O Princípio da Identidade em Leibniz

October 3, 2017 | Autor: Luisa Coutosoares | Categoria: Leibniz
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O PRINCÍPIO DA IDENTIDADE EM LEIBNIZ

Identidade dos Indiscerníveis Na raiz das discussões e teorias lógicas, semânticas e epistémicas desde Frege, Russell até o próprio Kripke, está subentendido o princípio o princípio da identidade dos indiscerníveis de Leibniz, que é, embora não explicitamente referido, o grande interlocutor ou melhor o grande inspirador do pensamento lógico moderno sobre a identidade. O princípio leibniziano assume uma função ordenadora, como estruturação fundamental do mundo e seus indivíduos e do seu conhecimento possível, como uma espécie de princípio da unidade sintética da apercepção1. Sem esta unidade sintética, como referir a infinita diversidade de predicados a um mesmo objecto? Ou como reconhecer a variedade de sentidos como modos de apresentação de um mesmo referente? A diferença radical desta síntese das significações no mesmo significado, em relação à síntese da apercepção de Kant consiste em que, para este último é por um acto do sujeito que se produz esta síntese, ao fundar na própria identidade do Eu, a identidade do objecto conhecido através da diversidade de representações, enquanto nas teorias "semânticas" a relação de identidade se fundamenta numa das variantes do princípio dos indiscerníveis: cada objecto só é idêntico a si mesmo e a mais nenhum outro. Assim se compreende o papel fundamental deste princípio em toda a formulação semântica da identidade: é ele que garante o reconhecimento do mesmo objecto como referente único de uma pluralidade de signos nos enunciados de identidade, expressão da diversidade de sentidos expressos nos mesmos enunciados.. Esta diversidade de signos e de sentidos não se transforma num caos graças à identidade dos indiscerníveis que garante a referência e o 1.

Cfr. Proust, J. – Questions de forme. Logique et proposition analytique de Kant à Carnap , 232.

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reconhecimento do objecto em causa. A compreensão da identidade como "identidade de um objecto consigo e só consigo mesmo" assume verdadeiramente o papel de condição de possibilidade da construção de uma linguagem lógica2, científica, que admita exclusivamente os signos aos quais corresponde uma referência e que têm a capacidade semântica de referir inequivocamente. Este foi o ideal que presidiu ao trabalho de Frege, como ao de todos os lógicos modernos, herança irrefutável do próprio ideal de Leibniz de construir uma lingua characteristica. A dependência indiscutível do princípio não significa nem implica, no entanto, a sua aceitação pacífica ou uma adesão incondicional. A abundante literatura actual sobre a identidade dos indiscerníveis de Leibniz, longe de contribuir para um esclarecimento do seu significado e alcance, tem muitas vezes desviado a atenção do sentido que o princípio desempenha na economia do sistema de Leibniz, multiplicando e desvirtuando os argumentos que recorrem indiscriminadamente à ordem lógica, à metafísica e ontológica, ou cosmológica. Não temos a pretensão de apresentar aqui uma solução a tão intrincado problema, mas apenas reconstruir a apresentação do princípio na obra de Leibniz, tentando examinar os contextos em que ele é definido e defendido e procurando detectar o seu significado, alcance e utilização no próprio sistema leibniziano. Feita esta reconstituição do princípio, procuraremos seguir o fio de algumas das discussões actuais à volta do mesmo, para tentar averiguar da sua pertinência em relação ao pensamento de Leibniz e à questão em geral. O que mais directamente se prende com o que estamos a tratar, será o problema de saber se, da identidade dos indiscerníveis, se poderá inferir uma definição de identidade como noção absoluta, unívoca, monolítica, ou se alguma formulação do princípio poderá conciliar-se com uma "relativização" ou "graduação" da identidade. É evidente que se torna difícil abordar uma noção isolada no sistema de Leibniz, pois se corre o risco da deformação ou da simplificação reducionista. O estilo barroco, labiríntico do pensamento leibniziano escapa a qualquer sistematização exterior ou a qualquer tentativa de conceptualização formalista, que procure um enquadramento unificador, sob uma ou várias ideias mestras, da profusão de análises, abordagens, perspectivas de todo o pensamento leibniziano. Michel Serres traduz bem a impossibilidade de uniformizar o sistema de Leibniz, de encontrar no seu pensamento um caminho linear, único, ou uma noção - ou grupo de noções - primeira como cúpula monárquica de todo o sistema. A 2.

Cfr. ibidem, p. 233.

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riqueza e variedade das perspectivas e análises de Leibniz a respeito de cada princípio, de cada noção, põe em causa qualquer tentativa de meta-sistematização dos seus múltiplos sistemas possíveis. Perante uma semelhante profusão de pontos de vista, será lícito suspeitar de todos os comentadores ou estudiosos de Leibniz que tentam enclausurar o seu pensamento numa visão sistemática monolítica. E surge justificadamente a dúvida sobre a possibilidade de passar das variadas cenografias - representação segundo uma certa prospectiva - a uma iconografia - representação segundo a verdade geométrica3. Qualquer ponto, qualquer noção pode ser visualizada dentro do sistema leibniziano a partir de muitas posições diferentes, e esta observação é válida tanto para a noção de substância - da qual pode fazer-se uma abordagem dinâmica, lógica, ontológica, empírica, física, matemática e até teológica - como para o princípio de identidade, ao qual Leibniz aplicará também o método das variações, das mudanças de ordem, das reestruturações4. A noção da identidade surge no pensamento de Leibniz como uma cúpula constituída de uma variedade de arcos que assimptoticamente se dirigem para um ponto no espaço: unidade, igualdade, paralelismo, equivalência sob um ponto de vista, semelhança, congruência, concurso, imagem, expressão, harmonia, uniformidade ...5, são notas possíveis na escala das variações da identidade. Este estilo "contrapontístico" do pensamento leibniziano significa que não há uma entrada única para o seu sistema nem um percurso único, mas qualquer ponto de partida poderá ser reencontrado mais tarde, talvez como uma verdade relativa: "In situ omni est ordo, sed arbitrarium est initium"6.

A filosofia de Leibniz apresenta de facto uma ampla variedade de abordagens, pois, como refere M. Serres, não há entrada que ele próprio não tenha experimentado7. E qualquer entrada não é nunca um ponto único, mas sempre uma multiplicidade, resistindo à tendência conatural da razão para unificar, sintetizar: Leibniz procura a unidade real, não a unidade mental, e essa é uma unidade feita de multiplicidade. Como observa Serres, na análise de qualquer problema, Leibniz tem sempre presente um horizonte de infinita multiplicidade: a infinidade de ideias no entendimento divino, a série infinita dos 3. 4. 5. 6. 7.

Cfr. Serres, M. - Le système de Leibniz, Paris, PUF, 1968, p. 9. Cfr. ibidem, pp. 12 e 41. Cfr. ibidem, p. 41. Couturat, L. – Opusculus et Fragments Inédts, Paris, (OFI) 1930, 545. Serres, M. – Le système de Leibnz Paris, PUF, 1968, p. 25.

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predicados de um sujeito, a inesgotabilidade das pequenas percepções, das recordações guardadas na memória, das ideias no entendimento humano, o conjunto de infinitos mundos possíveis, etc."8. A realidade é plural, múltipla e Leibniz quer exprimi-lo através de uma metodologia de variações, de multiplicação de pontos de vista, não permitindo que o pensamento, susceptível de um redimensionamento infinito, geometrize em três dimensões. Assim Leibniz parte sempre de conjuntos de elementos diferentes, discerníveis não solo numero. E dentro da própria variedade de elementos discerníveis pode haver ainda variações - variações da diferença, que por sua vez pode ir da diferença absoluta, como a que se dá entre as mónadas distintas, até uma diferença que se vai atenuando, tendendo para a uniformidade. Esta escala de variações, da diferença absoluta à uniformidade, ou, inversamente, da identidade absoluta à máxima "dis-formidade", exprime a distância do real (feito de diferenças, de discontinuidades) ao imaginário, distância da confusão à distinção, do concreto ao abstacto9. O uniforme é uma abstracção das variedades realmente existentes, a identidade absoluta é um ponto ideal para onde convergem assimptoticamente todas as diferenças: "Les choses uniformes et qui ne renferment aucune variété, ne sont jamais que des abstractions, comme le temps, l'espace et des autres Êtres des Mathématiques purs (...) il n'y a point de substance qui n'ait de quoi se distinguer de toute autre"10.

O aparentemente uniforme, unido, não é senão o grau zero da unidade e da identidade, cujo grau mais elevado é a unificação do diverso: "L'identité sans variété, équivaudrait au sommeil, à la mort", ou "à la fin de la conscience qui est essentiellement in-quiétude"11.

8.

9. 10. 11.

Ibidem, p. 33: "Leibniz se donne toujours, en commençant l'analyse d'un problème, une multiplicité quelconque, une 'multitude': la famille infinie des idées dans l'entendement divin, des prédicats dans le sujet, des petites perceptions, des souvenirs conservés dans la mémoire, et des idées dans l'entendement humain, l'agrégat des états mondiaux, l'ensemble des mondes, des points de vue, des lettres, des notes, etc.". Cfr. ibidem, p. 36. Leibniz, G. – Die Philosophischen Schriften von Wilhelm Leigniz Gerhardt VII, p. 100. (Ger) Ger V, Nouveaux Essais, II, XX, § 6; cfr. Belaval, Y. - Études leibniziennes, Paris, Gallimard, 1976, p. 94.

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Assim, o princípio da identidade é sempre associado em Leibniz ao método da variação: por toda a parte são as diferenças, as variações que suscitam o conhecimento, que constituem a riqueza dos diferentes níveis, ou estratos da natureza, inorgânico, orgânico, etc. A identidade surge como um caso limite, regulador, não puramente mental, mas nunca totalmente actualizado, podendo por isso assumir a função transcendental que atribui J. Proust ao princípio da identidade dos indiscerníveis. Função transcendental dupla na arquitectónica do nosso conhecimento, porque por um lado conhecemos tudo sob o prisma da identidade, e na arquitectónica do próprio sistema (ou meta-sistema), no qual a identidade constitui um princípio de ordem, de harmonia: "Je vois toutes choses reglées et ornées au delà de tout ce qu'on a conçu jusqu'ici, la matière organique par tout, rien de vide, stérile, négligé, rien de trop uniforme, tout varié, mais avec ordre"12.

Ordem, harmonia, correspondência, entre-expressão, noções que constituem pedras angulares no pensamento leibniziano, que vivem e tiram toda a sua potencialidade na economia do sistema das escalas de variações entre identidade e diferença. Indiscerníveis e harmonia universal, unidade na variedade de um todo, são pólos omnipresentes em tudo. Cada indivíduo é expressão do universo porque em si é totalmente diferente, diverso e pode por isso desempenhar a função de projecção; mas é ao mesmo tempo uma unidade única de todos os seus predicados, um princípio, ou uma força de identidade consigo mesmo. "...tout se ramène au principe d'identité, à condition de le prolonger par la fonction projection; ou mieux, tout se ramène à la fonction projection qui, d'une part, est l'identité même, et, de l'autre, l'expression en général"13.

Na unidade convergem, pois, dois tipos de variação, de multiplicidade uma intrínseca e outra extrínseca "fielmente expressivas e finalmente idênticas". A variação extrínseca não modifica nada na própria coisa, afecta apenas a mudança de lugar; a variação intrínseca modifica a própria coisa. Nos enunciados de identidade, os idênticos podem substituir-se um pelo outro salva veritate. É evidente que a possibilidade de substituição mútua diz respeito apenas às relações extrínsecas. Na riqueza da Criação não há repetição possível, pois isso revelaria uma pobreza ou uma incapacidade do Criador. Deus ao criar individua cada substância pelo seu próprio "ponto de vista" que a situa, não só no espaço, 12. 13.

Ger, V, p. 65 Nouv. Ess., I, 1. Serres, M. - ob. cit., p. 181.

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enquanto extensão, mas na ordem dos possíveis coexistentes. Por isso não pode haver duas substâncias idênticas, pois teriam que ocupar exactamente o mesmo situs sob o olhar de Deus. Cada substância está perfeitamente situada, determinada, pela noção completa que constitui a série infinita e única dos predicados "existenciáveis" (existentiables). Não há denominações extrínsecas, mas sim uma conexão perfeita entre todas as coisas, conexão que consiste na harmonia universal da entre-expressão das mónadas14. O princípio da identidade dos indiscerníveis é, pois, um corolário da harmonia universal que exige o máximo de diversidade. Sem diversidade não haveria harmonia, mas monotonia, ou monofonia, um longo e árido uníssono. Leibniz recorre com frequência a exemplos da música: "...il ne faut pas que les tuyaux d'un orgue soient égaux"15. "Multiplier uniquement la même chose, quelque noble qu'elle puisse être, ce serait une superfluité, ce serait une pauvreté: (...) chanter toujours les airs de l'Opéra de Cadmus et d'Harmione (...) appellerait-on cela Raison?"16.

Estas considerações prévias sobre o estilo de pensar leibniziano podem considerar-se como um enquadramento para situar, dentro do sistema, a questão da identidade dos indiscerníveis, e advertir que o princípio deve ser focado sob diversas perspectivas, fazendo ver a sua interdisciplinaridade, ou o seu alcance transversal, com repercussões em todas as áreas. Não se pode por isso pensar nos indiscerníveis isoladamente na sua enunciação e implicações lógicas, sem ter em conta o contexto da harmonia, do Todo Uno, maximamente uno porque maximamente variado, um todo constituído por uma unicidade do optimum, de um kósmos, plenum ornatus17.

14. 15. 16. 17.

Cfr. Belaval, Y. - Etudes leibniziennes, p. 94. Ger, VI Théodicée, § 246. Ibidem, § 124. Cfr. Belaval, Y. - ob. cit., p. 96.

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Estatuto do Princípio no sistema de leibniz Na correspondência com Clarke, Leibniz refere expressamente a identidade dos indiscerníveis como consequência directa do princípio da razão suficiente, um dos princípios fundamentais do seu sistema: o nihil est sine ratione significa que em cada proposição verdadeira a razão (Grund) da sua verdade reside na relação de inerência do predicado ao sujeito (praedicatum inest subjecto)18. E como a ratio é constituída pela série infinita dos predicados de um indivíduo, esta não pode admitir réplica, portanto, não pode haver na natureza dois indivíduos que exibam uma mesma ratio, pois deixaria de ser a única série infinita dos predicados de um indivíduo, e já não justificaria cabalmente a sua existência19. Não há aqui, estritamente, uma contradição lógica, mas uma limitação à sabedoria criadora de Deus, uma inconveniência, ou disconformidade; portanto, a inexistência de dois indivíduos absolutamente idênticos, não é considerada por Leibniz, pelo menos na correspondência com Clarke, como uma impossibilidade lógica, mas como uma contradição em relação ao princípio da razão suficiente, contradição, não para a lógica humana, mas talvez para a lógica do entendimento divino20, que vê com um só olhar a noção completa de cada substância individual, contendo todos os predicados. E como cada substância individual é um espelho de todo o Universo, a sua noção completa, para nós inabarcável, é por Deus captada como um ponto, perfeitamente situado (perfeitamente determinado), da constelação total que constitui o Universo governado pela Harmonia Universal. A identidade dos indiscerníveis é, portanto, uma manifestação ineludível da omniabarcante 18.

19.

20.

Couturat, L. - OFI, p. 11: "Principium ratiocinandi fundamentale est, nihil esse sine ratione, vel ut rem distinctius explicemus, nullam esse veritatem, cui ratio non subsit. Ratio autem veritatis consistit in nexu praedicati cum subjecto, seu ut praedicatum subjecto insit, vel manifeste, ut in identicis, veluti si dicerem: homo est homo, homo albus est albus: vel tecte, sed ita tamen ut per resolutionem notionum ostendi nexus possit, ut si dicam novenarius est quadratus, nam novenarius est ter ternarius, seu [ternarius] est numerus ternarius in ternarium multiplicatus, ternarius in ternarium est numerus in eundem numerum, is autem est quadratus". Cfr. Couturat, L. - OFI, p. 519: "Sequitur etiam hinc (nihil esse sine ratione) non dari posse duas res singulares solo numero differentes: utique enim oportet rationem reddi posse cur [dicantur] diversae, quae ex aliqua in ipsis differentia petende est". Cfr. Ger VII, p. 394: "Quand je nie qu'il y ait deux gouttes d'eau entièrement semblables, ou deux autres corps indiscernables, je ne dis point qu'il soit impossible absolument d'en poser; mais que c'est une chose contraire à la sagesse divine, et qui par conséquent n'existe point".

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inteligência divina, que não faz nada sem razão, que jamais se repete. Este é o grande princípio no sistema leibniziano: há sempre uma razão para que algo seja assim, e não de outro modo21. A argumentação de Leibniz contra Clarke-Newton é sobretudo uma defesa deste grande princípio que revela a inteligência superior de um Deus Criador que se contradiria se não actuasse sempre com um fundamento, uma razão. A concepção de um espaço absoluto, real, anterior às coisas existentes nesse mesmo espaço, contradiz esse princípio: um espaço absoluto não tem razão de ser e suscita inúmeras dificuldades. Por isso, contra o espaço absoluto - como um sensorium Dei, eterno e infinito como Deus - Leibniz opõe o espaço como algo de puramente relativo, tal como o tempo; consiste na ordem das coexistências, sendo o tempo a ordem das sucessões22. Um espaço absoluto, como uma substância, contraria o Axioma da Razão Suficiente porque num espaço absolutamente uniforme, um ponto determinado não diferiria em nada de qualquer outro ponto do espaço. E neste caso, supondo o espaço como algo em si mesmo, para além da ordem dos corpos entre si, não haveria razão alguma pela qual Deus, conservando as mesmas situações dos corpos entre si, colocasse os corpos numa determinada posição e não em qualquer outra. Porque na razão (Grund) de cada substância, na sua noção completa estão contidas todas as suas determinações - de contrário não seria razão suficiente - incluindo evidentemente um princípio da ordem, das relações espacio-temporais que cada indivíduo mantém com todos os outros. Essa ordem não lhe pode vir de fora (ab extra) visto que não há denominações extrínsecas, mas todas decorrem do interior de cada substância individual. A substância individual - a mónada - não é espacial nem temporal porque não tem extensão: espaço e tempo são uma ordem dos fenómenos, aparências (Erscheinungen) que se fundam nas percepções através das quais cada Mónada se representa o mundo. A realidade destes fenómenos consiste precisamente na sua ordem e conformidade23. Não é no entanto, o espaço que torna as coisas "situáveis", não se pode considerar o espaço como a origem, ou o princípio da ordem ou da situação:

21. 22. 23.

Cfr. Ger VII, p. 363 (3º Escrito de Leibniz). Cfr. Ger VII, p. 363-364. Cfr. Ger VII, p. 320, De modo distinguendi phaenomena realia ab imaginaria: "Congruum erit phaenomenon, cum ex pluribus phaenomenis constat, quorum ratio reddi potest ex se invicem aut ex hypothesi aliqua communi satis simplice; deinde congruum erit, si consuetudinem servat aliorum phaenomenorum, quae crebro nobis occurrerunt, ita ut partes phaenomeni eum situm, ordinem, eventum habeant, quam similia phaenomena habuerunt".

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"Je ne dis donc point, que l'Espace est un ordre ou situation, mais un ordre des situations, ou selon lequel les situations sont rangées; et que l'espace abstrait est cet ordre de situations, conçues comme possibles"24.

A relatividade do espaço e do tempo, o princípio da razão suficiente e a identidade dos indiscerníveis são três verdades que no pensamento de Leibniz se encontram tão fortemente interligadas e fundamentadas na infinita inteligência de Deus, que não é possível negar a primeira sem rejeitar a segunda e incorrer em teses filosófico-teológicas contraditórias que lesam a omnisciência e a liberdade de Deus. A argumentação de Leibniz contra o Espaço Absoluto de Newton é transparente: •









24.

25.

Se o espaço e o tempo fossem algo de absoluto, uniforme, não haveria razão suficiente para Deus ter colocado os corpos no espaço numa determinada ordem e não noutra, porque os pontos do espaço seriam absolutamente indiscerníveis (3º escrito de Leibniz). Sem razão suficiente que leve a escolher entre duas coisas indiscerníveis, não há escolha possível, pois toda a escolha deve ter alguma razão ou princípio (4º escrito de Leibniz). Uma vontade sem qualquer motivo seria uma ficção, não só contrária à perfeição de Deus, mas quimérica e contraditória (4º escrito de Leibniz). Portanto, o Espaço e Tempo não são Absolutos; são, respectivamente, as ordens dos coexistentes e das sucessões. E, não sendo o espaço absoluto, não há dois indivíduos indiscerníveis, pois poder-se-ão discernir, pelo menos pelo seu situs e relações espacio-temporais, que o determinam de uma forma única e irrepetível25.

Ger VII, p. 415 (5º Escrito de Leibniz); cfr. Ger V, p. 136, Nouv. Ess., II, XIII, § 17: "... il (l'espace) n'est pas plus une substance que le temps et s'il a des parties, il ne saurait être Dieu. C'est un rapport, un ordre, non seulement entre les existants, mais encore des possibles, comme s'ils existaient". As determinações espacio-temporais, segundo Leibniz, fazem parte integrante da série de predicados que constitui a essência de um indivíduo. Não é possível portanto distinguir e separar as circunstâncias de espaço e tempo das outras determinações, como se as primeiras tivessem uma origem extrínseca ao próprio ser individual. Cfr. Ger VII, p. 407 (5º Escrito de Leibniz): "On dit que Dieu peut avoir des bonnes raisons pour placer deux cubes parfaitement égaux et semblables: et alors il faut bien (dit on) qu'il leur assigne leur places, quoique tout soit parfaitement égal. Mais la chose ne doit point être détachée de ces circonstances. Ce raisonnement consiste en notions incomplètes. Les résolutions

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A contra-argumentação de Clarke atribui a Leibniz um necessitarismo que concebe a vontade divina à semelhança de uma balança impossibilitada de mover-se pelo facto de os dois pesos, de um lado e outro, serem iguais: assim, a vontade de Deus perante duas coisas absolutamente indiferentes, seria incapaz de tomar uma decisão (4º escrito de Clarke)26. Leibniz rejeita a acusação de fatalismo, invocando a sua própria distinção, na Teodiceia entre liberdade, contingência, espontaneidade e necessidade absoluta, acaso, coacção. A reiteração da caracterização das diferentes noções modais servirá aqui para esclarecer sobre o estatuto modal da identidade dos indiscerníveis. Em primeiro lugar, há que distinguir entre uma necessidade absoluta e uma necessidade hipotética; entre uma necessidade lógica (aquela cujo oposto implica contradição), metafísica ou matemática; entre uma necessidade moral (a que leva o sábio a escolher o melhor, e todo o espírito a seguir a inclinação mais forte)27. A noção de necessidade hipotética permite resolver a aparente contradição entre a presciência divina e a contingência e liberdade dos acontecimentos futuros: "Mais ni cette prescience ni cette préordination ne dérogent point à la liberté. Car Dieu, porté par la suprême raison à choisir entre plusieurs suites des choses ou mondes possibles celui où les créatures libres prendraient telles ou telles résolutions, quoique non sans son concours, a rendu par là tout événement certain et déterminé une fois pour toutes, sans déroger par là à la liberté de ces créatures: ce simple décrét du choix, ne changeant point, mais actualisant seulement leur natures libres, qu'il y voyait dans ses idées"28.

A necessidade moral tão pouco destrói a liberdade, pois nunca o sábio ou o próprio Deus é tão livre, como quando escolhe o melhor: porque o bem "inclina sem necessitar", sem impor uma necessidade absoluta29, Deus escolhe entre todos

26. 27. 28. 29.

de Dieu ne sont jamais abstraites et imparfaites, comme si Dieu discernait premièrement à créer les deux cubes, et puis discernait à part où les mettre (...) Et même j'ai montré dans la Théodicée qu'à proprement parler, il n'y a qu'un seul décrét pour l'univers tout entier, par lequel il est résolu de l'admettre de la possibilité à l'existence. Ainsi Dieu ne choisira point de cube, sans choisir sa place en même temps; et il ne choisira jamais entre des indiscernables". Cfr. Ger VII, p. 381. Cfr. Ger VII, p. 389. Ger VII, p. 390. Cfr. ibidem, p. 390. Na correspondência com Des Bosses, Leibniz insiste de novo sobre esta importante distinção (citamos a tradução francesa de Frémont, C. L'Être et la Relation, Paris, Vrin, 1981 p. 155): "Je reconnais qu'il y a, pour Dieu, une nécessité morale d'agir selon le meilleur, et pour les esprits conformés selon le bien (...)

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os possíveis, o melhor, mas aqueles possíveis que ficam excluídos depois da eleição divina, se são possíveis não implicam contradição. O contingente que existe depois da escolha de Deus deve a sua existência, não a uma necessidade absoluta, pois nesse caso a sua não existência implicaria contradição, mas sim ao príncipio do melhor, razão suficiente de todos os existentes. A necessidade moral corresponde ao princípio da razão suficiente e ao princípio do melhor; a necessidade absoluta e metafísica depende do princípio da identidade ou da contradição. Qual o estatuto modal que Leibniz atribui ao princípio da identidade dos indiscerníveis? Na correspondência com Clarke, como vimos, o princípio surge sempre intimamente ligado ao da razão suficiente, e nunca é invocado o princípio da identidade ou contradição. Leibniz não considera que o oposto à identidade dos indiscerníveis - a existência de dois seres reais absolutamente idênticos - seja contraditório30. A necessidade do princípio não parece decorrer do princípio da identidade/contradição, mas sim do da razão suficiente, pelo que se trata de uma

30.

Je tiens en tout cas que la possibilité de se déterminer sans aucune cause, c'est-à-dire sans qu'il y ait une racine à la détermination, implique contradiction, comme une relation sans fondament; mais de là on ne peut conclure à la nécessité métaphysique de tous les effets. Car il suffit que la cause ou raison ne soit pas métaphysiquement nécessitante, bien qu'il soit métaphysiquement nécessaire qu'il y ait une telle cause" (L'Être et la Relation, p. 155). Cfr. p. 156, n. 4: diversos sentidos (ou graus) de necessidade: necessidade absoluta ou metafisicamente necessário - cujo contrário implica contradição ou absurdidade lógica; necessidade hipotética ou fisicamente necessário - o que acontece, uma vez dada a sua condição; necessidade moral - cujo contrário implica imperfeição ou absurdidade moral. Os dois primeiros sentidos de necessidade obedecem a uma lógica bivalente, simples - V/F, possível/impossível, idêntico/contraditório. Mas de que lógica depende a necessidade moral? Há dissonância na expressão "absurdidade moral" porque o absurdo depende da lógica da contradição e identidade. Pode dizer-se que Adão pecou por necessidade moral? Leibniz sente certa resistência em empregar a expressão, que considera de certo modo dissonante. Mas em rigor, pode dizer-se que sim, pois Deus, por necessidade moral, escolheu a melhor série entre as possíveis, a qual contém Adão-pecador. No entanto, isto não parece claro - a necessidade moral exige uma lógica mais subtil que a do mero V/F, e onde os contrários não se excluam. Leibniz prefere empregar a palavra inclinação: alguma razão - e não uma necessidade - levou Adão ao mal, mas esta razão é obscura e permanece indeterminada. Cfr. Théodicée, 99-106, Ger VI, pp. 160-161. Cfr. Ger VII, p. 394. Sobre o estatuto modal do Princípio da Identidade dos Indiscerníveis, cfr. Vinci, T. C. - "What is the Grund for the Principle of the Identity of Indiscernibles in Leibniz's Correspondence with Clarke?", Journal of the History of Philosophy, 12 (1974) n. 1, pp. 95-101. Esta argumentação poderia, no entanto voltar-se contra o próprio pensamento de Leibniz: se a ideia de dois seres idênticos não é contraditória, a razão suficiente da criação de um de esses seres seria também razão suficiente da criação do outro, o que choca com a própria ideia de razão suficiente. Esta objecção foi-me sugerida por Angel d'Ors.

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necessidade moral, não absoluta, nem lógica. No 5º escrito a Clarke, Leibniz reinvoca a mesma razão para rejeitar a existência, na natureza criada de dois seres reais absolutos, indiscerníveis: "parce que s'il y en avait, Dieu et la nature agiraient sans raison, en traitant l'un autrement que l'autre"31.

Esta suposição é falsa e contrária ao princípio da razão. No entanto, a sua verdade não exclui terminantemente, duma forma absoluta, a verdade contrária. Afirmar isto seria atribuir ao princípio uma necessidade absoluta, metafísica e pensar que tudo o que Deus faz, deve ser feito necessariamente. Leibniz rejeita uma vez mais, como já o fizera na Teodiceia, as teses de Diodoro, segundo o qual o possível coincide com o que de facto acontece, ou seja, não há nenhum possível que não passe de facto à existência. Esta tese equivale a assimilar a necessidade moral com a absoluta, vontade e poder de Deus. Deus, reitera Leibniz, pode produzir tudo o que é possível, ou tudo o que não implique contradição; mas quer produzir o melhor entre todos os possíveis32. No melhor dos mundos possíveis, há o máximo de variedade, cada indivíduo realiza uma noção completa, a sua própria ratio, (Grund) que o identifica cabalmente, distinguindo-o de todos os outros seres reais; nenhum indivíduo possui réplica possível, não há repetições, pois se cada mónada espelha todo o Universo, o seu ponto de vista é, evidentemente, único e irrepetível. Mas precisamente porque esta noção individual, perfeita e completa de cada substância individual contém um número infinito de predicados, só um Entendimento infinito a pode abarcar totalmente. Só Deus conhece os conceitos completos de todas as substâncias existentes vendo de um modo imediato a análise completa das verdades (para nós) contingentes. Assim, estas verdades que para nós só podem ser apreendidas por experiência e nos surgem como contingentes, estão presentes ao Entendimento Divino na sua real analiticidade, na sua directa relação com a própria ratio. Para entender cabalmente o significado do principium rationis, Leibniz tem que reportá-lo, não a um entendimento finito, humano, mas ao Entendimento divino que domina todos os conceitos de um modo intuitivo e vê imediatamente a razão e fundamento de

31. 32.

Ger VII, p. 393. Cfr. Ger VII, p. 409: "On confond la nécessité morale, qui vient du choix du meilleur, avec la nécéssité absolue; on confond la volonté avec la puissance de Dieu. Il peut produire tout possible, ou ce qui n'implique point de contradiction; mais il veut produire le meilleur entre les possibles".

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cada verdade33. É à "lógica", que regula este entendimento superior, que pertence o dictum a uma substância, um conceito, que fundamenta, em última análise, o princípio da identidade dos indiscerníveis. Uma vez que as substâncias existentes são escolhidas entre os diferentes conceitos que se encontram na mente de Deus sub ratione possibilitatis, e uma vez que uma substância só pode ser considerada através dos seus predicados, cuja série infinita a individualiza e distingue de todas as outras substâncias individuais, é evidente que substâncias diferentes diferem nas suas propriedades e, portanto, têm diferentes predicados34. De contrário, se existissem duas substâncias indiscerníveis a e b, na noção completa da substância a teria que estar contida uma verdade a seu respeito, a saber, que há outras substâncias que correspondem exactamente à sua descrição, verdade que não pode racionalmente dizer-se do conceito de a, visto que b é conceptualmente indiscernível de a35. A identidade/diferença entre dois indivíduos baseia-se portanto, na coincidência/não coincidência dos respectivos conceitos, noções completas, conjunto de todos os seus predicados. A coincidência de dois conceitos só pode ser conhecida mediante a análise comparativa de ambos conceitos, levada até aos elementos constituintes mais simples e indecomponíveis. No entanto, até que ponto é acessível a uma inteligência humana, esta análise exaustiva de uma noção individual? Se a identidade de dois seres existentes se define através dessa coincidência completa das respectivas noções e a sua diferença através da não coincidência, o princípio da identidade dos indiscerníveis não é necessariamente aplicável aos fenómenos, ao mundo existente tal como se nos dá a conhecer. E, embora o princípio exclua racionalmente, com uma prova fundada no princípio da Razão, a existência de dois indivíduos idênticos neste mundo, nem sempre, do ponto de vista do entendimento humano será possível afirmar uma efectiva 33.

34. 35.

Cfr. Kauppi, R. - "Einige Bemerkungen zum Principium Identitatis Indiscernibilium bei Leibniz", Zeitschrift für Philosophie Forschung, Band XX (1966) pp. 497-506. Cfr. Rescher, N. - The Philosophy of Leibniz, New York, Prentice – Hall, Englewood Cliffs, 1967, 49. Rescher, N. - ob. cit., p. 49: "If there were two distinct indiscernibles a and b, then there would have to be present in the complete individual notion of substance a a truth regarding it - namely, that there are several other substances answering exactly to its own description - which could not reasonably be held to be something programmed into the concept of a, since b is conceptually indistinguishable from a". Neste caso, já o oposto à identidade dos indiscerníveis implicaria contradição, mas uma contradição que só um entendimento que conheça as noções completas das substâncias individuais poderia perceber. Estamos de novo numa lógica de Deus, nas leis de um entendimento que esgota, num só olhar, todas as análises das noções completas.

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indiscernibilidade entre dois objectos36. Esta objecção, no entanto, não levanta dificuldades a Leibniz. Como observa Rescher, Leibniz não vê necessidade de garantir que dois objectos sejam de facto distinguidos pelas operações do entendimento humano: "He does not have to hold that all things are distinguished, but only that they are distinguishable, discriminable, in the final analysis by God, who alone knows the complete individual notions of the substances at issue"37.

De qualquer modo, esta inacessibilidade da discernibilidade ao entendimento humano, torna problemático o estatuto epistémico e lógico do princípio, a tal ponto que o próprio Leibniz o reconhece um tanto paradoxal, como expressamente o afirma: "Il s'ensuit de cela (que a substância individual possua uma noção tão completa que a partir dela se possa compreender e deduzir todos os seus predicados) plusieurs paradoxes considérables, comme entre autres qu'il n'est pas vrai que deux substances se ressemblent entièrement et soyent différentes solo numero..."38.

Não parece, portanto, que a identidade dos indiscerníveis assuma, no sistema de Leibniz, o papel de um princípio lógico: ele é introduzido várias vezes através de uma espécie de dedução transcendental formulada, não para um entendimento circunscrito ao fenoménico, limitado por procedimentos temporais de análises sempre incompletas, mas para um entendimento infinito e absoluto, capaz de uma apreensão imediata da noção completa de cada substância e, por isso também de todo o Universo39. A fundamentação do princípio da identidade dos indiscerníveis no princípio da razão suficiente, na noção de substância individual, é, sem dúvida, suficiente para provar a validade e a necessidade moral do princípio. Mas será que esta validade e este estatuto modal são suficientes para o considerar como um princípio lógico e utilizar a indiscernibilidade para a definição lógica da relação de identidade? Ou Leibniz ter-se-á limitado, na enunciação lógica do princípio a indicar uma regra de substituição de termos idênticos nos enunciados de identidade no sistema da lógica moderna? Até que ponto considerará Leibniz esta regra (Eadem sunt quorum unum in alteribus locum substitui potest, salva veritate) como um princípio analiticamente 36. 37. 38. 39.

Cfr. Kauppi, R. – Über die Leibnizsche Logik, Helsinki, 1960, 503. Rescher, N. - ob. cit., p. 49. Ger, IV, p. 433. Cfr. Ger IV, p. 434.

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explicativo do conceito de identidade? Entre a definição da identidade recorrendo à infinitude de predicados de uma substância individual, noção inacessível e incontrolável para um entendimento finito, e a operacionalidade lógica e semântica da correspondente regra da substituibilidade de termos idênticos, há de facto uma clivagem abissal. Não manifestará esta clivagem a anfibolia da própria noção de identidade, por um lado intimamente unida à noção completa da substância individual, por outro, indissociável da noção de variedade e diversidade, à qual serve de compensação para constituir a verdadeira harmonia?40 E não traduz afinal esta anfibolia da identidade a disjuntiva crescente na evolução do pensamento leibniziano entre a admissão exclusiva da substância monadológica simples, eterna, absolutamente una e auto-idêntica, e a admissão de substâncias compostas, os corpos materiais, os seres por agregação?41 Na primeira alternativa os corpos materiais não seriam senão fenómenos bem fundados, a identidade da substância simples daria lugar à congruência. À imagem do mundo platónico, ao qual Leibniz aliás se refere explicitamente, a identidade relegada para a esfera ideal das substâncias simples, assume efectivamente a função transcendental, reguladora, de ordenar as relações entre os fenómenos, percepção e expressão das mónadas. A segunda alternativa, com a hipótese das substâncias compostas, aproxima indubitavelmente os dois termos do binómio identidade/ variedade, mas terá que resolver as questões levantadas pela identidade da substância individual, reiterando todo o problema da individuação. Como se vê, a elucidação e definição da identidade segue de perto e é condicionada pelo destino da noção de substância...

v v v

Na correspondência com Des Bosses a problemática da disjuntiva substância simples/substância composta ou ser por agregação constitui um dos temas centrais do diálogo. Leibniz atribui claramente à Entelecheia uma função "transcendental" como princípio da diferenciação e fundamento da discernibilidade: a matéria - a superfície exterior, ou a sua aparência em movimento, figuras, limites - é indiferente, na medida em que é puramente

40. 41.

Cfr. "Confessio Philosophi" Ak. VI, III, p. 116: "TH. Quid tandem harmonia? PH. Similitudo in varietate, seu diversitas identitate compensata". (sublinhado nosso). Cfr. Robinet, A. - Architectonique disjunctive Automates Systématiques et Idéalité Transcendentale dans l’oeuvre de G.W. Leibniz , Paris, Vrin, 1986, 13-36.

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passiva, não introduz nenhuma diferenciação nos seres42; é na forma, entelecheia que se deve procurar o princípio da diferença. E como são as formas que constituem a matéria orgânica, a elas se deve atribuir toda a variedade que podemos encontrar na própria matéria43. Com mais nitidez ainda do que em escritos anteriores, Leibniz associa aqui o princípio dos indiscerníveis à constituição metafísica da substância, como princípio de força, de acção, de determinação. A unidade de um corpo da natureza não pode provir dos seus contornos, do seu situs, da sua figura - termos todos eles puramente negativos mas sim da força dominante que dá ao conjunto a sua coesão. A figura, os contornos dos seres materiais apresentam-se demasiado fluidos, variáveis, para poderem constituir um princípio de diferenciação e de identidade. Em carta a Arnauld, Leibniz exprime-se nestes termos: "Elle (la matière) n'a pas même des qualités précises et arrêtées qui la puissent faire passer pour un être détérminé (...); puisque la figure même qui est de l'essence d'une masse étendue terminée, n'est jamais exacte et determinée à la rigueur dans la nature, à cause de la division actuelle à l'infini des parties de la matière. Il n'y a jamais ni globe sans inégalités, ni droite sans courbures entremêlées, ni courbe d'une certaine nature finie, sans mélange de quelque autre, et cela dans les petites parties comme dans les grandes, ce qui fait que la figure bien loin d'être constitutive des corps, n'est pas seulement une qualité entièremente réelle et déterminée hors de la pensée, et on ne pourra jamais assigner à quelque corps une certaine surface précise, comme on pourrait faire, s'il y avait des Atomes"44.

É evidente, portanto, que nenhum princípio de diferenciação e de discernibilidade pode vir do que é mera aparência, fenómeno com uma consistência precária e variável. Leibniz sugere aqui que os corpos têm contornos fluidos, flutuantes, movediços, não sendo a sua superfície exterior senão uma aparência, um fenómeno fundado nos graus de conexão internos ao corpo45. A unidade deste corpo é dinâmica, não geométrica e só pode radicar na mónada 42. 43.

44. 45.

Cfr. C. Fremont, L'Être et la Relation, p. 200. Cfr. L'Être et la Relation, p. 154: "Et d'abord, puisque les Entéléchies représentent la constitution de la matière organique, il doit se trouver en elles autant de variété que nous en percevons dans la matière elle-même et il n'est pas possible qu'une Entéléchie soit parfaitement semblable à une autre; et l'Entéléchie agit dans la matière suivant sa propre exigence, en sorte que l'état dernier de la matière soit enchaîné à l'état antérieur suivant les lois de la nature..." Ger II, p. 119. Cfr. L'Être et la Relation, p. 155, n. 2.

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dominante que o constitui como um corpo. É aí, e não na aparência da figura, dos contornos, na localização espacio-temporal, que reside a sua identidade e o princípio da sua unicidade e consequente discernibilidade em relação a todos os outros seres materiais. A evolução do pensamento de Leibniz vai confirmando o contexto metafísico do princípio dos indiscerníveis e a correspondência entre a noção de substância e a de identidade, correspondência que se revela na co-pertença das duas noções e suas definições. A raiz e causa da unicidade e identidade de cada ser individual está na sua própria substância, não enquanto um mero somatório de predicados, mas enquanto entelecheia, forma dominante, princípio de unidade, vínculo que garante e funda a coesão de todos os atributos. E, se Leibniz pensa em vínculo substancial, em mónada dominante, que objecções se poderão opor à consideração de uma certa hierarquia ou ordem dos atributos da substância e das substâncias mesmas, que permita modular o princípio da identidade dos indiscerníveis? Tal como o princípio da razão suficiente, lei fundamental do sistema, que afirma a necessidade absoluta de que haja uma razão, um fundamento para cada coisa, mas admite modulação segundo o domínio de aplicação e o grau de suficiência46, também a indiscernibilidade, consequência deste princípio, poderia admitir uma modulação segundo o grau e a força do vínculo que constitui a sua coesão interna e determina a sua configuração. À identidade/diferença neste sentido forte, metafísico, pode corresponder, no sentido lógico e epistémico uma variedade de modos ou de graus da identidade pensada, que permita diferentes tipos de substituição dos signos correspondentes, e dê origem a uma pluralidade de conceitos afins, mas cuja variedade exprima uma escala de relações, todas elas subsumidas pela de identidade. Essa escala de relações é aliás proposta e definida por Leibniz: "Idem, si unum ubique in alterium locum substitui potest salva veritate (...) 46.

Cfr. L'Être et la Relation, p. 155: "... il suffit que la cause ou raison ne soit pas métaphysiquement nécessaire, bien qu'il soit métaphysiquement nécessaire qu'il y ait une telle cause". E, p. 157, nota 5 de C. Fremont: "Le principe de raison est une loi du Système: il est nécessaire absolument qu'il y ait des raisons; toute chose a sa raison suffisante. Mais le principe se laisse moduler suivant le domaine d'application et le degré de suffisance. On peut limiter la suffisance au requisit immédiatement antérieur sur un élément ou un état du monde: on définit le domaine de la nécessité hypothétique. On peut chercher le requisit absolu de l'agrégat tout entier: c'est la nécessité absolue ou métaphysique, qui mène à Dieu comme raison dernière. Mais on peut aussi limiter la suffisance sur l'ensemble de l'agrégat: non pas "pourquoi le monde" mais "pourquoi ce monde"? C'est alors la nécéssité morale. Il faut absolument qu'il y ait une nécessité morale, mais celle-ci ne pose aucune loi qui soit nécessaire absolument".

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Aequalia, quorum eadem est quantitas, seu quae sibi substitui possunt salva quantitate. Similia quae sibi substitui possunt salva qualitate seu ita discerni nequeant, nisi simul spectantur. Congrua, quae iisdem terminis possunt contineri; ea si ejusdem materiae sunt seu partes suas habent similes inter se, similia sunt. Congrua semper aequalia sunt"47.

Nesta escala, a congruência é a relação que mais se aproxima da identidade: são congruentes aquelas coisas que, embora diferentes, só se podem distinguir em relação a coisas externas, como por exemplo os quadrados C e D, que estão ao mesmo tempo em lugares e situs diferentes. São congruentes também, por exemplo, uma libra de ouro e outra de chumbo, hoje e ontem, um ponto qualquer e outro ponto no espaço, um instante e outro instante48. As coisas congruentes só diferem por uma denominação extrínseca ou uma referência exterior. A congruência define ordens nas quais as coisas só são discerníveis segundo critérios exteriores à própria ordem definida; no entanto, dentro desta mesma ordem, elas são indiscerníveis: por exemplo todos os pontos, todos os quadrados, todas as quantidades de medida. À congruência corresponde portanto um grau de indiscernibilidade extrínseca, que requer um critério exterior às próprias coisas congruentes. Ao argumentar contra Clarke e a sua tese de um Espaço Absoluto, com a noção da relatividade do espaço, é este tipo de indiscernibilidade que se pode provar. A mera indiscernibilidade pela diferença de situs ou de instante do tempo só permite mostrar uma indiscernibilidade extrínseca, que necessita de recorrer à ordem dos coexistentes (espaço) ou à ordem das sucessões (tempo) como critério de distinção. No entanto, mesmo nesta correspondência, Leibniz tem o cuidado de sublinhar que não pretende afirmar de modo algum que o Espaço seja causa ou origem dos diferentes situs e lugares, pois isso voltaria a pressupor um Espaço Absoluto. São as coisas diferentes que dão origem a diferentes situs e portanto diferentes espaços. Mas, quando essas coisas diferentes são congruentes, a sua diferença pode consistir apenas no seu diferente situs. O critério de discernibilidade recorre a um factor externo, à ordem definida pela própria relação de congruência, mas a indiscernibilidade tem sempre um fundamento intrínseco às coisas indiscerníveis. 47. 48.

Cfr. Scientia Generalis, Ger VII, 196. Cfr. Mathematischen Schriften, Ger VII, p. 29: "Congrua sunt, quae si diversa sunt, non nisi respectu ad externa discerni possunt, ut quadrata C et D, nempe quod eodem tempore sunt in diverso loco vel situ, vel quod unum C est in materia aurea, alterum D in argentea. Ita congruunt libra auri et libra plumbi; dies hodiernus et hesternus. Punctum quodlibet congruit cuilibet alteri, ut et instans instanti".

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Assim combina Leibniz a escala de variações da identidade-congruência, com o princípio fundamental no seu sistema, segundo o qual, para as verdadeiras substâncias, não há denominações extrínsecas, mas todas as relações são internas. O fundamento de toda a identidade - mesmo nas suas modalidades mais atenuadas - reside na relação de inerência de todo o predicado à substância, sujeito do enunciado. Esta tese é ao mesmo tempo a regra básica de todo o cálculo lógico49 e a expressão mais radical da noção de substância, como Leibniz expressamente afirma no Discours de Métaphysique: "or il est constant que toute prédication véritable a quelque fondement dans la nature des choses, et lors qu'une proposition n'est pas identique, c'est à dire lors que le prédicat n'est pas compris expressément dans le sujet, il faut qu'il y soit compris virtuellement, et c'est ce que les Philosophes appellent in-esse, en disant que le prédicat est dans le sujet (...) Cela étant, nous pouvons dire que la nature d'une substance individuelle ou d'un être complet, est d'avoir une notion si accomplie qu'elle soit suffisante à comprendre et à en faire déduire tous les prédicats du sujet à qui cette notion est attribuée"50.

A noção da substância individual como a de um ser tão completo que permita deduzir todos os predicados exige evidentemente a unicidade de cada indivíduo e a sua perfeita discernibilidade de todos os outros. Uma "noção completa" é aquela que contém em si mesma uma tendência tão forte para a existência51, uma quantidade de perfeição tão grande52, que exige a sua 49.

50. 51. 52.

Cfr. Couturat, L. - OFI, p. 51: "Omnem propositionem veram categoricam , nihil aliud significare quam conexionem quandam inter Praedicatum et subjectum < in casu recto de quo hic semper loquar>, ita scilicet ut praedicatum dicatur inesse subjecto , seu ut subjectum dicto modo dicatur continere praedicatum: hoc est ut notio subjecti involvat notionem praeditati,
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