, que tem como figura principal, sempre, um anti-herói, uma pessoa pertencente aos últimos escalões da sociedade. Também ela se completa com multidões de caracterizações de

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outros personagens que vão aparecendo na vida do protagonista e toda ela contribui a dar uma visão distinta e mais real da vida cotidiana nas cidades. À margem da individualidade própria de cada obra, as novelas picarescas compartem uma série de características comuns: (i) o protagonista é o pícaro, representa uma categoria social, procedente dos baixos fundos que, a modo de antiherói é utilizado pela literatura como contraponto ao ideal cavalheiresco. Sua linha de conduta é marcada por astúcia, enganos e engenhosidade. Vive à margem dos códigos de honra próprios das classes altas da sociedade de sua época. Sua liberdade é seu grande bem. Uma liberdade condicionada por sua ascendência, que o protagonista relata ao leitor para que compreenda sua norma de vida, condicionada ou determinada, em parte por suas coordenadas existenciais, (ii) caráter autobiográfico, o protagonista narra suas próprias aventuras, começando por sua genealogia, que resulta ser a mais antagônica à estirpe de cavaleiro. A forma autobiográfica estará em função da orientação de crítica social que exercerá a novela picaresca; ao projetar o autor sua personalidade sobre uma personagem fictícia, isto permite-lhe expor com maior liberdade suas próprias idéias, (iii) dupla temporalidade, o pícaro aparece na novela sob uma nova perspectiva: como autor e como ator. Como autor se situa em um tempo presente que volta ao passado e narra uma ação, cujo desenlace conhece de antemão, (iv) estrutura aberta, o pluralismo de aventuras que se narram poderiam continuar. Não há nada que o impeça porque as distintas aventuras não têm entre si travamento argumentativo que a que dá ao protagonista, (v) caráter moralizante, cada novela picaresca viria a ser um grande exemplo de conduta. A picardia implica, em muitos casos, na predicação de exemplos, nos quais se narra a conduta desapropriada de um indivíduo que, finalmente, é castigado ou se arrepende, (vi) caráter satírico, a sátira é um elemento constante na narrativa picaresca. O protagonista trafega pelas escalas sociais a cujo serviço se colocará como criado, o que permitirá conhecer os acontecimentos mais íntimos de seus amos. Tudo será narrado pelo pícaro com atitude crítica. Seus males são, ao mesmo tempo, os males de uma sociedade onde impera a cobiça e a avareza, em prejuízo aos necessitados que pertencem às camadas mais baixas da sociedade.

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3. OS CLÁSSICOS PICARESCOS

3.1 El Lazarillo de Tormes A forma autobiográfica, característica comum nas novelas picarescas, é a primeira nota que caracteriza o relato de ficção do Lazarillo. Lázaro nos relata a história de sua vida. Ele nasce em Salamanca, próximo ao rio Tormes no seio de uma família pobre, e desde pequenino se vê obrigado a servir a vários amos (cegos, clérigo, nobre, frade, etc). Lázaro acaba tornando-se independente e, já casado, desfruta de uma situação que ele considera próspera. Neste relato autobiográfico surge duas categorias temporais: um “ahora” que se explica através de um “antes”. Lázaro dirige seu relato a uma pessoa de classe superior Vuestra Merced a quem conta seu “acaso”: as duvidosas relações entre a mulher de Lázaro e o Arcipreste de Sant Salvador cuja casa ele freqüenta. Este caso é o núcleo configurador em torno do qual se organiza a matéria narrativa. A unidade estrutural gira em torno da divergência de todo o passado no ser presente de Lázaro que conta sua vida para justificar seu “caso”, um caso de honra. Lázaro não faz nada além de justificar uma conduta moral muito particular aprendida dos lábios de sua mãe: “arrimarse a los buenos, aquellos que lê ayudan a sobreviver”. Os sucessos fundamentais de sua vida expressam o processo educativo do protagonista, como uma evolução do ensino de perversão. Lázaro de infame origem, educado na astúcia e no engano pelo cego, busca uma honra que lhe proporcione em proveito uma vida estável. Na novela há dois planos narrativos: o do autor e o do protagonista. Os dois planos interagem por meio da ironia, embora em sentidos diferentes. “Lo que sé decir a voacé es que trata de verdades, y que son verdades tan lindas y tan danosas, que no pueden haber mentiras que se le igualen”. O autor „perverte‟ numa linguagem mentirosa o que para o narrador é tido como verdade. Lázaro conta sua vida como se fora um triunfo, enquanto o autor demonstra o

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contrário. Lázaro, sob sua perspectiva, considera que chegou a um bom porto; para o autor, pelo contrário, aquela situação é o cume da abominação. Sendo assim, o estilo de Lazarillo está escrito dentro do “estilo humilde”, a origem social de Lázaro exige que o autor siga as normas da poética de estilo baixo. Cada estilo deveria se acomodar a certos temas e a certas personagens para conseguir o “decoro”, qualidade artística que consiste em caracterizar as personagens de acordo com sua procedência estamental. Por isso o autor coloca o pícaro e o mundo que o rodeia dentro de uma verossimilitude narrativa, de acordo com sua personalidade e o meio em que ele vive. Isso porque a língua deve ser um reflexo deste pano de fundo social, daí que abundam as vulgaridades e um estilo coloquial, com o que se tenta uma maior proximidade a situação existencial do protagonista e de seu meio. El Lazarillo de Tormes começa com Lázaro narrando a história de sua infância. Seu sobrenome provém do lugar onde nascera, próximo ao rio Tormes, portanto Lázaro de Tormes. Aos oito anos, seu pai, Tomé González, foi acusado de roubo e obrigado a servir um cavalheiro numa luta contra os mouros, acabando por perder a vida nessa expedição. Lázaro e sua mãe, Antona Pérez, foram viver numa cidade onde cozinhava para estudantes e lavava roupa para os cavaleiros do comendador de Magdalena. Sua mãe começou a ter relações com um dos cavaleiros do comendador, Zaide, o que não demorou muito para Lázaro aceitar, pois percebia que com ele a comida sempre melhorava. Logo nascera o irmão, por parte de mãe, mas a felicidade não durou muito, Zaide foi embora com seu filho. Em uma hospedaria Antona conhece um cego e por demonstrar-lhe confiança, permite que Lázaro o acompanhe como guia. O cego era muito astuto e, mais que qualquer outro, o ensinou as dificuldades da vida. O cego também era muito avarento, apenas dava-lhe somente o de comer. Cansado de viver com o cego, Lázaro engana seu amo fazendo com que ele bata com a cabeça num poste, assim livra-se do cego. Em Maqueda, Lázaro se encontra com um clérigo, aceita o trabalho de ajudar o padre a celebrar as missas, apesar desse trabalho lhe trazer muita dificuldades. O clérigo também era muito avarento e não o alimentava direito, até que Lázaro se cansou e decidiu roubar ao clérigo o pão da missa para alimentar-se. Inicialmente o clérigo pensava que eram os ratos que estavam comendo

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os pães, quando descobriu despediu Lázaro. Chegando a Toledo, ainda ferido pela surra que levou do clérigo, por quinze dias viveu de esmolas. Um dia topou com um escudeiro de boa aparência que foi seu próximo amo. Sua nova casa era um lugar com pouca iluminação e poucos móveis. Lázaro então se deu conta de que o escudeiro, embora tivesse boa aparência, era pobre. Para poder comer, Lázaro tinha que mendigar e dar parte do que recebia ao escudeiro. Um dia o governo dessa região onde vivia o proibiu de mendigar pelas ruas e Lázaro, por sorte, conseguiu comida com as vizinhas. O escudeiro esteve sem comer por oito dias, até que conseguiu um real para mandar Lázaro buscar comida. Mais tarde os donos da casa do escudeiro vieram cobrar o aluguel, o escudeiro disfarçou e fugiu. Lázaro mais uma vez ficou sem amo. Estando à procura dum quarto as vizinhanças levaram Lázaro ao frade de Mercedes, seu próximo amo. O frade gostava muito de caminhar e fazer visitas, caminhava tanto que os sapatos de Lázaro se arrebentaram e o frade deu-lhe novos sapatos, que não duraram oito dias. Porém, o frade foi o primeiro amo que lhe dera um par de sapatos. Lázaro cansado de segui-lo, “y por otras cosillas que no digo”, o abandonou. Lázaro se encontra com um buldeiro, que vende “bulas eclesiásticas”. O buldeiro enganava e trapaceava, junto a uma fonte, as pessoas tratando de convencê-las de que seus ideais eram corretos, por exemplo, fez um dramalhão para convencer as pessoas a acreditar em milagres. Depois de quatro meses, Lázaro o deixou. Seu próximo amo foi um professor pintor de “pandero”, com o qual durou muito pouco, uma vez entrando na igreja, encontrou um capelão, seu próximo amo. O capelão deu-lhe um asno e quatro cântaros para ir vender água na cidade. Este foi seu primeiro trabalho, ganhando comissões aos sábados. Esteve nessas condições por quatro anos e, economizando pouco a pouco, pode comprar sua espada e uma indumentária. Depois de ter melhorado sua aparência, Lázaro deixou o capelão e também seu trabalho. Lázaro ficou como alguacil, por pouco tempo, pois o trabalho lhe pareceu muito perigoso. Procurando firmar-se, ter uma vida estável, começou a divulgar e posteriormente vender vinhos, até que um dia encontrou Arcipreste de São Salvador, vindo a casar-se com uma das criadas deste. Vivia bem com sua esposa em uma casa ao lado da do Arcipreste. Logo começaram a formar boatos de sua esposa com Arcipreste, mas

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Lázaro não deu atenção, para que sua felicidade não fosse abalada. Finalmente chegou um período de estabilidade em sua vida, para ele não havia nada melhor. Como vimos anteriormente, uma das identidades do pícaro é a sátira, Lazarillo, de forma velada, apresenta uma reflexão do comportamento adotado na época. Num primeiro momento critica essa sociedade, e sem perceber, acaba por adquirir o mesmo comportamento. A partir de então, Lazarillo, passa a não mais criticar e acredita que se tornou uma pessoa de bem. A partir de Lazarillo, percebe-se o afastamento da narrativa cavaleiresca da época. 3.2 Guzmán de Alfarache Guzmán de Alfarache. Cinqüenta anos após Lázaro surgir com as narrativas de suas adversidades surge Mateo Alemán, um representante típico da literatura picaresca, germe da semente implantado na obra Lazarillo de Tormes. A primeira parte de Guzmán de Alfarache surgiu em Madri, 1599, com bastante êxito e várias reedições. Em Sevilha 1602, devido ao grande número de reedições Alemán retoca seu trabalho e, em 1604, publica a segunda parte, a continuação é história de um franco atirador valenciano: Martí Luján. O terceiro teve nova edição em Madri 1987, por José María Micó, com poucas alterações do texto original. Dentre os três tomemos o segundo como referência, pois é o que aponta a relevância do pícaro. Como Lazarillo, Guzmán se encarrega de narrar sua história, a mãe casada com filho de aventureiro sem escrúpulo que seduz a mãe de Gusmão. Guzmán, prolixo, narra por meio de metáforas e parábolas, como se tornou pícaro a caminho de Sevilha e como foi explorado pelos vendeiros, tendo toda a responsabilidade pelas compras de alimento, tanto da venda quanto da casa do vendeiro, responsabilidade que facilita seu ingresso na marginalidade, começando a roubar em pequenas quantidades. Começa a jogar a dinheiro, trapaceando também no jogo. Deixa o vendeiro e vai para Madri, onde com o pouco que ganha mal consegue se alimentar, estando maltrapilho não consegue trabalho, junta-se com os meninos de rua para conseguir comida distribuída no “convento”, aprendendo suas safadezas, supera-os, até que consegue, picarescamente, a graça de um frade como degustador de vinho, produzido pelos frades, como tende a não assumir compromisso, acaba

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regredindo com furtos e é dispensado dos serviços. Foge para Toledo, compra roupas novas e perde parte dinheiro e, com o resto, vai até Almargo e depois à Itália, onde faz amizade com um Capitão, depois se torna criado deste. Em Gênova, estando maltrapilho, a família não o reconhece e ainda lhe dá uma surra. Vai para Roma, se faz de mendigo, de doente e engana os médicos, mesmo assim os médicos o ajudam arrumando trabalho com um cardeal, por conta dos jogos outra vez vai parar na rua. Entra a serviço de um Embaixador Francês se mete em confusão acusando o filho do prefeito, inocentemente, de usar suas roupas que foram roubadas. Ao sair de Roma tem Sayavedra aos seus serviços e manda seus baús para Siena, estes são roubados por Sayavedra, Guzmán começa a fazer trapaças pela cidade e é preso, ao sair da prisão sai disfarçado para Milão. A caminho de Milão encontra com Sayavedra, perdoa-o pelo roubo e ficam amigos e roubam um comerciante. Guzmán e seu criado vão para Gênova. Lá Guzmán encontra-se com a família e lhe dá muitos presentes, depois os rouba, além dos presentes, é claro, o dinheiro e as jóias. Vão para Espanha, a caminho Sayavedra se joga no mar. Despede-se do capitão dizendo que vai para Sevilha, mas vai para Saragoça, depois Madri, onde casa-se, perde todo o dinheiro. A mulher falece e Guzmán recebe o dote da mulher. Em Alcalá faz curso de Artes e Teologia para ministrar missas, depois casa-se novamente. Termina os cursos é degredado à Madri, levando consigo sua esposa. Vão á Sevilha e encontra a mãe de Guzmán muito mal, Gracia, sua esposa foge para Itália com um Capitão. Volta a roubar e é preso, sendo condenado a remar nas galeras. Encontra seu inimigo Soto, que o convida para uma rebelião, como Guzmán era servo do Capitão, denunciou a tentativa de fuga, como isso Guzmán ganha liberdade e os outros são esquartejados. No texto de Guzmán percebemos o quanto ele é astuto, muitos mais se compararmos com Lazarillo, e esperto, seu objetivo é ascender socialmente. Torna-se um ladrão famoso cuja pena é ser condenado a remar nas galeras até a morte, que para sua felicidade não acontece, sendo liberto. Com relação a Lazarillo, percebemos também uma violência acentuada, finaliza o romance com o esquartejamento dos amigos. 3.3 El Buscon

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27 anos após a publicação de Guzmán de Alfarache, em 1626 é publicado El Buscon, e são conservados ainda três manuscritos: no Museo Galdiano, na Real Academia Española e na Biblioteca Menéndez Pelayo de Santander. Segue edições de 1965 por F. Lázaro Carreter, em Salamanca, 1988 por Edmond Cros, em Madri, 1990 uma publicação melhorada da edição de Madria da utliza dessa edição Pablo Jauralde, em 2001, para sua publicação, edição esta utilizada aqui para nosso estudo. Como os demais romances, em El Buscon, o protagonista Pablo, que narra sua história. “Yo, señora, soy de Segovia; mi padre se llamó Clemente Pablo”. Filho de um barbeiro ladrão e de uma mãe que, “Dicen que era de muy buena cepa”, era uma bruxa e alcoviteira. Logo é abandonado pela mãe e criado por uma velha que lhe tinha afeição. Contrariando seus pais, Pablo, vai à escola, mesmo sabendo que teria conflito, pois era pobre. Ir a escola era privilégio dos ricos, e ele era filho de um barbeiro e uma bruxa. Contudo faz amizade, principalmente com dom Diego, filho de dom Alonso, um Coronel. Dom Alonso acaba por mandar seu filho aos cuidados de Cabra, que tinha por função criar filho de cavaleiros, e junto Pablo, a ponto de um dos outros meninos que lá viviam acabar morrendo por maus tratos. Voltaram para a casa de dom Alonso, receberam bons tratos como banho, cama, tratamento médico e, principalmente, comida. Dom Diego é enviado a Alcalá para terminar seus estudos e Pablo o acompanha, é em Alcalá após passar por um grande trote que Pablo revela-se com pícaro, “resolverme de ser bellaco con los bellacos, y más si pudiese que todos”. Então enquanto “Levantáronse todos y yo tomé por achage los azotes para no vestirme”. Quando os amigos saem para a escola Pablo fica a fazer travessuras, vai ao vendeiro ficando com o troco, começa a jogar a dinheiro e a trapacear o companheiro, até que dom Diego recebe carta de seu pai pedindo que volte e que deixe Pablo, mas Pablo também recebe carta de sue tio, pedindo que retorne para receber sua herança, seu pai foi assassinado e sua mãe fora presa por bruxarias. Pablo vende tudo que tem e consegue uns 600 reales e volta para Segóvia, receber sua herança e volta para Madri. A caminho de Segovia encontra um clérigo, poeta muito velho, um soldado e um ermitão e num jogo de cartas, como é trapaceiro, ganha o pouco que os dois possuem e ainda zombando dos perdedores e fazendo-se passar como bom cristão, amigo do

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padre que os acompanha. Ao chegar em Segovia, na entrada encontra o corpo do pai ainda exposto, e o tio em arruaça pela rua. O tio convida-o até sua casa, onde dará uma festa, provavelmente com o dinheiro do irmão deixado para Pablo. Por fim consegue reaver do tio 300 ducados, de herança deixada pelo e parte para Madri, a caminho, encontra um homem de boa aparência, chamado Toribio Rodriguéz, Pablo julga ser um fidalgo, mesmo não sendo passa-se por ser, e pensa que Pablo também o é. Ambos fingem ser o que não são para conseguir o que querem ser, seguem para a Corte (Madri), juntam-se a „amigos‟ e desmascarados vão presos, Pablo como tinha dinheiro, suborna o carcereiro e livra-se da prisão deixando seus „amigos‟. Instala-se numa pensão, comporta-se como galente para seduzir a filha do hospedeiro. Aqui Pablo revela o nome que originou sua falsa identidade, don Ramiro de Guzmán, segundo seus „falsários‟ amigos, era um nome de procedência de fidalguia. Na pensão, onde estava hospedado, se mete em confusão, motivo para não pagar as contas, e ainda como „pretexto‟ finge que está sendo preso pela Inquisição e foge com todos seus pertences. Nessa fuga, vestido como um nobre, com pajens procura por uma esposa, uma mulher proveitosa, rica; já que estava em Madri. Encontra com outros, tal qual a ele vestido, e vão a caminho do Prado, da Corte. Na festa, conversando com uma senhora, faz-se passar por dom Filipe, refugiado da família que queriam casar-lhe contra sua vontade, com uma mulher feia somente pelo dote, a senhora como tinha uma sobrinha, separada de um mau casamento, ficou encantada com as palavras de dom Filipe Tristán, porém, mal sabia dom Filipe Tristán que essa senhora era prima de dom Diego, seu antigo amo que acaba por desmascará-lo e lógico, outra sura. Todo esfarrapado, volta à ultima pensão que esteve hospedado, recebe várias lições de moral, por fim, o pouco dinheiro que tem serve para curar as feridas e pagar a pensão, então, na rua junta-se com mendigos e também pede esmolas, até que decide voltar para Toledo. A caminho encontra uma “compañía de farsantes”, faz sucesso como ator, ganha bastante dinheiro e volta para Sevilha. Na hospedari encontra um amigo de Alcalá, Mata, que o apresenta a outros pícaros; como o encontro seria para celebrar celebres pícaros e rufiões, Mata dá lições de comportamentos à Pablo não ter comportamentos parecidos ao de „maricón‟. Após a festa, bêbados na rua, Pablo por

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tomar atitudes parecidas às deles, rufiões, torna-se um deles e para mudar de vida sorte e melhorar a sorte, tenciona a ir à Índia, por fim “Y fueme peor, como vuestra merced verá en la segunda parte, pues nunca mejora su estado quien muda solamente de lugar y no de vida e costumbres”. Temos em El Buscon um autêntico pícaro, condensa os demais analisados de forma original. É o que desempenha as funções básicas de um pícaro: serve como criado e cozinheiro. O próprio Pablos fingindo ser nobre, faz-se chamar por Ramiro de Guzmán. Trapaceiro, finge não ter para fingir que tem muito. Assume a postura de pícaro quando resolve ser velhaco como os outros velhacos, mais que todo se possível. E dentro da nossa proposta de estudo aqui feita, o pretexto da intenção pícara, é El Buscon quem traz essa característica quando assume, depois de ter levado um trote em Alcalá, que fingindo-se de ferido usa de „pretexto‟ para na se levantar. 3.4 Desdobramento do romance picaresco Depois do século XVII, houve influência do romance picaresco em várias partes do mundo, mas no Brasil apenas no século XIX houve uma manifestação de características picarescas na obra Memórias de Um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Na Alemanha surge Der Abenteuerliche Simplicissimus (O aventureiro Simplicissimus), publicado por Hans Jacob Christoffel von Grimmelshausen, em 1669, Die Landstörtzerin (A vivandeira Courasche) de Grimmelshausen3. Na Inglaterra surgem os romances The life and death of Mr. Badman, de John Bunyan, 1680; Moll Flanders, por Daniel Defoe, segundo González os pícaros aparecem como um marginal e a sociedade oferece caminhos para que se reintegrem.

4. Memórias de Um Sargento de Milícias Memórias de Um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida é uma obra inovadora para sua época, apesar de ser considerado um romance de costume do romantismo brasileiro, abandona a visão da burguesia urbana para retratar o povo em

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GONZÁLEZ, Mairo. O romance picaresco. São Paulo: Ática. 1988.

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sua simplicidade. Um romance retrata a época de D. João VI no Brasil com malícia, humor e sátira. O autor não descreve somente o ambiente, como introduz juízos de valores pelo próprio conhecimento que tinha da época reproduzida pela narrativa de um amigo: Antônio César Ramos, português, funcionário do Correio Mercantil, exsoldado da Guerra Cisplatina, sargento de milícias, quem, nas horas de folga contava sobre o “tempo do rei”. As Memórias ferem a “sensibilidade romântica” a partir de seu herói Leonardinho, um anti-herói, se comparado aos modelos românticos; melhor dizendo um herói picaresco, que vê a sociedade de baixo para cima, estando à margem desta, com outro ângulo de visão. Essa aproximação percebe-se à partir das origens de Leonardinho: “filho de uma pisadela e de um beliscão”, seus pais – Leonardo Pataca e Maria da Hortaliça – conheceram-se na viagem entre Portugal e Brasil, quando desembarcaram Maria já estava grávida; ainda pequeno Leonardinho é abandonado pelos pais, por suas atitudes escandalosas e de vagabundagem. Como uma perfeita crônica de costumes, há sempre uma preocupação do autor em tudo datar e localizar, pois acima dos figurantes está os acontecimentos, o núcleo de tudo, ou como afirma Alfredo Bosi: “Figurantes e não personagens movem-se no romance picaresco do nosso Manuel Antônio Almeida que, ao descartar-se dos sestros da psicologia romântica, enveredou pela crônica de costumes, onde não há lugar para a modelagem sentimental a heróica” (BOSI, 1994). Os fragmentos televisivos das Memórias geram uma leitura dinâmica devido estilo novelístico, gerando um expectativa de acordo com a tensão que o autor gera na narrativa. 4.1 Memórias de Um Sargento de Milícias por Antonio Candido Na Dialética da Malandragem, Antonio Candido propõe uma aproximação, da obra de Manoel Antonio de Almeida, com o romance picaresco a partir da manifestação de Mário de Andrade, dizendo que a obra de Almeida não era precursora do Realismo e sim, “um romance de tipo marginal, afastado da corrente média das literaturas” (CANDIDO, 1978). Assim, Candido concorda que as Memórias são um romance picaresco, feito à maneira dos espanhóis, como ocorreu por toda a Europa do século XVII e parte do século XVIII, em que “o próprio pícaro narra suas aventuras,

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fecha a visão da realidade em torno do seu ângulo restrito, a voz na primeira pessoa é um encanto ao leitor, transmitindo uma falsa candura que o autor cria” (CANDIDO, 1978), o pícaro é ingênuo e a brutalidade da vida é o que aos poucos o vai tornando esperto e sem escrúpulos, quase como defesa, sua condição de servil provém da origem humilde e desamparo da própria sorte, com relação às mulheres, certa misoginia, como também, não tem sentimentos, são freqüentemente obscenos e usam palavrões. O termo pícaro significa um tipo inferior de servo, sobretudo ajudante de cozinha, sujo e esfarrapado, o pícaro vai se movendo, mudando de ambiente, variando a experiência e vendo a sociedade em conjunto. Como os pícaros, Leonardo vive um pouco da sorte, sem planos nem reflexão, mas ao contrário deles nada aprende com a experiência, um elemento importante picaresco é essa espécie de aprendizagem que amadurece e faz o protagonista recapitular a vida à luz da consciência, motivo pelo qual segue em frente. Quanto ao anti-pícaro, portanto, na circunstâncias não procurar e aguardar pelos superiores, constituem a meta suprema do malandro espanhol. São dominados pelo senso do espaço físico e social, pois o pícaro anda por diversos lugares, por vários grupos e camadas. O fato de ser um aventureiro desclassificado se traduz pela mudança de condições é a mudança de padrões, e fazendo dele um modelo de ficção realista moderno. O livro de Manuel Antônio não tem qualquer baixeza de expressão, traz um minucioso estudo de sentimento amoroso, irônico e satírico. Outra semelhança com o pícaro é o amadurecimento e a aprendizagem, mas Leonardo conclui que nada se aprende, mesmo sendo promovido, reformado e dono de cinco heranças que lhe veio nas mãos sem se mover uma palha. Antonio Candido refere-se à posição de Mário de Andrade, que considera as Memórias “um romance de tipo marginal, afastado da corrente média das literaturas” e acrescenta a Leonardo o título de primeiro “malandro a entrar na novelística brasileira”. Candido afirma que Leonardo é um “malandro que seria elevado à categoria de símbolo por Mário de Andrade em Macunaíma” (CANDIDO, 1978).

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5. Memorias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade Memorias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, começou a ser escrito em 1912 e foi publica em 1924, é considerado o primeiro grande romance da prosa modernista brasileira. É composto por um total de 163 capítulos, destruindo a linearidade do enredo da leitura. O estilo cinematográfico permite um „passeio‟ na infância e na adolescência de Miramar, suas amizades escolares e relações familiares, sua viagem precoce â Europa e as experiências dessa aventura com Miramar de volta ao Brasil apresentam-se suas relações de trabalho, negócios e amizades seus crescentes desacerto com a esposa paralelamente ao seu envolvimento com a amante Rolah, motivo esse, que nos leva a perceber no personagem Chelinini o alterego de Miramar, pois Chelinini não apresenta dificuldades afetivas, nem conjugais. Os fragmentos são compostos de variados tipos de discursos como carta, citações, impressões, diálogos, descrições, relatos e poemas. As associações que relaciona uns aos outros se desfaz facilmente como nas imagens de cinema. Segundo Alfredo Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira, Oswald de Andrade satiriza, sob o pseudônimo de Miramar “o Brasil da aristocracia cafeeira aburguesada nas grandes capitais” e também o “reflexo literário da modernidade mundana a que o escritor pertencia como filho pródigo” (BOSI, 1994). Com essa afirmações o crítico aponta na obra a presença do ideológico, constatando a preocupação do autor em denunciar, ironicamente, o grupo social que pertence. Bosi sugere que Memórias Sentimentais de João Miramar é a prosa que poderia seguir a poesia de Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade pelo estilo telegráfico, rupturas sintáticas, simultaneidade, sincronia, ordem do subconsciente e pelos neologismos. Observa ainda, o aspecto artístico da obra, faz também sua referência à questão ideológica do texto, isso porque a proposta de Oswald é uma avaliação através dos procedimentos que compõe artisticamente, o que determina uma clara manifestação contrária a tudo que representa estabilidade e estagnação vivida em sua época.

5.1 Campos da crítica sobre João Miramar

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No artigo Miramar na Mira, de Haroldo de Campos que serviu de prefácio da oitava edição (1996), depara-se com uma atitude de quase ressentimento pela atenção Macunaíma e a pouca dispensada a Memórias Sentimentais de João Miramar. Comparando as duas obras, Haroldo de Campos vai insistir que Mário de Andrade usa procedimento lingüísticos já empregado por Oswald em Miramar, o que Mário havia já confessado. Assim, Campos confere a Memórias Sentimentais de João Miramar, o título de “o primeiro cadinho de nossa prosa nova”. O crítico compara Oswald de Andrade a James Joyce e Thomas Mann em relação ao emprego da paródia e da segmentação. Haroldo busca assim, uma origem comum para as obras desses três escritores: o Manifesto Futurista de Marinetti. A leitura de Haroldo de Campos posiciona-se claramente a favor do estético e o considera inovador, mais fundador. Essa prosa nova é o novo valor, é uma ideologia na medida que altera os rumos do era vigente até então. Essa competências atribuídas a Memórias Sentimentais de João Miramar e sua aproximação a grandes autores da literatura mundial, proposto por Haroldo de Campos, confere à obra statos de cânone na história da literatura brasileira. Haroldo chama atenção para a linguagem da obra, para afirmar os propósitos da escrita de Oswald. O estilo empolado do prefácio, que não combina com a linguagem do resto do romance é intencional, na realidade é um ante-prefácio, em que Machado Penumbra satiriza a função do escritor, caracterizando o romance como um „ensaio satírico‟.

5.2 Memórias Sentimentais de João Miramar e o pretexto da intenção da intenção pícara Percebe-se a presença picaresca em Memórias Sentimentais de João Miramar em Chelinini, o personagem move-se nos capítulos, como as demais personagens, sem sofrer hierarquização, compondo as memórias de Miramar. Desde a infância nos bancos escolares, Chelinini procura sempre estar próximo de Miramar, não era necessariamente seu amigo, mas esforçava-se. Seu maior contato era com Pita, quem Chelinini subornava por alguns trocados e alguns sorvetes por lições que Pita que

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fonava-lhe ao ouvido. Esses são os contatos de Chelinini e Miramar, enquanto crianças no Brasil. Chelinini volta a ter contato, depois de adulto, com a família de Mirimar por ocasião de hotéis e fazendo companhia em restaurantes em Paris. Ele acaba flertando com Cotita, prima de Miramar, jovem propensa a frivolidade, porém a intenção de Chelinini é aproximar-se de D. Gabriela tia/sogra de Miramar. Chelinini, estratégicamente, não perde oportunidade, salva D. Grabriela de um acidente, no ralto de confronto entre Paris e Alemanha, ocorrências da Primeira Guerra Mundial. A partir de então é Miramar quem sofre com as cartas de Nair, sua prima, relatando que Chelinini além de influênciar D. Gabriela, manipula as filhas. Até que Nair em outra carta notifica Miramar do casamento de Chelinini e D. Gabriela e mais, solicitando à família mais dinheiro. Na volta do casal ao Brasil Miramar não os visita, já tem conhecimento da desilusão da sogra pelo casamento, situação contrária a de Chelinini. Miramar evita contato com o casal, desviando-se das ruas para não encontrá-los, pois tem notícias de que seu sogro/padastro pavoneia-se pela cidade. Por fim, como é Nair a porta-voz de Miramar, é ela também que, pela sua esperteza, dá o crédito ao pícaro oswaldiano às „avessas‟, pois o contrato matrimonial que redigira custou a Chelinini “três contos mensais de aluguel marideiro com cem de jóia e jóias” (ANDRADE, 1996, pág. 100), mas Chelinini diverte-se da situação como se a conseqüência não lhe causasse algum dano.

6. Considerações finais O objetivo de estudar a presença do picaresco na obra Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, considerado o primeiro grande romance da prosa modernista brasileira. Tomamos como ponto de partida para nosso estudo a obra picaresca inaugural Lazarillo Del Tormes seguida por Guzmán de Alfarache e El Buscon, personagens que situam-se em ambientes de grandes diferenças sociais, com poucos arrecadando muito e muitos arrecadando poucos.

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Para finalizar propomos uma reflexão justaposta sobre o romance picaresco que nos traz uma sensação de dever cumprido. Pois além de ensinar, informar e acrescentar mais informações literárias aos nossos leitores, podemos observar uma mensagem de consciência crítica: sempre existiu e sempre existirá pícaros na sociedade; ou seja sujeitos marginalizados que transgridem as normas sociais postas sob o manto estamental. Bibliografia ANDRADE, Oswald. Memórias Sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo, 1996. ________. Marco Zero I Revolução Melancólica? ________. Marco Zero II Chão. Rio de Janeiro: Civilização, 1971. ________ Ponta de Lança. Rio de Janeiro: Civilização, 1971. BOAVENTURA, M. Eugenia. 22 por 22: A Semana da Arte Moderna Vista pelos Seus Contemporâneos. São Paulo: Edusp. 2000. GONZÁLEZ, Mario. O Romance Picaresco. São Paulo: Ática, 1988. JAURALDE, Pablo. La Novela Picaresca. Madrid: Espasa. 2001. Lazarillo de Tormes. PML Ediciones. 1994. LÓPEZ, J. Garcia. História de La Literatura Española. Barcelona: Vicens. sd. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva. 1999. PETRONIO. El Satiricón. España: Obras Maestras, 1965.

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