O primeiro movimento da Sonatina Dodecafônica para dois violões de Marcos Alan, sob a ótica Tripartite (Nattiez): análise indutiva

Share Embed


Descrição do Produto

O primeiro movimento da Sonatina Dodecafônica para dois violões de Marcos Alan, sob a ótica Tripartite (Nattiez): análise indutiva Sergio Vitor Ribeiro UFRJ – [email protected]

Resumo: O presente artigo é fruto de uma pesquisa que está sendo desenvolvida no PPGM/UFRJ, onde analisamos, sob a ótica tripartite de Molino/Nattiez (1975), obras do compositor Marcos Alan (1956-1973), a fim de explicitar seus procedimentos poéticos e suas principais influências. A Semiologia Musical Tripartite sugere seis momentos analíticos possíveis: a) Imanente ou análise do nível neutro; b) Poiética indutiva; c) Estésica indutiva; d) Poiética externa; e) Estésica externa; f) Comunicação musical. Neste primeiro relatório, passamos pela metade do processo descrito acima, ou seja, pelas famílias de análise “a)”, “b)” e “c)”, evidenciando as práticas criativas de Marcos Alan e levantando hipóteses sobre como sua música será percebida, através do resultado parcial da análise do primeiro movimento da Sonatina Dodecafônica para dois violões. Palavras-chave: Semiologia musical. Dodecafonismo. Marcos Alan. Violão. The first moviment of Sonatina Dodecafônica for two guitars by Marcos Alan, from the perspective Tripartite (Nattiez, 1975): the inductive analyses Abstract: This article is the result of a research that is being developed in the PPGM/ UFRJ, in which we analyze, from the tripartite viewpoint of Molino / Nattiez (1975), works by composer Marcos Alan (1956-1973), in order to explain his poetic procedures and his main influences. The Musical Semiology suggests six possible analytical moments: a) Immanent or analysis of the neutral level; b) Inductive poietic; c) Inductive aesthetic; d) External poietic; e) External esthetics; f) Musical communication. In this first report, we pass through half of the process described above, that is, the analysis families “a)”, “b)” and “c)”, in order to highlight the creative practices of Marcos Alan and to raise hypotheses about how his Music may be perceived. Thus, we present the partial result of the analysis of the first movement of the Sonatina Dodecafônica for two guitars. Key-words: Musical Semiology. Twelve-tone technique. Marcos Alan. Guitar.

Introdução Com este artigo, iniciamos uma série de análises dedicadas à música do compositor e violonista Marcos Alan (1956-1973). Direcionados pela Semiologia Tripartite de J. J. Nattiez (1975), abordaremos diferentes aspectos de sua obra, a fim de explicitar seus procedimentos poéticos e suas principais influências, para que Anais do III Simpósio de Práticas Interpretativas

97

Anais do III Simpósio de Práticas Interpretativas assim possamos compreendê-la. Obviamente, seria inviável uma análise minuciosa de todas as composições de Alan. Por isso, elencaremos peças das diferentes fases criativas do compositor apontadas por José (2015:143-144), em que encontramos linguagens composicionais diversas. Resumidamente, a teoria analítica de Jean-Jacques Nattiez (1975; 1987) está baseada no modelo semiológico tripartite de Jean Molino (1975), que vê uma forma simbólica por três prismas: a dimensão poiética, a dimensão estésica e o nível neutro, abandonando o antigo modelo clássico de comunicação, no qual o receptor é um ser passivo. Segundo Nattiez, a semiologia é o estudo da especificidade do funcionamento das formas simbólicas, isto é, a análise da organização material de seus signos (a análise do nível neutro) e dos fenômenos de remissão provocados por esses signos: essas remissões se repartem entre o polo poiético e o polo estésico. A análise do nível neutro descreve formas e estruturas mais ou menos regulares [...]; as análises poiéticas e estésicas descrevem e interpretam processos. (NATTIEZ, 2002: 16). Trazendo esta ideia para o universo musical, temos: a partitura como o nível neutro – ou imanente, como prefere Nattiez –; o processo de composição como o nível poiético; a interpretação e percepção da obra como o nível estésico. Nesta perspectiva, não há necessariamente uma transmissão de informações do emissor para o receptor, pois “o poiético não tem vocação para se comunicar” (MOLINO apud NATTIEZ, 1990:17) e “a percepção é, aqui, um processo ativo de reconstrução de mensagem” (NATTIEZ:1990:54). Partindo destes três níveis assumidos pela semiologia de Molino, Nattiez classifica seis diferentes famílias de análise musical possíveis: a) Imanente ou análise do nível neutro: é a análise que aponta a configuração imanente da obra sem observar a pertinência poiética ou estésica daquilo que foi discernido; b) Poiética indutiva: é a análise que busca extrair da partitura (nível neutro) conclusões acerca do processo composicional; c) Estésica indutiva: quando o analista aponta aquilo que hipoteticamente será ouvido pelo ouvinte; d) Poiética externa: é a análise que busca informações externas a partitura (esboços, cartas, cadernos de estudo, etc) para auxiliar a análise da configuração da obra; e) Estésica externa: inversamente, parte-se dos depoimentos dos ouvintes para tentar saber como a obra foi percebida; e f) Comunicação musical: aqui o analista considera a análise imanente tão relevante quanto as análises poiética e estésica. Observe, na figura abaixo, o processo detalhado por Nattiez (Fig.1)

98

Anais do III Simpósio de Práticas Interpretativas

Figura 1. Esquema analítico apresentado por Nattiez (2002). Neste artigo, passaremos pela metade do processo descrito acima, ou seja, pelas famílias de análise “a)”, “b)” e “c)”, a fim de evidenciar as práticas criativas de Marcos Alan1 e levantar hipóteses sobre como sua música será percebida. Para isso, apresentaremos o resultado parcial da análise do primeiro movimento da Sonatina Dodecafônica para dois violões2. Análise 1- O Nível neutro, ou imanente O primeiro movimento da Sonatina de Marcos Alan pode ser dividido em quatro seções. A primeira abrange os compassos 1-8 e é caracterizada pela utilização de quatro formas da matriz dodecafônica da principal série da obra, como veremos em tópico posterior, e pela textura predominantemente monofônica, em que partes da linha melódica são apresentadas alternadamente em ambos os violões. A segunda seção, scherzando, abrange os compassos 9-34 e é caracterizada pela utilização de três novas séries dodecafônica e suas respectivas formas retrógradas, e ainda pela textura mais densa do que a encontrada na seção anterior, com aparições frequentes de acordes em ambos os instrumentos. A terceira seção, compassos 3541, é a repetição variada da primeira. A quarta e última seção, compassos 42-47, 1 2

Por se tratar da abordagem dos níveis neutro e poiético e estésico indutivos da obra, não apresentaremos informações a respeito da biografia do compositor, algo que faremos quando da análise poiética externa. A obra, ainda inédita, será estreada pelo Duo Dístico (do qual o autor do artigo é integrante) em dezembro de 2016.

99

Anais do III Simpósio de Práticas Interpretativas volta a apresentar a mesma textura da segunda seção, mas com a apresentação de três novas séries. Finalmente, os dois últimos compassos, 48-49, classificados aqui como ‘coda’ apresentam a escala cromática em quase toda a extensão do violão, do Mi1 ao . 2- Poiética e estésica indutivas Nesta subseção, optamos por misturar os comentários referentes às duas famílias de análises indutivas, pois na visão do próprio Nattiez, não seria possível a separação entre a percepção e a semântica durante uma audição (2005: 37). Assim, se em algum momento deduzirmos que o compositor teve a intenção de criar um contraste rítmico, por exemplo, seremos levados a avaliar se tal contraste será ou não percebido pelo ouvinte. Em suma, nossas observações serão direcionadas a três aspectos: células, hemíolas e séries. Para a identificação das células encontradas na peça, observamos suas configurações rítmicas, seus contornos melódicos e suas articulações. A primeira célula, logo no primeiro compasso, é caracterizada por uma figuração rítmica de três semicolcheias, apresentando variações no contorno melódico no decorrer da peça. Por isso, as identificaremos com a letra ‘A’ mais o segmento de contorno3 apresentado em cada uma de suas variações. São elas: A; A, A, A, A e A (Fig.2). A segunda célula, que chamamos de célula ‘B’ (Fig.2), é ritmicamente contrastante à primeira, pois nesta ouvimos naturalmente um acento métrico a cada três notas, enquanto na segunda célula o acento é percebido a cada duas notas, ou seja, ambas as células, se superpostas, caracterizariam uma hemíola. Como veremos, esta relação é recorrente e por isso uma das características mais marcantes da peça. A terceira célula, identificada com a letra ‘C’, é quase uma variação da célula B, já que a unidade de tempo continua sendo ternária, mas agora sem a repetição de notas (Fig.2).

3

100

“O fundamento básico da teoria dos contornos é a abstração dos parâmetros, que, a partir da relativização dos valores absolutos, permite o uso de uma notação numérica que expressa a organização hierárquica dos elementos constituintes do contorno. Tal notação consiste na ordenação dos elementos do menor (ou mais simples) notado como zero até n-1, no qual n é o número total de elementos diferentes no contorno. Um contorno < 1 2 0 >, por exemplo, demonstra uma estrutura musical que se inicia no valor intermediário, segue ao maior e conclui no menor, o que pode ser aplicado a diferentes parâmetros musicais” (MOREIRA, 2016:100). Para mais informações sobre Contorno Melódico ver Friedman (1985) e Morris (1987).

Anais do III Simpósio de Práticas Interpretativas

Figura 2. Células A, B e C da Sonatina Dodecafônica de Marcos Alan. E, finalmente, as duas últimas células, ‘D’ e ‘E’, são tricordes que diferem apenas na configuração rítmica. Enquanto uma é formada por três acordes em colcheias, a outra é formada por quatro acordes em colcheias pontuadas (Fig.3). Observe que estas células se superpostas também caracterizariam uma hemíola, assim como na relação entre as células ‘A’ e ‘B’.

Figura 3. Células D e E da Sonatina Dodecafônica de Marcos Alan. Durante todo o primeiro movimento da Sonatina Dodecafônica, Marcos Alan explora a dualidade entre as unidades de tempo binária e ternária. Mas como não há definição de fórmulas de compasso na peça, tal dualidade é percebida graças ao emprego de diferentes recursos pelo compositor, como a articulação das notas, a distribuição melódica entre os intérpretes, o contorno melódico, além das mudanças nas figuras rítmicas. Veja no exemplo abaixo (Fig.4): 101

Anais do III Simpósio de Práticas Interpretativas

Figura 4. Recursos geradores da dualidade “pulso binário ← → pulso ternário” na Sonatina Dodecafônica de Marcos Alan. Note no exemplo de distribuição acima, que a forma como Alan divide o material melódico entre os intérpretes pode levar o ouvinte a sentir o pulso de três em três notas, pois cada entrada origina um acento natural, gerando uma unidade de tempo binária (considerando-se a semínima pontuada como a unidade de tempo, sempre). Mas observe que, logo em seguida, o compositor altera o contorno da melodia, repetindo as notas Sol, Lá Sol, Lá e Fá no segundo violão, levando o ouvinte a perceber um acento a cada duas notas, gerando uma unidade de tempo ternária. Em seguida, faremos algumas observações referentes à técnica serial empregada por Marcos Alan. A série geradora4 da peça é formada por dois tricordes da classe de conjuntos [012], seguidos de dois tricordes da classe de conjuntos [014]. Consequentemente, os dois hexacordes da série se complementam, pois pertencem à mesma classe de conjunto [012345]. Veja, abaixo (Fig.5):

Figura 5. Classes de conjuntos encontradas na série geradora da Sonatina. Dodecafônica de Marcos Alan. 4

102

Tal série é utilizada também no terceiro movimento da obra.

Anais do III Simpósio de Práticas Interpretativas Alan, inclusive, inicia a obra apresentando o primeiro hexacorde da série em sua forma normal, ou seja, em sequência cromática. Como mencionado em tópico anterior, na primeira seção, encontramos quatro formas da série geradora: OB (B 0 1 2 3 4 5 9 8 A 7 6) e sua forma retrógrada RB; R5 (0 1 4 2 3 B A 9 8 7 6 5); e IB (B A 9 8 7 6 5 1 2 0 3 4). A figura abaixo apresenta a estrutura da série original invertida utilizada pelo compositor no início da segunda seção. Note que a série mantem a mesma estrutura da forma original (Fig.6).

Figura 6. Classes de conjuntos encontradas na inversão da série geradora na Sonatina Dodecafônica de Marcos Alan. Ademais, o mais importante para o desenvolvimento da obra é a organização de seus tricordes. No exemplo abaixo (Fig.7), observe que as classes de notas mais graves de cada acorde (B 8 2 4) fazem parte do primeiro tetracorde da nova série apresentada no compasso seguinte, a qual identificamos como iiOB5 . As notas medianas dos tricordes em IB (A 7 1 0) formam o segundo tetracorde da série iiOB, enquanto as notas mais agudas dos tricordes IB (9 6 5 3) formam o tetracorde final da nova série.

Figura 7. Criação da nova série iiOB a partir dos tricordes da série IB. 5

Os números romanos que antecedem a representação das séries têm a função de informa a ordem de aparição dentro da peça. Por exemplo: iiOB é a segunda série geradora apresentada na peça, enquanto a forma iiRB é sua forma retrógrada. O mesmo serve para as séries iiiO9, ivO4, vO3, viO0 e viiO0, que aparecem mais a frente.

103

Anais do III Simpósio de Práticas Interpretativas A série iiOB não tem relação estrutural com as séries anteriores. A única explicação para sua aparição na peça é mesmo o fato de ter sido gerada a partir da organização vertical dos tricordes de IB, como vimos acima. E o compositor procede da mesma maneira em outros trechos. Cinco novas séries foram apresentadas por Marcos Alan, utilizando-se do mesmo recurso. A partir da série IB, o compositor cria a terceira série original iiiO9 (9 6 5 3 A 7 1 0 B 8 2 4) (Fig.8). De sua forma retrógrada, iiiR9 (4 2 8 B 0 1 7 A 3 5 6 9), o compositor gera a quarta série original, ivO4 (4 B 7 5 2 1 A 6 8 0 3 9). Da mesma maneira, de ivR4 (9 3 0 8 6 A 1 2 5 7 B 3), Alan cria a quinta e a sexta séries da peça, vO3 (3 A 2 4 9 6 5 B 0 8 1 7) e viO0 (0 8 1 7 9 6 5 B 3 A 2 4). E, enfim, da série vO3, Alan extrai a sétima série original da obra, viiO0 (0 7 5 A 8 9 B 2 1 6 3 4).

Figura 8. Mais um exemplo da geração de novas séries por Alan. Aqui, o compositor cria a série iiiO9 a partir dos tricordes da série IB. Finalizando, Alan apresenta a escala cromática – lembrando a forma como iniciou a obra – por quase toda a extensão do violão (do Mi1 ao Si. No entanto, interpretamos este conteúdo como sendo os primeiros hexacordes de duas séries encontradas na matriz dodecafônica da série inicial, as séries AO (A B 0 1 2 3 4 8 7 9 6 5) e O4 (4 5 6 7 8 9 A 2 1 3 0 B) (Fig.9). A peça encerra na nota  tocada pelo primeiro violão, enquanto o tricorde (4 B 7) é realizado pelo segundo violão, consequentemente, formando o tetracorde (4 7 A B) – um Mi menor tocado em cima de um Si (Fig.9) – que não tem qualquer relação com a série geradora da peça. Ademais, o referido tricorde pertence à quarta série original, ivO4.

Figura 9. Hexacordes encontrados na ‘Coda’ da Sonatina Dodecafônica de Marcos Alan. 104

Anais do III Simpósio de Práticas Interpretativas Considerações finais Como antecipamos no início do artigo, restringimos a análise apenas aos níveis imanente, poiético e estésico indutivos. Com isso, demos o primeiro passo para o entendimento da poética de Marcos Alan, apontando, principalmente, suas maneiras de trabalhar com a textura rítmica e com a técnica serial. Continuaremos a pesquisa aplicando esta abordagem analítica em outras obras selecionadas, buscando adquirir informações suficientes para que possamos criar relações entre os processos criativos recorrentes em suas obras, dando inicio, então, a análise poiética externa. Referências JOSÉ, Maria das Graças dos Reis. O discurso da escrita moderna para o violão de concerto no Brasil: análise comparativa de 5 Prelúdios de Heitor Villa-Lobos e 5 Prelúdios de Marcos Alan (1940-1973). Universidade Federal do Rio de Janeiro – Instituto de História – Programa de Pós-Graduação em História Comparada, 2015. Tese de Doutorado. MOLINO, Jean. Fait musical et sémiology de la musicque. In: Musique en Jeu, n. 17, 1975, pag. 37-62. MOREIRA, Daniel. Contornos musicais e textura: perspectivas para análise e composição. In: Anais do IV SIMPOM 2016 – Simpósio Brasileiro de Pós-Graduandos em Música. 2016, pag. 99-109. NATTIEZ, Jean-Jacques. De la sémiologie à la musique, Montréal: Cahiers du départment d’études littéraires de l’Université du Québec á Montréal, nº 10, 1987. ______ Music and Discourse: toward a semiology of music. Princeton University Press, New Jersey, 1990. NATTIEZ, Jean-Jacques. O modelo tripartite de semiologia musical: o exemplo de La Cathédrale Engloutie, de Debussy. In: Debates nº 6, Cadernos do Colóquio, PPGM/CLA/ Uni-Rio. Tradução de Luiz Paulo Sampaio, 2002, pag. 7-39. NATTIEZ, Jean-Jacques. O combate entre Cronos e Orfeu. Ensaios de semiologia musical aplicada. Tradução de Luiz Paulo Sampaio. São Paulo: Via Lettera Editora e Livraria, 2005.

105

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.