O princeps Augusto e as Relações Políticas com a Sociedade Espartana/ The princeps Augustus and your political relationship with Spartan Society

June 30, 2017 | Autor: L. Bantim de Assu... | Categoria: Ancient History, Hegemony, Ancient Greece (History), Augustus, Roman imperialism, Esparta, Nabis, Philopoemen, Esparta, Nabis, Philopoemen
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Caesar Augustus Entre Práticas e Representações

Esta publicação é o resultado das parcerias: Projeto Antiguidade: Maria Regina Candido (Direção) Projeto Editorial Kairós: Carlos Eduardo da C. Campos, Luis Filipe B. de Asumpção e Renan M. Birro (Direção)

Caesar Augustus Entre Práticas e Representações

Organizador

Carlos Eduardo da Costa Campos & Maria Regina Candido

Departamento de Línguas & UERJ-NEA Vitória/Rio de Janeiro 2014

Copryright © 2014. Todos os direitos desta edição estão reservados a Carlos Eduardo da Costa Campos, 2014. Capa: Renan Marques Birro. Editoração e Diagramação: Carlos Eduardo da Costa Campos, Luis Filipe Bantim de Assumpção e Renan Marques Birro. Revisão: Karine Lima da Costa e Renan M. Birro Conselho Editorial: Anderson Martins Esteves – UFRJ Giselle Marques Câmara – PUCRJ José Maria G. Neto – UPE Maria Regina Candido – UERJ Maricí Martins Magalhães – MHN Moacir Elias Santos - UNIANDRADE Pedro Paulo A. Funari - UNICAMP Renan M. Birro – UNIFAP Assessoria Executiva: Alair Figueiredo Duarte – CEHAM/UERJ Carla Lavinas – NEA/UERJ Liliane C. Coelho - UNIANDRADE Luis Filipe Bantim de Assumpção – CEHAM/UERJ Vinicius Zavalis – NEA/UERJ Paula Aranha – NEA/UER – MHN Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C186c Campos, Carlos Eduardo da Costa & Candido, Maria Regina Caesar Augustus: entre práticas e representações / Carlos Eduardo da Costa Campos & Maria Regina Candido Vitória/Rio de Janeiro: DLL-UFES/UERJ-NEA, 2014. Inclui bibliografia ISBN 978-85-61857-17-2 1. César Augusto 2. Práticas e representações 3. História 4. História Antiga 5. História Medieval 6. História da Ásia 7. História Contemporânea I. Título: Caesar Augustus: Entre práticas e representações. CDD: 941 CDU: 94

Índice Prefácio, ix

Maria Luiza Corassin & Moisés Antiqueira

Apresentação, xv Ana Teresa Marques Gonçalves

Parte I I. Atenas sob o domínio do imperator Cesar Augusto, 1 Maria Regina Candido & Alair Figueiredo Duarte II. O Princeps Augusto e as relações políticas com a sociedade espartana, 25 Luis Filipe Bantim de Assumpção III. L’Egitto e i poteri di Augusto: una breve riflessione sulle Provinciae Caesaris, 51 Davide Ambrogio Faoro IV. Espaço e poder no principado augustano: a criação da província da Lusitânia em perspectiva, 65 Airan dos Santos Borges

Parte II V. Religious policy and the rule of Augustus - Between political exploitation and righteous restoration, 85 Christoph L. Hesse

VI. Práticas sacrificiais humanas por Caio Otávio? Uma proposta de debate, 111 Carlos Eduardo da Costa Campos VII. Augusto, Tito Lívio e as ambiguidades do divino Rômulo, 129 Moisés Antiqueira VIII. Avgvstales e outros Collegia sacerdotais sob Avgvstus: testemunhos epigráficos na Campania, 153 Maricí Martins Magalhães IX. A Domus Augusta no Vicus Sandaliarius: imagem e presença augustana num altar romano (2 AEC), 173 Claudia Beltrão da Rosa & Debora Casanova da Silva X. Augusto, a Gália e o culto imperial, 191 Tatiana Bina

Parte III XI. O gênero do poder: Plutarco e a contenda de Otávio e Cleópatra, 215 Gregory da Silva Balthazar XII. Sexualidade e política à época de Augusto: considerações acerca da ‘lei Júlia sobre adultério’, 239 Sarah Fernandes Lino de Azevedo XIII. Augusto e a escravidão, 257 João Victor Lanna & Ygor Klain Belchior XIV. “Nunquam ex malo patre bona filia”: a questão sucessória no principado de Augusto, 285 Henrique Modanez de Sant’Anna

Parte IV XV. Augusto índico: a apropriação da imagem de Augusto pelos soberanos kushans nos sécs. 1-2 EC, 299 André Bueno XVI. Pax Augusta e pax Christi na literatura escandinava medieval, 317 Renan Marques Birro XVII. O bimilenário do nascimento de Augusto na Espanha franquista (1939-1940): leitura e escrita da História entre o passado e o presente, 341 Glaydson José da Silva & Rafael Augusto N. Rufino XVIII. Augusto e a coleção do Museu Histórico Nacional: alguns exemplos numismáticos, 367 Cláudio Umpierre Carlan

O Princeps Augusto e as relações políticas com a sociedade espartana

Luis Filipe Bantim de Assumpção1 A maneira pela qual a Antiguidade, por vezes, nos foi transmitida no decorrer de nossa formação escolar lida com a noção de “História em Gavetas”. Ou seja, o que deveríamos saber sobre as sociedades do Mediterrâneo Antigo se encontra bem delimitado em compartimentos, tais como as gavetas, nas quais podemos consultar sempre o que acharmos necessário para o nosso cotidiano. Tal perspectiva produz certos problemas históricos, como a visão de que as sociedades se encontram – praticamente – isoladas no tempo e no espaço. Deste modo, a “História compartimentada em Gavetas” acabou nos fornecendo modelos de análises que limitavam a compreensão de seus interlocutores. Falamos aqui a um nível fundamental e médio das instituições de ensino brasileiras, onde os alunos “ingerem” o Mundo Antigo em blocos demarcados que se iniciam pela Mesopotâmia, passando pelo Egito, tangenciando a Hélade Clássica (com ênfase para Atenas) e finalizando com Roma. Esse modelo deixa transparecer que tais sociedades não existiram concomitantemente. Ou ainda, que com o passar do tempo uma deu lugar a outra através 1  Mestre pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade do Estado

do Rio de Janeiro. Docente do Curso de Especialização em História Antiga e Medieval – UERJ, assim como membro do Núcleo de Estudos da Antiguidade – UERJ e do ATRIVM – UFRJ.

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de uma perspectiva evolucionista, pautada na formação, no desenvolvimento, na decadência e na substituição por um grupo de sujeitos mais fortes. Em virtude do exposto, nos propomos a mapear como a sociedade de Esparta desenvolveu as suas interações políticas no decorrer do século IV a.C., até o período em que Roma estabeleceu a sua hegemonia no Mediterrâneo. Após tal contexto, almejamos discorrer sobre as relações políticas que a sociedade espartana manteve com o princeps Augusto (séc. I a.C. a I d.C.). Destacamos que a sociedade de Esparta foi um dos grandes expoentes político-culturais da Hélade entre os períodos Arcaico e Clássico. Contudo, após a sua derrota militar para os tebanos em Leuctra (371 a.C.) e a perda da região da Messênia, Esparta não conseguiu recuperar a hegemonia2 que outrora deteve entre os helenos. Embora a pólis espartana tenha se envolvido em outros embates pelo mundo helênico, a mesma não resistiu à consolidação político-militar da Macedônia. Como argumentou o pesquisador Paul Cartledge, os esparciatas3 liderados pelo basileu Agis III, tentaram se revoltar contra a autoridade macedônica e foram definitivamente derrotados em Megalopólis, pelo exército de Antípatro (331 a.C.)4. Podemos destacar que da segunda metade do século IV a.C. ao final do período Helenístico5, a pólis de Esparta perpassou por um conjunto de modificações políticoinstitucionais que pretendiam restabelecer a sua hegemonia junto 2  Este conceito será debatido ao longo deste texto. 3  Em linhas gerais, os esparciatas seriam espartanos adultos, filhos de pai e mãe espartana, que teriam perpassado pelo processo de formação comum e com recursos para arcar com as despesas do seu philition. Na pólis de Esparta estes eram os cidadãos com plenos direitos políticos. ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim de. As Relações de Poder na pólis de Esparta através dos escritos do período Clássico. In: CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa; BIRRO, Renan Marques. Relações de Poder: da Antiguidade ao Medievo. Vitória: DLL/UFES, 2013a, p.86-96. 4  CARTLEDGE, Paul. The Spartans – an Epic History. London: Pan Books, 2003.p.217. 5  Como verificamos em outra ocasião, o período Helenístico terminaria após a vitória de Caio Otávio na batalha do Ácio, em 31 a.C. ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim de. As periodizações da Hélade – considerações acerca dos conceitos de Arcaico, Clássico e Helenístico. In: Nearco: revista eletrônica de Antiguidade. Vol. I, Ano VI, nº 1, 2013b, p.110-111.

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às sociedades helênicas. Ao interagir com o discurso6 de Plutarco acerca dos basileus Agis IV e Cleomenes III, o historiador Nigel Kennell enfatizou que parte das representações construídas sobre Esparta se focou na argumentação de que a sua desestruturação ocorreu devido ao não cumprimento dos valores políades ancestrais7. A assertiva pode ser endossada ao verificamos que os esparciatas e os basileus lacedemônios foram representados pelos pensadores clássicos8 como os sujeitos que alcançaram a sua proeminência política por seguirem a tradição de seus antepassados. De forma semelhante, ainda que Esparta tenha adequado os seus valores em decorrência do contexto histórico, o tradicionalismo de suas práticas9 políticoculturais não permitiram que esta pólis readquirisse a sua hegemonia frente aos helenos. No final do século III a.C., os enfrentamentos que Esparta travou com a Macedônia e a Liga Acaia10 acabaram enfraquecendo a “pólis de Licurgo”, em uma perspectiva política, econômica e 6  Na perspectiva de Pierre Bourdieu, o discurso seria o lugar em que se desenvolvem as relações interpessoais por meio do ato da fala, no intuito de transmitir valores, modos de pensamento e práticas no interior de um território. BOURDIEU, Pierre. O Senso Prático. Trad.: Maria Ferreira. Petrópolis: Editora Vozes, 2009, p.94. 7  KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p.170. 8  Aqui podermos citar os discursos de Heródoto (História, I, 65-66) e Xenofonte (Constituição dos Lacedemônios, com exceção do capítulo XIV), os quais afirmaram que os esparciatas e basileus lacedemônios alcançaram o sucesso político-social por seguirem fielmente as determinações do mítico legislador Licurgo. 9  Pierre Bourdieu definiu o conceito de prática como todo e qualquer conjunto de ações que são interiorizadas por um grupo de sujeitos, sendo este passível de utilização em todas as instâncias da sociedade. BOURDIEU, Pierre. O Senso Prático. Trad.: Maria Ferreira. Petrópolis: Editora Vozes, 2009, p.25-26. 10  A Liga Acaia foi uma confederação organizada pelas cidades que formavam a região da Acaia, ao norte do Peloponeso. A mesma teria sido elaborada, no século IV a.C., no intuito de se protegerem de ataques de piratas, provenientes do golfo de Corinto. Com a morte de Alexandre III a Liga Acaia se desfez, sendo reorganizada em 280 a.C. por Arato de Sícion, o qual permitiu que outras cidades integrassem a confederação, ainda que não fossem detentoras da matriz cultural dos aqueus. Referências: http://www.britannica.com/EBchecked/topic/3396/AchaeanLeague (consultado no dia 22 de fevereiro de 2014).

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demográfica. Ainda que no século IV a.C. a sociedade espartana tenha empregado mercenários11 em seus exércitos em virtude da perda de um amplo contingente de seus cidadãos, o contexto do século III a.C. teria agravado essa condição. Tendo em vista os inúmeros insucessos militares e o enfraquecimento de suas instituições políticas, em 207 a.C., Nábis12 se tornou basileu de Esparta. Nos dizeres de Políbio, Nábis teria usurpado a autoridade real de Esparta e acabado com os últimos vestígios da “glória ancestral” espartana, sendo qualificado pelo pensador de Megalopólis como um tirano (POLÍBIO, Histórias, XIII, 6.1-3). Segundo Nigel Kennell, o posicionamento de Políbio a favor da Liga Acaia teria contribuído para uma representação disforizada do governo de Nábis13. Entretanto, podemos notar pelos indícios literários que Nábis tentou reconquistar a posição hegemônica que Esparta, outrora, deteve no Peloponeso. Tito Lívio nos descreveu que Nábis construiu uma muralha ao redor do centro político espartano como um meio de prevenir ataques externos (TITO LÍVIO, História de Roma, XXXIV, 28.2). Convergindo com esse viés, Políbio ressaltou que Nábis teria redistribuído as propriedades do vale do Eurotas e fornecido a cidadania espartana a periecos, hilotas14 e mercenários no intuito de fomentar o poder militar 11  Na definição de Alair Figueiredo Duarte, o mercenário era um guerreiro especializado que combatia em prol de um governo estrangeiro em troca de recursos pecuniários. DUARTE, Alair Figueiredo. Guerra e Mercenarismo na Atenas Clássica. Rio de Janeiro: Rio-DG; UERJ/NEA, 2013.p.57. 12 

Tal como iremos verificar, o espartano Nábis tomou o poder político de Esparta em um contexto de crise, após assassinar o herdeiro ao trono – que nessa ocasião mantinha uma monarquia (DIODORO, Biblioteca de História, XXVII, 1.1). Embora tenha sido denominado por Políbio e Tito Lívio como um tirano, verificamos que durante o seu reinado a sociedade de Esparta presenciou diversas inovações sociais e arquitetônicas.

13  KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p.1778. 14  Os hilotas eram os escravos da pólis de Esparta que não poderiam ser vendidos para o exterior. Os mesmos deveriam trabalhar na terra dos esparciatas, seja na Lacedemônia ou na Messênia e atuavam nas atividades domésticas da casa dos seus senhores. No contexto do período Clássico, os mesmos passaram a atuar como guerreiros junto aos exércitos lacedemônios. ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim de.

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de Esparta (POLÍBIO, XIII, 6-8; XVI, 13). Tais medidas foram interpretadas por Paul Cartledge como um projeto de inovação econômica, com o qual Nábis almejava fortalecer Esparta de tal maneira que esta pudesse enfrentar a Liga Acaia15. No entanto, é importante destacar que no período em que Nábis se manteve como governante de Esparta, os romanos estavam desenvolvendo relações políticas com o Oriente, no qual a Hélade estaria inserida. Desta maneira, os embates promovidos no interior do Peloponeso teriam sido um dos aspectos que motivaram os segmentos dirigentes de Roma a direcionar as suas primeiras atenções a Esparta. Quando a Segunda Guerra Macedônica veio à tona, o basileu Filipe V forneceu a Nábis o controle temporário sobre Argos, fazendo com que o governante espartano se mantivesse a favor da Macedônia e contra os romanos. Segundo o discurso de Tito Lívio, Nábis conseguiu o apoio popular em Argos ao distribuir terras e abolir as dívidas dos seus habitantes (TITO LÍVIO, XXXII, 38.2-8). Entretanto, por volta de 197 a.C., o general romano Tito Quinto Flaminino e o seu irmão Lucio Quinto Flaminino, bem como Átalo de Pérgamo e Nicóstrato da Acaia, se reuniram com Nábis em Micenas. Mediante esta reunião, Nábis se aliou a Tito Quinto Flaminino, enviou tropas para combater os macedônios e estabeleceu uma trégua com a Acaia (TITO LÍVIO, XXXII, 39.5-10). Como enfatizou Nigel Kennell, a derrota da Macedônia e o anúncio romano acerca da liberdade dos gregos tornou a ocupação que Nábis sobre Argos uma situação embaraçosa para Roma16. Tomando como referencial a tradição literária que vigorava em sua época, o escritor Tito Lívio declarou que o governo de Nábis se caracterizava pela crueldade e a ganância, típica das tiranias. Prosseguindo em suas considerações, o mesmo enfatizou que se os romanos tivessem permitido que Nábis controlasse Argos as suas pretensões teriam se estendido por toda a Grécia, fazendo As Relações de Poder na pólis de Esparta através dos escritos do período Clássico. In: CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa; BIRRO, Renan Marques. Relações de Poder: da Antiguidade ao Medievo. Vitória: DLL/UFES, 2013a, p.100-7. 15  CARTLEDGE, Paul. The Spartans – an Epic History. London: Pan Books, 2003, p.235. 16  KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p.179.

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com que a batalha anterior contra Filipe V da Macedônia perdesse o seu sentido de realização (TITO LÍVIO, XXXIII, 44.8-9). A partir dos vestígios documentais e da historiografia moderna, podemos pontuar que as medidas romanas sobre o Peloponeso se tornaram incisivas somente quando os seus interesses políticos foram ameaçados pelos governos locais. No que concerne a Esparta, notamos que os esforços de Nábis em projetar a sua sociedade acabaram tomando proporções maiores do que o seu regime político17 poderia administrar, e com a hegemonia de Roma, os seus esforços acabaram se chocando com a imagem que os romanos pretendiam promover junto aos helenos de então, ou seja, de libertadores da Hélade18. Retomando o discurso de Tito Lívio, Flaminino teria recebido do senado romano um decreto de guerra contra Nábis. Todavia, ao reunir as delegações das cidades helênicas aliadas de Roma, Tito Flaminino orquestrou um discurso onde caracterizou que a decisão por atacar Nábis caberia aos gregos e não aos romanos (TITO LÍVIO, XXXIV, 22.7-13). Mediante os indícios documentais de Tito Lívio, podemos conjeturar que as medidas empregadas por Tito Flaminino se enquadravam na perspectiva teórica da hegemonia. Como nos esclareceu o teórico político Herfreid Münkler, a hegemonia seria a supremacia de um território sobre outros que, embora tenham o direito a participação política em suas interações, são mantidos sob a tutela de uma sociedade de maior preponderância político-militar19. Dessa maneira, o discurso 17  Convergindo com os estudos de Norberto Bobbio, o regime político seria o conjunto de instituições cujas interações ordenam a luta e o exercício do poder, se estendendo aos valores que movimentam essas instituições. LEVI, Lucio. Regime Político. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (Coord.). Dicionário de Política. Trad.: Carmen Varriale. 2 Vol. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p.1081-1084. 18  Como havíamos demonstrado, Tito Lívio declarou que os romanos pretendiam libertar a Grécia do jugo da Macedônia. No entanto, seguindo pelo viés do imperialismo que Roma estava promovendo no Mediterrâneo, transmitir um discurso voltado para a liberdade das sociedades sob a sua influência seria legitimar a sua autoridade através de um mecanismo que não estivesse diretamente atrelado ao uso da força física, mas sim à cooptação política. 19  MÜNKLER, Herfreid. Empires: the Logic of World Domination from Ancient Rome to the

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foi um mecanismo empregado por Flaminino para legitimar a hegemonia de Roma perante os seus aliados gregos. Afinal, o mesmo teria demonstrado que embora os romanos tivessem a preponderância política sobre parte das sociedades do Oriente, lhes cabia determinar a sua conduta. Agindo assim, Flaminino teria fornecido a impressão de que os gregos ainda participavam de suas determinações políticas, angariando a simpatia destes para com Roma. Seguindo por esse viés, ainda que Tito Flaminino tenha recebido ordens diretas para guerrear Nábis, o seu discurso acabava eximindo Roma de qualquer responsabilidade política imediata junto aos gregos. Tomadas às devidas medidas junto aos helenos (gregos), Tito Flaminino reuniu um grande contingente de guerreiros e atacou o norte da Lacedemônia. Enquanto Tito Flaminino iniciava a sua investida militar ao vale do rio Eurotas, Lucio Flaminino preparava um ataque marítimo a Nábis, chegando a receber o apoio voluntário de algumas cidades costeiras da Lacedemônia. Nas palavras de Tito Lívio, Flaminino recebeu o apoio de espartanos exilados, os quais pretendiam reaver as suas propriedades com a morte de Nábis (TITO LÍVIO, XXXIV, 26-28). Após o território litorâneo de Gitión (Gytheion) ter sido conquistado por Lucio Flaminino e a área do vale do rio Eurotas ter sido devastada por Tito Flaminino, Nábis almejou um tratado de paz (TITO LÍVIO, XXXIV, 28-31). Ao interagir com Tito Lívio (XXXIV, 35) e convergindo com Nigel Kennell, podemos resumir que o senado romano determinou a submissão de Nábis a duras penas de guerra, tais como renunciar o território de Argos e outras possessões, retornar os escravos aos seus donos, restaurar os exilados em Esparta e adjacências, limitarse a apenas dois barcos de pequeno porte, além do pagamento de acentuadas indenizações. Segundo Kennell, após estas sanções romanas, Esparta teria se tornado uma espécie de “protetorado” da Liga Acaia20. Retomando os estudos de Herfreid Münkler, podemos notar que as pretensões de Roma para o Oriente já demonstravam o seu viés imperialista, haja vista a expansão de sua esfera de poder para United States. Trans.: Patrick Camiller. Cambridge: Polity Press, 2007, p.06. 20  KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p.179.

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zonas até então tidas como periféricas21. No entanto, como nos esclareceu o romanista Carlos Eduardo da Costa Campos, com a derrota de Cartago na Segunda Guerra Púnica (por volta de 201 a.C.), Roma teria desencadeado o seu interesse expansionista para o Mediterrâneo22. Contudo, Campos enfatizou que embora o imperialismo pressuponha a ampliação dos interesses geopolíticos de uma potência sob outros territórios, o mesmo não lida com o uso exclusivo da força física. Com isso, os romanos teriam empregado uma política de alianças e cooptação junto às elites locais dos territórios conquistados, sendo este um meio eficaz de assegurar a sua dominação. Logo, convergindo com Campos, o imperialismo teria especificidades conforme a sua utilização, em virtude das diferenças culturais das sociedades sob o seu poder23. Conjeturando a partir dos apontamentos de Münkler e Campos, podemos sugerir que o imperialismo foi assegurado por intermédio da prática da hegemonia, que ao ser atribuída às aristocracias locais permitia que Roma cooptasse as suas lideranças. Desse modo, a sociedade romana conseguia garantir a realização dos seus interesses sem o uso exclusivo da coação física nas áreas provinciais. Sendo assim, no momento em que Roma difundiu a prática imperialista pelo Mediterrâneo, a hegemonia se tornou um mecanismo a ser exercido em prol do império, o qual era assegurado pela parcial liberdade político-constitucional de alguns territórios periféricos. Por volta de 192 a.C., quando Roma direcionou as suas atenções para Antíoco da Síria, Nábis tentou reaver as cidades costeiras da Lacedemônia e de Gitión (TITO LÍVIO, XXXV, 25). Tais medidas levaram a atuação de Filopêmen24 no comando 21  MÜNKLER, Herfreid. Empires: the Logic of World Domination from Ancient Rome to the United States. Trans.: Patrick Camiller. Cambridge: Polity Press, 2007, p.8. 22  CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. A Estrutura de Atitudes e Referências do Imperialismo Romano em Sagunto (II a.C. – I d.C.). Rio de Janeiro: UERJ/NEA, 2014, p.52. 23  Ibidem, p.58. 24  Filopêmen foi um general helênico oriundo de Megalópolis, o qual ajudou a reorganizar a Liga Acaia, chegando a comandá-la em diversas ocasiões. Foi elogiado por diversos pensadores posteriores, como Políbio, Cícero e Plutarco. GREEN, Peter. D’Alexandre à Actium – Du partage de l’Empire au triomphe de Rome. Paris: Robert Laffont,1997, p.1028.

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da Liga Acaia e a favor dos interesses romanos, o qual devastou as imediações de Gitión e manteve uma guarnição em espera nas proximidades da cidade (PLUTARCO, Vida de Filopêmen, 14.3-7). Nábis teria solicitado o auxílio da Liga Etólia25 que, secretamente, se manteve a favor dos romanos. Dessa maneira, Nábis acabou sendo traído e morto por um dos guerreiros etólios que havia solicitado (TITO LÍVIO, XXXV, 34-35). Interagindo com os discursos de Tito Lívio e Plutarco, ambos declararam que após a morte de Nábis, Filopêmen adentrou em Esparta e persuadiu os homens mais influentes a fazerem com que a cidade integrasse a Liga Acaia, assim deixando a sua condição de “protetorado” para se tornar um membro da confederação (TITO LÍVIO, XXXV, 37; PLUTARCO, Vida de Filopêmen, 15.2-3). Sendo assim, podemos afirmar que o reinado de Nábis foi marcado por um intenso processo de transformações para a sociedade de Esparta, seja em uma perspectiva política, econômica ou social. Entretanto, devido à difusão do interesse imperialista de Roma junto a Hélade, a política de Nábis não correspondeu às pretensões latinas. Com isso, Roma passou a conter os interesses espartanos, os quais objetivavam estender a sua hegemonia ao Peloponeso. Imersos nessa perspectiva, a conduta de Filopêmen junto a Esparta foi politicamente adequada, tendo em vista que o mesmo era comandante dos guerreiros da Liga Acaia, a qual desempenhava a hegemonia sobre o Peloponeso, em concomitância com a política imperialista romana. De maneira semelhante, a lealdade da Liga Acaia para com Roma lhe assegurava benefícios junto ao império, na mesma proporção que garantia a realização de parte dos interesses imperiais sobre o Peloponeso. Ao integrar a Liga Acaia, uma série de guerras civis acometeu Esparta, fazendo com que Filopêmen selecionasse um contingente 25  Nas palavras dos pesquisadores Klaus Freitag, Peter Funke e Nikola Moustakis, a Liga Etólia seria uma confederação formada por póleis, vilarejos e assentamentos que se arrogavam como detentores de uma matriz cultural Etólia, estando geograficamente situada ao norte do golfo de Corinto. FREITAG, Klaus; FUNKE, Peter; MOUSTAKIS, Nikola. Aitolia. In: HANSEN, Mogens Herman; NIELSEN, Thomas Heine. An Inventory of Archaic and Classical Poleis – an investigation conducted by the Copenhagen Polis Centre for Danish National Research Foundation. Oxford: Oxford University Press, 2004, p.379.

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de guerreiros para conter as manifestações espartanas. Em aproximadamente 188 a.C., Filopêmen invadiu a Lacedemônia pelo norte e exilou trezentos homens apontados como responsáveis pelos embates civis, restabeleceu a cidadania dos espartanos que haviam sido expulsos de seu território, vendeu três mil hilotas e derrubou os muros ao redor de Esparta. Por fim, Filopêmen determinou que os jovens não poderiam ser formados nos moldes ancestrais de treinamento (a agogé), e que outrora foi o responsável pela formação dos esparciatas, ficando submetidos ao modelo educacional dos jovens da Liga Acaia (PAUSÂNIAS, Descrição da Grécia, VIII, 51.3). Complementando a perspectiva de Pausânias, Tito Lívio expôs que Filopêmen não somente proibiu que os jovens de Esparta fossem treinados no habitus26 ancestral, como também as leis e os costumes de Licurgo foram banidos (TITO LÍVIO, XXXVIII, 34). Ao interagirmos com Tito Lívio, este denominou Filopêmen como pretor27, cabendo-lhe a responsabilidade de manter coesos os membros da Liga Acaia (TITO LÍVIO, XXXVIII, 30-31). Devemos nos atentar que Esparta, enquanto membro da Liga Acaia, teve de se adequar aos interesses políticos das demais sociedades confederadas. Com isso, podemos conjeturar que as ações de Filopêmen pretendiam manter a sociedade de Esparta sob a hegemonia da Liga Acaia e conforme os interesses imperiais de Roma. Entretanto, devido aos excessos dos espartanos de então, a supressão dos seus valores ancestrais teria sido um mecanismo empregado por Filopêmen para desestruturar a identidade étnica28 26  O habitus é um sistema de disposições duráveis e transponíveis que atuam como princípios geradores e organizadores das práticas (em geral), das representações e dos modos de pensamento que são objetivamente adaptados às pretensões do segmento hegemônico de um território. BOURDIEU, Pierre. O Senso Prático. Trad.: Maria Ferreira. Petrópolis: Editora Vozes, 2009, p.87. 27  O pretor seria um título que pressupunha a administração das questões judiciárias, assim como também poderia assumir o comando das legiões nas áreas provinciais. LONG, George. Praetor. In: SMITH, William. A Dictionary of Greek and Roman Antiquities. London: John Murray, 1875, p.956. 28  A identidade étnica seria uma representação calcada em pressupostos políticos-culturais, cujo objetivo seria configurar os espaços geográficos com base no interesse do grupo social hegemônico e no princípio de diferenciação étnico que este estabelece

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desta sociedade, minimizando a influência da tradição sobre as atitudes dos homens de Esparta. Desse modo, a punição que Filopêmen teria estabelecido para a sociedade espartana poderia ser compreendida como uma política de repressão, que possui como característica o enfraquecimento das elites locais e o estabelecimento do controle das determinações políticas da Lacedemônia. Estas medidas assegurariam a hegemonia da Liga Acaia sobre o Peloponeso, haja vista a sua interação direta para com a prática imperialista romana. O historiador Nigel Kennell nos esclareceu que Esparta permaneceu sob a hegemonia da Liga Acaia até 146 a.C., quando os romanos determinaram que os espartanos deveriam retomar os seus costumes e as suas leis ancestrais29. Segundo Erich Gruen, o posicionamento de Roma teria gerado a insatisfação dos membros da Confederação da Acaia, os quais deram início a um embate armado contra a incontestável supremacia romana na Hélade30. Como nos esclareceu Sergej Tokhtas’ev, havia no Peloponeso como um todo a presença de uma elite política que era simpatizante aos interesses dos macedônios. Entretanto, com a derrota da Macedônia para os romanos, esses sujeitos passaram a se opor a autoridade imperialista de Roma31. Nesse contexto, segundo o geógrafo Pausânias, Esparta teria mantido uma intensa oposição às decisões da Confederação da Acaia, o que levou o senado romano a intervir no Peloponeso por meio de uma embaixada32. Quando os dirigentes de Roma determinaram que Esparta, Corinto, Argos, Orcômeno arcádia e Heracleia do para com os demais. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A., 1989, p.112-115. 29  KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010.p.182. 30  GRUEN, Erich. The Origins of the Achaean War. In: Journal of Hellenic Studies, Vol. 96, 1976, p.46. 31  TOKHTAS’EV, Sergej. Achaeans, Achaea. In: CANCIK, Hubert; SCHNEIDER, Helmuth. Brill’s New Pauly – Encyclopaedia of the Ancient World. Vol. I – A-Ari. Leiden; Boston: Brill, 2002, p.75. 32  Embora as regiões que compunham o Peloponeso mantivessem a sua identidade geográfica, as determinações políticas dos peloponésios, como um todo, recaíam sobre a Liga Acaia.

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monte Eta deveriam ser liberadas da Liga Acaia, esta declarou guerra aos espartanos (PAUSÂNIAS, VII, 12-14). A oposição que a Confederação da Acaia manteve para com as sentenças de Roma levaram o senado a estabelecer que Lucio Mummio33 conduzisse um contingente de guerreiros para enfrentar as manifestações dos aqueus (PAUSÂNIAS, VII, 15.1). Dialogando com Sergej Tokhtas’ev, este nos elucidou que os romanos submeteram as sociedades da Liga Acaia a então autoridade da província da Macedônia. Entretanto, a confederação teria se mantido em um sentido eminentemente religioso34. Interagindo com Nigel Kennell, após a derrota dos aqueus, Esparta adquiriu o estatuto romano de ciuitas libera35. Complementando as considerações de Kennell, Eckart Olshausen pontuou que a ciuitas libera não estava submetida às determinações políticas da província em que se encontrava, afinal, as suas interações estavam diretamente associadas a Roma36. Logo, Esparta enquanto ciuitas libera mantinha certa autonomia política em relação à administração provincial, porém, devido a sua tradição ancestral, a mesma estava diretamente inserida na prática imperialista romana. Mediante a perspectiva apresentada podemos verificar que a política imperial de Roma não ocorria por um viés estático, podendo se adaptar às circunstâncias e aos seus interesses junto aos territórios subordinados. No contexto das Guerras Mitridáticas (113-63 a.C.), os indícios da documentação literária nos demonstram que parte de uma elite espartana não se mantinha inclinada aos interesses 33  Lucio Mummio foi cônsul romano em 146 a.C., sendo posteriormente considerado como o responsável pela destruição de Corinto. GREEN, Peter. D’Alexandre à Actium – Du partage de l’Empire au triomphe de Rome. Paris: Robert Laffont,1997, p.1024. 34  TOKHTAS’EV, Sergej. Achaeans, Achaea. In: CANCIK, Hubert; SCHNEIDER, Helmuth. Brill’s New Pauly – Encyclopaedia of the Ancient World. Vol. I – A-Ari. Leiden; Boston: Brill, 2002, p.75. 35  KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p.182. 36  OLSHAUSEN, Eckart. Achaia [Roman Province]. In: CANCIK, Hubert; SCHNEIDER, Helmuth. Brill’s New Pauly – Encyclopaedia of the Ancient World. Vol. I – A-Ari. Leiden; Boston: Brill, 2002, p.80

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romanos. Em seu discurso, Apiano de Alexandria afirmou que durante a primeira guerra contra Mitrídates do Pontus, Esparta se aliou ao governante asiático (APIANO, História Romana, XII, 29). Nigel Kennell identificou esse momento entre 90 e 85 a.C. e argumentou que pouco tempo depois um contingente de espartanos poderiam ter se aliado a Lucio Cornélio Sula durante as guerras civis romanas37 (APIANO, Guerras Civis, I, 79). Por sua vez, como afirmou Nigel Kennell, os recorrentes conflitos em que Roma esteve inserida – em virtude das guerras civis e dos embates estrangeiros – fizeram com que a mesma fosse levada a ampliar o seu controle nas áreas provinciais, como um mecanismo para assegurar os seus interesses político-econômicos38. Tal argumentação nos permite verificar que embora Esparta estivesse em uma condição política aparentemente privilegiada junto a Roma – por ser uma ciuitas libera – os seus habitantes não deixaram de se posicionar contra o império romano quando os seus interesses políticos estiveram ameaçados pelos mesmos, ou quando foi vantajoso estabelecer alianças com outras sociedades mediterrâneas. De maneira semelhante, devemos considerar que as retaliações que Roma impôs a Esparta foram meios de garantir a autoridade imperial e a sua dinâmica econômica sobre o Mediterrâneo Antigo. Entretanto, podemos pontuar que a sociedade espartana nunca chegou a ameaçar o poder imperial romano. Embora o nosso enfoque seja analisar Esparta no período do principado de Augusto, a escassez de estudos sobre as interações políticas, sociais e militares espartanas no decorrer dos séculos IV, III e II a.C. nos levaram a historicizar as transformações ocorridas em Esparta para uma melhor compreensão da mesma. Deste modo, notamos que as relações de Esparta com Roma já estariam ocorrendo desde o século III a.C., e com a emergência do poder político de Augusto os laços de ambas as sociedades acabaram se estreitando. Na contenda entre Júlio César e Pompeu Magno, os espartanos se mantiveram a favor deste último (CÉSAR, Comentário sobre as Guerras Civis, 3.4). Todavia, ainda que Esparta tenha se colocado 37  KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p.183. 38  Idem.

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contra a figura de Júlio César, isso não a impediu de manter, posteriormente, boas relações com Caio Otávio, seu herdeiro e futuro princeps Augusto. Dialogando com o discurso de Plutarco, este enfatizou que na batalha de Filipos (42 a.C.), Caio Otávio contava com um contingente de guerreiros espartanos para enfrentar Marco Junio Bruto. Nesta ocasião, devido à derrota de Caio Otávio, dois mil homens de Esparta foram mortos (PLUTARCO, Vida de Bruto, 41.4). Em suas considerações, Suetônio ressaltou que durante as guerras civis, Lívia (futura esposa de Augusto), o seu marido39 e o jovem Tibério40 se refugiaram na Lacedemônia41 (SUETÔNIO, Vida de Tibério, 6). Dião Cássio complementa tal assertiva ao afirmar que Augusto honrou a sociedade de Esparta pelo auxílio prestado a Lívia quando esta estava fugindo de Roma, em decorrência das guerras civis (DIÃO CÁSSIO, História de Roma, LIV, 7.2). Com isso, podemos sugerir que a relação de Augusto com a sociedade de Esparta teria se fundamentado na interação que este manteve com os espartanos antes mesmo de se tornar o princeps. Logo, embora os feitos da Esparta clássica tenham sido retomados em prol do imperialismo romano, os benefícios que Augusto cedeu a ciuitas espartana provinham de sua gratidão para com esta sociedade. Podemos ampliar tais considerações ao interagirmos com as disputas político-militares de Caio Otávio e Marco Antônio, dentre as quais Esparta se manteve a favor do primeiro. Seguindo 39  Nos dizeres de Antony Spawforth, antes de contrair matrimônio com Caio Otávio, Lívia foi casada com o patrício Tibério Claudio Nero, um membro proeminente da família Claudia (CARTLEDGE, Paul; SPAWFORTH, Antony. Hellenistic and Roman Sparta – A tale of two cities. 2nd. Edition. London; New York: Routledge, 2002, p.87). Por sua vez, Tibério Claudio Nero teria sido um opositor de Caio Otávio em seu embate com Sexto Pompeu e posteriormente apoiou Marco Antônio. Dessa maneira, Claudio Nero e Lívia tiveram que fugir em decorrência das guerras do Segundo Triunvirato, tendo permissão para retornarem a Roma após a anistia concedida por Augusto. BARRETT, Anthony. Livia – First Lady of Imperial Rome. New Haven; London: Yale University Press, 2002, p.19-21. 40  Tibério foi filho de Lívia e enteado de Augusto, e com a morte deste acabou assumindo o principado em Roma. 41  Nos dizeres de Suetônio, no período em que Lívia se refugiou em Esparta esta ciuitas já estava sob a proteção da família Claudia (SUETÔNIO, Vida de Tibério, 6).

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o viés apresentado por Plutarco, Esparta atuou diretamente em benefício da causa de Caio Otávio (PLUTARCO, Vida de Marco Antônio, 67.2-3). Tais fatores teriam sido determinantes para a boa relação que a sociedade espartana manteve com o princeps Augusto. Todavia, para um maior aprofundamento de nossas argumentações anteriores, devemos retroceder ao início do século II a.C. Após a morte de Nábis, o poder político de Esparta foi administrado por famílias proeminentes do próprio território. Com isso, no século I a.C. uma das famílias (sing.: gens; pl.: gentes) de maior preponderância política em Esparta seria a de Lacares. Convergindo com os estudos de Antony Spawforth, Lacares foi um partidário de Júlio César, sendo um dos espartanos de maiores recursos e influência na Lacedemônia. Spawforth nos expôs que a riqueza e a proeminência político-social de Lacares na Lacedemônia foram alcançadas por meio da pirataria42, aspecto este que nos permite lançar alguns apontamentos sobre as atividades econômicas de Lacares. Como nos esclareceu o pesquisador Philip de Souza, a pirataria teria sido uma prática recorrentemente combatida pelos romanos, sobretudo no século I a.C. Em decorrência da difusão do imperialismo, Roma passou a ser representada pelos seus pensadores e políticos como a defensora das sociedades mediterrâneas, na qual os piratas estariam inseridos em uma categoria inversa43. Souza comentou que a pirataria ameaçava os interesses comerciais romanos, haja vista a importação de grãos pelo Mediterrâneo44. Retomando a figura de Lacares, os escritos de Antony Spawforth nos leva a conjeturar que o referido espartano 42  CARTLEDGE, Paul; SPAWFORTH, Antony. Hellenistic and Roman Sparta – A tale of two cities. 2nd. Edition. London; New York: Routledge, 2002, p.89. 43  Conjeturando a partir de Carlos Eduardo da Costa Campos, as atividades marítimas teriam garantido a prosperidade econômica de Roma, o que tornaria plausível a difusão de um discurso de combate a pirataria. CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. Discurso e Representação sobre a Paisagem e as Práticas Marítimas no Tratado da República de Marco Túlio Cícero. In: MARIA NETO, José. Antigas Leituras. Vol. 2. Recife: EDUPE, 2014.( In Prelo). 44  SOUZA, Philip de. Piracy in the Graeco-Roman World. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p.154, 157.

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teria sido uma ameaça aos interesses político-econômicos de Marco Antônio, no Peloponeso e na Lacedemônia45. Ao interagir com o discurso de Apiano, Philip de Souza declarou que no período em que Caio Otávio e Marco Antônio se uniram para combater Sexto Pompeu, este último teria angariado aliados entre os peloponésios46 (APIANO, Guerras Civis, V, 77). Spawforth47 nos pontuou que com a derrota de Sexto Pompeu, Marco Antônio retomou a sua autoridade sobre a província da Acaia48. Com isso, podemos sugerir que Lacares teria sido um antigo partidário de Sexto Pompeu. Do mesmo modo, ao exercer o seu poder político sobre o Peloponeso, Marco Antônio teria tomado medidas para ampliar e difundir a sua autoridade sobre esta região, levando o mesmo a atacar possíveis adversários regionais. Nesse contexto, ainda que Lacares tenha exercido atividades de pirataria na costa da Lacedemônia, a sua possível aliança com Sexto Pompeu e a sua influência no Peloponeso teriam levado Marco Antônio a eliminálo, em virtude de representar uma ameaça política a este último. Em decorrência da medida de Marco Antônio para com Lacares, Plutarco enfatizou que na batalha do Ácio (31 a.C.) o espartano Eurícles se colocou a favor de Caio Otávio, no intuito de se vingar pela morte de seu pai Lacares (PLUTARCO, Vida de Marco Antônio, 67.2). Seguindo por esse viés, Antony Spawforth comentou que o auxílio prestado por Eurícles e os seus companheiros à causa de Caio Otávio fizeram com que este, ao assumir o título de princeps Augusto, concedesse a Eurícles a 45  SPAWFORTH, Antony. Greece and the Augustan cultural revolution. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p.87. 46  SOUZA, Philip de. Piracy in the Graeco-Roman World. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p.194-5. 47  SPAWFORTH, Antony. Greece and the Augustan cultural revolution. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p.87. 48  Devemos esclarecer que no segundo triunvirato, Caio Otávio e Marco Antônio teriam cedido o poder político da província da Acaia a Sexto Pompeu, através do “Pacto de Misena” (39 a.C.). Entretanto, o mesmo não chegou a governá-la, pois Caio Otávio e Marco Antônio afirmaram que o filho de Pompeu Magno não cumpriu a sua parte do tratado, fazendo com que o mesmo fosse considerado um traidor. SOUZA, Philip de. Piracy in the Graeco-Roman World. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p.188-9.

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hegemonia política sobre Esparta49. Esses elementos se inserem na perspectiva teórica de Carlos Eduardo da Costa Campos acerca do imperialismo romano, como citado anteriormente. Assim, a política imperial de Augusto teria dado continuidade a diversas práticas que o antecederam, entre elas a de cooptação das elites locais das províncias como um mecanismo de assegurar os interesses da Urbs. Do mesmo modo, como demonstrou Campos50, a cooptação faria com que houvesse uma concessão gradual de poder e a ampliação da administração romana sobre os territórios submetidos. Podemos endossar as nossas considerações através das análises de Susan Alcock. A pesquisadora afirmou que as aristocracias gregas provinciais tentavam fomentar a sua identidade em concomitância com os valores político-culturais de Roma51. Alcock declarou que as atitudes do centro de poder imperial auxiliaram na consolidação deste ideal, como um mecanismo de legitimação política. Logo, o respeito que os romanos mantinham pela herança políticocultural helênica seria uma estratégia imperial que garantia a interação entre o centro de poder e as áreas provinciais, sendo este um poderoso recurso de dominação romana52. Podemos inserir aqui a categoria política do espartano Eurícles, o qual se vinculou diretamente aos interesses augustanos como uma maneira de alcançar os seus objetivos político-econômicos na Lacedemônia. Convergindo com a proposta de Antony Spawforth53, podemos sugerir que o fato de Eurícles deter a hegemonia política sobre uma ciuitas libera, atrelado ao apoio que obteve de famílias espartanas proeminentes, teria levado o mesmo a exercer um regime político49  CARTLEDGE, Paul; SPAWFORTH, Antony. Hellenistic and Roman Sparta – A tale of two cities. 2nd. Edition. London; New York: Routledge, 2002.p.90. 50  CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. A Estrutura de Atitudes e Referências do Imperialismo Romano em Sagunto (II a.C. – I d.C.). Rio de Janeiro: UERJ/NEA, 2014.p.46. 51  ALCOCK, Susan. The reconfiguration of memory in the eastern Roman empire. In: ALCOCK, Susan; D’ALTROY, Terence; MORRISON, Kathleen; SINOPOLI, Carla (Ed.). Empires – Perspectives from Archaeology and History. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.p.330. 52  Ibidem, p.330-331. 53  CARTLEDGE, Paul; SPAWFORTH, Antony. Hellenistic and Roman Sparta – A tale of two cities. 2nd. Edition. London; New York: Routledge, 2002, p.90.

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econômico sem muitas restrições. O geógrafo Estrabão, ao narrar à vitória de Caio Otávio no Ácio, declarou que este teria fundado Nicópolis54 para celebrar a sua campanha militar bem sucedida. Segundo Estrabão, na entrada do golfo do Ácio foi erigido um templo para Apolo Ácio e para o qual era celebrada a cada cinco anos a “Ácia”, jogos em honra a esta divindade. O referido geógrafo expôs que os responsáveis pela supervisão desta celebração a Apolo eram os lacedemônios (ESTRABÃO, Geografia, VII, 7.6). Este aspecto nos chamou a atenção, pois na ocasião de comemorar a vitória de Augusto os lacedemônios liderados por Eurícles teriam recebido a honra de assegurarem a boa realização desta festividade. Com isso, verificamos que a proeminência político-religiosa que os espartanos adquiriram junto às festividades de Nicópolis teria sido um reconhecimento de Augusto para com a contribuição políticomilitar que Eurícles e os seus aliados forneceram na batalha contra Marco Antônio. Do mesmo modo, ao atuar sob a égide augustana, Eurícles ampliou a sua autoridade política enquanto difundia o poder imperial do princeps. Seguindo nessa ótica, Nigel Kennell sugeriu que o poder que Eurícles exercia em Esparta se fundamentava, unicamente, na amicitia/philia que este mantinha com Augusto55. Em concomitância a este fator, Eurícles teria recebido a cidadania romana – sendo identificado por Claudio Julio Eurícles – a qual poderia ter diminuído a oposição política que este mantinha junto a outros espartanos de recursos56. Ampliando as concepções de Kennell e Antony Spawforth, Andrew Wallace-Hadrill nos informou que a concessão da cidadania romana aos membros das elites nativas das províncias seria um meio de Roma expandir a sua política imperialista junto às regiões submetidas ao Império57. 54  Esta pólis foi fundada por Augusto na Acarnânia como um meio de celebrar a sua vitória contra Marco Antônio e Cleópatra, no Ácio. A sua denominação seria formada pela junção dos vocábulos Niké (Vitória) e pólis (PAUSÂNIAS, VII, 18.8). 55  KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p.184. 56  CARTLEDGE, Paul; SPAWFORTH, Antony. Hellenistic and Roman Sparta – A tale of two cities. 2nd. Edition. London; New York: Routledge, 2002, p.90. 57  WALLACE-HADRILL, Andrew. Rome’s Cultural Revolution. Cambridge: Cambridge

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Por outro lado, devemos considerar que para Eurícles a difusão dos interesses imperiais, bem como a sua associação direta com os valores romanos, seria uma forma de ratificar a sua autoridade política em Esparta, bem como com outras sociedades da província da Acaia e do Mediterrâneo. Por meio dos escritos de Dião Cássio, Nigel Kennell afirmou que Augusto teria visitado Esparta entre 22 e 21 a.C.58. Dião Cássio elucidou que Augusto teria honrado os lacedemônios com a ilha de Citera e por participar de seus repastos coletivos, sendo esta uma retribuição pelo asilo que os espartanos concederam a Lívia quando esta fugia da península itálica no período das “Guerras Civis” (DIÃO CÁSSIO, LIV, 7.2). Estrabão, por sua vez, declarou que a ilha de Citera seria propriedade privada de Eurícles (ESTRABÃO, VIII, 5.1). Complementando tal argumentação, Pausânias afirmou que Augusto concedeu a Esparta a autoridade sobre Cardamile e Túria, identificados como antigos assentamentos periecos (PAUSÂNIAS, III, 26.7; IV, 31.1). Através dos indícios literários, verificamos que a política imperialista romana foi perpetuada no principado de Augusto, tendo em vista o processo de cooptação que manteve junto às elites locais das áreas provinciais, sendo este um mecanismo para assegurar os seus interesses político-econômicos no Mediterrâneo. Andrew Wallace-Hadrill enfatizou que em 146 a.C., Roma determinou que os valores ancestrais elaborados por Licurgo deveriam ser retomados em Esparta. Assim, verificamos um discurso que colocava Roma como a guardiã da ancestralidade espartana59. Desta forma, podemos observar uma medida de valorização das práticas culturais de Esparta, por parte dos segmentos aristocráticos romanos. Como exemplo, podemos indicar a participação de Eurícles na batalha do Ácio, o qual foi representado como um referencial de virtus60 espartana guerreira, junto a determinados University Press, 2010 (2008), p.81. 58  KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010.p.184. 59  Ibidem, p.238. 60  Como explicitou François Renaud, a virtus foi primeiramente concebida como virilidade e coragem, sendo este um ideal difundido em concomitância com a perspectiva guerreira dos romanos. RENAUD, François. Virtue. In: CANCIK,

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círculos políticos de Roma. Antony Spawforth pontuou que, na transição da república para o principado, pensadores filohelênicos, tal como Cícero, consideraram os espartanos como um modelo de conduta militar61. Todavia, embora o estilo de vida militar dos homens de Esparta fosse estimado pelos pensadores romanos, Cícero demonstrou que os guerreiros de Roma eram superiores, pois ao invés de marcharem ao som da flauta iam em silêncio ao encontro dos inimigos (CÍCERO, Disputas Tusculanas, II,37). Spawforth comentou que a disciplina espartana – do período Clássico – foi empregada pelos romanos como um ideal de conduta, fazendo com que os guerreiros de Roma tomassem o comportamento grego como um exemplo62. Nesse contexto, Plínio “o velho” afirmou que os espartanos foram os inventores do elmo, da espada e da lança, aspecto este que demonstrava a proeminência desta sociedade em assuntos de guerra (PLÍNIO, História Natural, VII, 57). Podemos destacar que os autores do período imperial romano representavam Esparta como um exemplo de conduta viril e militar, digna de admiração por Roma. Verificamos também que o débito que os romanos mantinham para com a sociedade espartana residia, sobretudo, nos feitos e valores que os seus homens desenvolveram no período Clássico63. Logo, ao se estimar o habitus de Esparta, os romanos estariam se colocando como defensores dos seus antigos valores culturais, os quais os espartanos do império teriam abandonado. Tal apreciação que os romanos mantinham pela tradição espartana pode ser endossada pelos indícios documentais de Dião Cássio. Como já havíamos citado, ao visitar Esparta, Augusto participou dos repastos coletivos (syssitia/philitia) que Hubert; SCHNEIDER, Helmuth. Brill’s New Pauly – Encyclopaedia of the Ancient World. Vol. XV – Tuc-Zyt. Leiden; Boston: Brill, 2010, p.458. 61  SPAWFORTH, Antony. Greece and the Augustan cultural revolution. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p.87. 62  Ibidem, p.87-8. 63  Em períodos anteriores ao de Augusto, o pensador Políbio destacou que Esparta e Roma detinham semelhanças em suas respectivas constituições, pois tomavam elementos das três formas de governo que existiam até então, ou seja, a monarquia, a aristocracia e a democracia (POLÍBIO, VI, 3-10).

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eram realizados nesta sociedade (DIÃO CÁSSIO, LIV, 7.2). Conjeturando a partir dos dizeres de Xenofonte e Plutarco, a philitia teria sido uma instituição político-social que pretendia fomentar o ideal de grupo entre os esparciatas e basileus, sendo este um mecanismo voltado para fomentar a identidade étnico-cultural dos mesmos. As comidas servidas provinham da contribuição de todos os integrantes e a aceitação do sujeito em um dos philition garantia o seu reconhecimento como cidadão de Esparta. Tanto Xenofonte quanto Plutarco representaram a philitia como uma criação do mítico legislador Licurgo que almejava minimizar os excessos dos espartanos por meio de uma alimentação frugal e um estilo de vida comum (XENOFONTE, Cons. Lac., 5.2; PLUTARCO, Vida de Licurgo, 12.1-2). Desse modo, o ideal político-militar que Augusto objetivou por fomentar entre os romanos poderia tomar a sociedade de Esparta como um modelo de conduta no principado, haja vista a obediência ao habitus ancestral e o preparo físico com o qual os esparciatas foram representados. Andrew Wallace-Hadrill pontuou que Augusto legitimou o seu poder político por declarar que defendia o mos maiorum, ou seja, os valores e as práticas ancestrais que ao serem desempenhadas no seu cotidiano ratificavam o “ser romano”64. Sendo assim, ao se tomar elementos culturais da Esparta Clássica, a política imperialista de Augusto estaria se apropriando da tradição helênica como um mecanismo voltado para a legitimação política do princeps e de Roma sobre as demais regiões do Império. Ao atrelar esses pressupostos ao período de Augusto, notamos que os romanos admiravam a virilidade e a conduta austera da Esparta clássica, cujos feitos se materializaram no modo de pensamento latino através da tradição oral e literária. Com isso, ao se arrogarem como os defensores da tradição helênica, as práticas da sociedade espartana foram meios de se ratificar o imperialismo de Roma na Lacedemônia. Seguindo por essa perspectiva, os valores de Licurgo passaram a “pertencer” aos romanos, que ao rememorarem e legitimarem essas práticas entre os homens de Esparta geravam um débito político-cultural destes últimos com a 64  WALLACE-HADRILL, Andrew. Rome’s Cultural Revolution. Cambridge: Cambridge University Press, 2010 (2008), p.215.

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figura de Augusto e com o império romano. Ainda no contexto da interação entre o princeps Augusto e Eurícles, este último teria promovido uma exposição assídua de sua lealdade junto à casa imperial romana. Antony Spawforth declarou que Eurícles foi o fundador e o primeiro sacerdote do culto imperial em Esparta. Do mesmo modo, Eurícles também estabeleceu relações de cordialidade com Marco Vipsânio Agripa, genro e homem de confiança de Augusto. Segundo Spawforth, Agripa teria visitado Esparta em 12 a.C. e nessa ocasião Eurícles mandou cunhar moedas em sua homenagem65. Observamos a associação que o filho de Lacares mantinha com homens poderosos, seja do império ou de outras sociedades mediterrâneas, como uma maneira deste garantir o seu poder político entre os espartanos. Devido à autoridade que o império efetuava nas regiões do Mediterrâneo, verificamos que Eurícles soube orquestrar as suas ações de modo que os seus adversários fossem suprimidos ou minimizados e o seu poder fosse assegurado na Lacedemônia. Contudo, embora Augusto fosse um admirador dos valores espartanos, o descomedimento político de Eurícles fez com que o princeps começasse a observá-lo de uma maneira mais ríspida com o passar dos anos. Dietmar Kienast nos informa que em sua viagem pela Ásia, Eurícles manteve laços de reciprocidade com os basileus Herodes da Judéia e Arquelau da Capadócia. Com isso, Eurícles teria desenvolvido intrigas entre Herodes e seus filhos, chegando a receber cinquenta talentos pelo auxílio prestado e a amizade para com o governante asiático66. Este episódio foi citado e comentado pelo pensador Flávio Josefo, o qual diferentemente de outros autores antigos, representou Eurícles como corrupto e luxurioso, tendo se aproximado de Herodes e Arquelau no intuito de conseguir recursos para si (JOSEFO, Guerra Judaica, I, 513; Antiguidade Judaica, XVI, 300-310). Os indícios de Josefo nos fornecem outra perspectiva sobre as ações de Eurícles. Logo, 65  CARTLEDGE, Paul; SPAWFORTH, Antony. Hellenistic and Roman Sparta – A tale of two cities. 2nd. Edition. London; New York: Routledge, 2002, p.90. 66  KIENAST, Dietmar. Eurycles. In: CANCIK, Hubert; SCHNEIDER, Helmuth. Brill’s New Pauly – Encyclopaedia of the Ancient World. Vol. V – Equ-Has. Leiden; Boston: Brill, 2004, p.214.

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podemos materializar a ideia de que o referido espartano estaria tentando ampliar as suas riquezas e influências políticas, com base na amicitia de Augusto. Do mesmo modo, podemos sugerir que Eurícles se utilizou dos vínculos que mantinha junto ao Império para projetar a sua figura em outras sociedades. Com base em suas pesquisas, Dietmar Kienast afirmou que Eurícles teria tentado ganhar influência sobre as sociedades da Lacedemônia que integravam a “Liga dos Lacedemônios”67. Concomitantemente, Eurícles teria construído um grande gymnasium em Esparta e uma luxuriosa casa de banhos em Corinto, e em meio a esses empreendimentos o mesmo foi considerado benfeitor de Gitión e honrado em Atenas68 (PAUSÂNIAS, II, 3.5; III, 14.6). Convergindo as informações apresentadas, por meio de suas interações políticas com Augusto e com aristocracias de outras regiões mediterrâneas, Eurícles pôde angariar recursos no intuito de promover a sua imagem pessoal, sem se restringir a Lacedemônia. No entanto, não podemos deixar de citar que Eurícles detinha a hegemonia política em Esparta, a qual estava sob a autoridade imperial da Roma augustana. Sendo assim, as relações políticas que Eurícles estaria desenvolvendo poderiam ter sido consideradas como uma ameaça a famílias ricas espartanas, cuja projeção do filho de Lacares as inviabilizava de receber as honras imperiais. As circunstâncias descritas teriam levado as elites locais espartanas a denunciarem os excessos de Eurícles frente a Roma. Nos dizeres de Flávio Josefo, Eurícles foi acusado em duas ocasiões diante de Augusto, uma por promover sedição na Acaia e outra por saquear algumas de suas cidades (JOSEFO, Guerra Judaica, I, 530). Devemos pontuar que a proeminência de Eurícles não poderia se sobrepor a autoridade do princeps Augusto. O discurso de Estrabão nos permite materializar a perspectiva apresentada. 67  A Liga dos Lacedemônios foi formada após a derrota de Nábis pelas sociedades periecas e permaneceu sob a proteção da Liga Acaia de 195 a 146 a.C. WELWEI, Karl-Wilhelm. Eleutherolakones. In: CANCIK, Hubert; SCHNEIDER, Helmuth. Brill’s New Pauly – Encyclopaedia of the Ancient World. Vol. IV – Cyr-Epy. Leiden; Boston: Brill, 2004, p.918. 68  Idem.

48 - O Princeps Augusto e as relações políticas com a sociedade espartana

Nos dizeres do referido geógrafo, ao promover distúrbios entre as sociedades da Lacedemônia, Eurícles teria abusado excessivamente da amizade de Augusto, fator que teria gerado o seu exílio de Esparta (ESTRABÃO, VIII, 5.5). Segundo Nigel Kennell, Eurícles teria morrido no exílio em um período próximo ao ano 02 a.C., sendo a sua hegemonia sucedida por seu filho Laco69. Por sua vez, Augusto separou as cidades periecas da autoridade de Esparta, reorganizando a “Liga dos Lacedemônios” sob a denominação de “Liga dos Lacônios Livres” (koinòn tôn Eleutherolakonon)70. Mediante esses indícios verificamos que Augusto, na sua qualidade de princeps, não poderia permitir que uma liderança local pudesse ameaçar o seu poder político em áreas provinciais. Ainda que Eurícles e Augusto mantivessem uma relação de amicitia, o poder da Urbs deveria estar acima de qualquer laço de reciprocidade. Em virtude do exposto, concluímos que a sociedade espartana, no período romano, foi representada como um reflexo da sua glória de outrora. Através do nosso mapeamento documental e historiográfico pudemos observar que Esparta acabou transformando os seus valores frente à realidade da Hélade, sobretudo a partir da segunda metade do século IV a.C. Quando Roma passou a despontar entre as sociedades do Mediterrâneo, as lideranças políticas de Esparta ainda tentavam projetar a sua hegemonia no Peloponeso com base nos valores de Licurgo e nas conquistas oriundas do período Clássico. Tais fatores teriam fomentado no modo de pensamento antigo que os espartanos eram exímios guerreiros, cujas práticas cotidianas condicionavam a obediência junto a uma tradição ancestral que permitia a esses sujeitos a legitimação de sua identidade entre os lacedemônios e peloponésios. Em meio à expansão imperial romana, a documentação literária nos demonstrou que Esparta teria defendido os seus interesses junto aos grupos hegemônicos mediterrâneos, mesmo que isso lhe custasse derrotas militares. Assim, podemos citar o caso de Eurícles, cujos interesses políticos, econômicos e pessoais o levaram a aderir a causa de Caio Otávio. A figura de Eurícles nos permitiu verificar 69  KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p.185. 70  Ibidem, p.185-186.

Luis Filipe Bantim de Assumpção - 49

a maneira como a sociedade de Esparta mantinha os seus valores e práticas, mesmo sob a autoridade de Roma. Seguindo por essa via, Eurícles teria se utilizado da amicitia de Augusto para alcançar os seus objetivos, aspecto este que culminou no seu exílio e perda de poder político. Todavia, ainda que Eurícles e os espartanos tenham contribuído com a causa de Caio Otávio, durante o principado, Augusto se utilizou politicamente de uma valorização dos costumes ancestrais espartanos que pudessem ratificar a sua política de moralização social, com base no mos maiorum. Dessa maneira, em meio as nossas escolhas historiográficas, verificamos que, diferentemente da Esparta clássica, os espartanos do período romano interagiam com a Urbs, tal como qualquer outra sociedade mediterrânea. No entanto, as glórias de outrora e os feitos político-militares de Esparta foram apropriados entre os pensadores latinos, como um mecanismo político voltado para a legitimação do poder do princeps.

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