O problema da Akrasia em Platão e Aristóteles.

June 16, 2017 | Autor: Daniel Nascimento | Categoria: Euripides, Akrasia, Platão, Aristoteles, Filosofia antiga
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Daniel Simão Nascimento

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

O Problema da akrasia em Platão e Aristóteles

Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Orientador: Profª. Maura Iglésias

Rio de Janeiro Abril de 2013

Daniel Simão Nascimento

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O Problema da akrasia em Platão e Aristóteles Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profª. Maura Iglésias Orientadora Departamento de Filosofia - PUC-Rio Prof. Danilo Marcondes de Souza Filho Departamento de Filosofia - PUC-Rio Profª. Ana Flaksman Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO Profª. Priscilla Tesch Spinelli Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS Profª. Maria Inês Senra Anachoreta Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

Profª. Denise Portinari Coordenadora Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas Rio de Janeiro, 17 de abril de 2013.

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.

Daniel Simão Nascimento

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Daniel Simão Nascimento graduou-se emHistóriapelaUniversidade Federal Fluminense (2003). Como bolsista da CAPES, cursou o mestrado (2007) e o doutorado (2013) emFilosofiapelaPontifíciaUniversidadeCatólica do Rio de Janeiro. Durante o doutorado, e também com o apoio da CAPES, cursou um estágiodoutoralnaUniversidade Paris 1 – Panthéon Sorbonne, sob a orientação da professoraAnnickJaulin.

Ficha Catalográfica Nascimento, Daniel Simão O problema da akrasia em Platão e Aristóteles / Daniel Simão Nascimento ; orientador: Maura Iglésias. – 2013. 271 f. ; 30 cm Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia, 2013. Inclui bibliografia 1. Filosofia – Teses. 2. Akrasia. 3. Platão. 4. Aristóteles. 5. Eurípides. 6. Voluntário. I. Iglésias, Maura. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.

CDD: 100

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Agradecimentos

À PUC-Rio pelos auxílios constantes concedidos ao longo do mestrado e do doutorado.

À CAPES pelas bolsas de estudos que permitiram não somente o doutorado, mas também um ano de estágio doutoral na França que foi fundamental para o resultado obtido.

Aos funcionários do departamento pela atenção e o apoio.

À professora Maura Iglésias pela orientação e por todos os diálogos, os que lemos e os que travamos, ao longo desses quatro anos.

À professora Annick Jaulin pela recepção na Universidade de Paris I, pelo tempo e cuidado dispensados na discussão desse trabalho.

À Priscilla Spinelli, Anna Flaksman e Maria Inês Anachoreta pelas ricas contribuições ao desenvolvimento do trabalho.

Aos familiares pelo suporte e carinho.

Ao meu pai Álvaro pela tão dedicada revisão.

À Gisele, por construirmos veredas.

Resumo

Nascimento, Daniel Simão; Iglésias, Maura. O problema da akrasia em Platão e Aristóteles. Rio de Janeiro, 2013. 271p. Tese de Doutorado – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Se ainda hoje permanece a dúvida a respeito da possibilidade de se encontrar, na filosofia grega, um conceito que possa corresponder ao conceito latino de vontade, ninguém parece questionar o fato de que foram os gregos os PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

primeiros filósofos a tentar compreender o fenômeno que hoje chamamos de ‘fraqueza da vontade’ – e que eles chamavam simplesmente akrasia. Embora o primeiro filósofo que tenha empregado tal termo ao discutir o problema tenha sido Aristóteles (EN VII.1), a primeira discussão filosófica acerca da akrasia pode ser encontrada no Protágoras de Platão. Lá, o fenômeno que é discutido recebe o nome de ‘ser vencido pelos prazeres’. Como sabemos, Sócrates nega que tal fenômeno seja possível e afirma o famoso paradoxo Socrático segundo o qual ninguém erra voluntariamente. Nosso trabalho tem por objetivo principal traçar uma comparação entre o problema da akrasia nas filosofias de Platão e de Aristóteles, para que possamos compreender melhor algo que até hoje é motivo de grandes controversas, a saber, em que media Aristóteles se afasta da explicação socrática da akrasía e em que sentido ele a aceita. Para tal, procuramos esclarecer não somente as diferenças notáveis entre os dois autores no que diz respeito à descrição da akrasia mas também à maneira como cada um dos autores concebem o ato voluntário. Além disso, dedicamos nossa introdução à discussão de duas peças de Eurípides, Hipólito e Medéia, com o objetivo de iluminar isso que poderíamos chamar, talvez, de raízes pré-filosóficas do problema.

Palavras-chave: Akrasia;

Platão;

Aristóteles;

Eurípides;

Voluntário.

Abstract

Nascimento, Daniel Simão; Iglésias, Maura. (Advisor). The Problem of Akrasia in Plato and Aristotle. Rio de Janeiro, 2013. 271p. Thesis Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Although to this day some doubt remains about whether we can find, in Greek philosophy, a concept that corresponds to the latin notion of the will,

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nobody seems to question the fact that the greek philosophers were the first to try to understand the phenomenon which today we call ‘weakness of the will’ – and that they called akrasia. Although the first philosopher employed this term when discussing the problem was Aristotle (EN VII.1), the first philosophical discussion about akrasia is to be found in Plato’s Protagoras. In this dialogue, the phenomenon that is discussed is called ‘being defeated by pleasures’. As we know, Socrates denies that such a thing is even possible and affirms his famous paradox according to which nobody errs willingly. This work’s main goal is to compare the problem of akrasia in Plato and Aristotle, so that we can better understand something which is still a matter of great dissent: how much of the Socratic explanation of the phenomenon is accepted by Aristotle and how much of it is discarded? In order to answer this question, I’ve tried to highlight the differences that separate the authors in what concerns both their description of akrasia and the way they conceive the voluntary act. I’ve also dedicated the introduction of the work to a discussion about two plays of Euripides, Hyppolitus and Medea, with the objective of shedding some light in what we might perhaps call the ‘pre-philosophical roots’ of the problem.

Key-Words: Akrasia; Plato; Aristotle; Euripides; Voluntary.

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Sumário

1. Introdução ...................................................................................

11

1.1.

Kratos em Homero ................................................................

11

1.2.

Eurípides e o conflito entre razão e paixão ...........................

13

1.3.

A akrasia em Eurípides segundo Terence Irwin ....................

20

1.4.

Medéia ...................................................................................

23

1.5.

Hipólito ...................................................................................

35

1.6.

Um outro olhar sobre a akrasia em Eurípides .......................

43

2. O Protágoras ................................................................................

48

2.1.

Akrasia e intelectualismo socrático .......................................

48

2.2.

O relato da multidão e a pergunta de Sócrates .....................

49

2.3.

O prazer e o bem ...................................................................

52

2.4.

O hedonismo do Protágoras ..................................................

54

2.5.

A metretike e a força das aparências ....................................

59

2.6.

Opinião e phantasia ...............................................................

63

2.7.

A conclusão do argumento socrático ....................................

69

2.8.

Platão, Mill e o utilitarismo .....................................................

75

2.9.

O argumento socrático no contexto do Protágoras ...............

79

2.10. Justiça, virtude e metretike ....................................................

81

3. O Górgias .....................................................................................

83

3.1.

83

Plano do capítulo ...................................................................

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3.2.

A definição da retórica ...........................................................

84

3.3.

O orador, o tirano e a felicidade: o argumento do poder .......

89

3.4.

Justiça e utilidade ..................................................................

97

3.5.

O ato voluntário segundo Sócrates .......................................

101

3.6.

Injustiça e vergonha ..............................................................

103

3.7.

Sobre as aparentes contradições entre o Górgias e o

Protágoras ........................................................................................

105

3.8.

Cálicles, a retórica e o binômio natureza e convenção .........

105

3.9.

Hedonismo,

akolasia

e

mais

algumas

aparentes

contradições .....................................................................................

109

3.10. Hedonismo e desenvolvimento no Górgias de Platão ..........

114

3.11. Sobre o maior dos males .......................................................

115

3.12. O ato voluntário e o problema da akrasia ..............................

117

4.

A República ...........................................................................

119

4.1.

Os fundamentos da interpretação tradicional .......................

119

4.2.

A tripartição da alma e o conflito psíquico no livro IV da

República .........................................................................................

124

4.3.

A hipótese determinista ..........................................................

129

4.4.

As almas injustas dos livros VIII e IX .....................................

135

4.5.

A enkrateia na República ......................................................

148

4.6.

Leôncio ..................................................................................

155

4.7.

Platão e o ‘princípio valor-força’ ............................................

159

5. O ato voluntário em Aristóteles ..................................................

164

5.1.

As duas investigações do conceito .......................................

164

5.2.

Aristóteles e o paradoxo socrático ........................................

164

5.3.

Reprovação, louvor e os limites do constrangimento ............

168

5.4.

Os atos feitos por ignorância .................................................

176

5.5.

Involuntário e não voluntário .................................................

180

5.6.

Sobre o papel do conhecimento na ação voluntária .............

185

5.7.

O vício, assim como a virtude, é voluntário ...........................

194

5.8.

O ato voluntário e o problema da akrasia (II) ........................

197

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6. EN VII, I-X ..................................................................................

199

6.1.

O método da investigação .....................................................

199

6.2.

A primeira opinião: akrasia e malakia, enkrateia e karteria ...

200

6.3.

A segunda opinião: autocontrole e obstinação ......................

204

6.4.

A terceira opinião e a explicação platônica da akrasia .........

207

6.5.

Temperança, autocontrole e algumas formas de akrasia por

analogia: as três últimas opiniões ....................................................

214

6.6.

Sobre os objetos da akrasia ..................................................

215

6.7.

A akrasia theriodes e a akrasia tou thymou ..........................

220

6.8.

Os dois sentidos de ‘conhecer’ ..............................................

224

6.9.

Sobre o silogismo prático ......................................................

226

6.10. O silogismo prático na ação incontinente .............................

231

6.11. Sobre o suposto intelectualismo do livro VII da Ética a Nicômaco .........................................................................................

239

6.12. Os dois tipos de akrasia: impulsividade e fraqueza ..............

249

6.13. Aristóteles e o ‘princípio valor-força’ ......................................

251

7. Conclusão ..................................................................................

257

8. Referências Bibliográficas ............................................................

266

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“One must start out with error and convert it into truth. That is, one must reveal the source of error, otherwise hearing the truth won’t do any good. The truth cannot force it’s way in when something else is occupying it’s place. To convince someone of the truth, it is not enough to state it, but rather one must find the path from error to truth.” - Ludwig Wittgenstein, Remarks on Frazer’s Golden Bough.

“Les études doivent avoir pour but de donner à l’esprit une direction qui lui permette de porter des jugements solides et vrais sur tout ce qui se presente à lui.” - Descartes, Règles pour la direction de l’Esprit.

1 Introdução 1.1 Kratos em Homero Nossa investigação tem como objeto o problema da akrasía (termo que traduzimos habitualmente por incontinência), que é uma falha atribuída a aquele que é dito akrates, isto é, sem kratos. No que diz respeito a este último termo, será bastante instrutivo relembrar, ainda que resumidamente, a investigação feita por Benveniste em O vocabulário das instituições indo-européias.

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Segundo o autor: Kratos não significa ‘força física’ (iskhús, sthenós) nem ‘força de alma’ (alké), e sim ‘superioridade, predominância’, seja no combate ou na assembléia. Esse sentido, constante para kratos, é confirmado por uma parte dos usos do derivado kraterós, que significa ‘sem igual’, principalmente no combate (BENVENISTE, 1995, P. 71).

Como nos diz Benveniste, a compreensão adequada desse termo é de grande importância para qualquer interpretação acerca do estatuto do rei e dos predicados da basiléia na sociedade homérica. Seu estudo pretende alcançar uma melhor compreensão da sociedade homérica e de suas relações de poder através do esclarecimento do significado deste termo nos poemas homéricos. O fragmento que o guia é a áspera censura feita por Diomedes a Agamenon na Ilíada (IX, 39). Na tradução de Benveniste, tal passagem pode ser lida da seguinte maneira: “Zeus colocou em ti dons contrários: concedeu-te ser, mais do que qualquer outro, honrado pelo cetro, mas não te deu a alké, que é o maior kratos” (BENVENISTE, 1995, P. 72). Benveniste desenvolve a sua análise do fragmento criticando a tradução hegemônica de kratos como forte. Sempre se atendo à poesia homérica, o autor nos revela o significado de alké através do seu uso em outros versos: trata-se da fortitude, da virtude que permite “enfrentar o perigo sem nunca recuar, não ceder aos assaltos, manter-se com firmeza no combate” (BENVENISTE, 1995, P. 73). Efetivamente, no fragmento supracitado Diomedes recrimina Agamenon por querer desistir do cerco de Tróia diante dos primeiros revezes sofridos por seu exército. O autor, no entanto, nos adverte do perigo de tomar alké e kratos como simples sinônimos, ressaltando o fragmento onde Idomeneu pede ajuda para combater Enéas, possuidor do que é dito então ser o maior kratos: a flor da juventude

12 (Ilíada, XIII, 481). Ainda que um pouco extensa, não podemos deixar de citar aqui a conclusão a que chega Benveniste. Concluamos que na fórmula lógica ‘o x que é o kratos’ em que x admite diferentes argumentos, o predicado ‘que é’ não implica a identidade, e sim a condição necessária. Portanto, segundo as circunstâncias, existem diferentes condições do kratos, umas relativas à idade e ao estado físico, outras a faculdades como a alké. Acrescentemos logo uma outra condição, esta primordial, a vontade dos deuses, o que mostra no kratos uma força passível de variação: ‘Deixemos agora este arco, e confiemo-nos aos deuses. Amanhã o deus dará o kratos a quem lhe aprouver’, diz Ulisses a seus jovens rivais (Od. 21, 280). Aqui o kratos é a faculdade de vencer uma prova de força. Ora, se observarmos as circunstâncias em que aparece o kratos, veremos que elas se referem sempre a uma prova dessas, e que kratos sempre indica a superioridade de um homem, quer afirme sua força entre os seus ou sobre os seus inimigos (BENVENISTE, 1995, P. 75).

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Segundo Benveniste, portanto, o universo semântico da significação primária de kratos se refere fundamentalmente a contextos de disputa e cooperação entre indivíduos ou grupos de indivíduos, e mesmo seus significados secundários são ainda devedores deste campo semântico. Como veremos, o que é notável no que diz respeito ao uso da palavra na discussão filosófica é que o akrates, o sem kratos, não é aquele que perde um confronto nem para um outro indivíduo e nem para um grupo de indivíduos, mas sim aquele que sucumbe num conflito interno. Ele é dito akrates por não conseguir se fazer prevalecer dentro de si mesmo. Ora, mas como é possível a um indivíduo perder para si mesmo? Qual o sentido que se poderia atribuir a isso? Tais perguntas serão abordadas ao longo do presente trabalho. No momento, a pergunta que nos ocupará diz respeito a essa mudança de emprego do termo kratos que o transfere de sua esfera primária de significação para um contexto estritamente individual. Que tenha sido a filosofia o primeiro discurso a empregar o termo akrates para descrever o incontinente não é algo que pareça carecer de confirmação. No entanto, nos parece impossível negar que entre o emprego do termo tal como encontramos em Homero e o uso que dele faz o discurso filosófico há ainda um momento chave para a compreensão de nosso problema. Refiro-me, é claro, à tragédia grega e à obra de Eurípides, que já vêm sendo estudadas ao longo de quase todo o século XX por especialistas que se dedicaram ao problema da akrasia.

13 1.2 Eurípides e o conflito entre razão e paixão Embora a obra de Eurípides não deixe de suscitar controvérsias ainda hoje, creio ser possível notar um crescente consenso ao longo do século XX em torno de uma determinada tradição hermenêutica. Em seu livro intitulado Sophrosyne, selfknowledge and self-restraint in Greek literature, Helen North compara Eurípides com Ésquilo e Sófocles, buscando mostrar a principal diferença entre os três tragediógrafos gregos no que diz respeito à maneira como pensavam a tragédia e a temperança, isto é, a sophrosyne, virtude moral e cardeal grega que será tão importante para o discurso filosófico.

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Segundo a autora: Para Ésquilo, que encontrava a fonte da tragédia na hybris, isto é, na transgressão arrogante da lei humana e Divina, a temperança (sophrosyne) era essencialmente religiosa, e consistia na aceitação das limitações mortais. Para Sófocles, cujo conceito trágico era enraizado na imperfeição da natureza heróica, a temperança era o auto-conhecimento que possibilita ao homem lidar com (come to grips with) a realidade. Para Eurípides, que via no triunfo do irracional sobre o racional a fonte primária da tragédia tanto para o indivíduo quanto para a sociedade, a temperança é um dos muitos nomes para o elemento racional. Ela é a qualidade, de origem intelectual, mas predominantemente moral em sua aplicação e seu efeito, que controla e modera as paixões, isto é, a luxúria, a raiva, a ambição, a crueldade ou até algo tão trivial quanto a gula ou a bebedeira. Eurípides já foi chamado de ‘o primeiro psicólogo’, e muito provavelmente foi o seu agudo interesse em perscrutar os motivos das ações e expôr o ‘combate até a morte’ travado entre a paixão e a razão na alma humana que o levou a dar tanto valor à temperança, que é chamada em sua Medéia de ‘o mais belo presente dos deuses’ (636) e no fragmento 959 de ‘a mais venerável de todas as virtudes’, por morar para sempre junto ao bem (NORTH, 1966, P. 69).

No que diz respeito ao título de ‘primeiro psicólogo’, este foi dado a Eurípides por Jaeger, em seu livro intitulado Paidéia (1933). A interpretação que aí encontramos (JAEGER, 1964, P. 382-407) é, em seus principais traços, a mesma que figura também nos trabalhos de E. R. Dodds e Bruno Snell, e sobrevive ainda, por exemplo, nos escritos de Jacqueline Romilly e de Jean Pierre Vernant. Segundo Jaeger, Eurípedes foi ao mesmo tempo o último grande poeta grego e o primeiro que estabeleceu como princípio artístico que a poesia deveria ser um espelho fiel da realidade cotidiana de seu tempo. Muito influenciada por sua época, a obra de Eurípides traz a marca incontornável da retórica e da filosofia. Para Jaeger, essa marca aparece, no que diz respeito à retórica, na forma de uma espécie de concorrência entre o estilo propriamente trágico e as disputas oratórias entre

14 litigantes, que faziam na época de Eurípides o deleite dos atenienses. A filosofia, de sua parte, se faria presente no pensamento racional que permeia todas as áreas da vida humana. Como observa Jaeger, as mulheres e os homens que são os personagens de Eurípides parecem obedecer a um instinto irresistível que leva-os a analisar e justificar constantemente seus sentimentos. A imagem que Jaeger nos dá de Eurípides é a de um autor profundamente interessado na patologia da mente humana, no mundo conturbado das emoções e das paixões. Um poeta cuja obra é dedicada a descrever as enfermidades provenientes do mundo dos instintos que afligem a alma humana, a mostrar como as paixões se manifestam e como elas se opõem às forças racionais da alma. Estas últimas teriam ganho, com Eurípides, o estatuto de forças maiores, capazes de afetar o destino dos

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homens. Capazes até mesmo de substituir as divindades, que figurariam na obra de Eurípides de um modo muito particular. Ainda segundo Jaeger, Eurípides se servia do mito para seu fim próprio, isto é, para ilustrar as realidades cotidianas que lhe interessava retratar. Tal relação, no entanto, se instauraria em detrimento do mito, que não poderia sobreviver intacto ao ‘realismo burguês’ de Eurípides – isto é, ao tom ‘frio, sutil, pragmático, argumentativo, cético, francamente sentimental’ que marca sua obra. Sendo assim, o tratamento do mito que encontramos em Eurípides nos forneceria um paradoxo: por um lado, sua obra traz a marca de uma atitude crítica que é a mesma que levou Platão e Xenofonte a denunciar os mitos como falsos e imorais, mas, por outro, ela traz também a representação dos deuses como forças reais e poderosíssimas, sendo eles muitas vezes os verdadeiros mestres da ação sendo representada. É assim, nos diz Jaeger, que Eurípides destrói o tempo todo a ilusão que suas peças tentam criar. É através de uma tal operação que Eurípides teria aberto espaço para a descrição e representação da alma humana na tragédia. Tal descrição, no entanto, viria junto com um certo pessimismo. Se por um lado Jaeger encontra em Eurípides uma proclamação em alto e bom som da independência dos homens em relação aos deuses, por outro lado, ele deve reconhecer que os indivíduos nela retratados, agora abandonados ao seu mundo interior, se descobrem acorrentados. Embora seus personagens estejam constantemente em busca da felicidade e tenham um forte desejo de justiça, esta busca e este desejo nunca atingem seu objetivo. Sendo assim, embora Eurípides possa ser chamado, em certo sentido, de um poeta da razão,

15 ninguém, nos diz Jaeger, compreendeu melhor do que ele o elemento irracional do espírito humano. Não é difícil perceber na descrição de Jaeger os ecos do artigo Eurípides: The irrationalist, publicado em 1929 por E. R. Dodds. Em seu artigo, Dodds procura opor Eurípides a uma espécie de filosofia que, segundo ele, apesar de ter sofrido várias transformações e com exceção de uma longa e muito curiosa pausa, dominou o pensamento europeu desde Sócrates. Essa filosofia, Dodds chama simplesmente de ‘racionalista’.

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Segundo o autor: Essa filosofia faz três afirmações: Primeiramente, que a razão (que os gregos chamavam de discurso racional, logos) é o único e suficiente instrumento da verdade – contra as visões que designavam uma tal função à percepção sensível, ou à fé, ou a algo outro chamado ‘intuição’, ou ainda que negavam que um tal instrumento suficiente sequer existisse. Disso segue-se, em segundo lugar, que a Realidade deve ser tal que ela pode ser compreendida pela razão; e isso implica que a estrutura da Realidade deve ser ela mesma racional em algum sentido. Por último, em um tal universo os valores assim como os fatos serão racionais: o Bem Supremo será ou o pensamento racional ou algo próximo e semelhante a ele. A tendência do racionalismo, portanto, é afirmar que o erro moral, assim como o erro intelectual, só pode ser causado por uma falha em se utilizar da razão que possuímos; e que quando ele for causado, assim como o erro intelectual, ele será curável através de um processo intelectual (DODDS, 1929, P. 97).

Quaisquer que sejam os outros filósofos visados aqui por Dodds, é certo que Sócrates está entre eles. Com efeito, a afirmação de que os erros morais são sempre causados por erros intelectuais é a consequência direta do paradoxo que funda o intelectualismo socrático, isto é, a afirmação de que ninguém erra voluntariamente, e que todo erro, inclusive o erro moral, é devido à ignorância. Como veremos no próximo capítulo, se o filósofo se preocupa em explicar isso que mais tarde será chamado de akrasia é justamente porque tal fenômeno seria um contra exemplo que refutaria sua teoria. De acordo com Dodds, Eurípides, ao contrário de Sócrates, vê o mal como indestrutível e enraizado por hereditariedade na natureza humana. O intelecto é impotente para controlá-lo, embora a educação precoce possa ter algum efeito nos casos mais favoráveis. É importante notar que, para Dodds, os personagens de Eurípides não se limitam a enunciar essas verdades, mas as ilustram no palco. O que dá a Medéia e ao Hipólito de Eurípides seu caráter profundamente trágico, diz Dodds, é exatamente a vitória do impulso irracional sobre a razão dentro de um ser humano nobre, ainda que instável.

16 Embora Dodds reconheça ser difícil dizer o quanto Eurípides desenvolveu o seu próprio ponto de vista em oposição consciente ao de Sócrates, segundo ele algumas das passagens sobre a relação entre conhecimento e conduta na obra de Eurípides parecem apoiar tal hipótese. No entanto, Dodds prefere a prudência, afirmando que a perspectiva de Eurípides sobre o mundo provavelmente modelou-se de forma independente, e que, quando o poeta buscou inspiração, ele provavelmente o fez nos trabalho dos físiólogos (como Diógenes de Apolônia) e dos sofistas (como Protágoras). No final, Dodds diz somente que, em sua opinião, Eurípides partilhou da mesma doença que destruiu a cultura grega, e que ele chama de ‘irracionalismo sistemático’. Seus sintomas característicos são a mistura peculiar de um ceticismo

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destrutivo com um misticismo não menos destrutivo, a afirmação de que a emoção, não a razão, determina a conduta humana; o desespero com relação ao estado, e à teologia racional, que resultam em um desejo de uma religião do tipo orgiástico. Na opinião do autor, o caso de Eurípides prova que uma crise aguda já estava ameaçando o mundo grego no século V, quando a cidade-estado ainda estava florescente e as relações com o Oriente ainda eram relativamente restritas. A imagem da obra de Eurípides muda muito pouco nos textos de Bruno Snell. O autor sem dúvida representa um avanço na medida em que sustenta que, mesmo que acreditemos que tenha sido Eurípedes quem primeiro colocou ênfase nas forças irracionais presentes na alma do homem, seria um erro resumir a obra do tragediógrafo grego ao contraste entre a razão e a irracionalidade (SNELL, 1953, P 129-130). A compreensão proposta por Snell desta obra, no entanto, ainda se inscreve claramente na mesma tradição interpretativa de Dodds e Jaeger. Para Snell, o grande avanço da tragédia em relação aos poemas Homéricos é o fato de que, se os homens de Homero agiam com perfeita segurança, sem jamais conhecer o peso dos escrúpulos e das dúvidas provenientes de uma responsabilidade pessoal pelo que é certo ou errado, já nas tragédias de Ésquilo encontramos um agente consciente de sua liberdade individual de escolha, e que se faz pessoalmente responsável por suas ações (SNELL, 1953, P. 123). Como já notou Sheppard, para Snell, o que marca a tragédia como gênero literário é o aparecimento do herói que age voluntariamente, decidindo livremente o curso de ação que toma diante das circunstâncias tal como elas se apresentam a ele, quer ele possua ou não todo o conhecimento necessário para

17 tomar a melhor decisão, isto é, quer ele saiba ou não no que resultarão suas ações (SHEPPARD, J. T., 1928, P. 178-180). Snell situa Eurípides no curso dessa evolução. Em sua obra, encontraríamos o aparecimento de uma nova moralidade, de coloração psicológica e individualista (SNELL, 1953, P. 126). Para Snell, é só com Eurípides que podemos falar propriamente de personagens e indivíduos na tragédia. Daí, nos diz Snell, que algumas personalidades criadas pelo autor, como Medéia e Fedra, possam ter servido como modelos de ensino para aqueles que quiseram lançar luz sobre a alma humana (SNELL, 1953, P. 127).

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Nas palavras de Snell: Eurípides cria uma nova crise para a moralidade, pois ao enraizar as convicções éticas nos sentimentos do coração individual ele coloca a moralidade à mercê da vacilação subjetiva. Os antigos valores são encobertos de dúvida; os homens começam a fraquejar; mais uma vez, embora num nível diferente, nós testemunhamos o processo que viemos a conhecer através dos primeiros poetas líricos. Assim como naquele momento o baluarte das virtude tradicionais começava a ruir, agora os atenienses perdiam aquele equilíbrio que desde os tempos das leis de Sólon tinha sido o seu maior tesouro. Este dramático conflito de forças resolve-se na obra de Eurípides em discussões entre seres humanos cujas vidas são elas mesmas problemáticas e não resolvidas. A tragédia projeta, então, sua sombra sobre o diálogo da filosofia moral; o que um dia havia sido apresentado por figuras vivas vem a ser arrazoado e discutido de forma abstrata (SNELL, 1953, P. 131).

É desse modo que a tragédia cumpriria o que segundo Snell seria o destino do pensamento grego, abrindo o caminho para a reflexão científica. A poesia épica se transforma em história, a teogonia e a cosmogonia seriam continuadas na filosofia natural dos jónios, que investiga o princípio (arche), isto é, a base e o começo de todas as coisas, a poesia lírica promoveria o inquérito sobre o sentido da vida, e a tragédia daria seu lugar para a filosofia ateniense, preocupada em investigar as ações do homem, isto é, a questão do Bem. A humanização do mito que tem curso de Ésquilo a Eurípides nos provaria assim que o mito herdado é cada vez mais rejeitado como antinatural, e que as perguntas do dia já não são resolvidas fazendo referência a disputas de carácter excepcional entre personagens distantes, pois pertencentes a um mundo semi-divino, e que são totalmente alheios aos problemas naturais da vida humana. É principalmente baseado numa tal tradição interpretativa que Irwin defendeu, em um artigo que data do início dos anos 80, que podemos encontrar em certas peças de Eurípides não só afirmação da ocorrência da akrasia como também

18 personagens que agem de forma incontinente (IRWIN, T. H., 1983)1. O artigo de Irwin não deixou de suscitar reações entre os especialistas, chegando mesmo a influenciar a leitura de alguns do Protágoras de Platão. Assim, Charles Kahn defendeu – contra o que havia dito anteriormente – que a rejeição da akrasia que encontramos no Protágoras de Platão deve ser lida como um acontecimento isolado e anômalo dentro da própria obra de Platão. Essa negação, defende o autor, deve ter parecido tão paradoxal aos contemporâneos de Platão quanto ela nos parece hoje, “uma vez que dois exemplos notórios de akrasia (a saber, Medéia e Fedra) haviam sido brilhantemente retratados em tragédias de Eurípides na época em que Platão nasceu” (KAHN, 2006, P. 52). Dada a existência de tais exemplos, Kahn propõe que a estratégia de Sócrates no Protágoras deve ser explicada a partir do confronto entre

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Sócrates e Protágoras tal como ele é retratado por Platão, isto é, segundo Kahn, como uma competição pela ‘coroa da sabedoria’. Competição essa onde Sócrates aparece como o jovem desafiante “cuja habilidade na manipulação dialética vai derrubar o atual campeão” (KAHN, P. 56). Para vencer tal confronto, nos diz Kahn, Sócrates está preparado até para abandonar seus escrúpulos. Segundo o autor: Assim como Sócrates supera Protágoras através de uma má-interpretação (misinterpretation) criativa do poema de Simonides, ele desbanca sua bastante sensata concepção da educação moral exposta no Grande Discurso através de uma concepção brilhantemente perversa da akrasia e da covardia como erros de cálculo. O Protágoras não é o lugar onde devemos buscar a teoria propriamente platônica da psicologia moral – assim como não é o lugar para se encontrar a concepção socrática da virtude como saúde da alma (KAHN, 2006, P.62).

Assim, para Kahn seria somente na República que encontraríamos uma teoria da motivação humana propriamente platônica, que daria o devido peso aos desejos irracionais do homem. Se seguirmos a interpretação da Kahn, portanto, diremos que a negação da akrasia que encontramos no Protágoras de Platão pertence a um Sócrates – cuja historicidade é discutível – que estaria buscando vencer um combate contra Protágoras, um dos sofistas de seu tempo, afirmando uma tese que entraria em conflito com o que é dito por Eurípides, um tragediógrafo. Segundo tal interpretação, no entanto, não há nenhuma discordância aparente entre a teoria propriamente platônica, que encontramos na República, e as peças de Eurípides. Daí que tenhamos 1

Algo similar é proposto também por (GAUTHIER, R. A.; JOLIF, J. Y, Vol. II.1, 2002, P. 169). Por uma questão de brevidade, a interpretação de tais autores será apenas mencionada ao final do capítulo, e sua análise detalhada terá que ser realizada em outra ocasião.

19 que concluir que, segundo Kahn, a negação da akrasía que encontramos no Protágoras não seja endossada por Platão, que estaria assim, pelo menos no que diz respeito a este ponto, de acordo com Eurípides. Embora não concorde com a interpretação do Protágoras oferecida por Kahn no artigo citado, minha discordância só poderá começar a ser devidamente discutida e fundamentada no próximo capítulo. O que me interessa ressaltar aqui é que os dois exemplos de akrasía que Kahn afirma serem notórios e brilhantemente retratados são os mesmos exemplos apontados por Irwin em seu artigo, isto é, Fedra e Medéia. No presente capítulo, investigarei a leitura destes dois personagens proposta por Irwin e discutire sua adequação à peça de Eurípides. Como veremos, em seu artigo Irwin propõe uma leitura de duas das mais famosas peças de Eurípides, Hipólito e Medéia,

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que é problemática por si só. No final da análise aqui desenvolvida, pretendo ter mostrado que nem Fedra e nem Medéia são exemplos claros de akrasía. Com isso, vale a pena ressaltar, não pretendo defender que a obra de Eurípides é irrelevante para o nosso problema. Ao contrário, busco somente compreender melhor qual é precisamente a sua relevância. Antes de passarmos para a confrontação do artigo de Irwin com as peças de Eurípides, no entanto, devemos ainda fazer uma última observação. Suponhamos que, após uma análise detalhada de todas as peças de Eurípides, terminássemos por encontrar um punhado de personagens que são retratados como incontinentes. O que significaria, para a presente investigação, uma tal descoberta? Seria com certeza ridículo propor que tais exemplos provariam a existência do fenômeno da incontinência. Da mesma forma que a afirmação de que nenhum homem é capaz de voar sem o auxílio de instrumentos não se provaria falsa caso um tragediógrafo retratasse um homem que o faz, a afirmação de que ninguém erra voluntariamente não poderia ser falseada pela representação de um homem que o fizesse. Sendo assim, qual é exatamente a pertinência da referência à obra de Eurípides para nossa investigação? Se tais exemplos de indivíduos incontinentes nos podem ser úteis, isto se deve ao fato de ser possível retirarmos deles uma suposta descrição do fenômeno. Tal descrição, se de fato ela existir, poderia então ser analisada internamente e avaliada por si só e então, posteriormente, confrontada com o tratamento filosófico do problema. Dessa forma, estaremos buscando não uma prova da existência ou inexistência do fenômeno, mas sim a sua melhor descrição e explicação possíveis.

20 1.3 A akrasia em Eurípides segundo Terence Irwin O artigo de Irwin começa estabelecendo os requisitos que devem ser cumpridos para que possamos dizer que um indivíduo age de maneira incontinente.

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Segundo Irwin: No Protágoras de Platão, Sócrates argumenta em favor da tese segundo a qual ninguém pode escolher aquilo que crê ser pior. Ele acredita que trata-se de um afirmação controversa porque muitas pessoas na verdade a rejeitam. Essas pessoas pensam que um homem pode saber que um dado curso de ação é melhor do que outro, mas ainda assim ser vencido pela emoção, pelo prazer, pela dor, pela paixão ou pelo medo, de forma que ele escolhe fazer o que pensa ser pior (Prt. 353B1-C2). O ‘Paradoxo Socrático’ defendido por Sócrates aqui é um dos pilares centrais da ética socrática. Ele nega a possibilidade da incontinência. Um agente age incontinentemente se e somene se: (1) Ele pode escolher entre fazer x e fazer y; (2) Ele acredita que x é, levando em consideração todos os fatores pertinentes, melhor que y; (3) Mas ainda assim ele acredita que y é mais atraente que x; (de modo que) (4) Ele quer fazer y mais do que ele quer fazer x; (e então) (5) Ele escolhe fazer y ao invés de x (IRWIN, 1983, P. 183).

Antes de mais nada, creio que os parâmetros propostos por Irwin merecem algumas mudanças. Como podemos ver, Irwin propõe que recorramos ao Protágoras para determinarmos a definição da ação incontinente. Nesse sentido, me parece importante notar dois pontos que passam despercebidos na definição proposta por Irwin, e que no entanto são centrais para a formulação socrática do problema. O primeiro ponto diz respeito ao lugar do conhecimento no problema apresentado por Sócrates. Embora o critério (2) proposto por Irwin fale em crença ao invés de conhecimento, o problema colocado por Sócrates diz respeito ao conhecimento. Segundo o filósofo, muitos homens pensam que o conhecimento não é capaz de guiar e de comandar os homens, sendo, pelo contrário, tão fraco que mesmo o homem dotado de conhecimento muitas vezes não é governado por ele, mas por outras coisas, como a cólera, os prazeres, a dor, o amor ou o medo (352b-c2). Embora essa questão deva ser objeto de uma discussão mais detalhada, não creio ser chegado ainda o momento. Para os propósitos do presente capítulo, podemos acatar a opção de Irwin e manter (2) tal como formulado pelo autor. Ainda assim, no entanto, a formulação de Irwin dos critérios (2) e (3) apresenta 2

A tradução utilizada neste trabalho é de Carlos Alberto Nunes (Platão. Diálogos: Protágoras, Górgias, Fedão. Belém: 2002. Ed. Universidade Federal do Pará).

21 um pequeno problema. Com efeito, se aceitarmos tais critérios tal como são formulados pelo autor nós estaremos representando a incontinência como uma oposição entre o que o agente acredita ser o melhor a fazer e o que ele acredita ser mais atraente. De início, se não tivermos a formulação socrática em mente, poderíamos pensar que se trata de uma oposição entre duas crenças do indivíduo, uma a respeito do que é melhor e outra do que é mais atraente, e, portanto, de uma oposição da razão consigo mesma. Ora, mas o que nós buscamos não é uma oposição da razão consigo mesma, mas uma oposição entre a razão e o que há no indivíduo de irracional. Sendo assim, será melhor dizermos que age de forma incontinente um agente, que (1) pode escolher igualmente fazer x ou y, e (2) tendo racionalmente levado em conta todos os aspectos pertinentes, acredita que x é melhor do que y, mas (3) ainda

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assim ele se sente mais atraído por y do que por x, seja por causa da cólera, do medo, do prazer, da dor ou do amor, de modo que (4) ele quer fazer y mais do que ele quer fazer x, e (5) ele faz y e não x. Tais precisões, é importante ressaltar, buscam apenas determinar melhor nosso objeto de investigação, e não tem por propósito invalidar os exemplos propostos por Irwin. Com efeito, a interpretação dada por Irwin para os personagens de Fedra e Medéia diz o suficiente para satisfazer os critérios formulados acima. Nossa discordância com tal interpretação, portanto, deve ser esclarecida e fundamentada através do confronto com o texto de Eurípides, e não de Platão. Para Irwin, os personagens de Eurípides não somente negam enfaticamente que o conhecimento é suficiente para a escolha certa, mas também agem de maneira incontinente em determinado momento da peça. Poderíamos então pensar que tais personagens expressam a resposta de Eurípides, em defesa do senso comum, ao Sócrates histórico? Embora reconheça que tal hipótese não pode ser confirmada para além de qualquer dúvida razoável, Irwin tenta mostrar tanto que ela é plausível quanto que ela merece nossa aceitação, tendo em vista as evidências disponíveis. Se aceitamos essa hipótese, diz Irwin, aprendemos algo sobre a contribuição de Eurípides para a vida intelectual de seu tempo, sobre suas preocupações dramáticas, e também que um dramaturgo pode contribuir para disputas teóricas sem deixar de atuar como dramaturgo. Ao final de seu artigo, Irwin diz acreditar que podemos estar confiantes de que Eurípedes descreve a incontinência (IRWIN, 1983, P. 197). Esse seria, inclusive, um de seus traços distintivos com relação à tradição que o precedeu. Como nos lembra Irwin (IRWIN, 1983, P. 187-189), a influência de impulsos não-racionais já era um velho tema literário na época de Eurípides. No entanto, o

22 reconhecimento de impulsos não-racionais não implica no reconhecimento da incontinência. Alguém pode ser influenciado por impulsos não-racionais, estúpidos ou loucos, de modo a tomar uma decisão tola, isto é, totalmente incorreta e não razoável. Embora Irwin admita que a principal diferença entre Ésquilo e Sófocles, por um lado, e Homero, por outro, seja a importância relativa e o destaque dado à decisão racional pelos dramaturgos, ele sustenta que, assim como em Homero e Hesíodo, também na poesia de Ésquilo e Sófocles os impulsos não-racionais e os motivos racionais não são totalmente separados. Segundo Irwin, da mesma maneira que o uso fundido de "mente", no episódio chamado Dios Apate da Ilíada de Homero, torna difícil dizer se o amor impede que alguém pense corretamente (como Aristóteles pensa, EN 1149b14-17), ou subjuga

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alguém através do desejo mesmo quando esse alguém pensa corretamente, e que Hesíodo, de forma não menos ambígua, nos apresenta eros vencendo a mente e os bons conselhos, a tragédia, diz Irwin, sempre esteve familiarizada com o tipo de deliberação distorcida ou equivocada resultante da ate, que faz ‘o mal parecer bom’ para um agente iludido. Mas a decisão que é fruto da ate não deixa de ser racional. Assim, onde poderíamos buscar a incontinência em Ésquilo e Sófocles, vemos a perversidade tola, pois eles apresentam apenas pessoas que tomam más decisões, e não pessoas que agem de forma incontinente e contra as suas decisões racionais. De acordo com Irwin, portanto, a tradição grega até Eurípides não havia tratado do problema da incontinência como um caso distinto, particular, do conflito entre os impulsos racionais e os impulsos não-racionais do homem. Antes que passemos a análise dos supostos casos de akrasia na obra de Eurípides, creio ser útil esclarecer um último ponto a respeito da questão. Como nos lembra Irwin, devemos sempre ter em mente que o problema da incontinência não diz respeito à moral, isto é, que ele não leva em consideração nenhuma preocupação com os interesses dos outros. O problema da incontinência aparece quando consideramos um agente que delibera em interesse próprio, a despeito de toda e qualquer questão moral. O problema que estamos analisando aqui diz respeito a como é possível que alguém saiba que uma determinada ação é mais vantajosa para si mesmo e ainda assim prefira uma outra ação, e isso não por qualquer espécie de altruísmo, mas por ter sido vencido por seus desejos irracionais.

23 1.4 Medéia Como disse anteriormente, os dois exemplos de incontinência propostos por Irwin, e retomados por Kahn, são Fedra e Medéia. Aqui, começarei discutindo o segundo exemplo. Como o próprio Irwin reconhece, trata-se do exemplo mais difícil de ser encaixado dentro da descrição da akrasia. Ainda assim, Irwin propõe uma interpretação capaz de fazê-lo. Aqui, ao contrário, proporei que tal interpretação se encaixa mal tanto na peça de Eurípides quanto na representação de Medéia que encontramos na mitologia grega. Segundo nossa interpretação, portanto, seria um erro acreditar que o caso de Medéia é um caso de ação incontinente. Segundo a tradição mitológica, Medéia é a filha do rei da Cólquida, Aeetes, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

que possuiu o Velocino de Ouro3. Ela é, portanto, neta do Sol (Helios), e sobrinha da feiticeira Circe. Sua mãe é a Oceanida Idye, mas, às vezes, também lhe é dada como mãe a deusa Hecate, padroeira de todas as bruxas. As aventuras de Medéia começam quando ela se alia a Jasão na busca pelo Velocino de Ouro, que ela o ajuda a roubar de seu pai. Jasão, filho de Éson e descendente de Éolo, é nascido em Iolcos. Segundo a lenda mais influente, Aesão, que era o herdeiro legítimo do poder, teria sido expulso da cidade por seu meio-irmão Pélias, filho de Tyro e de Poseidon. Com a morte do pai, Jasão, então, acabou sendo criado pelo centauro Quiron, que lhe ensinou a medicina. Quando atingiu a maioridade, Jasão deixou Pélion, onde morava o centauro, e retornou a Iolcos. Vestido coberto por uma pele de pantera, com uma lança em cada mão e o pé esquerdo descalço, Jasão chega à Agora de Iolcos, onde seu tio Pélas estava prestes a fazer um sacrifício. Mesmo não o reconhecendo, Pélas teve medo, pois um oráculo havia lhe aconselhado que desconfiasse do homem com um pé descalço. Após cinco dias na cidade, Jasão foi até Pélias e lhe exigiu o poder da cidade, que lhe pertencia por direito. É então que Pélias lhe pede que vá buscar o Velocino de Ouro, que pertencia ao rei Aeetes e que era guardado por um dragão. O objetivo de Pélias, é claro, era que Jasão jamais retornasse de sua viagem, e que ele mantivesse o poder da cidade durante toda sua vida. Sem Medéia, Jasão não poderia jamais ter conseguido o Velocino de Ouro. É ela quem lhe dá a pomada que o protege das queimaduras causadas pelos touros de 3

As informações míticas a respeito de Medéia e Jasão foram retiradas de (GRIMAL, Pierre, 1951, P. 242-243, 278-279).

24 Hefesto, e que adormece o dragão com seus encantamentos, permitindo que Jasão vença as duas provas impostas por Aeetes. O rei, é claro, não sabia da ajuda que sua filha ofereceu ao estrangeiro, e havia concebido as provas para que Jasão as enfrentasse sem ajuda. Uma vez capturado o Velocino de Ouro, Medéia fugiu com Jasão e os Argonautas. Todas as lendas concordam que ele havia lhe prometido casamento. Para seguilo e dar-lhe a vitória, Medéia havia não só traído e abandonado seu pai, mas tinha também tomado seu próprio irmão, Apsyrtus, como refém. Irmão este que ela não hesitou em matar, esquartejar e espalhar no mar para retardar a perseguição de seu pai, que, assim que descobriu que Jasão havia obtido o Velocino de Ouro e estava fugindo com sua filha, mandou seus homens persegui-los. Tendo que parar para recolher os

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pedaços de Apsyrtos, Aeetes e seus homens perderam os fugitivos de vista. Jasão e Medéia, então, voltam para Iolcos, onde se vingam de Pélias, que havia tentado matar Jasão lhe impondo justamente a busca pelo Velocino de Ouro. Depois de consumado o assassinato, Acasto, filho de Pélias, bane Jasão e Medéia de seu reino. É quando eles vão morar em Corinto. Jasão e Medéia vivem em Coríntio por algum tempo, até que o rei Creonte oferece sua filha em casamento ao herói. É este momento da história que é contado por Eurípedes. Jasão, com o objetivo de melhorar o seu status social, aceita a oferta, quebrando o juramento que tinha feito a Medéia. Como nos diz Grimal, na tradição mítica grega todos os crimes subsequentes de Medéia são justificados, ou pelo menos explicados, através do perjúrio de Jasão. Antes de discutirmos a interpretação da Medéia de Eurípides oferecida por Irwin, creio ser útil fazer um pequeno resumo da trama encenada por Eurípides, no intuito de preparar o leitor para discussão do monólogo de Medéia, trecho que faz parte do final da peça e sobre o qual a interpretação de Irwin se concentra. O desenrolar da peça de Eurípides nos conta como Medéia se vinga da traição de Jasão. Logo após receber a notícia de que Jasão se casaria com a filha do rei, Medéia recebe a visita de Creonte, que vem lhe informar que vem decretar o exílio imediato de Medéia e de seus filhos. O rei se justifica, dizendo temer que Medéia faça algum mal para sua filha, pois pessoas supostamente já haviam lhe avisado que ela andava fazendo sérias ameaças. Neste momento, é claro, Medéia já havia obtido do Coro seu voto de silêncio para um eventual plano de vingança, sem dizer, no entanto, em que tal plano consistiria. É só depois que Medéia adota a postura de suplicante que Creonte concorda em lhe dar um dia extra para os preparativos da viagem.

25 Assim que Creonte se retira, Medéia nos revela seus planos: eles incluem a morte de Creonte, de sua filha e de Jasão. No meio da peça, no entanto, em um incidente bastante comentado pela tradição, Medéia encontra-se com Egeu, que lhe oferece refúgio em Atenas. No encontro, Egeu lhe diz o quanto sofre por não ter filhos, e Medéia lhe promete filhos em troca de ajuda. Talvez por ter visto o sofrimento de Egeu, Medéia revisa seu plano, e decide deixar Jasão vivo e matar os dois filhos que tem com ele. Tal plano, no entanto, implica na violação de seus sentimentos maternais mais fortes e, sem dúvida alguma, em um enorme sofrimento para a própria Medéia. O trecho da peça sobre o qual se concentra Irwin vai da linha 1021 até a 4

1080 . Segundo Irwin, até 1040 Medéia deliberou e formou a decisão racional de

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matar as crianças. É quando ela olha seus filhos e eles olham para ela (1040) que Medéia hesita, abandona sua deliberação anterior e toma outra decisão, a saber, a decisão de preservar as crianças. Neste momento, no entanto, ela pensa nas consequências, na vergonha e no ridículo que ela vai sofrer se proceder dessa maneira. Medéia ficaria então furiosa e envergonhada com a perspectiva da desonra que a espera, e agora seu thumos a dominaria. Ela então refaz sua intenção de matar as crianças (1049-1055). Mais a frente, Medéia chega a repreender seu thumos por esta intenção (1056-1059), sem, no entanto, modificá-la. Finalmente, ela diz: "E eu sei bem as dores que estou prestes a sofrer, mas meu thumos é mais forte que meus cálculos, o thumos que é causa das maiores dores para os mortais" (1078-1080). De acordo com Irwin, o contraste entre a primeira e a segunda rejeição da deliberação por parte de Medéia é clara. Na primeira ela não foi dominada por um desejo incontinente, irracional, mas na segunda ela foi. Anteriormente, sua deliberação teria determinado sua ação, mas no final ela acaba não fazendo nenhuma diferença. Num primeiro momento, ela abandona sua deliberação porque ela pensa não ter tomado a decisão certa (1040-1048). Mais tarde, ela não descarta sua nova deliberação, o que significa que ela ainda pensa que deliberou corretamente, mas ela é tomada por um forte desejo contrário. Como Irwin nos lembra, não há nada de inconsistente no fato de os sentimentos de Medéia em relação às crianças contarem 4

Sempre que fôr citado o número do trecho da peça, e não a página da edição em que tal trecho se encontra, este número corresponde ao número utilizado pela edição inglesa (EURIPIDE, 1994). Nos casos de citações fora do corpo do texto, no entanto, eu faço recurso à edição brasileira e, dado que a numeração dos trechos da dita edição diferem da numeração padrão, eu cito a página em que o texto se encontra, de modo a evitar ao máximo as confusões.

26 num primeiro momento contra sua deliberação e, posteriormente, fazerem parte da deliberação que ela não segue (IRWIN, 1983, P. 191-192). No final, segundo Irwin, devemos dizer que Medéia (1) pode escolher igualmente matar ou não matar as crianças, que ela (2) levou racionalmente em conta todos os aspectos pertinentes, e acredita que não matá-las é melhor do que matá-las, mas que (3) ainda assim ela se sente mais atraída pela opção de vingança que envolve matar as crianças do que pela opção que significaria deixá-las vivas, por causa de seu thumos, de modo que (4) ela quer matar as crianças mais do que ela quer deixá-las viver, e (5) ela de fato mata as crianças. Se a interpretação de Irwin tem o mérito de apresentar as transições do monólogo de Medéia de maneira tanto psicologicamente quanto dramaticamente

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inteligível, é preciso notar que ela não representa de maneira fiel o texto de Eurípides. Eis aqui a maneira como encontramos o trecho da peça onde Medéia olha nos olhos de seus filhos: Ai de mim! Ai de mim! Por que voltais os olhos tão expressivamente para mim, meus filhos? Por que estais sorrindo para mim agora com este derradeiro olhar? Ai! Que farei? Sinto faltar-me o ânimo, mulheres, vendo a face radiante deles... Não! Não posso! Adeus, meus desígnos (bouleumata) de há pouco! Levarei meus filhos para fora do país comigo. Será que apenas para amargurar o pai vou desgracá-los, duplicando a minha dor? Isso eu não vou fazer! Deus meus planos... Não! Mas, que sentimentos são estes? Vou tornar-me alvo de escárnio, deixando meus inimigos impunes? Não! Tenho que ousar! A covardia (kake) abre-me a alma a pensamentos vacilantes (malthakous logous). Ide para dentro de casa, filhos meus! Quem não quiser presenciar o sacrifício, mova-se! As minhas forças terão bastante força! Ai! Ai! Nunca, meu coração (thumé)! Não faças isso! Deves deixa-los, infeliz! Poupa as crianças! Mesmo distantes serão tua alegria. Não, pelos deuses da vingança dos infernos! Jamais dirão de mim que eu entreguei meus filhos à sanha de inimigos! Seja como for, perecerão! Ora: se a morte é inevitável, eu mesma, que lhes dei a vida, os matarei. De qualquer modo isso terá de consumar-se. Não vejo alternativas (EURÍPIDES, 2003, P. 62-63).

Neste trecho, vemos Medéia afirmar categoricamente o abandono de seu plano de vingança. O que nós não vemos é uma razão para acreditarmos que a própria Medéia acha que não matar as crianças é a melhor opção. Com efeito, a personagem de Eurípides denuncia os sentimentos que a assolam, e que a fazem vacilar diante da realização de seu plano, como uma fraqueza, isto é, algo negativo. Medéia nos fala de malthakoús lógous que teriam entrado em seu coração. Ora, se é bem verdade que malthakós é um substantivo de valor ambíguo, que pode significar ora um objeto macio, ora uma pessoa gentil, ou afável, mas que também pode significar o fraco, o omisso e mesmo o covarde, a palavra kaké no entanto, utilizada na sentença anterior,

27 parece indicar que o valor de malthakós nesse caso é na verdade negativo. Creio, portanto, que Irwin não tem razão quando interpreta esse trecho da peça de Eurípides da maneira que o faz. Resta ainda, no entanto, explicar como devemos compreender as linhas 1078-1080. Eis o que Eurípides escreve: “kaí mantháno mén oía tolméso kaká, thumós dé kreisson ton émon boulemáton, hosper megíston aítios kakôn brotoîs”. Irwin traduz essa passagem para o inglês da seguinte maneira: “And I know well the evils I am about to do; but my thumos is stronger than my deliberations; it is the cause of the greatest harms to mortals”. Já Kovacs, prefere uma formulação um pouco diferente. Em sua edição, Medéia declara: “And I know well what pain I am about to undergo, but my wrath overbears my calculations, wrath that brings mortal men their gravest hurt”. A mais heterodoxa é sem dúvida a tradução de Mário da Gama

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Cury: “Sim, lamento o crime que vou praticar, porém maior do que a minha vontade é o poder do ódio, causa de enormes males para nós, mortais”. Dada toda a controvérsia a respeito da pertinência do conceito latino de vontade para a compreensão da literatura grega, seria realmente difícil justificar uma tal tradução. De fato, é essa a passagem onde temos a formulação mais clara a respeito da ação de Medéia. No que diz respeito à primeira frase, creio que a tradução de Kovacs é mais interessante por deixar claro que o que preocupa Medéia é a consequência de suas ações para si mesma. No que diz respeito ao resto da passagem, creio que as duas traduções inglesas são equivalentes. O que importa ressaltar é que Irwin, assim como Kovacs, opõe o thumos, a fonte da ira de Medéia, aos planos da personagem, seus boulemata, num conflito direto no qual o primeiro sairia vencedor em prejuízo do segundo. Tal oposição, obviamente, fortalece a interpretação de Irwin, que busca ver no ato de Medéia a vitória de seus impulsos irracionais sobre seus impulsos racionais. Tal leitura, segue a interpretação do monólogo já delineada por Bruno Snell (SNELL, 1964, P. 23). Essa leitura, no entanto, não é nem a única possível e nem, creio eu, a mais indicada. Ela não é a única porque o comparativo kreisson, que é usado para expressar a relação entre o thumos e as boulemata pode ter tanto o sentido de ‘mais forte que’, ‘superior a’, quanto ‘de mestre de’. A expressão kreisson gastros, por exemplo, se refere aquele que tem controle dos apetites provenientes do estômago. Sendo assim, é perfeitamente possível compreender a passagem acima como afirmando que o thumos é o mestre das boulemata de Medéia, isto é, aquele que comanda, que determina, que dirige os seus planos. Tal possibilidade se reforça, tornando-se a mais

28 indicada, se examinarmos os problemas em que incorre a leitura proposta por Irwin. Os principais problemas de uma tal leitura já foram assinalados por Helen Foley, em seu artigo intitulado Medea's Divided Self. Como já ressaltou Foley, um estudo do termo thumos na obra de Eurípides indica uma gama de significados comparável ao que o termo possui nas poesias épicas, ainda que um pouco mais estreita (FOLEY, 1989, P. 69-71). O thumos de Eurípides é a sede das emoções, do instinto, mas também da deliberação, e está sujeito a uma gama de emoções muito variadas, como a raiva, a dor, a piedade, a esperança ou o orgulho. Medéia é duas vezes atingida em seu thumos por eros (8, 639), e em dado momento uma nuvem de tristeza nele se prende (108). Mas, no monólogo final, vemos Medéia pedir a seu thumos que ouça as razões para poupar as crianças (1056-1057).

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Ao que tudo indica, o thumos, portanto, pode ouvir argumentos em favor de ambas as escolhas, e impelir Medéia seja para matar ou para poupar as crianças. Ele é aparentemente capaz, como o thumos homérico, de alguma forma de escolha deliberada. Por isso, é melhor definir o thumos no monólogo não como "paixão irracional" ou "raiva", mas como uma potência localizada em Medéia que a dirige em suas ações e que pode, ou pelo menos que ela finge poder, arbitrar levando em conta os argumentos a favor e contra o assassinato das crianças. Outra especialista que afirma que a redução do thumos a uma entidade simplesmente movida pela paixão obscurece a sua complexidade é Rickert (RICKERT, 1987, P. 99-101). Como nos lembra a autora, o thumos é tradicionalmente retratado na tragédia grega como a faculdade situada no herói trágico que reage à desonra, ao tratamento injusto, ao insulto e ao escárnio de seus inimigos, e que o leva também a buscar a vingança. Vingança essa que, muitas vezes, toma proporções heróicas. Segundo a autora, é justamente a aliança entre racionalidade e irracionalidade, paixão e inteligência, e não uma derrota de seus impulsos racionais para seus impulsos irracionais, que constitui o carácter trágico do curso que Medéia determina para si (RICKERT, 1987, P. 72-73). De acordo com essa interpretação, no final da peça Medéia tem sucesso na realização de seus planos, conseguindo ultrapassar as barreiras psicológicas que se colocam diante de seu ato. Com efeito, ainda antes que o ato tenha sido consumado (855-865), o Coro expressa suas dúvidas a respeito da capacidade de Medéia de realizá-lo, se perguntando se ela terá a força e a coragem necessárias para levar a cabo seu plano quando seus filhos lhe suplicarem

29 por suas vidas. A Medéia de Eurípedes, quando explica suas próprias decisões, se mostra sempre orgulhosa de sua inteligência e sem nenhuma vergonha dos motivos complexos – emocionais e racionais – que justificam suas ações. É Jasão quem, durante toda a peça, representa Medéia como se ela fosse constantemente superada por suas próprias emoções. No primeiro encontro da peça entre Jasão e Medéia, quando ela o acusa de têla abandonado e quebrado seu juramento, ele insinua que ela só o ajudou porque Afrodite, deusa do amor, a forçou, e que ela já ganhou de volta mais do que ela jamais lhe deu, uma vez que foi ele que a trouxe para viver na Grécia – onde ela ficou famosa. Neste momento, Jasão se defende dizendo que quando aceitou a proposta de casamento feita por Creonte, ele, ao contrário, agiu de forma sensata e

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com auto-controle. Segundo Jasão, ele só a aceitou para que todos pudessem ter o dinheiro para viver bem, e não por estar apaixonado pela filha do rei. Ele defende seu plano, dizendo que iria melhorar a situação econômica de todos, não fosse pela reação de Medéia. Foi Medéia, diz Jasão, que, não podendo suportar a ideia de que ele estava na cama com outra, ficou furiosa e começou a fazer ameaças. Sua fúria chegou então aos ouvidos de Creonte, que julgou que o mais seguro seria exilar Medéia e seus filhos. Como ressalta Foley, Medéia rejeita a justificativa de Jasão para o casamento com a princesa. Entre outras coisas, ela o acusa de tentar cobrir com suas palavras a injustiça que cometeu. Antes disso, o Coro já havia afirmado que, apesar de seus hábeis argumentos, Jasão não estava fazendo justiça ao abandonar sua esposa. Embora ele jamais responda à acusação de injustiça, e nunca sequer mencione o juramento que fez a Medéia, no final da cena Jasão oferece dinheiro e ajuda para garantir a segurança de Medéia e das crianças no exílio, mas ela não aceita. Em seu segundo encontro com Jasão – que acontece depois que ela já falou com Egeu, garantiu que este a acolherá em Atenas, e revelou para a platéia seu plano para matar as crianças – Medéia finge pedir desculpas por sua raiva e falta de bom senso. Ela diz que pensou melhor, tendo considerado o bem-estar de seus filhos e seu exílio iminente, e que chegou a uma melhor compreensão da situação. Jasão, então, diz que a raiva de Medéia era compreensível, e que muito lhe agrada que ela tenha refletido melhor e aceitado o melhor plano. Tudo isso, no entanto, não passa de encenação da parte de Medéia. Como observa Foley, ela imita o modo como o próprio Jasão justifica sua conduta, fingindo aceitar o seu papel subserviente de

30 mulher, para enganá-lo e conseguir realizar seus próprios planos. Jasão, que já se mostrou inclinado a imaginá-la como refém de suas emoções, acredita. No final da cena, Medéia convence Jasão a interceder junto a Creonte e à sua filha para que as crianças fiquem em Coríntio. Ela, então, se mostra disposta a tentar ajudar a causa, enviando dois presentes para a princesa através das crianças, um vestido e um diadema que foram dados pelo próprio Hélios a seus descendentes. São estes presentes que causarão a morte da princesa e de seu pai. Embora Jasão esteja ciente da ascendência de Medéia e de seus poderes mágicos, ele parece vê-la o tempo todo como uma típica mulher de seu tempo. Medéia, no entanto, não é exatamente o retrato da típica dona de casa ateniense. Como nos lembra Foley, Medéia não só nunca precisou do dote de que ela se queixa

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(232-34), como foi ela mesma quem escolheu o seu próprio marido, realizando mesmo atos cruéis para viabilizar essa união. Quando Medéia explica o que a leva a agir como ela age, fundamentando seu desejo de vingança, eis o que ela nos diz: Que ninguém me julgue covarde, débil, indecisa, mas que pode haver diversidade no caráter: terrível para os inimigos e benévola para os amigos. Isso dá mais glória à vida (EURÍPIDES, 2003, P. 53).

Como sabemos, é de praxe que os heróis da literatura grega afirmem que desejam acima de tudo fazer o bem a seus amigos e o mal aos seus inimigos, buscando sempre evitar o escárnio desses últimos. A prova da influência de tal formulação ainda nos períodos arcaico e clássico, como nos lembra Foley, pode ser encontrada no primeiro livro da República de Platão (332-b), onde ela aparece como a definição padrão de justiça. A incapacidade de ganhar honra e de defender a sua auto-estima, por outro lado, fazia do herói um tolo aos olhos dos seus inimigos. Assim, devemos concluir que a Medéia de Eurípides busca agir e pensar não como uma mulher de seu tempo, mas como um herói das tragédias de Sófocles. Nenhuma das personagens femininas da tragédia grega, nos diz Foley, se modela de forma tão explícita no modelo masculino heróico. Desse modelo, Medéia inveja mesmo os deveres militares, chegando a afirmar que ela preferiria mil vezes ir para a guerra do que ter filhos. No entanto, mesmo que tenhamos em mente esse imperativo heróico que lhe ordena que machuque seus inimigos e ajude seus amigos, a decisão que se impõe a Medéia não é nada fácil. Ela é a mãe dos filhos de Jasão, e seus filhos, é claro, devem ser contados entre seus amigos. Estaria ela pronta para matá-los só para

31 atingir Jasão? Isto é, tendo que escolher entre fazer o mal a seus amigos para através disso atingir seu inimigo, ou poupar uns e outros de qualquer prejuízo futuro, que opção faz Medéia? De qualquer maneira, a aderência estrita a este imperativo por ela mesma formulado parece descartada. Como seria de se esperar de um confronto que contrapõe o lado materno de Medéia contra seu desejo de vingança, em vez da razão contra a paixão, existem fatores racionais e emocionais de ambos os lados do conflito. Mas o importante de notar é que Medéia busca colocar-se à distância de seu lado feminino e materno desde o início da peça, e que ela continua a fazê-lo mesmo no momento em que o conflito é mais agudo. Assim, no momento em que anuncia o plano para assassinar as crianças (790797), Medéia justifica-se dizendo que "o riso dos inimigos é insuportável", e que ela

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vai matar seus filhos porque é a maneira de ferir Jasão o máximo possível (816). Como vimos anteriormente, Medéia primeiro reflete que matar as crianças trará dores para ela mesma, e chega mesmo a afirmar que tal ato vai destruir seu próprio futuro (1021-1039). A visão das crianças, em seguida, desperta seus sentimentos maternos (1040-1043). No entanto, Medéia logo classifica tais pensamentos de “mathakous”. Na medida em que vão contra seu próprio interesse e sua reputação, agir segundo tais pensamentos seria, do ponto de vista de Medéia, um sinal de fraqueza (FOLEY, 1989, P. 64-65). Assim, creio poder dizer que Medéia sempre enfatiza os motivos racionais para suas ações. O que não significa, é claro, que ela não esteja furiosa com Jasão por ter escolhido a filha de Creonte. Na verdade, Medéia assume isso na cena final5. Mas a justiça é um motivo igualmente importante (ver 26, 160, 165, 578, 580, 582, 592, 1352 53). Medéia abandonou sua terra natal para seguir Jasão, e fez muitos inimigos tentando ajudar o marido (483-87, 506-8). Acima de tudo, Jasão quebrou o juramento que fez a Medéia. Juramento esse que é guardado pelos deuses (20-23, 161, 439, 492, 1392). Por esse motivo, Medéia está certa que os deuses apoiarão a punição que ela dará a Jasão. Afinal, como nos lembra Kovacs: Curiosamente, não nos é jamais dito quais foram as palavras exatas do juramento que ele [Jasão] fez à Medéia. Uma forma comum de juramento, no entanto, clamava que os casos de perjúrio fossem punidos não só com a morte de quem cometeu o perjúrio mas também de toda a sua linhagem (exoleia) (cf. Os termos explícitos em Andócides 1.98). Mesmo quando a exoleia não está explicitamente mencionada num juramento, ela sempre foi tida como uma punição adequada ao perjúrio. O oráculo 5

1368; ver também 265-66, 1354.

32 em Heródoto 6.86, por exemplo, diz expressamente que a destruição da raíz e dos troncos seria a punição de Glaucus por quebrar seu juramento mesmo que o juramento ele mesmo não o tivesse mencionado. Em nossa peça, Egeu faz um juramento e Medéia o faz clamar que aconteça com ele, caso ele viole o dito juramento, ‘aquilo que acontece com os mortais que são impios’ (755), e é natural pensar que a exoleia está incluída (cf. Hipólito 1341). Parece, portanto, que o assassinato dos filhos de Jasão o pune de uma maneira reconhecidamente apropriada ao perjúrio (KOVACS, 1993, P. 69).

O aparecimento surpreendente, no final da peça, da carruagem de Hélios – que vem levar Medéia para Atenas – parece comprovar tal certeza. Esta aparição, e a cena que se segue, requerem alguns comentários antes que possamos passar de Medéia para Fedra. Embora, como já dissemos, Egeu tenha concordado em dar refúgio a Medéia em Atenas, ele disse explicitamente que não iria levá-la embora de Coríntio, pois não queria ser o responsável por sua fuga aos olhos de Creonte. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

Medéia, no entanto, nunca parece preocupada em assegurar sua rota de fuga, e parece muito confiante em sua vitória logo após se despedir de Egeu. Mesmo quando o mensageiro traz a notícia das mortes no palácio, e lhe diz que em breve alguém virá atrás dela, Medéia reage apenas com alegria, sem nenhum sinal de preocupação. Na cena seguinte, ela entra na casa e mata seus dois filhos. É só quando a carruagem de Hélios chega para levá-la embora que nós podemos ver por que o problema da fuga não a preocupava. Nesse mesmo momento, Jasão está chegando na frente da casa. Assim que soube das mortes, Jasão pensou que a família de Creonte poderia buscar vingança atacando as crianças, que levaram os presentes para a princesa, e temeu pela segurança de seus filhos6. Na hora que ele chega, no entanto, Medéia já matou os dois. Quando o Coro lhe dá a triste notícia, Jasão tenta abrir as portas para ver seus corpos. É então que Medéia se mostra na carruagem enviada por seu avô. Medéia não deixa Jasão ver as crianças. Durante a conversa, ela o informa (1378-1383) que vai levá-las para o santuário de Hera Akraia, de modo que nenhum de seus inimigos possa profanar suas sepulturas, e enterrá-las com suas próprias mãos. Durante toda a conversa, Jasão se mostra ao mesmo tempo furioso e incapaz de compreender a racionalidade que levou Medéia a agir como ela o fez. É 6

Talvez valha a pena notar que Medéia parece ter antevisto tal consequência. Com efeito, ela recebe muito mal a notícia, trazida anteriormente pelo tutor, de que os presentes oferecidos para a princesa tinham sido aceitos e o exílio das crianças havia sido revogado (1002-1004). Talvez ela já percebesse que as crianças seriam eventualmente perseguidas pelas mortes que os presentes, trazidos por eles, causaram. Tal consideração, embora possa servir como argumento contra a possibilidade de poupar as crianças e deixá-las em Coríntio, não pode justificar o assassinato de Medéia. Com efeito, embora ela não o faça, Medéia poderia ter tentado levar as crianças consigo.

33 interessante notar como, mais uma vez, as acusações e o discurso feito por Jasão contra Medéia ignoram uma grande parte de suas motivações. Jasão, então, retrata Medéia como uma mulher que teve uma reação exagerada a um acontecimento de pequena importância. Embora reconheça que Medéia é movida pelo orgulho, Jasão acredita que suas ações são desproporcionais e, por isso, injustificadas. No final, para dar sentido às ações de Medéia, Jasão não pode senão recorrer a sua natureza selvagem. Medéia é, afinal, uma mulher bárbara, e não uma mulher grega. Tudo se passa como se Jasão não chegasse jamais a compreendê-la. A primeira resposta de Medéia às acusações de Jasão nos assinala, de certa

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forma, essa incompreensão por parte de Jasão. Se Zeus pai não soubesse como te tratei e como e quanto me ofendeste, esta resposta à tua falação teria de ser longa. Não deverias esperar, após o ultraje contra meu leito, que fosses passar a vida rindo de mim, tranquilo com a filha do rei; Creonte, que te deu a filha para esposa, não haveria de querer impunemente expulsar-me daqui, onde cheguei contigo. Chama-me agora, se quiseres, de leoa e monstro; quis apenas devolver os golpes de teu instável coração como podia (EURÍPIDES, 2003, P. 74).

Em sua resposta, Medéia invoca Zeus fazendo referência, mais uma vez, ao juramento quebrado por Jasão. É significativo, neste contexto, que Medéia não se preocupe em responder às acusações de Jasão, afirmando simplesmente que Zeus tem conhecimento da maneira como ele se comportou. Isto é importante porque, como vimos, a destruição da própria casa é o castigo divino apropriado para a quebra de juramentos. A resposta de Medéia, portanto, está longe de ser um simples exagero, típico do sexo feminino. Ela traz uma reivindicação que está de acordo com a justiça divina. É por isso que, desde o início da peça, o Coro se mostra instantaneamente simpático para com Medéia, embora eles jamais aprovem os atos que ela vai praticar. Como nos lembra Kovacs, tanto antes como depois dos assassinatos, Medéia, o Coro e até mesmo o mensageiro nos dizem que os deuses castigarão, ou castigaram, Jasão (KOVACS, 1993, P. 52). Ainda assim, no entanto, a racionalidade de Medéia foi questionada não só por Jasão e pelo Coro, que não conseguem jamais entender como ela poderia ir tão longe para conseguir sua vingança, mas também por muitos dos especialistas que se dedicaram ao estudo da peça no século XX. Para Bruno Snell, por exemplo, o ato de Medéia significa sua auto-destruição (SNELL, 1964, P. 50-51). Assim como Jasão, Snell também parece ter dificuldade para compreender o que Medéia alcançou com suas próprias ações. "Você também", diz Jasão, "sente dor e partilha da minha

34 desgraça". Medéia jamais nega isso. Anteriormente (1046-1047), ela mesma havia ponderado que a morte de seus filhos iria doer duas vezes mais nela do que em Jasão. Durante a peça, Medéia reafirma algumas vezes as dores e sofrimentos que sua decisão traria para ela, chegando mesmo a dizer que o caminho escolhido por ela era o que continha a “maior miséria” (1066-1067). Medéia, no entanto, é guiada por seu thumos mesmo sabendo que ele é para os mortais fonte dos maiores males. “A dor vale a pena”, ela diz a Jasão, “se você não pode zombar de mim” (1362). No momento final da peça, portanto, não encontramos Medéia arrependida de suas ações. Em nenhum momento ela diz que fez a pior escolha possível, ou que suas emoções a levaram a cometer atos desmedidos. É Jasão quem a retrata deste modo, e, se ele o faz – não é senão isso que

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creio ter evidenciado – é por ser guiado por uma má compreensão do conjunto de motivos que levou Medéia a cometer os atos que cometeu. É claro que tal afirmação, para muitos de nós e para o próprio Jasão, é, de início, inacreditável. Não fosse a defesa consistente por parte de Medéia durante toda a peça de seu ideal heróico, e o amparo que sua vingança encontra na pena delineada já pela tradição épica para aqueles que quebram seus juramentos, a hipótese de que ela teria dito isso da boca para fora mereceria uma investigação mais séria. A peça de Eurípides, no entanto, não nos dá grandes esperanças neste sentido. Longe de ser um ato impensado, a vingança é planejada com antecedência. Com efeito, antes mesmo de assassinar seus filhos Medéia já os colocara em risco ao fazer deles os portadores de seus presentes mortais e, portanto, possíveis alvos da ira de seus inimigos. Acreditar que, bem no fundo, Medéia acha que agiu errado, e que deveria colocar seus filhos acima de sua vingança, é desconhecer completamente tanto a personagem tal como descrita por Eurípides, quanto aquela que já encontramos na tradição mítica que lhe é anterior. Creio ter dito o suficiente para fundamentar minha discordância em relação à interpretação de Irwin, que vê Medéia como tendo agido de forma incontinente. Não obstante, como pudemos ver, é inegável que a obra de Eurípides nos mostra uma personagem psicologicamente complexa, enredada numa situação dificílima e diante de uma decisão das mais penosas. Com efeito, para além de qualquer disputa com seus inimigos, Medéia se vê obrigada a travar uma luta contra si mesma, ou pelo menos contra uma parte de si mesma, para conseguir realizar aquilo que planejou. Sendo assim, não seria um exagero dizer que, para conseguir sair vitoriosa de seu

35 confronto com Jasão, Medéia se vê forçada a vencer seu próprio conflito psicológico. Se é verdade, como nos diz Benveniste, que em Homero o termo kratos é empregado exclusivamente em contextos de disputa envolvendo mais de um indivíduo, a obra de Eurípides nos mostra um caso onde a vitória num conflito deste tipo só é possível através de uma vitória prévia do indivíduo sobre si mesmo. É somente conseguindo prevalecer dentro de si mesma que Medéia consegue prevalecer sobre Jasão. Sendo assim, talvez possamos dizer que encontramos em Eurípides um elo entre o uso do termo em Homero e o problema da akrasia tal como ele aparece no discurso filosófico. Nessa formulação, a importância da Medéia de Eurípides para o problema da akrasia residiria no fato de sua heroína ser construída de forma a trazer para o primeiro plano o conflito psicológico, na medida em que ele se revela como o último, e talvez o

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maior, obstáculo entre a personagem e sua vingança. No final da peça, o que Medéia necessita para finalmente alcançar seu objetivo é o domínio de si mesma. Passarei agora ao segundo exemplo de akrasia proposto por Eurípides, a personagem Fedra da peça Hipólito. Nas páginas que se seguem, farei primeiro um breve resumo da trama encenada na obra de Eurípides, para só depois discutir a interpretação da personagem oferecida por Irwin. 1.5 Hipólito Hipólito é o filho ilegítimo de Teseu com a rainha das Amazonas e o favorito da deusa Artemis. Ele vive uma vida de castidade na companhia da deusa e chama Afrodite de a mais baixa das deusas. Para vingar tal insulto à sua honra, Afrodite usa seu poder como deusa do amor para provocar a morte de Hipólito por meios indiretos, através de uma cadeia complicada de causalidade que, embora seja absolutamente imprevisível do ponto de vista dos mortais envolvidos, é prevista pela deusa. Afrodite faz com que Fedra, esposa de Teseu, se apaixone por Hipólito. Sendo esse amor adúltero e quase incestuoso, Fedra decide morrer de fome, e em silêncio, para não causar vergonha para si mesma e para sua família. No entanto, a velha ama de Fedra não consegue acompanhar impassível o definhar de sua mestra, e se mostra determinada a salvá-la. Após muito esforço, ela consegue que Fedra revele seu segredo. Embora esteja sob instruções estritas para não dizer nada a Hipólito, a ama vai até ele mesmo assim, e, depois de fazer-lhe jurar

36 silêncio a respeito do que vai dizer, ela lhe conta do amor de Fedra. Nós não sabemos precisamente o que a ama diz para Hipólito, pois isso acontece fora da cena, mas sabemos que ele reage de forma exaltada e inesperada. Hipólito tem imediatamente a impressão de que foi Fedra quem enviou a ama, o que o leva a difamar não só sua madrasta mas todo o sexo feminino. Quando a ama lhe dá a notícia da reação de Hipólito, Fedra fica com medo de que seu segredo seja revelado. Antes que a ama possa lhe dizer que Hipólito jurou segredo, Fedra ordena que ela vá embora. Fedra, então, decide se matar deixando uma nota que acusa Hipólito de tê-la estuprado. Quando Teseu encontra sua esposa morta e lê o bilhete, ele imediatamente confronta Hipólito. Tendo jurado segredo, Hipólito não pode responder as perguntas feitas por seu pai, e acaba o deixando certo de sua culpa. Teseu, então, bane Hipólito

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da cidade e pede a Poseidon, que lhe prometera três maldições, que o mate. O deus mantém a sua promessa, criando um touro monstruoso que sai do mar e joga os cavalos de Hipólito contra as pedras, mutilando todo seu corpo. Antes que Hipólito morra, no entanto, Artemis aparece e diz a Teseu e a seu filho a verdade sobre o que havia acontecido, promovendo a reconciliação entre pai e filho. A deusa promete, então, honras duradouras para Hipólito e vingança contra Afrodite. A maior parte da discussão sobre o problema da akrasia no Hipólito de Eurípides se centrou sobre o famoso discurso de Fedra (373-430). Esse dicurso se dá depois que Fedra já confessou seu segredo para a ama, e logo depois que tanto a serviçal quanto o Coro já expressaram de forma veemente seu horror diante do que escutaram. Embora a passagem seja um pouco longa, creio que vale a pena inserir aqui a citação completa do trecho, uma vez que a interpretação que lhe é dada é determinante para toda e qualquer compreensão da peça de Eurípides. Trezênias que habitais esta terra distante, umbral dos domínios de Pêlops: muitas vezes pensei, noutros momentos, em horas noturnas, tão lentas, nas causas da corrupção humana. Suponho que não é por natural fraqueza de [de sua inteligência] (ouk kata gnomes physin) que as criaturas seguem o pior caminho, pois [várias delas] são dotadas de bom senso. Eis como devem ser vistas as coisas: temos em nós tanto a noção como o discernimento da conveniência (khrest’epistámestha kai gignoskomen), mas não queremos segui-la, uns por indolência (argías), outros por preferirem (prothéntes) ao belo (tou kalou) algum outro prazer. Muitos prazeres dão encanto à vida, é certo: lazer, longas conversas – um doce perigo – e mesmo coisas vergonhosas, que apresentam duas facetas: uma delas não é má, a outra é o aniquilamento das famílias (se a diferença se tornasse clara a tempo coisas opostas não teriam um só nome). Se eu mesma fiz tais reflexões, veneno algum me fará pervertê-las e reverter minha opinião. Explicarei o que ocorreu com minha mente, Desde que me feriu o amor imaginei os

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37 meios de enfrentá-lo com mais dignidade. De início, quis calar para ocultar meu mal, pois nem a própria língua é digna de confiança: se ela se esmera em expressar racionalmente os pensamentos, logo atrai sobre si mesma terríveis males. Em seguida pretendi suportar dignamente minha inquietação, vencendo-a pela sensatez (sophronein nikosa). Quanto notei que minha resistência não domava Cípris eu quis morrer (a melhor decisão, sem dúvida). Se honrosa, que minha conduta não escape a outros olhos, e a vergonha tenha apenas o mínimo de testemunhas. Eu sabia que essa conduta e esse mal me infamariam. Sabia eu ainda que, sendo mulher, me tornaria o alvo da aversão geral. Pereça vítima de inúmeras desgraças toda mulher que decidir antecipar-se a macular um dia o leito nupcial! Foi nos lares mais nobres que principiou entre as mulheres esta prática funesta. Quando a desonra tem a aprovação dos grandes, os maus passam a proclamá-la natural. Também repugnavam-se as mulheres virtuosas apenas em palavras, que em segredo chegam a infamantes ousadias. Como podem essas mulheres, Cípris, rainha do mar, olhar sempre seus companheiros frente a frente sem recear que as trevas, cúmplices do amor, e o teto das alcovas falem algum dia? O que me mata é justamente, amigas minhas, o medo de aceitar enfim a idéia horrível de desonrar o meu marido e as crianças que dei à luz. Ah! Possam os meus filhos, livres e ufanos da sinceridade, prosperar, orgulhosos da mãe, na gloriosa Atenas! Por mais ativo que seja seu coração, o homem é escravo quando tem noção das faltas cometidas pela mãe ou pai. Uma só coisa, dizem, vale tanto quanto a própria vida: é ter a alma pura e boa. Quanto aos perversos, o próprio tempo os revela quando chega o momento certo, apresentando-lhes o seu espelho como às moças vaidosas. Que eu não me veja nunca misturada a eles! (EURÍPIDES, 2003, P. 112-113).

Como podemos ver, não é sem motivo que os especialistas concederam tamanha importância a esse trecho da peça. Com efeito, é nele que Fedra nos explica como procedeu em relação ao seu amor por Hipólito, nos relatando sucessivamente as escolhas que fez até o momento em que decidiu se matar. O começo do discurso, no entanto, contém uma ponderação de caráter geral, à qual Fedra diz ter sido conduzida depois de muito pensar. A importância de tal passagem só cresce para aqueles que se interessam pelo problema da akrasia. Para Irwin, por exemplo, o primeiro parágrafo do discurso de Fedra contém a afirmação da existência da akrasia. Segundo ele, Fedra afirmaria ali que o conhecimento é insuficiente para causar a ação correta, e estaria, assim, descrevendo o mesmo fenômeno que mais tarde será chamado de “ser vencido pelos prazeres”. É digno de nota, no entanto, que Irwin não hesite em imputar uma tal afirmação ao próprio Eurípides, e não somente a um de seus personagens. Nisto, Irwin não faz senão seguir as interpretações de Dodds7e de Snell8. Com efeito, parece difícil negar a relação entre a fala de Fedra e a maneira como a experiência da akrasia é abordada no Protágoras. Como já notaram vários especialistas, tudo se passa como se Platão quase que parafraseasse a Fedra de 7 8

(DODDS, 1929, P. 99). (SNELL,1953, P. 132).

38 Eurípides em seu diálogo. Com efeito, no que diz respeito à afirmação de Fedra sobre a existência da akrasia, não parece haver muita controvérsia entre os especialistas. Creio que existem, no entanto, algumas precisões que podemos acrescentar com o intuito de tornar o confronto com o texto platônico mais direto. Após ter feito tais precisões, passarei então para a outra pergunta que ocupa boa parte da literatura secundária sobre o discurso de Fedra, a saber, a pergunta a respeito da relação entre sua ponderação acerca do conhecimento e o comportamento de Fedra ao longo da peça. Aqui também o veredito de Irwin é claro. Para o autor, a personagem de Fedra é ‘fraca demais para seus desejos’(IRWIN, 1983, P. 191), isto é, ela não só afirmaria a existência da incontinência mas também agiria de forma incontinente na peça.

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O discurso de Fedra começa respondendo a indagação acerca da causa da ruína na vida da maioria dos homens. De início, Fedra descarta que a infelicidade de tais homens seja devida à falta de conhecimento pois, segundo ela, a maioria dos homens tem bom senso. Assim, a personagem de Eurípides parece sugerir que, dado o grande número de homens cujas vidas são arruinadas e o também grande número de homens de bom senso, não seria razoável imputar a ruína dos homens à ignorância. No que diz respeito à formulação da resposta de Fedra ao enigma colocado pela personagem, algo nos parece particularmente digno de nota. Com efeito, o discurso de Fedra explica não o fato de que os homens não consigam fazer o que é bom, agathos, apesar de possuírem o conhecimento, mas sim o fato de que eles não consigam fazer aquilo que sabem ser khrestos. Como sabemos, o adjetivo grego utilizado aqui por Eurípides tem uma vasta gama de significados, podendo designar as coisas de que podemos nos servir, que são de boa qualidade, ou ainda simplesmente benignas, mas podendo também adquirir um sentido moral, quando é aplicado ao homem ou ao ato honesto, honrado ou nobre. Kovacs opta por traduzi-lo por nobre, o que nos parece bastante apropriado ao contexto do discurso. Segundo Fedra, existem duas causas que podem levar os homens a não fazerem aquilo que é khrestos, a preguiça ou o fato de darem preferência a outros prazeres ao invés do belo, tou kalou. Embora a menção do belo entre os prazeres possa causar alguma estranheza ao leitor, o sentido da frase é facilmente compreensível. Com efeito, assim como khrestos, kalos também pode designar seja a beleza física das coisas, pessoas ou atos seja sua beleza moral. Fedra utiliza este adjetivo, como o anterior, em seu sentido eminentemente moral. Daí que Kovacs

39 tenha optado por traduzi-lo por “honra” – o prazer, ou benefício, que vem como consequência dos belos atos. Fedra nos diz ainda que, dentre os prazeres outros que a honra, alguns não são maus e outros são. Que tal distinção também tem um caráter moral, é o que fica claro quando ela identifica os prazeres maus com aqueles que são um fardo para o oikos. Trata-se, é claro, da vergonha que eles trazem para toda a família, e não somente para o indivíduo que dele desfruta. Ao final do primeiro parágrafo, a personagem de Eurípides defende que deveria haver nomes distintos para estes dois tipos de prazer, pois trata-se de duas coisas absolutamente diferentes, e que, dado que este é seu juízo a respeito da questão, não há droga que possa fazê-la mudar de opinião. Sendo assim, podemos resumir o primeiro parágrafo do discurso de Fedra da

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seguinte maneira: segundo ela, muitos homens não fazem o que sabem ser nobre, seja por preguiça ou por darem preferência a outros prazeres que não a honra. O problema, diz ela, é que embora alguns prazeres não tragam más consequências, outros podem ser extremamente nocivos para toda a família do indivíduo que dele desfruta. Se nossa interpretação do primeiro parágrafo do discurso de Fedra é correta, então ele não diz respeito diretamente ao problema da akrasia, embora possamos dele retirar uma hipótese a respeito da causa do ato incontinente. Isso porque, como dissemos anteriormente, o problema da akrasia diz respeito não ao que é nobre, mas ao que é melhor para o agente. Um caso onde um agente não faz o ato nobre, mesmo sabendo no que ele consiste e sendo livre para fazê-lo, só é um exemplo de akrasia se for também o caso que o ato nobre seja o ato que é melhor para o agente. Tendo feito essa precisão, podemos retomar o primeiro parágrafo do discurso de Fedra em busca de uma solução para o enigma da akrasia. Inicialmente, o discurso da personagem de Eurípides nos oferecia duas causas possíveis, além da ignorância, para a incapacidade dos homens em fazer aquilo que é nobre. Destas duas, no entanto, apenas uma pode servir para explicar o caso em que o agente que comete tal falha pensa que o ato nobre é o melhor ato para si. Com efeito, parece ridículo propor que o homem que, numa situação dada, pensa que o ato nobre é o melhor para si, pode não fazê-lo porque dá preferência a outros prazeres ao invés da honra. O verbo utilizado por Fedra aqui é protíthemi, e nos parece importante ressaltar que encontramos uma confirmação da tradução de Kovacs tanto em Lidell

40 & Scott9 quando em Bailly10. Além disso, em ambos os dicionários é constatado que o verbo tem ainda o sentido de propor algo para ser alcançado ou realizado, seja para um outro indivíduo ou grupo de indivíduos. Sendo assim, creio que, se atentarmos para a significação do verbo utilizado por Eurípides, somos obrigados a descartar a preferência por outros prazeres que não a honra como causa para o erro do incontinente. Com efeito, ao que tudo indica aqueles que fazem outra coisa que não aquilo que seria khestos, dando preferência a outro prazer ao invés do que é belo e honroso, fazem exatamente aquilo que preferem fazer, isto é, aquilo que ordenam acima e primeiro do que a honra mesmo sabendo perfeitamente no que esta última consiste. Se tal conclusão nos parece estranha, é somente porque já sabemos que, quando o problema da incontinência é analisado por

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Platão, é justamente o prazer que tem, de início, o lugar da causa do erro. Mas no Protágoras o incontinente é aquele que diz ser vencido pelo prazer, e não aquele que dá preferência ao prazer. Tal mudança, creio, está longe de ser insignificante. Segundo nossa interpretação, portanto, os homens que pensam que a honra é o melhor dentre os prazeres são os homens que acreditam que o ato nobre é o melhor ato para si mesmos. Sobra-nos, então, a preguiça como possível causa da incontinência, pois esta poderia, em princípio, afligir também os homens que têm a honra em alta conta. Mas será que, se quisermos realmente compreender o fenômeno da akrasia, podemos nos contentar com tal explicação? Tomemos dois exemplos de atos incontinentes. Primeiro exemplo: um homem está sentado no sofá depois de comer um almoço pesado. Esse homem sabe perfeitamente que tem problemas digestivos, e seu médico já lhe recomendou que caminhe depois das grandes refeições com o objetivo de facilitar sua digestão. Tal recomendação, ademais, já se provou eficaz, de modo que o homem não tem nenhum motivo para não se levantar e seguir o conselho médico. Mas, eis que, por preguiça, ele não se levanta, o que o leva a ter problemas de digestão e se arrepender depois de sua decisão. Segundo exemplo: um homem com problema de excesso de peso e diabetes se encontra diante de uma famosa sorveteria. Embora saiba perfeitamente dos efeitos que as altas taxas de açúcar têm sobre ele, e seja da opinião que o melhor 9

“pro-títhemi (…) 3. to prefer one to another, tí tinos Hdt., Eur.; hédonen anti tou kalou Eur. (…)” (LIDDEL and SCOTT, 1889, P. 702). 10 “pro-títhemi (…) III placer devant, mettre avant, préférer: tí tinos, Hdt. 3, 53; Thc. 1, 76, etc; Eur. Med. 963, etc; ou antí tinos, Eur. Hipp. 381, une ch. à une autre chose ou à qqn” (BAILLY, 2000, P. 1684).

41 seria evitar totalmente o sorvete, o homem acaba ‘sendo vencido pelo prazer’ e come o sorvete. Se a preguiça parece explicar satisfatoriamente nosso primeiro exemplo, não parece claro de que forma poderíamos lançar mão dela para explicar o comportamento do homem de nosso segundo exemplo. Com os exemplos anteriores gostaria somente de ressaltar que nem sempre a melhor opção disponível implica num maior esforço ou desgaste por parte do sujeito, de modo que a escolha da pior opção não pode ser imputada à preguiça senão em alguns casos, isto é, acidentalmente. Uma teoria que explique a akrasia deve explicar que um homem não faça aquilo que é melhor para si seja quando tal opção implica num maior esforço, seja quando ela implica num esforço menor. Ou então ela deve dizer que os homens só agem de forma incontinente quando, agindo assim, eles

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economizam seus esforços. Mas seria tal afirmação razoável? Com efeito, não há nada na formulação do problema da incontinência que nos sugira que o ato incontinente é aquele que nos exige o menor esforço. Além disso, que sentido pode haver em dizer que realizamos um ato sexual, ou nos excedemos na comida e na bebida, por preguiça? Deste modo, ao final do primeiro parágrafo do discurso de Fedra ainda estamos longe de uma resposta satisfatória para o problema da incontinência. Nos dois parágrafos seguintes, Fedra nos explica a forma como procedeu desde que se apaixonou por Hipólito. Segundo ela, quando o amor a atacou ela decidiu (1) ocultar sua doença em silêncio, (2) suportar esta loucura nobremente, e (3) superá-la por meio de auto-controle, mas quando ela se viu incapaz de dominar Cypris, o outro nome de Afrodite, Fedra então resolveu se matar. Segundo ela, tratase do melhor dos planos, pois da mesma maneira que ela não deixa suas boas ações passarem despercebidas, tampouco lhe interessa ter uma multidão de testemunhas para seus atos vergonhosos. Embora tal formulação revele o quão preocupada está Fedra com sua própria imagem e com a opinião que os demais têm a seu respeito, creio que seria precipitado classificar uma tal preocupação de superficial, pois Fedra nos dá motivos concretos para tal, lembrando que sua desonra terá consequências nefastas tanto para seus filhos quanto para seu marido. Segundo Fedra, ela é movida não só por um senso de responsabilidade como rainha a dar o exemplo (407-12) e por um ódio de mulheres adúlteras, mas também pelo desejo de evitar que caia sobre seu marido e seus filhos o tipo de vergonha que diminuiria a liberdade deles dentro da cidade (419-25), ou seja, que seria um fardo para o oikos. Tal desonra, nos diz ela,

42 aconteceria caso descobrissem seu sentimento, mesmo que ele não tivesse jamais se concretizado de fato em adultério. Essa afirmação, é importante notar, não parece nem um pouco exagerada se tivermos em mente a primeira reação do Coro e da ama quando receberam a notícia. Como sabemos, Hipólito também reagirá com choque quando vier a saber dos sentimentos de Fedra através da ama. Se nossa interpretação do discurso de Fedra está correta, então creio poder concordar com Kovacs quando ele afirma que, ao contrário do que pensaram muitos dos especialistas que escreveram sobre esta passagem, Fedra não confessa aqui nenhum erro, nem tenta se desculpar. O discurso de Fedra visa explicar o que, como, e por quê ela pretende agir da maneira como está agindo. O discurso inteiro é uma explicação de sua decisão de tirar a própria vida e de como ela chegou até tal

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decisão. Assim, ele não explica como ela falhou, mas sim como ela pretende ter sucesso. Tendo concluído que os homens erram não por falta de inteligência mas de perseverança, ela está decidida a não deixar o mesmo acontecer consigo (KOVACS, 1980, P. 291-292). Creio ter dito o suficiente para alcançar uma compreensão adequada do discurso de Fedra. Resta-nos agora analisar a afirmação de Irwin segundo a qual Fedra teria, a despeito de seu discurso, agido de forma incontinente. Infelizmente, em seu texto Irwin não especifica em que momento exatamente Fedra se mostra ‘fraca demais para seus desejos’, limitando-se a nos remeter para a obra de Snell11. A meu ver, existem dois momentos da peça nos quais Fedra age de forma a poder suscitar um tal julgamento, a saber, quando ela revela seu segredo para a ama e para o coro e quando ela resolve incriminar Hipólito antes de se matar. É somente nesses dois momentos que a ação empreendida por Fedra sequer arrisca implicar em desonra. No que diz respeito ao primeiro momento, como já ressaltou Kovacs, Fedra resiste sem jamais fraquejar a todos os avanços da ama, e só revela seu segredo quando esta assume uma postura de suplicante da qual Fedra não consegue se desvencilhar (KOVACS, 1987, P. 45). É só quando é obrigada a respeitar a suplicação da ama, cuja rejeição implica em desonra12, que Fedra lhe revela seu amor por Hipólito. Como podemos ver, não é absolutamente adequado descrever um tal ato como um ato incontinente. Fedra não experimentou nenhum prazer com a 11 12

(SNELL, 1964, P. 23-46). Sobre o ato de suplicação na literatura e na historiografia grega, cf. (GOULD, 1973).

43 revelação de seu segredo, ao contrário, ela o fez sob coação e já sob a ameaça de incorrer em desonra. Sendo assim, mesmo aqui não temos nenhum motivo para dizer que Fedra age voluntariamente contra os valores que havia afirmado em seu discurso. Muito pelo contrário, ela o faz sob uma espécie de coação que é tanto mais forte quanto mais forte for o desejo de evitar a desonra por parte de quem sofre a coação. Por outro lado, quando Fedra opta por incriminar Hipólito ela não está absolutamente agindo contra aquilo que acredita ser o melhor a fazer. Ao contrário, Fedra acha que assim estará se protegendo contra a má fama que cairá sobre ela, e cujos efeitos serão sentidos também por seus filhos. Ela só procede dessa maneira porque não sabe que Hipólito jurou segredo, e acredita que ele tornará público seu sentimento e a acusará de ter tentado procurá-lo. Acusando-o de estupro, Fedra

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estaria ao mesmo tempo desacreditando qualquer acusação por parte de Hipólito e justificando sua morte através da invenção de um ultraje cometido contra ela. Esta versão dos fatos, é claro, esconderia o fato de que ela havia planejado o suicídio por ser incapaz de sobrepujar o amor que sentia por Hipólito. Qualquer que seja o juízo que tenhamos a respeito do curso de ação escolhido por Fedra, devemos reconhecer que ela fez aquilo que julgou melhor na ocasião. No entanto, Fedra, assim como Medéia, se mostra uma personagem proveitosa para aqueles que pensam o fenômeno da akrasia. Se é verdade que ela não se permite jamais cometer um tal erro, parece não ser menos verdade que é por antecipar sua ocorrência que ela escolhe, pela primeira vez, pôr fim à sua própria vida em silêncio. Mais cedo ou mais tarde, pensou Fedra, eu fraquejarei, pois o sentimento será forte demais para que eu consiga manter o controle. Tão convicta estava ela de que isso aconteceria que decidiu tomar a mais drástica das medidas. Mal sabia Fedra que era justamente isso o que queria Afrodite.

1.6 Um outro olhar sobre a akrasia em Eurípides Encerro aqui minhas considerações sobre a obra de Eurípides. No próximo capítulo, passaremos ao Protágoras de Platão e adentraremos de uma vez por todas o discurso filosófico. Antes de darmos esse próximo passo, no entanto, gostaria de dizer algumas palavras com o intuito de deixar mais claro o que acredito ser possível retirar deste primeiro capítulo.

44 Em primeiro lugar, creio ser importante ressaltar que não pretendo sustentar aqui nenhuma hipótese a respeito do que Eurípides pensava sobre a incontinência. Por um lado, é importante notar que nossa investigação se ateve às duas obras do autor utilizadas por Irwin em seu artigo, o que inviabiliza toda e qualquer conclusão geral a respeito da obra de Eurípides. Embora creia ter dito o suficiente para mostrar as fraquezas da interpretação de Irwin das duas obras aqui analisadas, não posso absolutamente pretender sustentar que não existem exemplos de incontinência na obra de Eurípides. Para tal, obviamente, seria necessária a leitura de todas as tragédias do autor que nos restaram. Por outro lado, como veremos, segundo o Sócrates de Platão a crença na incontinência é bastante comum entre seus contemporâneos. Sendo assim, mesmo

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que não encontremos em Eurípides nenhuma linha a respeito do assunto, e desde que não encontremos tampouco uma rejeição explícita do fenômeno, a hipótese de que ele também acreditasse na incontinência não nos parece nada improvável. E, no entanto, não vejo absolutamente no que uma tal hipótese nos possa ser útil em nossa investigação do fenômeno. Em segundo lugar, e a despeito do campo limitado da investigação aqui empreendida, creio ser importante notar que nossa interpretação não nos deu nenhum motivo para ver nas personagens de Eurípides, como propõem Gauthier e Jolif, meras ‘vítimas’ de suas paixões, indivíduos arrastados de um lado para o outro a despeito de seus próprios desejos e objetivos (GAUTHIER, R. A.; JOLIF, J. Y, 2002, P. 169). Sendo assim, não podemos senão questionar o quadro conveniente que tais especialistas nos fornecem da questão: segundo eles, enquanto para Eurípides era perfeitamente possível que os homens fossem arrastados por seus desejos, agindo no mais das vezes de forma involuntária sob o constrangimento que esses lhes impõem, Sócrates, embora acabe concordando com Eurípides ao classificar tais ações como involuntárias, as teria explicado como fruto da ignorância, e não do constrangimento. Por fim, Aristóteles teria feito de tais ações atos voluntários do indivíduo. Para Gauthier et Jolif, portanto, não só o argumento Socrático acerca da incontinência se desenvolve em oposição a Eurípides, mas Aristóteles também, quando, no livro III da Ética a Nicômaco, nega que os prazeres possam ser considerados como uma força capaz de constranger os homens, tem por objetivo se opor à ‘doutrina’ de Eurípides. Segundo os autores:

45 A doutrina que Aristóteles combaterá nesta seção é aquela da qual Eurípides se fez, um século antes, o campeão. Os heróis de Eurípides se desculpam facilmente do mal que eles fizeram proclamando que eles não o fizeram voluntariamente (oukh ekón, cf. Fedra no Hipólito, 319, 358; Menelau desculpando helena, em Andrômaca, 680); mas, se eles agiram a contra gosto, isso não foi por ignorância mas sim por constrangimento (bia, cf. Helena nas Troianas, 962, e a resposta, 998, 1037); e este constrangimento é aquele exercido pelas paixões, pelo prazer (Hipólito, 382; Antíope, dr. 220 Nauck), e sobretudo o prazer do amor (Medéia, 530: ‘Foi o amor que te forçou’, eros s’henankase! Hipólito, 443: ‘Cípris é irresistível!’; da mesma forma, Troianas, 948-950) ou a cólera (Medéia, 1079); estas paixões são de fato inscritas na natureza e a natureza violenta a razão (gnómen d’ekhontà m’hé phúsis biazetai, Chrysippos, fr. 840 Nauck). (GAUTHIER, R. A.; JOLIF, J. Y, 2002, P. 177-178).

Como podemos ver, Gauthier e Jolif apoiam sua interpretação em alguns exemplos retirados das duas peças analisadas aqui. Parece-me apropriado, por isso, encerrar com algumas palavras sobre estes trechos, com o intuito de esclarecer melhor PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

nossa discordância para com os autores citados. Quanto aos outros trechos, retirados de Andrômaca e Mulheres Troianas, eles dizem respeito ao personagem de Helena e às circunstâncias que a envolvem na guerra de Tróia. Deixarei a análise de tais trechos, que requereria uma interpretação mínima dessas peças, para outra ocasião. No que diz respeito à Medéia, os autores citam as linhas 530 e 1079. Na primeira referência, trata-se do momento em que Jasão afirma que foi Afrodite quem forçou Medéia a ajudá-lo a conseguir o Velocino de Ouro. Limito-me a observar, mais uma vez, que não se trata absolutamente nem de algo que Medéia diga a respeito de si mesma durante a peça nem de um dado do mito dos argonautas. Seria, então, a palavra do próprio Eurípides? A meu ver, tal hipótese é perfeitamente arbitrária. No que diz respeito à segunda passagem citada, ressalto apenas que ela só pode servir ao argumento delineado por Gauthier e Jolif se for lida segundo a interpretação que nossa investigação descartou. O thumos não é uma fonte cega de emoção irracional. No que diz respeito ao Hipólito, não comentarei aqui a linha 382, que pertence ao discurso de Fedra. O que foi dito anteriormente deve bastar. Na linha 319 do Hipólito de Eurípides, Fedra diz à ama que é um amigo (philos) que a destrói e que nenhum dos dois o faz voluntariamente (ouch ekousan ouch ekon). Não é claro a quem Fedra está se referindo, e talvez a melhor hipótese seja mesmo Hipólito. Pouco importa. Fedra jamais cedeu ao seu amor por Hipólito, preferindo morrer ao invés de cometer tal incesto. O que ela não conseguiu suprimir foi um sentimento e não uma ação. Ora, a incontinência é uma categoria que classifica não um sentimento, mas uma ação.

46 Para que possamos interpretar o significado dessa frase a partir da peça como um todo, é preciso ter em mente o significado preciso da vitória de Afrodite tal como ela é encenada por Eurípides. Em nenhum momento a deusa constrange nenhum dos personagens a uma ação. Se tem algo que a deusa não fez foi deixar Hipólito doente de amor por Fedra com o objetivo de constrangê-lo a fazer algo que ele jamais faria. O máximo que a deusa causa, diretamente, além do próprio amor de Fedra por Hipólito, é o pequeno delírio sofrido por Fedra e que serve de estopim para a conversa com a ama. Daí em diante, os acontecimentos que levam ao desenlace da peça tem uma ligação puramente acidental. Fedra não planejava contar nada para ninguém, mas a ama, por iniciativa própria, resolve lhe arrancar o segredo. E mesmo depois disso, Fedra deixa claro que a ama não deve procurar Hipólito. Se é verdade

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que a desobediência por parte da ama não é propriamente imprevista, a reação de Hipólito é absolutamente exagerada e equivocada. O ponto que gostaria de ressaltar aqui, para ser breve, é que, embora a sequência de eventos tal como ela se deu tenha sido prevista e acionada por Afrodite, não é através da coerção que a deusa subjuga os mortais. Afrodite não força nenhum dos personagens a escolher um caminho ou a realizar uma ação. A única ação para o qual o amor de Fedra poderia guiá-la era para sua consumação. Isto não só jamais se deu, como também jamais foi desejado por Afrodite, que nos diz já no prólogo que Fedra morrerá com sua honra intacta. A verdade é que se olharmos para a obra de Eurípides buscando a maneira como a deusa realizou seus desígnios, não poderíamos dizer outra coisa senão que ela o fez através de eventos que nós homens chamaríamos de acidentes. Devemos pressupor que a deusa estava por trás de cada um deles, como uma causa motora escondida? Que foi ela que levou, a cada vez, Fedra a confessar seu segredo, e depois a ama a procurar Hipólito, e este a reagir da forma que reagiu, e depois Fedra a se matar, etc.? Tais hipóteses, também, me parecem perfeitamente arbitrárias, pois o texto não lhes dá verdadeiramente nenhum suporte. Sendo assim, a meu ver não podemos dizer das personagens de Eurípides aqui estudadas nem que elas agem de forma incontinente e nem que agem sob coerção. Se podemos afirmar, baseado no que foi dito aqui, que a obra de Eurípides nos ajuda a entender a formulação filosófica do problema da akrasia é porque esta obra nos mostra um caso, o de Medéia, onde o domínio de si é determinante para que o sujeito avance na direção que determinou para si mesmo e vença os obstáculos, e os adversários, que se colocam diante dele, e um outro caso, o de Fedra, no qual a

47 execução da ação incontinente é antecipada pela personagem principal, que prefere se matar do que realizar tal ato. Em ambos os casos, portanto, podemos dizer que o ato incontinente é retratado como possível. É só no primeiro caso, no entanto, que a incontinência aparece como uma possibilidade imediata quando Medéia fraqueja diante de sua decisão. No caso de Medéia, a sua ação era ao mesmo tempo o resultado de uma vitória interna dela contra si mesma, ou uma parte de si mesma, e a ação através da qual ela triunfa sobre seus adversários. Nesta tragédia de Eurípides, encontramos a vitória contra os outros misturada com a vitória sobre si mesmo. Nessa mistura, a mestria de si mesmo aparece como a condição necessária, se não suficiente, para o triunfo sobre os adversários. Como vimos, era justamente esse o significado que nos

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propunha Benveniste para o significado do termo kratos. Será esse um traço distintivo da obra de Eurípides com relação a seus predecessores? A resposta a essa pergunta, embora não seja totalmente desprovida de interesse, escapa aos objetivos do presente capítulo.

2 O Protágoras 2.1 Akrasia e intelectualismo socrático A leitura tradicional, e nesse ponto parece haver consenso desde Aristóteles (EN VII 2, 1145b25), situa a primeira reflexão filosófica sobre o problema da akrasia no Protágoras de Platão. Lá, já nos dizia o filósofo estagirita, vemos Sócrates negar o fenômeno da akrasia e afirmar que ninguém age contrariamente ao que é melhor acreditando que o que faz é mau, mas apenas por ignorância.

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Se é verdade que muito foi dito sobre o Protágoras desde a época de Aristóteles, não deixa de ser espantoso constatar que a interpretação hegemônica de nosso tempo ainda parece seguir de perto o filósofo estagirita. Na introdução de um livro publicado recentemente sobre o tema, Bobonich e Destrée fazem um esforço para formular o mais claramente possível o conteúdo dessa interpretação hegemônica em termos próprios da ética grega (BOBONICH, C.; DESTRÉE, P., 2007, P. xvii). Segundo os autores, o que encontramos afirmado no Protágoras é que todos desejam isso que é o bem para o homem: viver de forma próspera ou, simplesmente, ser feliz - seja qual for o sentido exato que cada um atribui a estes termos. Disso resulta que todos fazem o que pensam ou acreditam ser bom (qualquer que seja o sentido de ‘bom’) como um meio de alcançar a felicidade (ou como algo constituinte do que é o bem para o homem) e, portanto, que ninguém deseja o mal. A negação da akrasia no Protágoras se encontra, assim, estreitamente conectada com o tão criticado intelectualismo socrático. Isso porque a ideia de que todas as ações empreendidas pelo indivíduo devem ser explicadas a partir de sua concepção da felicidade parece implicar que todas as ações empreendidas por este indivíduo são motivadas por desejos racionais. Daí que a maioria dos especialistas hoje, como ressaltam Brickhouse e Smith (BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D., 2007, P. 3), afirmem que para Sócrates os desejos racionais são os únicos desejos possuídos pelo homem. Embora seja efetivamente impossível elencar aqui todos aqueles que, desde Aristóteles, apontam as limitações da suposta posição socrática, creio ser possível,

49 seguindo Segvic, apontar duas das principais formas que uma tal crítica pode tomar. A primeira forma da crítica ao intelectualismo socrático afirma que Sócrates subestima a importância dos lados emotivo, desiderativo e volitivo da natureza humana, estando preocupado demais com o intelecto. A segunda forma de crítica, por sua vez, não acusa Sócrates de subestimar tais lados da natureza humana, mas sim de nos fornecer uma explicação insuficiente, porque ‘intelectualista’, deles. Em ambas as formas nos encontramos diante da expressão de uma grave acusação: os argumentos defendidos por Sócrates parecem ignorar a existência de fenômenos que são considerados corriqueiros, estando, portanto, em conflito com a realidade dos fatos (SEGVIC, 1957, P. 48). Alguns desenvolvimentos recentes nos estudos acerca do Protágoras, sobretudo

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na segunda metade do século passado, tendem a suavizar um pouco o retrato quase caricato do intelectualismo socrático que se generalizou entre os especialistas. A exegese que se segue do texto platônico procura se orientar por tais estudos, na esperança de, assim, alcançar uma melhor compreensão da obra. 2.2 O relato da multidão e a pergunta de Sócrates De início parece ser digno de nota o fato de não encontrarmos a palavra akrasia no Protágoras. Nesse diálogo, o fenômeno que é analisado por Sócrates é chamado de ‘ser vencido pelo prazer’ (352e, upo ton edonon hettasthai). Segundo Sócrates: A grande maioria dos homens pensa do conhecimento mais ou menos o seguinte: que não é forte, nem capaz de guiar, nem de comandar; não cogitam dele nessas conexões, sendo, pelo contrário, de parecer que muitas vezes, embora seja o homem dotado de conhecimento, não é governado por ele, mas por qualquer outra coisa, ora pela cólera, ora pelos prazeres, ora pela dor, algumas vezes pelo amor, e muito frequentemente pelo medo, e consideram o conhecimento mais ou menos como um escravo que se deixa arrastar por tudo (352b-c). 13

Após afirmar a concepção que a multidão tem do conhecimento, Sócrates pergunta a Protágoras se ele concorda com eles ou se acredita, como o próprio Sócrates diz acreditar, que o conhecimento é algo nobre e apto a governar o homem, que quem 13

A Tradução utilizada neste trabalho é de Carlos Alberto Nunes (PLATÃO, 2002).

50 quer que aprenda o que é bom e o que é mau não pode jamais ser forçado a agir contra o que lhe indica o conhecimento, e que a inteligência é um remédio suficiente para a humanidade. Protágoras rapidamente concorda com Sócrates, afirmando que seria vergonhoso se justamente ele, o maior dos sofistas, dissesse que o conhecimento e a sabedoria não são os maiores bens dos homens. Sócrates, no entanto, não se dá por satisfeito por ter conseguido a aprovação de Protágoras. Isso porque, afirma ele, a maioria dos homens não vai escutá-los. O que se faz necessário é que ambos, Sócrates e Protágoras, se juntem para buscar persuadir o mundo e explicar o que é essa experiência que eles chamam ‘ser vencido pelo prazer’, e que eles dão como razão para o fato de não conseguirem fazer o que é melhor mesmo

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quando têm o conhecimento necessário para tal. Creio ser importante dizer algumas palavras acerca da questão tal como ela é formulada por Sócrates. Como muito bem notou Santas, o filósofo toma o cuidado de distinguir a explicação dada pela multidão do fenômeno ele mesmo (SANTAS, 1966, P. 5). Essa distinção fica clara se tivermos em mente o que é dito por Sócrates em 353c. Que outra coisa, amigos, entendeis por isso [ser vencido pelos prazeres], se não for, por exemplo, como nos casos tão frequentes em que vos deixais dominar pelos prazeres da comida, da bebida ou do amor, conscientes de que são práticas nocivas, e, apesar disso, vos entregais a elas? (353c).

O que o filósofo quer estabelecer é a que ações a maioria dos homens está se referindo quando tentam explicar seu comportamento como um caso onde foram vencidos pelo prazer. Existem, portanto, diversas ações que poderiam ser explicadas dessa mesma maneira. Que um tal agrupamento não pareça problemático é algo que só pode ser explicado devido à forte semelhança de família que as ações citadas parecem guardar entre si. Todas dizem respeito ao prazer e parecem exemplificar casos nos quais sua força de atração sobre os homens é particularmente forte, podendo mesmo levá-los a cometer excessos ou transgressões que sabem ser nocivos. Sim, pois é somente no excesso ou nas transgressões que práticas como a comida, a bebida e o amor podem ser consideradas nocivas. Sócrates se mostra preocupado com um conjunto de fenômenos bastante singular: trata-se de ações conscientemente empreendidas por um indivíduo e que, de acordo com esse próprio indivíduo, não teriam como fim aquilo que é o seu maior interesse. Isso

51 aconteceria na medida em que ele escolheria, dentre as diferentes possibilidades de ação que lhe são tanto possíveis quanto disponíveis, uma outra que não aquela que lhe seria mais benéfica. O que, segundo a multidão, o levaria a fazer tal escolha? O fato de ele ser vencido pelo prazer, isso é, pela expectativa do prazer propiciado por esta outra opção. A fala da multidão poderia ser, então, dividida em duas partes: a primeira (a) afirma que um certo fenômeno ocorre, e a segunda (b) dá uma explicação para essa ocorrência. Tal distinção é importante porque o argumento que se segue pretende refutar não a ocorrência de determinados fenômenos, i.e das ações desmesuradas por parte da multidão, mas a explicação que é dada a respeito deles. Vale ressaltar que o objetivo de Santas ao ressaltar tal distinção é justamente compreender como é possível ler no

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argumento, tal como o encontramos no Protágoras, uma rejeição do fenômeno da akrasia, e não enfraquecer a postura socrática de negação da akrasia. Como nota o autor, seria de fato impossível que se pretendesse negar um fato da natureza humana através de um procedimento puramente dedutivo. Tal tarefa está muito além do que pode a razão. Por outro lado, é totalmente possível provar dedutivamente que uma determinada explicação de um fenômeno é incompatível com a descrição dada deste mesmo fenômeno por um mesmo indivíduo (SANTAS, 1966, P. 6). Mesmo que se admita isso, no entanto, resta ainda, como o próprio Santas reconhece, que um fenômeno cuja ocorrência é afirmada pela multidão é explicitamente negado por Sócrates tanto no começo do argumento (352b) quanto no final (357d). Vale lembrar, no entanto, que em ambos os trechos o que Sócrates nega é que o conhecimento possa ser vencido seja pela paixão, pelo medo, pelo amor, pelo prazer ou pela dor. É uma afirmação sobre o poder do conhecimento no homem que é refutada. O fenômeno que é negado, no entanto, não é de maneira alguma algo que podemos dizer que seja evidente aos sentidos. Ao contrário, trata-se de algo que ocorre, se ocorre, no interior de cada indivíduo e que por isso mesmo escapa à observação. Se não parece ser um exagero afirmar, como faz Santas, que é justamente atacando a explicação comum acerca do fenômeno que Platão pretende nos convencer de sua inexistência, isso é exatamente porque esse fenômeno interno ao homem é apresentado pela multidão como causa de seus erros. Sob esta ótica, a argumentação que se segue buscaria nos mostrar que a maneira através da qual a multidão explica a sua

52 fraqueza, i.e a causa à qual ela atribuir a ocorrência da falha, encontra algumas dificuldades, abrindo o caminho para a explicação de Sócrates. Não obstante, como nos diz Santas, a impossibilidade de um fenômeno não é uma consequência necessária do fato de que uma determinada explicação deste fenômeno seja falsa; e Platão em lugar algum afirma o contrário (SANTAS, 1966, P. 7).

2.3 O prazer e o bem Quais seriam então as dificuldades da explicação fornecida pela multidão acerca do fenômeno que eles chamam ‘ser vencido pelo prazer’? A investigação de Sócrates

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começa perguntando pela razão que leva a maioria dos homens a chamar as ações que levam a cabo nesses momentos de nocivas. Por que dizeis que essas coisas são nocivas? Por proporcionarem prazer no momento que passa e serem agradáveis de per si, ou por causarem ulteriormente pobreza, ou doenças, ou outros males do mesmo gênero? E no caso de não terem nenhuma dessas consequências e serem exclusivamente fonte de prazer, ainda seriam consideradas nocivas, por serem causa imediata de prazer de qualquer natureza? Não devemos admitir, Protágoras, que eles não responderiam senão que não são nocivas por causa dos prazeres imediatos que ocasionam, mas por causa das doenças e outros males que lhe vêm no rastro? (353c-e).

Sócrates começa sua análise examinando a ideia de que o prazer leva as pessoas a fazerem coisas ruins. Para que isso seja verdade, é claro, é necessário que se admita que essas coisas ruins sejam, de alguma forma, fontes de prazer. O filósofo afirma que se perguntasse à multidão se ela acredita que essas coisas são ruins por causa do prazer que causam ou pelas consequências que trazem, ela afirmaria que elas são ruins por causa de suas consequências. O que Sócrates pretende deixar claro é que quando a multidão chama uma determinada ação de ruim isso é porque, de alguma forma, ela acredita que os seus malefícios são maiores que os seus benefícios. O mesmo raciocínio, é claro, é aplicado quando se chama algo de bom (354a). Tais juízos, portanto, pressupõem que a avaliação de uma escolha como sendo boa ou má leva em consideração tal ação tanto no que diz respeito a seu efeito imediato quanto às suas futuras consequências. Cada opção de conduta possível é avaliada como um ‘pacote’ que contém tanto dor quanto prazer, e uma determinada opção é classificada como boa ou má dependendo da proporção entre

53 dor e prazer que ela contém. Se isso é verdade, nos diz Sócrates, então fica claro que a multidão persegue o prazer e evita a dor, e que uma ação prazerosa só poderá ser considerada ruim caso resulte em mais dor do que prazer, assim como só será considerada boa se resultar em mais prazer do que dor. O argumento socrático tem dois objetivos. O primeiro é mostrar que o prazer acarretado por uma ação qualquer não pode servir de explicação para um juízo negativo a seu respeito. Suponhamos que um conhecido se aproxime de nós manifestando remorso a respeito de alguma coisa. Quando lhe perguntamos sobre o ocorrido, ele nos diz que na noite anterior foi a um jantar e pediu um prato que estava delicioso. Caso seu relato pare por aí, nos será de fato muito difícil compreender a razão de seu

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arrependimento. Nossa perplexidade se deve ao fato de que seu relato está, de certa forma, incompleto. Deve haver alguma coisa a respeito das circunstâncias do ocorrido, ou das consequências geradas por ele, que não nos foi mencionada. Afinal, não há nada de errado em comer um prato delicioso. Por outro lado, o reconhecimento por parte do sujeito das consequências nefastas de sua ação nos desperta imediatamente outras questões, a saber, se o indivíduo levou ou não em consideração tais consequências no momento em que realizou a ação, e, no caso ele ter levado, que peso ele atribuiu a elas. Logo em seu primeiro argumento Sócrates estabelece que o prazer é bom e a dor ruim, e que a maioria dos homens persegue o prazer como sendo um bem e evita a dor como um mal. E isso a tal ponto que os homens chamam o ato do deleite de mal, caso ele os prive de prazeres maiores do que os que possui nele mesmo (354d). A partir do que foi dito até aqui, podemos compreender a ação incontinente como uma ação motivada pelo prazer, mas, se o fizermos, teremos que reconhecer que tal indivíduo, ao perseguir tal ação, incorreu também em dores consideráveis. Ou seja, que tal indivíduo optou por uma ação na qual ele incorreria em prazeres e em dores, tendo sucesso em perseguir o prazer mas falhando em fugir da dor. Tendo atingido este ponto da argumentação, Sócrates simula uma intervenção por parte da multidão, que estaria se perguntando acerca da utilidade do argumento desenvolvido por ele. O filósofo, então, lhes assegura que ‘deste ponto dependem todas as nossas conclusões’ (354e), mas que ainda é possível voltar atrás, caso eles – a multidão ou Protágoras – consigam de alguma forma dizer que o bem é diferente do

54 prazer, ou o mal da dor. Antes de procedermos com a exegese do texto, no entanto, talvez seja prudente dizer algumas palavras sobre o argumento que foi desenvolvido até aqui. Particularmente, nos debruçaremos agora sobre a função da tese hedonista, que afirma a identidade entre o bem e o prazer, no argumento do Protágoras.

2.4 O hedonismo do Protágoras Existe ainda alguma controvérsia a respeito de quem seria o porta-voz da

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doutrina hedonista que encontramos no Protágoras. Como já dizia Sesonske: O hedonismo expressado aqui tem colocado grandes dificuldades para os especialistas; pois ele parece conflitar com opiniões expressadas em outros diálogos. Até mesmo a sua função nesse diálogo é duvidosa. As interpretações possíveis incluem as seguintes: [1] o hedonismo foi uma posição sustentada pelo Sócrates histórico mas não por Platão; [2] que ela era a posição também de Platão em sua juventude, mas que mais tarde foi abandonada; [3] que nem Platão e nem Sócrates jamais a sustentaram, e que ela só é examinada no Protágoras porque está implícita no ensinamento de Protágoras e Platão deseja demonstrar que mesmo tendo admitido o hedonismo as virtudes são unas e são um tipo de saber (SESONSKE, 1963, P. 74). Até hoje, alguns especialistas importantes defendem que é o próprio Sócrates quem sustenta a identidade entre o bem e o prazer. Tais autores são forçados a ressaltar que uma tal postura entra em contradição direta com a posição sustentada por Sócrates em outros diálogos. Para os que sustentam uma tal interpretação, algumas saídas interpretativas se mostram possíveis. É possível, por exemplo, optar por uma leitura do Protágoras que procure atribuir ao personagem de Sócrates uma postura irônica. De acordo com esta perspectiva, embora seja o filósofo quem sustenta a tese hedonista no diálogo, não se imputa a ele a crença nessa tese. É possível ainda explicar a divergência constatada entre o Protágoras e os demais diálogos a partir de uma compreensão evolucionista do pensamento de Platão. A interpretação que pretendemos defender aqui não se utiliza de nenhuma destas duas estratégias. Ao contrário, estamos plenamente de acordo com Migliori quando o autor afirma que o Protágoras “exprime posições que são ‘estáveis e constitutivas’ do platonismo” (MIGLIORI, 2004, P. 529). Antes de passarmos à nossa leitura do diálogo, no entanto, analisaremos alguns argumentos que

55 poderiam ser levantados em favor de uma leitura hedonista da argumentação socrática que encontramos no Protágoras. Em favor de tal interpretação, poder-se-ia apontar para 351c, onde Sócrates pergunta a Protágoras se ele concorda com a multidão que chama algumas coisas prazerosas de más e algumas coisas dolorosas de boas. O filósofo então pergunta, antes ainda que toda a discussão acerca do que significa ‘ser vencido pelo prazer’ tenha tido lugar, se as coisas não seriam boas na medida em que são prazerosas e más na medida em que são dolorosas. Protágoras se mostra, de início, relutante em aceitar tal afirmação. Sócrates tenta esclarecer o seu significado perguntando então se o prazer ele mesmo não é algo bom. É quando Protágoras se mostra disposto a investigar essa hipótese que o

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diálogo passa a discutir a experiência que a multidão chama de ‘ser vencido pelo prazer’. Fica claro, então, que a tese hedonista é trazida para o diálogo por Sócrates e que, de início, não se pode nem sequer afirmar que ela é partilhada pela multidão. Afinal, a única coisa que nos é dita, naquele momento, é que a multidão chama algumas coisas prazerosas de más. Tal fato pode mesmo ser lido como uma prova de que a tese hedonista é na verdade uma tese socrática, e que multidão não a aceita. Essa é a posição defendida em um livro recente, por exemplo, por Julia Annas (ANNAS, 1999, P. 167171). Segundo a autora, nem Protágoras e nem a multidão se comprometem com ela voluntariamente, mas sim através de um artifício dialético utilizado pelo filósofo. Para a autora, o filósofo utiliza tal artifício não para contestar as crenças e a vida de seus interlocutores, mas apenas para examinar a sério se tal tese é verdadeira. Creio, no entanto, que essa interpretação não faz justiça ao que encontramos no texto platônico. Ainda que seja verdade que a tese hedonista é trazida ao diálogo por Sócrates, o argumento que se segue de 353c até 353e não deixa dúvidas de que o hedonismo está sendo analisado como uma crença tanto de Protágoras quanto da multidão. Isso, é claro, não exclui que a multidão também afirme que ela chama algumas coisas prazerosas de más e algumas coisas dolorosas de boas. Como já vimos, este juízo pressupõe uma análise dos prazeres e das dores totais, imediatos e futuros, proporcionados por uma determinada ação. A distinção entre bons e maus prazeres, que é apresentada por Protágoras como uma razão para resistir à afirmação Socrática de que o prazer é, em si mesmo, bom, acaba se mostrando perfeitamente compatível com tal afirmação. Quando

56 Protágoras fala em bons e maus prazeres ele não está se referindo ao prazer ele mesmo, mas sim às ações prazerosas. Protágoras só hesita em aceitar a tese hedonista porque não está consciente do que os seus juízos a respeito de tais ações pressupõem, isto é, ele, assim como a multidão, não sabe que é hedonista. O argumento de Sócrates visa nos mostrar justamente isso. Nesse sentido, seguimos aqui Sesonske. Segundo o autor:

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Se agora perguntarmos, o que Platão está fazendo aqui? A resposta é que ele está desenvolvendo de maneira consistente a opinião que ele pensa estar implícita na vida da multidão e dos sofistas. A inconsistência está não no que eles dizem – que o prazer não é o bem, e que os homens às vezes são vencidos pelo prazer – mas na descontinuidade entre o que eles dizem e o que eles fazem. Se eles não são capazes de propor e nem agir de acordo com nenhuma outra medida do bem que não seja o prazer, não devem eles admitir que o verdadeiro conhecimento dos prazeres e das dores é a chave para uma vida boa e que nenhum homem que sabe realmente que uma determinada ação é a melhor (a mais prazerosa) agirá voluntariamente de outra maneira? (SESONSKE, 1963, P. 77).

Se aceitarmos tal argumento, temos então que o hedonismo é uma crença de Protágoras e da multidão, mas não de Sócrates, o que parece condizente com o personagem que encontramos nos demais diálogos de Platão. No entanto, não são poucos os que discordam de tal leitura. Afinal, se observamos cuidadosamente o argumento desenvolvido por Sócrates, é impossível não notar o alto grau de permissividade moral que o caracteriza. De fato, não encontramos em parte alguma qualquer referência aos bens da alma, cuja superioridade em relação aos prazeres físicos é afirmada tantas vezes na obra platônica. Sócrates se contenta em dar exemplos como fazer exercícios físicos, dieta, tomar remédios, etc. É esse traço da argumentação socrática que parece guiar Terence Irwin, por exemplo, em seu comentário mais recente sobre o argumento desenvolvido no Protágoras. Segundo Irwin: Para compreendermos o que Sócrates defende, devemos considerar afirmações diversas sobre a relação entre o bem e o que é prazeroso: 1. O ser-bom é o prazer, i.e., o ser bom de X consiste essencialmente no prazer de X (em seu ser prazeroso). 2. O bem para o homem é a sua felicidade, i.e, o bem em sua vida como um todo. 3. A felicidade é alcançada pela predominância do prazer na vida do homem como um todo. 4. X ser bom como um todo = X ser prazeroso = X propiciar mais prazer do que dor como um todo (IRWIN, 2007, P.34).

57 Em sua interpretação, Irwin vai ainda mais longe do que Annas, afirmando que Sócrates defende uma explicação hedonista do bem e batizando o hedonismo socrático de ‘hedonismo eudaimonístico”. Não é minha intenção fazer aqui uma análise detalhada da interpretação defendida por Irwin. Pretendo apenas apontar uma possível confusão que a quarta afirmação traz, e que deve ser evitada. Irwin explica a última tese imputada a Sócrates como o comprometimento do filósofo com a afirmação, a princípio bastante contra-intuitiva, de que algumas vezes ter um dente arrancado é algo prazeroso mesmo que cause dores imediatas, pois é um meio para um prazer de duração mais longa. Ora, se isso é tudo que Irwin deseja imputar a Sócrates, então talvez a formulação da tese tenha sido um pouco excessiva.

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Com efeito, se reconhecemos como verdadeira a afirmação de que X ser bom como um todo é igual a X ser prazeroso, estamos reconhecendo não somente que algumas vezes algo pode ser prazeroso mesmo causando dores, mas que o fato de algo ser prazeroso faz dele algo bom como um todo. Isso, no entanto, só é verdade se definirmos previamente que algo só pode ser prazeroso se for prazeroso como um todo, o que parece fugir completamente ao espírito do texto platônico. O que Sócrates ressalta é que a escolha do indivíduo é a escolha entre duas opções que contêm tanto prazeres quanto dores, e que, portanto, o simples fato de uma opção ser prazerosa não é suficiente para que ela seja escolhida. Isso também, vale ressaltar, parece ser algo que Sócrates acredita estar assumido implicitamente pela multidão. O problema da quarta tese tal como é formulada por Irwin aparece claramente se tomarmos como exemplo o doente que foge do médico por medo da incisão. Sócrates não nega que o procedimento seja doloroso, isto é, que ele cause dor no sujeito. O que ele acredita é que, por ter consequências positivas futuras, essa dor não deve ser o único fator a ser levado em conta na escolha do sujeito entre ir ao médico ou ignorar o problema. Da mesma maneira, ele não nega que a entrega aos prazeres da mesa e do sexo seja prazerosa mesmo quando ela traz consequências nefastas. Ainda no início da discussão, Sócrates deixa claro que ele chama de agradáveis todas as coisas que trazem (metexhonta) ou produzem (poiunta) prazer (351d-e). Seria, portanto, incorreto afirmar que para ele só são prazerosas as coisas que propiciem mais prazer do que dor como um todo. Tal ponto, como veremos, é de grande importância

58 para a compreensão do argumento socrático uma vez que, ao final da discussão, o filósofo pretenderá ter mostrado que o homem incontinente erra em sua escolha justamente porque os prazeres imediatos de um determinado curso de ação ofuscam os outros prazeres, maiores, que o esperavam mais adiante no caminho que recusou tomar. A admissão de que existe prazer tanto nas boas quanto nas más ações é, portanto, de importância capital para a explicação socrática da incontinência. Creio ter dito o suficiente para ter estabelecido que o hedonismo é analisado no Protágoras como uma crença da multidão. Ainda resta, no entanto, a pergunta acerca da importância dessa tese para o argumento socrático. Com efeito, poder-se-ia pensar que tal tese é fundamental para as conclusões alcançadas pelo filósofo ao final do argumento.

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Tal é a posição defendida, por exemplo, por Roslyn Weiss em seu livro intitulado The Socratic Paradox and it’s enemies. Segundo a autora, a descrição fornecida pela multidão do fenômeno que experimentam só é absurda, segundo Sócrates, quando os quatro termos – prazer, dor, bem e mal – são reduzidos a apenas dois. Não fosse pelo hedonismo, nos diz Weiss, Sócrates reconheceria a existência da akrasia. Para Weiss, é claro, são falsas tanto a tese hedonista quanto a conclusão alcançada pelo filósofo. Nas palavras da autora: (...) a verdade é que, nas almas dominadas pelas paixões e pelos apetites, o conhecimento não é efetivamente confiável. A multidão tem razão ao pensar que uma pessoa pode ter conhecimento (episteme), inteligência (phronesis) e reconhecer (gignoskei) o bem e o mal e ainda assim falhar em realizar o que recomenda o conhecimento, escolhendo outra coisa por ter sido vencido. Em muitas pessoas o conhecimento falha em comandar a alma; nessas pessoas o conhecimento é ‘arrastado de um lado para o outro como um escravo’ (352c1). (WEISS, 2006, P. 63).

Para Weiss, é inconcebível que Sócrates subscreva a rejeição da akrasia. Segundo a autora, o que o filósofo faz é distorcer e empobrecer deliberadamente sua descrição da personalidade humana, transformando as pessoas em simples perseguidores racionais de prazer, com o objetivo de refutar a alegação feita por Protágoras a respeito de sua capacidade para ensinar a virtude. Tal distorção, nos diz Weiss, acaba por produzir uma versão do paradoxo socrático que é não-socrática (WEISS, 2006, P. 67). Diante de tais argumentos, como devemos interpretar a importância da tese hedonista para o argumento desenvolvido por Sócrates? Como poderemos compreender a permissividade moral do argumento socrático? Penso que uma solução adequada foi

59 sugerida por Vlastos, que reconhece ali uma estratégia discursiva deliberada de Sócrates com o objetivo de alcançar um acordo mínimo com seu interlocutor, para que ele possa então desenvolver o resto de seu argumento. Isso, no entanto, ainda não é tudo. Como ressalta Vlastos, a tese hedonista pode ser desmembrada em duas proposições: (a) todo prazer é bom e toda dor é má, (b) todo bem é prazer e todo mal é dor. Sócrates só sustenta a primeira proposição – que, aliás, já lhe permite desenvolver o argumento até a refutação da akrasia (VLASTOS, 1969, P. 74).14 São a multidão e Protágoras que, por não terem nenhuma outra medida para julgar o bem, acabam se comprometendo com a conjunção das duas. Ainda que seja verdade que a segunda proposição não é questionada por Sócrates, não parece claro qual seria a utilidade de tal desvio para a sua argumentação.

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Para resumir o que foi dito a respeito da tese hedonista que encontramos no Protágoras, poderíamos dizer que ela é trazida para o diálogo por Sócrates, mas que na verdade ela é uma crença da multidão e do próprio Protágoras. Embora sem dúvida não tenha exaurido o tema, creio ter dito o suficiente sobre a questão do hedonismo no Protágoras para poder retomar a exegese do final do texto. Retornarei a algumas das considerações feitas acima no final do capítulo, quando será abordada a questão do alcance do remédio sugerido por Sócrates para os infortúnios relatados pela multidão.

2.5 A metretike e a força das aparências Quando Protágoras se mostra incapaz de construir um argumento que diferencie o bem do prazer e o mal da dor, Sócrates então dá prosseguimento ao seu argumento. (…) bastar-vos-á passar agradavelmente a vida e sem nenhuma espécie de sofrimento? Se isso vos basta e se não podeis mostrar nenhum bem ou nenhum mal que não termine em prazer ou em sofrimento, ouve as consequências. Se as coisas se passassem desse modo, digo-vos que seria ridículo afirmar, como o fizeste, que o homem, muitas vezes, apesar de saber que o mal é mal, não deixa de praticá-lo, embora tenha a liberdade de decidir-se de outra forma, por ser arrastado e subjugado pelo prazer, para voltardes a afirmar que o homem, embora conhecendo o bem, não se decide a praticá-lo, por encontrar-se dominado pelo prazer do momento. Quanto é ridículo tudo isso, ficará patente se, em vez de empregarmos muitos nomes ao 14

Basta a aceitação da proposição (a) para que o filósofo mostre de que forma é ridícula a idéia de que, sabendo que X é melhor do que Y, alguém escolhe Y por ter sido derrotado por prazeres. Pois se o prazer é um bem, essa tese está afirmando na verdade que o indivíduo fez o que era pior por ter sido derrotado por um bem.

60 mesmo tempo: agradável e desagradável, o bem e o mal, usarmos somente dois nomes, por tratar-se apenas de duas coisas: primeiro, bom e mau; depois, agradável e desagradável (355a-b).

Sócrates observa que, ao fazermos tais substituições, chegaríamos ou à afirmação segundo a qual (a) ‘um homem faz o mal, sabendo que é mal, e não tendo que fazê-lo, porque ele é vencido pelo bem’, ou então, que (b) ‘um homem faz o que é mais doloroso, sabendo que é doloroso, porque é vencido pelo prazer’. As duas afirmações são consideradas absurdas, pois colocam o bem e o prazer como o motivo que levou o indivíduo a cometer uma ação má, que lhe trará dores. Ora, mas, se trata-se de uma ação má, é necessário que a parcela de bem ou de prazer que nela residem seja inferior ao mal e à dor que ela traz. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

Mas em que sentido se fala aqui em um bem inferior ao mal? Sócrates se refere à quantidade de bem e de mal, ou de prazer e de dor, contidos em uma determinada escolha. Sendo assim, nos diz o filósofo, a única inferioridade de que faz sentido falar diz respeito ao excesso ou falta de um comparado ao outro (355 e). Daí que ele afirme que tanto em (a) quanto em (b) o único sentido que podemos atribuir a ‘ser vencido pelo prazer’ é escolher a opção que contém os maiores malefícios por causa de benefícios menores. É isso o que fazem aqueles que são ‘vencidos pelo prazer’. É então que o filósofo antecipa a objeção que pretende diferenciar entre o que é imediatamente prazeroso e o que traz prazeres no futuro. Para o filósofo, a única distinção realmente essencial é aquela entre o prazer e a dor. Do mesmo modo que o homem que sabe pesar, coloca na balança as coisas agradáveis e as desagradáveis, as próximas e as afastadas, e as pesa para saber quais levam vantagem sobre as outras: assim, quando pesares coisas agradáveis com coisas agradáveis, ser-te-á preciso tomar sempre as maiores e mais numerosas, e quando o fizerdes com coisas desagradáveis, as menores e menos numerosas; porém, no caso de pesares coisas agradáveis com desagradáveis, predominando os sofrimentos sobre os prazeres, as coisas próximas sobre as afastadas, ou as afastadas sobre as próximas, procederás de modo que ressalte essa diferença; porém, no caso de predominarem os sofrimentos sobre os prazeres, deverás abster-se de continuar (356b-c).

Mais uma vez Protágoras se vê compelido a concordar com a argumentação do filósofo. Afinal, se o prazer é bom e a dor é má então seria impossível explicar que alguém faça o mal por ser vencido pelo prazer. O que pode acontecer é que um sujeito calcule mal e acabe escolhendo o maior mal em troca do menor bem. O que se chamou

61 ‘ser vencido pelo prazer’ é, na verdade, um erro de cálculo. A parte final do argumento de Sócrates (356c- 357e) explica como tal erro é possível. Segundo o filósofo, o erro acontece quando um dos termos, o prazer ou a dor, parece maior ou menor do que verdadeiramente é. Tal possibilidade parece ser inerente a nossa experiência estética – ela pertence à força da aparência (tou phainoménou dunamis). Assim como uma mesma coisa parece menor ou maior dependendo da distância que nos separa dela, ou um som nos chega com maior ou menor intensidade, assim também acontece com o prazer e com a dor. É claro, no entanto, que a distância e a proximidade não são fatores que modificam as quantidades efetivas de prazer e dor que uma determinada opção contém, mas apenas as quantidades estimadas pelo indivíduo.

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Podemos, então, compreender o que leva alguém a julgar errado as opções que tem diante de si, pois elas efetivamente não lhe parecem da maneira como realmente são, forçando-o a mudar de opinião no momento em que se vê confrontado com o seu erro. Um determinado prazer, assim como alguma coisa dolorosa, parece menor quando distante e maior quando próximo. Aquilo de que precisamos para regular nossas escolhas é, literalmente, uma arte que seja capaz de medir o prazer e a dor: a metretike. Tal arte tornaria a aparência ineficiente ao nos mostrar a verdade, trazendo paz para nossa alma e salvando nossas vidas. Protágoras, mais uma vez, se vê forçado a concordar. Embora não possamos nos alongar por demais neste ponto, é importante que não passe despercebido o que implica um tal assentimento por parte do sofista. Com efeito, como ressalta Wesoly15, não podemos esquecer que a argumentação socrática traz consigo um ataque implícito à doutrina de Protágoras, que afirma que “o homem é a medida de todas as coisas, para as que são, ele é a medida de seu ser; para as que não são, medida do seu não ser” (WESOLY, 2004, P. 513-527). Tal doutrina é examinada diretamente não no Protágoras, mas no Teeteto. Neste último diálogo, que em geral é tomado como posterior ao primeiro, Sócrates compreende tal doutrina como afirmando a realidade das aparências, isto é, que tal como cada coisa aparece para um determinado indivíduo assim ela é para este mesmo indivíduo. Ao longo do diálogo, tal tese sofre 15

Parece-nos particularmente interessante a sugestão da autora de que a argumentação perseguida por Sócrates se desenvolva a partir de argumentos formulados por Demócrito. Interessa-nos menos a idéia segundo a qual o fato de que Platão não explique qual seria a natureza da metretike, limitando-se a fazer Sócrates afirmar que o assunto será desenvolvido em outra ocasião, possa ser lida como uma das primeiras referências às doutrinas não escritas.

62 duras críticas, e até mesmo alguns resgates. Aqui, chamarei atenção apenas para a crítica desenvolvida entre 176c e 179d. Neste trecho, Sócrates procura mostrar de que forma a afirmação de Protágoras se mostra fraca no que diz respeito às asserções sobre o futuro. Aplicando a tese de Protágoras a uma cidade, Sócrates afirma que seríamos obrigados a afirmar que aquilo que uma determinada cidade julga que seja justo decretar, isso será justo para aquela cidade por tanto tempo quanto permanecer o decreto e, da mesma maneira, aquilo que uma cidade julgar vantajoso para si mesma decretar, tal coisa será vantajosa por tanto tempo quanto permanecer o decreto. As leis, nos diz Sócrates, visam justamente aquilo que é vantajoso para a cidade. O problema, é claro, é que elas nem sempre atingem o seu objetivo.

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No que diz respeito aos juízos sobre o futuro, nos diz Sócrates, nós somos forçados a reconhecer o valor superior das opiniões daqueles que detêm o saber relevante. É o juízo do médico, e não do paciente, sobre o curso futuro da doença que deve ser levado em conta, assim como é o juízo do agricultor que devemos ouvir se quisermos saber sobre o gosto que terá o vinho depois que as uvas forem processadas, etc. No que diz respeito aos juízos sobre os acontecimentos futuros, portanto, não parece absolutamente verdadeiro que cada um seja para si mesmo o melhor juiz. Também no Protágoras nos encontramos diante de um problema que diz respeito a uma avaliação das vantagens e desvantagens futuras contidas em cada opção de conduta. Além disso, todo o objetivo da argumentação socrática é ressaltar a influência nefasta que a força das aparências pode ter sobre nossa conduta na ausência do saber. É justamente porque as aparências podem ser falsas, isto é, porque um determinado curso de ação pode parecer bom, mas se revelar na verdade nefasto para um mesmo indivíduo, que nos é necessária a metretike. Segundo a argumentação socrática, é sem dúvida ao homem que pertence a possibilidade de medir, mas que tal ato de medição possa se resumir a afirmar aquilo que nos é indicado pelas aparências é algo que está definitivamente descartado. A metretike aparece, assim, como contraposta ao relativismo implicado pela doutrina de Protágoras. Antes de seguirmos adiante, é importante notar a ambiguidade da solução proposta por Sócrates. Se parece inegável que o conhecimento a respeito das quantidades de dor e de prazer contidos em cada opção de conduta nos permitiria

63 calcular e escolher adequadamente entre elas, as condições de possibilidade de tal conhecimento não são em momento algum discutidas. Embora os exemplos dados por Sócrates não nos pareçam problemáticos, não seria difícil pensar em outros exemplos onde as consequências de nossas opções são quase imprevisíveis. Em tais casos, como avaliar corretamente cada opção? Se não podemos prever com exatidão as consequências de nossas ações, como poderemos confiar na solução que nosso cálculo nos aponta? Com efeito, nada garante que nós avaliaremos corretamente a quantidade de prazer de uma ação. A dúvida a respeito da possibilidade de um conhecimento seguro a respeito dessas coisas, no entanto, não afeta em nada a explicação socrática a respeito da

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incontinência, que só seria invalidada se nos fosse apresentado um caso onde o cálculo foi feito de maneira correta, o conhecimento foi alcançado previamente de forma segura e, mesmo assim, o indivíduo não seguiu o curso de ação que lhe parecia o mais indicado. Quanto mais incerta nos parecer a solução proposta pelo filósofo, portanto, mais devemos nos sentir inclinados a aceitar o sentido geral de sua argumentação, que reduz a incontinência a mais um caso de ignorância. Ora, mas ele sem dúvida não é um caso de ignorância como outro qualquer. O que separa o ato incontinente dos demais atos cometidos por ignorância? É importante resumirmos o que foi dito até aqui para, então, buscarmos compreender melhor exatamente qual o tipo de erro no qual, segundo Sócrates, incorre o indivíduo incontinente.

2.6 Opinião e phantasia Segundo a explicação socrática, o incontinente acreditava, antes de executar a ação, que aquilo que ele faria não era a melhor coisa a se fazer. Mais do que isso, ele sabia também que havia um outro curso de ação que lhe era possível e que lhe seria mais benéfico. Se ele agiu da maneira que agiu, foi porque no momento da ação esta lhe pareceu ser diferente do que era. Devemos necessariamente supor que tal evento modificou sua crença? Em outras palavras, quando o incontinente age – isto é, no momento em que age – ele acredita ou não que aquela era a melhor coisa a fazer? Tal pergunta parece admitir duas respostas.

64 (i) Se respondermos positivamente, então devemos dizer que a força das aparências incidiu sobre as crenças do indivíduo de modo a modificá-las, ainda que por um breve espaço de tempo. No momento em que sua crença anterior se mostrou verdadeira, ele retornou a ela e abandonou a nova. (ii) Se respondermos negativamente, então devemos dizer que a força das aparências não modificou as crenças do indivíduo, mas, por outro lado, é necessário reconhecer que é esta força, e não a sua crença, que suscitou o comportamento do indivíduo incontinente. Neste caso, talvez pudéssemos mesmo dizer que a força das aparências derrotou a opinião, determinando o rumo de ação escolhido pelo indivíduo.

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A resposta dada a estas perguntas nos ajudará a precisar melhor que tipo de erro é a incontinência. Para alcançarmos tal resposta, parece ser chave que compreendamos a maneira como a aparência pode incidir sobre o indivíduo. É interessante notar que a própria maneira como a questão se coloca nos convida a opor a aparência às opiniões, isto é, às crenças que o indivíduo possui. Ora, aparência e opinião são, na maioria das vezes, conceitos que possuem uma estreita relação entre si: dokei moi diz tanto ‘eu acho’ quanto ‘me parece’, e a opinião poderia muito bem ser definida como aquilo que parece verdadeiro para um determinado indivíduo. Neste contexto, podemos compreender de modo mais preciso a que tipo de confusão o indivíduo incontinente deve seu comportamento: embora ele possua a opinião correta a respeito do valor relativo de suas opções, em um determinado momento essa relação de valor aparece diante dele de forma absolutamente invertida. Neste momento, ou bem ele dispõe de duas avaliações contraditórias de seus possíveis cursos de ação, ou bem a segunda avaliação suplanta a primeira, que, no entanto, mais tarde virá a se impor. No contexto da análise do Protágoras, Sócrates nos diz o seguinte sobre a força das aparências (...) as mesmas coisas não se vos afiguram maiores, quando mais próximas, e menores, quando mais afastadas? Ou não? Concordariam. E não se passa o mesmo com a grossura e o número? E sons iguais, não são mais fortes, quando ouvidos de perto, e mais fracos, quando de longe? Diriam que sim. Ora, se nosso bem estar consistisse em fazer e escolher o que é grande, e evitar e não fazer o que é pequeno, qual seria o princípio salvador da vida humana? A arte de medir (he metretike tekhne)

65 ou a força das aparências (tou phainomenous dinamis)? Não nos ilude esta última, levando-nos muitas vezes a inverter as relações das coisas, a modificar nossos propósitos e a nos arrependermos da resolução tomada, não só com referência a nossos atos, como com a escolha das coisas grandes e das pequenas? A arte da medida, pelo contrário, não neutralizaria essa ilusão, com resolver a verdadeira relação das coisas, e não asseguraria à alma a tranquilidade fundada sobre a verdade, salvando, assim, nossa vida? Não concordariam todos que este resultado seria obtido pela arte da medida? Ou apontariam outra? (356c-e).

O que Sócrates ressalta é que o indivíduo incontinente se deixa guiar pelas aparências, ao invés de medir com precisão a quantidade efetiva de prazer e de dor contida em cada ação. A força da aparência consiste em fazê-lo crer numa relação de valor que é, na verdade, falsa. A aparência é capaz, portanto, de mostrar o falso como verdadeiro. A tal ponto que o indivíduo acaba agindo de acordo com o que lhe PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

recomendou a aparência, e contra suas convicções anteriores. Ele toma aquilo que em determinado momento lhe parece verdadeiro como verdadeiro. Sendo assim, podemos responder a pergunta que fizemos de forma afirmativa. No momento em que o indivíduo incontinente age, de acordo com o Sócrates de Platão, ele está perseguindo a opção que lhe parece a melhor. Para todos os efeitos, nós poderíamos dizer que ele mudou de opinião por um curto espaço de tempo, para depois, após fazer a experiência de seu ato, voltar à sua opinião antiga. Como fica claro, embora a linguagem utilizada pelo indivíduo incontinente sugerisse uma cena de conflito, quando ele afirmou ‘ter sido vencido’ pelos prazeres, a explicação apresentada por Sócrates nos mostra uma cena um pouco diferente: não parece haver propriamente conflito, mas apenas uma certa oscilação por parte do indivíduo a respeito da avaliação das opções disponíveis. Se há conflito em algum lugar, é entre o valor dado a cada opção pela opinião que o indivíduo incontinente possuía antes de cometer o ato, e também depois, assim como a maneira através da qual cada opção apareceu para este mesmo indivíduo no momento da ação. Tudo se passa como se a opinião que o incontinente afirma ter a respeito dos valores de cada ação que lhe são possíveis antes do momento de agir contenha um juízo contrário àquele que o guia no momento da ação, juízo esse que parece lhe ser sugerido pelas aparências elas mesmas. Creio que podemos precisar melhor o teor de tais afirmações se tivermos em mente a distinção entre opinião (doxa) e phantasia, tal como ela é formulada por Platão no final do Sofista (263e-264a). Essa distinção nos parece particularmente

66 interessante também por nos mostrar um novo ponto de comparação entre o tratamento do problema da akrasia em Platão e Aristóteles. Como veremos, o filósofo estagirita dá um lugar à phantasia em sua explicação da akrasia. Pretendo aqui, me apoiando sobre alguns estudos recentes a respeito da noção de phantasia na Grécia clássica, e no pensamento platônico em particular, fundamentar o questionamento do papel da phantasia na explicação platônica da incontinência, para depois compará-lo ao seu papel na explicação aristotélica. No trecho acima referido do Sofista, vemos o estrangeiro afirmar que no discurso existe somente afirmação e negação, e que quando estas aparecem silenciosamente através do pensamento (dianoia) devemos chamá-las de opinião, ao

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passo que quando elas aparecem de forma ‘não independente, mas sim através da sensação’ devemos chamá-las de phantasian. Como ressalta Marcos, o emprego de phantasia neste trecho deve ser compreendido em conjunto com os usos do termo que podem ser atestados no Teeteto (MARCOS, 2009, P. 145). Enquanto que neste último diálogo o termo é empregado numa acepção que Platão crê ser protagórica, no Sofista encontramos a chave para a concepção propriamente platônica da phantasia. Segundo Marcos, os dois usos de phantasia que encontramos no Teeteto, tanto em 152c1 quanto em 161e8, aparecem na descrição da posição que Platão imputa a Protágoras. Em tal concepção, phantasia e aisthesis seriam a mesma coisa e, consequentemente, seria impossível atribuir valor de verdade a qualquer uma das duas. Tanto aquilo que parece a cada um (phatasiai) quanto nossas opiniões seriam verdadeiros para aquele homem de quem elas são opiniões, ou seja, para quem elas aparecem. Sendo assim, como nos diz a autora Ao ser articulação de uma experiência perceptiva privada, o desacordo de opiniões entre os sujeitos distintos é só aparente. De toda forma, o que descreveríamos normalmente como um desacordo de opiniões não constitui a exceção e sim a regra, explicável não tanto em função das diferentes maneiras como eles perceberiam as mesmas coisas, como Platão e Aristóteles dão a entender, mas sim em virtude do fato de que a opinião é opinião da realidade privada de cada um. (...) É assim que a tese do homem-medida desemboca, aos olhos de Platão, em um igualitarismo das opiniões que ameaça a profissão de sabedoria da qual Protágoras se orgulha (MARCOS, 2009, P. 128).

Phantasia, assim como dóxa, aparece neste contexto como um termo de valor cognitivo. Ambas são declarações que, no horizonte protagoriano, designam juízos

67 que são enraizados na experiência privada de cada indivíduo e, por isso, são sempre verdadeiras. Platão, por outro lado, usará muitas vezes o termo phantasia com um valor negativo, próximo de phantasma, que expressa muitas vezes a ideia da cópia enganosa, falsa. É assim que encontramos o termo, por exemplo, no livro II da República, onde a phantasia encabeça a lista dos meios pelos quais a divindade pode induzir ao erro (382e10). Se estivermos atentos à definição que nos é dada no final do Sofista, isso não pode nos espantar. Com efeito, se a phantasia é um juízo que expressa algo que nos foi mostrado pelos sentidos, ela será tão confiável quanto estes últimos. Ora, Platão, no mais das vezes, não se mostra muito otimista acerca da capacidade dos sentidos de nos prover um acesso seguro ao conhecimento, e,

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portanto, à verdade. E no entanto, como nos lembra Marcos, ‘Platão concede à aísthesis muito mais do que se esperaria’ (MARCOS, 2009, P. 132). Com efeito, no livro VII da República Sócrates nos propõe distinguir entre dois tipos de objetos que nos são acessíveis através dos sentidos. O primeiro tipo seriam os objetos para os quais nossos sentidos são suficientes para nos conduzir a um julgamento adequado, pois eles não produzem sensações opostas, enquanto que o segundo tipo circunscreve aqueles objetos que convidam nossa inteligência à reflexão, pois produzem sensações opostas (523b-c). O objetivo da distinção do filósofo esclarece-se com um exemplo: tomando três dedos de uma mão, Sócrates nos diz que cada um deles nos parece ser de fato um dedo, pouco importando a que distância ele esteja situado de nosso rosto e sua posição relativa em relação aos outros dois dedos. Em nenhum caso, nos diz o filósofo, nossa visão nos diz que um dedo não é um dedo e, portanto, ela basta para que saibamos isso. Por outro lado, nos diz Sócrates, caso trate-se da grandeza ou da pequeneza dos dedos nós não podemos confiar tanto assim em nossa visão. Com efeito, é perfeitamente possível que um mesmo objeto provoque sensações contrárias na alma no que diz respeito à grandeza e à pequeneza, parecendo ser às vezes pequeno e às vezes grande. Como nos diz Marcos Esta contradição problematiza (aporein) a alma, movendo-a a indagar (dzetein) e a perguntar o que são o grande e o pequeno, pergunta essa cuja resposta não será

68 alcançada se ela se confinar ao visível – a vista diz do mesmo que é grande e é pequeno – mas sim com o auxílio da inteligência, capaz de separar o que a vista confunde (MARCOS, 2009, P. 138-139).

Assim interpretado, o argumento da República estabelece as bases para a distinção entre um tipo de julgamento em que os sentidos são capazes de fornecer as provas necessárias para comprovar nossos juízos, e outro que exige um processo explícito de cálculo ou reflexão. Portanto, devemos dizer que Platão admite que há um tipo de juízo para o qual os sentidos nos fornecem provas suficientes. O que nos interessa ressaltar, no entanto, é que nossos sentidos se mostram falhos para, dentre outras coisas, estimar grandezas relativas, que é justamente no que consiste a tarefa daquele que busca agir segundo o modelo delineado por Sócrates no Protágoras. Se a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

phantasia é uma mistura de opinião com sensação, ou melhor, um juízo que afirma ou nega algo de acordo com o que é apresentado ao indivíduo pelos sentidos, então ela não é a melhor conselheira para aquele que busca o prazer e procura evitar a dor. Ora, mas é justamente sob o juízo proveniente de uma phantasia, pois Sócrates nos diz expressamente que trata-se da força das aparências, que age o indivíduo incontinente. Como nos diz Marcos, apesar do termo phantasia aparecer raramente na obra platônica – segundo a autora ele aparece apenas sete vezes – a formulação que encontramos no final do Sofista nos permite encontrar referências à phantasia por trás da utilização conjunta de aishtesis e doxa, seus dois constituintes, ou até das alusões à doxa como um tipo de conhecimento ligado aos sentidos, o que amplia muito os possíveis casos de ocorrência do conceito. Embora a autora se concentre em explorar o Fédon e a República, acredito que o trecho do Protágoras que nos concerne também nos coloca diante de um tal caso. Se o que foi dito acima estiver correto, a força das aparências consistiria justamente em suscitar no indivíduo uma fantasia que se expressaria em um juízo a respeito do valor relativo das opções de ação abertas ao sujeito que é falso, possibilidade dada pelo fato de que a respeito do objeto de tal juízo nossos sentidos podem se enganar. Mas, para que ela influencie a ação, tal juízo deve necessariamente parecer verdadeiro ao indivíduo que age. O homem que age de acordo com essa phantasia e contra uma opinião que ele possuía anteriormente, deve necessariamente, no momento de sua ação, estar convencido de que o juízo expresso

69 por ela está correto e que o outro juízo, que sua antiga opinião expressava, está errado, dado que os juízos são contrários e não podem, portanto, ser verdadeiros ao mesmo tempo. É justamente por isso que se pode falar propriamente de ‘força das aparências’. É por isso também que dificilmente poderíamos dizer que o individuo incontinente é da opinião que um outro curso de ação seria melhor no momento em que age. A menos que ele possa, ao mesmo tempo, acreditar na opinião que ele diz ter e na phantasia que guia sua ação, isto é, em juízos contrários. Parece ser importante ressaltar também que embora a descrição socrática admita que uma phantasia pode desviar o indivíduo de um rumo que uma opinião lhe apontava, o filósofo afirma categoricamente que a metretike seria suficiente para

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tornar as aparências impotentes e salvar nossas vidas. Sendo assim, devemos admitir que, para Sócrates, embora a phantasia possa apagar temporariamente a convicção que um indivíduo tem em suas próprias opiniões, ela não pode fazer o mesmo com o conhecimento. 2.7 A conclusão do argumento socrático Da argumentação precedente Sócrates tira algumas importantes conclusões. Em primeiro lugar, dado que “é por falta de conhecimento que os homens erram”, então ‘ser vencido pelo prazer’ não é nada mais do que ser ignorante no mais alto grau (357d-e), e, consequentemente, a mestria de si mesmo não é outra coisa senão a sabedoria. Em segundo lugar, “ninguém que tenha conhecimento ou ideia de outras ações melhores do que a que pretende empreender, e possíveis, fará o que pretende se ele é livre para fazer as melhores ações” (358c). Sendo a ignorância, nos diz o filósofo, “ter uma falsa opinião e estar enganado sobre as coisas de maior importância”, então segue-se que “ninguém persegue o mal, ou o que acha ser mal, voluntariamente; não faz parte da natureza humana, aparentemente, comportar-se de tal maneira” (358d). Nenhuma dessas conclusões, no entanto, nega o fato que se poderia dizer evidente da experiência humana, a saber, o fato de que a maioria dos homens efetivamente comete excessos e erra em várias de suas escolhas.

70 No que diz respeito à conclusão alcançada por Sócrates, gostaria ainda de enfatizar um ponto. A pergunta que Sócrates se propõe a analisar é se é possível agir contra o conhecimento. No que diz respeito a isso, todos concordam. No entanto, a maioria dos especialistas vai ainda mais longe, afirmando que Sócrates conclui que ninguém age sequer contra a opinião. A meu ver, no entanto, embora tal afirmação seja correta em certo sentido, ela pode ser enganadora se não for bem compreendida. Com efeito, se o que foi dito acima está correto, devemos afirmar que, no momento em que age, o indivíduo incontinente acredita que está fazendo o que é melhor para

si.

Sob

a força das aparências,

tal indivíduo

abandonou

momentaneamente a opinião que possuía, para depois, após o ato e, presumivelmente,

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das consequências, retomá-la e atestar, assim, a correção da mesma. Como podemos ver, segundo Sócrates é justamente a oscilação da crença de tal indivíduo que explica o seu comportamento. Sendo assim, parece razoável concluir também que, caso tal oscilação não tivesse acontecido, o indivíduo não teria agido de forma incontinente e, portanto, que segundo Sócrates ninguém age contra sua própria opinião a respeito do que é melhor para si sem antes abandonar tal opinião. Dado que uma opinião abandonada não é mais uma opinião do indivíduo, então indivíduo nenhum age contra sua própria opinião a respeito do que é melhor para si. Sem querer desafiar a lógica de tal raciocínio, gostaria somente de ressaltar que, se deixado desta forma, ele terminará igualando o conhecimento e a opinião no que diz respeito à sua capacidade para comandar os homens. E, no entanto, como é bem sabido por todos, num trecho do Mênon (96b-98b) Sócrates tem o cuidado de mostrar por que o conhecimento é mais capaz de guiar o homem do que a opinião verdadeira. Após definir o conhecimento como opinião verdadeira acrescida de justificação, Sócrates ressalta o fato de que a opinião verdadeira não é estável, ou seja, ele ressalta que o fato de que um homem acredite em algo verdadeiro num dado momento não quer dizer que ele terá para sempre a mesma opinião. Segundo Sócrates, é o acréscimo da justificativa, isto é, do raciocínio causal (aitias logismo), que faz da opinião verdadeira em primeiro lugar ciência e, em segundo lugar, estável (98a).

71 Como podemos ver, o argumento do Mênon é bastante iluminador no que diz respeito à explicação da incontinência do Protágoras. Com efeito, o incontinente descrito por Sócrates nos mostra um caso de alguém que tinha a opinião correta, mas não o conhecimento, a respeito do que era melhor para si antes do momento da ação, mas que, quando o momento oportuno se apresentou, não agiu de acordo com tal opinião por acreditar, naquele momento, que ela era falsa. Mais do que isso, segundo o filósofo o remédio para tal indivíduo é um conhecimento capaz de instruí-lo a respeito daquilo justamente que o enganou. A metretike é a ciência capaz de medir a quantidade de prazer e de dor de uma determinada ação, e é esta ciência que, segundo o filósofo, tornará ineficaz a força das aparências.

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Como podemos ver, Sócrates não igualou no Protágoras o conhecimento e a opinião verdadeira no que diz respeito à capacidade de governar os homens. Longe disso, ele nos mostrou um exemplo de fragilidade que é própria da opinião verdadeira. Daí que, a meu ver, a afirmação de que segundo Sócrates ninguém age contra a opinião seja enganadora. Com efeito, o que o filósofo nos mostra é exatamente o exemplo de um homem que possuía a opinião correta e não agiu de acordo com ela, e o que ele afirma é que se tal homem tivesse o conhecimento ele não teria agido como agiu. Se insisto nesse ponto agora, é porque ele será importante para nossa discussão da akrasia na República. Com efeito, a posição que é defendida nesse trabalho vai contra a interpretação desenvolvimentista, que nos dias de hoje é dominante, do pensamento de Platão. No que diz respeito à akrasia, a defesa mais cuidadosa e pormenorizada da interpretação dominante foi feita por Terence Irwin em seu livro intitulado Plato’s Ethics. Para Irwin, como para a maioria dos especialistas, a República é o diálogo onde Platão nos apresenta sua própria teoria das motivações humanas. No que diz respeito à incontinência, podemos medir a distância vista por Irwin entre Sócrates e Platão através da posição de ambos em relação à afirmação de que o conhecimento é suficiente para a virtude. Segundo Irwin: No Protagoras Sócrates faz esta afirmação [a afirmação de que o conhecimento é suficiente para a virtude] fundando-se na idéia de que conhecimento é opinião sobre

72 o bem e que a opinião sobre o bem não é ‘arrastada de um lado para o outro’ (Prot. 352c2) pelos desejos não racionais. Platão rejeita uma parte da posição socrática, dado que ele acredita que a opinião correta às vezes é arrastada de um lado para o outro (como no caso de Leôncio) e algumas vezes perdida (como no caso do covarde cujo medo lhe faz abandonar sua opinião); mas aparentemente ele ainda concorda que o conhecimento não pode ser arrastado de um lado para o outro, dado que ele não pode estar presente em alguém que possui desejos não racionais erráticos (IRWIN, 2007, P. 237) 16.

Para Irwin, portanto, a admissão de que a opinião correta poderia ser arrastada pelos desejos não racionais é uma inovação da República. Novamente, tal afirmação é, a rigor, correta, dado que a explicação do Protágoras não menciona qualquer distinção entre desejos, enfatizando o processo cognitivo atravessado pelo agente. Talvez seja verdade, e tal possibilidade será discutida mais adiante, que a República PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

nos dá a possibilidade de descrever o mesmo caso abrindo mão de tal processo cognitivo, nos permitindo simplesmente afirmar que o desejo foi mais forte do que a opinião. Não obstante, creio ser pertinente chamar atenção para a primeira frase do trecho supracitado, onde Irwin afirma que para Sócrates o conhecimento é crença a respeito do bem e que a crença a respeito do bem não é arrastada por desejos não racionais. Segundo o autor, portanto, Platão divergiria de Sócrates ao afirmar que a opinião correta pode ser arrastada ou abandonada, mas manteria ainda assim o conhecimento a salvo de tais perigos. Reservarei o exame detalhado da tese de Irwin para o capítulo sobre a República. Aqui, limitar-me-ei a ressaltar que nada do que vimos no Protágoras nos leva a crer que Sócrates iguale a opinião correta e o conhecimento no que diz respeito à sua capacidade de governar a conduta do homem, ao contrário do que afirma Irwin. Como vimos, o que Sócrates afirma é que ninguém que tenha conhecimento a respeito do que é melhor para si agirá contra tal conhecimento, e que todo indivíduo,

16

A compreensão deste trecho pode ser ajudada pela leitura do original. Eis como podemos ler o trecho acima em inglês: “In the Protagoras Socrates affirms that claim [the claim that knowledge is sufficient for virtude] on the ground that knowledge is belief about the good and belief about the good is not ‘dragged about’ (Pr. 352c2) by non-rational desires. Plato rejects part of Socrates position, since he believes that correct belief is sometimes dragged about (as in Leontius) and sometimes lost (as it is in the coward who is ‘scared out of his wits’ and abandons his belief); but he still apparently agrees that knowledge cannot be dragged about, since it cannot be present in someone who has erratic nonrational desires”.

73 no momento em que age, está convencido de que será melhor agir de tal ou tal maneira do que não agir 17. Sendo assim, não creio ser possível afirmar, como faz Irwin, que a diferença entre Sócrates e Platão, no que diz respeito à incontinência, consistiria no fato do segundo restringir ao conhecimento um poder que o primeiro acreditaria poder estender para a opinião correta. A incontinência, desde sua primeira formulação, é um problema que diz respeito estritamente ao conhecimento. De outro modo, a resposta dada pelo filósofo terminaria num círculo vicioso, pois, se a metretike, que é o antídoto proposto por Sócrates, não oferecesse, por si mesma, um meio de resistência contra a força das aparências, então ela não poderia ser a solução para o problema

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apresentado pelo incontinente. Em outras palavras, se Sócrates propõe o conhecimento como antídoto contra a akrasia logo após ter afirmado que a causa última do fenômeno é a força das aparências, é justamente porque acredita que o conhecimento não é suscetível de ser derrubado pela força das aparências. Além disso, ao final da análise da República aqui empreendida pretendo ter mostrado também que este diálogo inova justamente ao investigar as causas que levam os indivíduos a abandonar suas opiniões verdadeiras, e ao postular a possibilidade de educar, ou, no caso, treinar, determinados indivíduos para que eles não as abandonem. É na República, portanto, que encontramos uma tentativa de “estabilizar” a opinião verdadeira. Ainda que seja verdade que o Protágoras nos oferece a descrição de um indivíduo que abandonou sua opinião em favor do juízo que lhe era sugerido pelas aparências, é forçoso reconhecer que o diálogo não nos dá nenhum motivo para acreditar que este indivíduo sempre acreditará nas aparências. Em princípio, devemos reconhecer que um sujeito prevenido poderia ignorar a forma como determinado fenômeno aparece naquele momento. Mais do que isso, devemos reconhecer que só faz sentido que um indivíduo abandone uma opinião verdadeira se ele não souber que ela é verdadeira, pois ser da opinião que X é o mesmo que acreditar que X é verdadeiro.

17

Vale ressaltar que, como vimos em nossa introdução (P. 9), também quando trata do problema da akrasia em Eurípides Irwin contenta-se em formular o problema como dizendo respeito à opinião e não ao conhecimento. Como vimos anteriormente, o autor acreditava ter extraído esta formulação do Protágoras. Podemos ver agora a imprecisão que ela implica.

74 No entanto, ainda que no Mênon o filósofo diferencie o conhecimento da opinião verdadeira pelo encadeamento causal, é forçoso reconhecer que tal diferença pode, no máximo, dar conta do porquê de nossa maior confiança no conhecimento, mas ela não pode explicar por si mesma o abandono de uma crença verdadeira por uma falsa. Na República, Sócrates reconhece essa dificuldade. Segundo o filósofo, os homens podem abandonar suas opiniões falsas seja voluntariamente seja involuntariamente,

mas

suas

opiniões

verdadeiras

eles



abandonam

involuntariamente. Segundo o filósofo, o abandono involuntário de uma opinião pode ter as seguintes causas: os homens podem ser roubados de suas opiniões, abandonando-as por causa do esquecimento ou por serem persuadidos a tal; eles

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podem ainda ser constrangidos a mudar de opinião, através de algum tipo de dor ou outro sofrimento qualquer, ou podem mudar de opinião sob a influência do prazer ou do medo. Essa última opção é chamada de ‘bruxaria’, porque tudo aquilo que engana aparenta enfeitiçar a mente (413c). Discutirei novamente esse trecho da República mais à frente. No momento interessa-me apenas ressaltar que tanto no Mênon quanto no Protágoras Sócrates aceita que a opinião verdadeira não é estável, e que, exatamente por isso, ela não pode garantir o comportamento virtuoso. Que sua incapacidade para tal seja fundada justamente em sua instabilidade é justamente o que confunde intérpretes como Irwin, que se concentram no fato de que segundo Sócrates a opinião verdadeira, quando presente, é suficiente para guiar o indivíduo na direção da virtude. O problema, como vimos, é que a opinião verdadeira pode ser abandonada pelo indivíduo a qualquer momento, inclusive no momento da ação. Daí que a opinião verdadeira não seja jamais, aos olhos de Sócrates, equivalente ao conhecimento. Dizer o contrário, como faz Irwin, é desconhecer a formulação precisa do problema da incontinência tal como a encontramos no Protágoras. Voltarei a falar do erro de Irwin no capítulo dedicado ao livro VII da Ética a Nicômaco de Aristóteles. Como veremos, é lá que se encontra o argumento filosófico que o orienta.

75 2.8 Platão, Mill e o utilitarismo Ao final da argumentação, fica claro que Sócrates rejeitou a explicação dada pela multidão. Mas com isso estaria ele também rejeitando definitivamente o que Aristóteles viria a chamar de akrasia? Seguindo Santas, pretendo ler o argumento de Sócrates como uma refutação do relato que o homem que se diz incontinente fornece de sua própria tomada de decisão. O incontinente afirma ter feito uma ação que tinha como fim o prazer e não o bem. Sócrates afirma que é da natureza do homem agir sempre tendo em vista o bem. Logo em seguida, o filósofo mostra que aqueles que dizem serem vencidos pelo prazer

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na verdade não o diferenciam do bem. Uma vez que para eles o prazer e o bem são o mesmo, então na verdade a sua ação, que eles afirmam ser movida pelo prazer, é movida pelo bem. O que de fato aconteceu é que o homem que se supunha incontinente estava agindo de acordo com um juízo a respeito do que era o melhor para si, a saber, o desfrute do prazer, ao contrário do que ele mesmo achava. Sócrates acaba por afirmar que o relato que esse homem nos fornece de suas motivações não corresponde à realidade. Tais homens desconhecem os motivos que os levaram a agir – é esse o ponto da argumentação desenvolvida por Sócrates. Eles não conhecem a si mesmos. É com o objetivo de trazer luz à confusão que impera na alma da maior parte dos homens que o filósofo começa sua argumentação partindo da identificação entre o bem e o prazer. Embora tal identificação não seja aceita por Protágoras num primeiro momento, o sofista logo percebe que nem a maioria dos homens e nem ele próprio possuem os meios necessários para pôr em questão a identidade entre o bem e o prazer afirmada pelo filósofo. Afinal, a única razão pela qual eles chamam algumas ações prazerosas de más é porque elas trazem consigo outras consequências além do prazer. Sendo assim, não é o prazer que eles afirmam ser mau, mas algumas das atividades que o propiciam. O prazer em si mesmo, e é justamente com isso que todos – inclusive Sócrates - parecem concordar, não tem nada de mau. Sendo assim, devemos então necessariamente afirmar que o prazer e o bem são idênticos? Não, uma vez que o simples fato de que uma determinada atividade propicie prazer não faz dela uma atividade conducente à felicidade. O bem, por sua vez, é um predicado que nós só

76 concordamos em atribuir a uma determinada ação quando reconhecemos nela a capacidade de nos conduzir a uma vida feliz. Embora seja verdade que em nenhum momento de sua argumentação Sócrates tente separar o bem do prazer, creio ser possível afirmar que tal separação está pressuposta na maneira como ele conduz sua argumentação. Desde o início da explicação socrática (353c), são as ações que são chamadas seja de boas seja de más. Embora as ações também sejam chamadas de prazerosas e dolorosas, o prazer e a dor são tratados como consequências dessas ações. O que é importante notar é que tanto as ações boas quanto as ações más podem trazer prazeres e dores para o mesmo indivíduo, isto é, que se pode dizer de uma mesma ação, seja ela

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boa ou má, que ela é prazerosa e dolorosa para o mesmo indivíduo, mas não se pode dizer de uma mesma ação que ela é boa e má para o mesmo indivíduo. Sendo assim, se seguirmos a lógica da argumentação socrática, não podemos absolutamente afirmar que o prazer e o bem são idênticos. Se o que está escrito acima está correto, então podemos afirmar que ali onde Platão ataca o relato do incontinente ele também está, de certa forma, atacando o hedonismo. É importante ressaltar, no entanto, que quando fazemos tal afirmação estamos compreendendo por hedonismo a tese que afirma a identidade entre o bem e o prazer, isto é, entre o desfrute do prazer e a felicidade. Tal ressalva é importante porque também podemos chamar de hedonista simplesmente o indivíduo que persegue o prazer. Ora, segundo Sócrates estes indivíduos teriam boas chances de fazer a escolha certa caso se mantivessem atentos para o fato de que cada escolha contém tanto dores quanto prazeres, imediatos e não imediatos, e que, portanto, para que eles escolham bem, é necessário assumir uma postura racional e aplicar a metretike, isto é, calcular a soma dos benefícios e dos malefícios que uma determinada ação contém. Tal postura requer que cada ação seja medida tendo em visto o seu resultado total, e não necessariamente de acordo com a maneira como ela aparece a cada momento – pois é próprio da força dos fenômenos que estes nos enganem, aparentando ser algo diferente do que realmente são, na medida em que aquilo que está mais próximo parece ser maior do que o que está mais distante. Seria essa postura compatível com o hedonismo? Embora de início tal associação nos pareça inusitada, uma vez que estamos habituados a classificar o hedonismo como

77 uma postura irrefletida de um homem que perambula de um prazer ao outro na busca de satisfação para um desejo confuso (VAN RIEL, 2003, P. 175), não há nenhum motivo a priori para descartá-la. Não obstante, nos parece filosoficamente mais pertinente falar em utilitarismo do que em hedonismo, como faz Lefebvre (LEFEBVRE, 2007, P. 59). Com efeito, se existe um critério proposto pelo filósofo para identificar as coisas boas este critério não é o prazer, mas sua utilidade (333d-224e). Sócrates parece acreditar que não seja possível chamar de boas as coisas que não são, ou que não são mais, úteis a nenhum homem. Todas as ações que têm por princípio assegurar uma vida agradável e isenta de dor, nos diz o filósofo (358b), são belas, boas e úteis. Além disso, a aproximação com o utilitarismo nos parece pertinente também

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porque, ao menos na versão dessa doutrina que encontramos em John Stuart Mill, ela não torna problemática a desvalorização dos prazeres do corpo que encontramos em tantos outros diálogos de Platão. Com efeito, segundo Mill, é perfeitamente possível que se reconheça que existem diferentes tipos de prazer, que diferem entre si qualitativamente, sem que se tenha que abandonar o princípio utilitarista. Para o filósofo, seria de fato absurdo se, enquanto ao estimar o valor de todas as outras coisas nós consideramos tanto a qualidade quanto a quantidade, no caso do prazer nós só levássemos em conta a quantidade. Mas como podemos julgar a respeito das diferenças de qualidade entre diferentes prazeres? Segundo Mill: Entre dois prazeres, se há um que é preferido por todos os que experimentaram ambos, independente de qualquer sentimento de obrigação moral, então este é o prazer mais desejável. Se um dos dois é, por aqueles que estão familiarizados com ambos, colocado tão acima do outro de modo que eles o prefiram mesmo sabendo que ele implica uma maior quantidade de descontentamento, e não abram mão dele por qualquer quantidade do outro prazer, do qual sua natureza é igualmente capaz, nós teremos uma justificativa em atribuir ao prazer preferido uma superioridade em qualidade que seria de tal forma mais importante que a quantidade que a tornaria, por comparação, de pouca importância (MILL, 2001, P. 11).

As linhas subseqüentes do texto de Mill deixam claro que tipo de diferenciação o filósofo tem em mente. Como ressalta Crisp, para o filósofo trata-se de separar os prazeres do intelectual, do esteta e do homem moralmente bom, dos prazeres experimentados pelos ‘sensualistas’ (CRISP, 1997, P. 30). Segundo Mill, a prova de que os primeiros são tidos pelos homens como superiores é que nenhum dos homens capazes

78 de deles desfrutar consentiria em abrir mão desse gozo em nome de um prazer inferior 18. Tal atitude, segundo o filósofo, se deve a um sentimento de dignidade que todos os seres humanos possuem, sob uma forma ou outra, que corresponde ao desenvolvimento de suas faculdades superiores e contribui de forma essencial para sua felicidade. Embora a aproximação com o utilitarismo possa nos ser útil para compreendermos melhor o argumento socrático, poder-se-ia objetar que ela apenas transfere a questão do hedonismo da obra de Platão para a obra de Mill. A esse respeito, nos limitamos a ressaltar, ainda seguindo Crisp (CRISP, 1997, P. 11), que a distinção proposta por Mill entre prazeres inferiores e superiores foi causa de muito debate e que a principal objeção levantada era justamente que tal distinção não era compatível com o

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hedonismo reconhecido em sua obra. Curiosamente, quando se trata de dar uma definição do hedonismo de Mill que resista a tais críticas, Crisp diz a seu respeito algo muito próximo do que vimos Irwin dizer a respeito de Sócrates19, a saber, que para o filósofo os homens desejam apenas o prazer, e que apenas o ser prazeroso ou desfrutável faz de uma coisa algo de bom (CRISP, 1997, P. 35). Tal afirmação, é claro, não pode ser compreendida senão em conjunto com algumas outras, que Mill faz no último capítulo de seu livro, como por exemplo, que a felicidade é a única coisa que é desejável como fim supremo, que todos desejam a felicidade, que a virtude – por ser parte da felicidade – é desejável em si mesma, etc. Não podemos nos alongar aqui na análise do debate acerca da obra de Mill. No que diz respeito a Platão, creio ter dito o suficiente para, se não resolver, ao menos iluminar de forma adequada o debate sobre o suposto hedonismo do Protágoras. A análise acima empreendida foi orientada pela convicção de que, muito mais importante do que atribuir ou não um rótulo ao diálogo platônico, era preciso compreender e expor, da forma mais clara possível, o argumento que encontramos ali. A partir dessa exposição, creio que um leitor do diálogo poderá decidir por si mesmo se o rótulo lhe é ou não apropriado. Isso desde que, é claro, antes de atribuí-lo, esse mesmo leitor tenha tomado o cuidado de esclarecer o que ele mesmo está entendendo por hedonismo. Se o que o foi dito acima está correto, deste esclarecimento dependerão todos os outros.

18 19

Para uma formulação de um critério muito similar feita por Platão cf. República 581e-583b. Cf. P. 46.

79 2.9 O argumento socrático no contexto do Protágoras Como dissemos anteriormente, o argumento desenvolvido no Protágoras é feito para refutar uma determinada explicação do fenômeno da akrasia. Isso, no entanto, não é tudo. Embora o argumento socrático tenha por alvo uma explicação determinada, não deixa de ser verdade que, ao final da discussão, Sócrates parece bastante seguro da impossibilidade mesma do fenômeno. Isso a ponto de afirmar, como vimos, que não faz parte da natureza de um indivíduo da espécie humana perseguir uma ação diferente da que julga ser a melhor para si. Foi buscando dar conta de tal certeza por parte do filósofo que Vlastos formulou

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o que ele acredita serem as verdadeiras proposições que sustentam o chamado paradoxo socrático. Segundo o autor: O que faz com que Sócrates esteja tão seguro de que ninguém poderia escolher conscientemente a pior das duas opções que lhe são oferecidas? Ele não o diz. Mas existem duas proposições das quais isso se seguiria, dada (3) acima [a saber, dado que os benefícios em uma determinada opção são dignos dos seus males se, e somente se, os benefícios agregados excederem os malefícios agregados]: (S1) Se um indivíduo sabe que X é melhor que Y, ele vai querer X mais do que Y. (S2) Se um indivíduo quer X mais do que Y, ele vai escolher X ao invés de Y (VLASTOS, 1969, P. 83).

Segundo Vlastos, Sócrates toma (S2) como certa em numerosas passagens na medida em que ele repetidamente fala em querer (ethelein) uma determinada opção como expressando a noção mesma de escolhê-la.20 Quanto a (S1), nos diz o autor, ela é uma consequência de outras duas teses bastante conhecidas de Sócrates: (S3) Todos os homens desejam a felicidade, e (S4) Tudo o mais que os homens desejam eles desejam apenas como meios de alcançar a felicidade, sendo a felicidade “o estado no qual o bem é possuído e desfrutado” (VLASTOS, 1969, P. 84). Embora ainda não seja o momento de discutir de forma detida estas teses21, creio ser importante ressaltar que elas não são enunciadas no Protágoras.

20

Cf. Prot. 355 a-b. Por uma questão de clareza, será mais conveniente retomarmos essa discussão no final do capítulo 3, após termos compreendido adequadamente os trechos pertinentes do Górgias e da República. 21

80 Por hora, gostaria apenas de situar melhor o argumento analisado acima dentro do diálogo como um todo. De início, a discussão de Sócrates com Protágoras tinha por objetivo descobrir se o saber (sophia), a temperança (sophrosyne), a coragem (andreia), a justiça (dikaiosyne) e a piedade (hosiotes) eram cinco nomes diferentes para uma mesma coisa ou se cada nome correspondia a uma realidade distinta (349a-b). Protágoras havia então respondido que se tratavam de coisas distintas, e que eram todas partes da virtude. Sócrates, no entanto, pretendia argumentar contra tal tese, afirmando a unidade das virtudes a partir de sua identificação com o conhecimento. Antes de passarem para a análise do que a maior parte dos homens chamava de ‘ser vencido pelo prazer’, o filósofo e o sofista ainda analisam um outro argumento apresentado por

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Protágoras contra a hipótese de Sócrates, a saber, que, embora algumas virtudes fossem muito próximas umas das outras, a coragem seria uma virtude diferente. Segundo o sofista, ela não só não poderia ser reduzida ao conhecimento, pois muitos seriam os idiotas corajosos, como também se mostra presente entre os homens injustos, ímpios e intemperantes. Embora o filósofo tente refutar essa afirmação, a conversa não se desenvolve de acordo com suas esperanças, e Sócrates acaba sendo obrigado a abandonar o argumento e buscar outra forma de convencimento. É então que é analisada essa experiência que muitos homens chamam ‘ser vencido pelo prazer’. O objetivo do filósofo se torna, assim, claro. O fenômeno que a maioria dos homens chama ‘ser vencido pelo prazer’ é trazido para o diálogo como um contraexemplo. Se for verdade que muitas vezes acontece à maioria dos homens agir contra aquilo que eles sabem ser de seu maior interesse, isso é, contra aquilo que eles acham ser o bem para eles, então a tese socrática que afirma a identidade do saber e da virtude não pode ser verdadeira. De acordo com tal explicação, Sócrates estaria analisando o fenômeno com o objetivo de mostrar de que forma sua teoria lhe permitiria explicar casos que, aparentemente, entrariam em contradição patente com ela. Os casos de incontinência, tal como descritos no Protágoras, são exemplos que se apresentam como problemáticos para a teoria socrática, e o movimento do diálogo consiste, como vimos, não em negar os fenômenos de que tal descrição pretende dar conta, mas sim a capacidade explicativa da descrição comumente aceita desses casos. Se, até hoje, é ao Protágoras que nos

81 remetemos para compreender a negação socrática da incontinência, isso se deve ao fato de que, até hoje, nós ainda temos uma tendência intuitiva a acreditar, se não na descrição fornecida pela multidão tal como ela aparece ali, pelo menos em uma versão muito próxima dela. Sendo assim, o Protágoras é, de fato, o melhor lugar para começarmos. A argumentação socrática, no entanto, tem consequências que vão muito além da assimilação de um possível contra-exemplo. Com efeito, à afirmação socrática de que ninguém age contra o conhecimento encontra-se contraposta à opinião comum que afirma ser o prazer o fator determinante nas escolhas dos seres humanos. Longe de tentar contrapor a esta afirmação uma solução intelectualista, que negaria ao prazer sua força, Sócrates busca desfazer tal contraposição. Embora o argumento socrático aponte os

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perigos corridos pelo homem que se guia pelas aparências, perseguindo aquilo que parece ser mais prazeroso a cada momento, ele pretende mostrar o caminho para uma vida onde o prazer se faz presente, mas a partir de uma seleção racional operada pelo pensamento e orientada pela busca da medida certa (MIGLIORI, 2004, P. 538). Não há nada errado com a busca pelo prazer. Trata-se apenas de saber como empreender tal busca. Se existe algo a que o saber se contrapõe na passagem que analisamos, esta coisa não é o prazer mas sim, como vimos, a aparência. E essa última, por definição, não pode vencê-lo.

2.10 Justiça, virtude e metretike Antes de concluir, gostaria de fazer alguns comentários sobre o rumo da presente investigação. No próximo capítulo, dedicado ao Górgias, buscarei explicar e dissolver as dificuldades

apontadas

por

aqueles

que

acreditam

na

existência

de

uma

incompatibilidade de conteúdo entre o diálogo supracitado e o Protágoras, particularmente no que diz respeito à maneira como o prazer é compreendido. Antes disso, no entanto, examinarei o chamado “argumento do poder”, com o intuito de esclarecer melhor o que é necessário para que, segundo Sócrates, possamos classificar um ato como voluntário. Só então poderemos compreender adequadamente por que Sócrates acredita que ninguém erra voluntariamente. No terceiro capítulo, que será centrado sobre o livro IV da República, tentarei, através de uma exegese do texto platônico, demonstrar que os possíveis casos de akrasia

82 que são sugeridos a partir da descrição platônica da alma humana ainda são, em última análise, casos de ignorância. O trabalho, no entanto, não pode se resumir a isso. No que diz respeito à República, é necessário demonstrar também de que forma o que é dito lá sobre a felicidade é compatível com o que nos foi dito no Protágoras. Como já ressaltou Charles Kahn, se levarmos em conta a discussão tal como ela aparece no Protágoras, temos a nítida impressão de estarmos diante do que seria um esboço de uma teoria da ação racional (KAHN, 1996, P. 245-7). De acordo com esse esboço, para que o homem seja feliz ele deve tomar suas decisões sendo guiado pela metretike. Nele, não se fala senão de um sujeito isolado que enfrenta os desafios colocados pela própria maneira como os fenômenos se mostram. Ora, mas na República

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nós vemos Sócrates afirmar que para que um homem seja feliz ele deve necessariamente ser justo. Mas será que essas duas exigências são compatíveis? Um cidadão que tomasse suas decisões políticas de acordo com o modelo de ação racional proposto por Sócrates seria um cidadão justo? O modelo de ação racional proposto por Sócrates consiste em tomar uma decisão de acordo com o resultado do cálculo dos prazeres e das dores contidos nas diferentes opções possíveis ao sujeito. Para que tenhamos total convicção da pertinência da metretike para o homem que pretende ser justo, nós temos primeiro que perguntar se uma ação justa é, em si mesma, melhor que uma ação injusta, isto é, se as ações injustas contêm em si mesmas males que nos devem fazer desistir de praticá-las independente de qualquer eventual punição, pois está claro que só podemos levar em conta os malefícios consequentes da punição a uma ação injusta caso concordemos que tal punição é inevitável ou, pelo menos, que nós mesmos não poderíamos deles escapar. É essa a pergunta que Gláucon faz a Sócrates no segundo livro da República, e que o filósofo responde ao longo dos dois livros seguintes. A exegese de parte dessa resposta e o lugar que nela ocupa a alma serão também objetos de nossa investigação.

3 O Górgias 3.1 Plano do capítulo No presente capítulo analisaremos alguns trechos do Górgias de Platão. Antes de começar o comentário propriamente dito, creio ser útil dizer algumas palavras sobre a abordagem que será adotada aqui. Dado os objetivos de nossa tese, o presente capítulo não tratará do diálogo inteiro, mas apenas de três de suas partes, sendo as duas primeiras pertencentes à conversa de Sócrates com Pólos e a terceira à sua conversa com Cálicles. Sendo assim, pouco será dito aqui sobre a primeira

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parte do diálogo, na qual é o próprio Górgias quem conversa com Sócrates. A primeira parte que nos interessa é onde Sócrates define a retórica e sua posição numa pequena árvore de conhecimentos. Aqui, o filósofo nos fala da relação da retórica com o prazer e com o bem. Essa parte nos interessa por duas razões. A primeira é que aparece nela uma primeira contradição aparente com o que nos foi dito no Protágoras. Será prudente, portanto, desfazer essa impressão. A segunda é porque, quando adequadamente interpretada, tal passagem nos mostra, ao contrário, que o funcionamento da retórica pressupõe, e explora, um público que se orienta de acordo com o esboço da teoria racional delineada no Protágoras. A segunda parte que nos interessa é a que diz respeito ao que se convencionou chamar de “argumento do poder”. Neste momento do diálogo, onde Sócrates está conversando com Pólos, a noção socrática do ato voluntário aparece em primeiro plano e, com isso, esclarecem-se certas implicações deste conceito que de outro modo poderiam passar despercebidas. Tal trecho, portanto, nos ajudará a compreender melhor esta noção e, portanto, nos ajudará a compreender melhor também o significado da afirmação socrática segundo a qual ninguém erra voluntariamente. A terceira parte que nos interessa é onde entram em confronto Sócrates e Cálicles. Com efeito, é nesta parte do diálogo que se concentra a maioria dos especialistas que o abordam a partir de um interesse sobre o tema no problema da akrasia em Platão. Isso porque é justamente no confronto entre Cálicles e Sócrates que aparecem as afirmações mais problemáticas para aqueles que pretendem conciliar o que foi dito no Protágoras com aquilo que é dito no

84 Górgias. Mais precisamente, devemos dizer que é no diálogo com Cálicles que Sócrates condena o hedonismo que ele aparenta professar em sua conversa com Protágoras. Foi na medida em que o problema do hedonismo no Protágoras se tornou um grande tema de debate entre os especialistas durante o século passado que se solidificou também a tendência a centrar a discussão do Górgias no diálogo entre Cálicles e Sócrates. Já tendo refutado a acusação de hedonismo dirigida contra Sócrates no primeiro capítulo, mostrarei aqui que as contradições entre os dois diálogos são apenas aparentes. Embora uma análise do diálogo inteiro não fosse desprovida de interesse para a presente investigação, creio que o procedimento que será aqui adotado é o mais indicado, tendo em vista a necessidade de concisão que nosso trabalho deve,

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na medida do possível, respeitar. 3.2 A definição da retórica No Górgias, a entrada de Pólos no debate se dá de forma abrupta. Após Sócrates ter interrogado Górgias acerca da natureza da retórica e ter apontado uma série de dificuldades levantadas pela resposta dada pelo sofista, Pólos, que é um aprendiz de Górgias, intervém – antes que seu mestre tenha a chance de responder ele mesmo – e dirige uma recriminação contra o filósofo. Segundo Pólos, Sócrates se comportou de maneira indigna de alguém bem educado no debate com Górgias, explorando um momento de fraqueza do seu mestre no qual este concedeu ao filósofo que o orador deve conhecer o justo, o belo e o bom. Para Pólos, Górgias o fez por pura vergonha, e não porque realmente acreditasse no que afirmou. Com efeito, devemos reconhecer que existe algo de estranho no desfecho da conversa entre Sócrates e Górgias. Em primeiro lugar, se levarmos em conta o que a doxografia nos afirma sobre Górgias, devemos considerá-lo não como alguém que se dizia mestre de virtude, mas apenas como um mestre de retórica. Nesse sentido, não deixa de ser importante lembrar que no Mênon o próprio Platão registra essa opinião a respeito de Górgias. Lá, quando Sócrates pergunta a Mênon se ele acredita que os sofistas são mestres de virtude, este lhe responde que o que ele mais aprecia em Górgias é o fato de ele não fazer nenhuma promessa desse tipo, chegando mesmo a caçoar de tais pessoas e afirmar que a única coisa que devemos

85 buscar é formar oradores (95c). De início, portanto, é forçoso reconhecer que a objeção feita por Pólos não é totalmente sem pertinência. Em segundo lugar, o argumento socrático é, em si mesmo, pouco convincente. Em 460b-c, vemos Sócrates afirmar que, assim como quem aprendeu a música é músico, quem aprendeu a arquitetura é arquiteto e quem aprendeu a medicina é médico, quem aprendeu a justiça é justo. Tal argumento, embora seja aceito imediatamente por Górgias, está longe de ser intuitivo. De fato, não são poucos os leitores contemporâneos que apontam sua fraqueza no contexto da presente discussão. Após ser repreendido por Pólos, Sócrates reitera seu compromisso com o diálogo e afirma que caso Pólos tenha encontrado alguma falha no argumento

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exposto até aqui, ele tem todo o direito de corrigi-la. Como condição de sua entrada no debate, o filósofo pede a Pólos apenas que respeite as mesmas regras de brevidade com as quais ele e Górgias haviam concordado. Pólos aceita a proposta de Sócrates, mas não sem antes esboçar um protesto em nome de sua liberdade de expressão. Pólos começa a discussão perguntando a Sócrates qual é, segundo ele, a natureza da retórica. Sócrates lhe responde que a retórica não é uma arte, mas um empirismo (empeiria) aplicado à produção de um tipo de prazer. Sócrates então esclarece que ele ainda não sabe se a retórica praticada por Górgias se encaixa na explicação que ele está prestes a dar, pois o diálogo travado entre eles não lhe permitiu chegar a nenhuma conclusão a esse respeito. Nos parágrafos que se seguem (463b-466a), Sócrates e Górgias dialogam brevemente entre eles até que o filósofo consiga explicar a maneira como compreende a retórica. O que Sócrates acaba por nos fornecer é uma explicação da retórica que a aproxima da culinária. Partindo da distinção entre alma e corpo, o filósofo afirma que cada um dos dois possui uma forma própria de ser saudável. Essa saúde, no entanto, pode ser real ou simplesmente aparente. Segundo Sócrates, para cada um dos dois existe uma arte diferente: a arte que trata da alma, e que é capaz de produzir nela a saúde, é a política, da qual fazem parte a legislação e a justiça e, embora a arte que cuide do corpo não tenha um nome próprio, o filósofo afirma que ela se divide na ginástica e na medicina. Para o filósofo, a retórica, assim como a cosmética, a sofística e a culinária, não é uma arte mas sim parte de um empirismo que ele chama de

86 adulação. Tal prática não é uma arte por não ser capaz de dar explicações racionais sobre a natureza das coisas que ela oferece, não podendo, portanto, conhecer suas causas. Percebendo intuitivamente a existência das quatro artes responsáveis por cuidar do corpo e da alma, a adulação procura se disfarçar de cada uma delas se dividindo em quatro partes. Daí que, embora tal prática não seja uma arte, o filósofo nos diga que ela exige uma alma dotada de imaginação, coragem e talento na lida com os homens.

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Sócrates caracteriza a atuação da adulação da seguinte maneira: Com os interesses superiores do homem não se preocupa no mínimo, mas vale-se do prazer como isca para a ignorância, enganando-a a ponto de parecer-lhe de muito maior valia. Foi assim que a culinária se insinuou na medicina, pretendendo conhecer os mais saudáveis alimentos para o corpo, de forma que se o médico e o cozinheiro tivessem de entrar num concurso em que crianças fossem juízes, sobre quem mais entendesse da excelência ou da nocividade dos alimentos, o cozinheiro ou o médico, este morreria de fome (464d).

Para o filósofo, portanto, a cosmética está para a ginástica assim como a sofística está para a legislação, e a retórica está para a justiça. A cosmética – que é uma arte baixa, enganadora e indigna de homens livres – é capaz de produzir apenas a aparência da beleza, enquanto a ginástica é capaz de produzir a verdadeira beleza. Mas, ressalta o filósofo, se a natureza de tais coisas é bastante diferente, isso não impede que elas sejam confundidas uma com a outra. De fato, diz Sócrates, se ao invés de nossa alma comandar nosso corpo nós nos deixássemos guiar apenas pelo último, isso é, pelo prazer que chega até nosso corpo por meio dessas coisas, não seríamos jamais capazes de distingui-las. Creio ser importante chamar a atenção para a maneira como Sócrates caracteriza o procedimento da retórica. Nesse sentido, talvez não seja inútil nos determos sobre algumas palavras do texto grego. Quando Sócrates caracteriza a atividade do retórico, ele nos diz que tal indivíduo to de aei hedisto thereuetai ten anoian (464d2-4). É esta sentença que encontramos traduzida na edição francesa por ‘par l’attrait du plaisir, elle tend une piège à la sottise qu’elle abuse’ e, na inglesa, por ‘dangles what is most pleasant for the moment as bait for folly’. Como podemos ver, essas traduções, como a tradução brasileira que citamos anteriormente, optam por transmitir o sentido do dativo instrumental através de uma metáfora que coloca o que é mais prazeroso seja como uma isca ou uma

87 armadilha22. Assim como, enganado pela aparência de alimento, o peixe morde a isca do pescador, também os ignorantes – os que não sabem distinguir o que é melhor do que é mais prazeroso – caem na armadilha dos retóricos. Se traduzirmos literalmente o trecho citado para o português, a frase diria que o retórico, se utilizando sempre do que é mais prazeroso, caça a ignorância. O procedimento da retórica, portanto, consiste não em buscar o melhor, mas em oferecer aquilo que é mais prazeroso como isca para os tolos. É assim que a arte do cozinheiro pode se disfarçar da arte do médico, e fingir saber quais são as melhores comidas para um determinado indivíduo. É assim que Sócrates explica que artes tão diferentes como a retórica e a justiça tenham se tornado tão próximas. É interessante ressaltar que Sócrates também nos diz que a retórica não

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é uma arte por não ser capaz de dar explicações racionais sobre a natureza das coisas que ela oferece. Devemos compreender disso que a retórica não é capaz de explicar o prazer? Com efeito, é isso que Sócrates vai afirmar no final do diálogo 23. No momento, o que nos interessa ressaltar é que o ponto fraco do indivíduo explorado pela arte da adulação é o mesmo que se revelou em nossa investigação acerca da akrasía no Protágoras. Trata-se, nos dois casos, da tendência bastante comum de se tomar aquilo que parece mais prazeroso como sendo melhor. No Protágoras, vimos como tal hábito pode tornar o indivíduo suscetível de ser enganado pelo poder das aparências, que faz o que está mais perto parecer maior, e escolher o menor prazer em troca dos maiores males por não pesar adequadamente as consequências futuras de seus atos. O que vemos no Górgias é outra forma de colocar o mesmo problema. Agora, no entanto, não se trata de um indivíduo observando as coisas elas mesmas, mas sim avaliando um 22

Embora tais traduções sejam, creio eu, mais do que adequadas no que diz respeito à compreensão do texto, ainda assim vale a pena ressaltar que em ambas o verbo grego thereuo acaba sendo omitido. O verbo nos parece importante, no entanto, por permitir assinalar a continuidade que existe entre a maneira como o orador é pensado no Górgias e a maneira como a retórica e a sofística serão pensadas no Sofista. Refiro-me, é claro, à primeira definição do sofista que podemos encontrar naquele diálogo, que coloca sua arte entre as artes da caça (thereutikes) (223b). 23 Recapitulando sua argumentação, Sócrates nos diz: “O que lhes disse foi que para mim a culinária não é arte, porém simples rotina, o que não se dá com a medicina, que é arte, firmado em que ela só trata da doença depois de estudar a sua natureza e conhecer a maneira por que atua, e no fato de poder apresentar a razão de ser de tudo isso, a medicina, enquanto a outra, que só visa ao prazer, procede sem arte na prossecução de sua finalidade, e não examina a natureza do prazer nem sua causa, por maneira inteiramente irracional, por assim dizer, e sem calcular coisa alguma, só alcançando pela prática e pela rotina uma noção vaga do que é costume fazer-se, com o que, precisamente, proporciona prazer” (500e-501a).

88 estado de coisas que lhe é apresentado discursivamente. Ainda assim, o pressuposto fundamental é que aquilo que é mais prazeroso pode funcionar como isca e, portanto, que é isso o que muitos homens acabam de fato perseguindo. O que Platão nos sugere é que os retóricos de seu tempo exploram, isto é, instrumentalizam, o poder das aparências com o objetivo declarado de enganar24, ao mesmo tempo em que nos indica que a retórica possa ter outro uso, um uso benéfico25. Creio ser possível constatar que a maneira como Sócrates trata o prazer até aqui guarda uma grande afinidade com o tratamento que encontramos no Protágoras. Aqui, como lá, o filósofo se mostra preocupado em advertir que o prazer proporcionado por uma ação não pode ser utilizado como único critério

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para buscarmos a boa ação. No entanto, é necessário reconhecer também que o argumento que encontramos aqui parece trazer algo de novo em relação ao que foi dito no Protágoras. De fato, após distinguir entre as práticas que têm por objetivo a saúde do corpo e da alma e a adulação, Sócrates nos afirma que caso nós nos 24

Com efeito, tudo se passa como se Sócrates estivesse pressupondo aqui a mesma capacidade por parte do retórico que o Estrangeiro de Eléa atribuirá, no Sofista, ao sofista. “(...) não podemos nós esperar que exista uma outra arte que tem a ver com as palavras, por virtude da qual é possível enfeitiçar os mais jovens através dos seus ouvidos com palavras enquanto eles ainda estão longe das realidades elas mesmas, exibindo para eles imagens faladas (eidola legomena) de todas as coisas, de modo a fazer tais palavras parecerem verdadeiras e o falante o mais sábio dos homens no que diz respeito a todas as coisas? (...) a maioria dos que escutam, Teeteto, quando eles já viveram mais e envelheceram, vão com certeza se aproximar das realidades e serão forçados pela experiência a agarrá-las e mudar a opinião que eles tinham antes aceitado, de modo que o que era grande vai parecer pequeno e o que era fácil, difícil, e todas as aparentes verdades de tais argumentos serão viradas de cabeça para baixo pelos fatos que se apresentaram na vida” ( 234c-e). Lá, o sofista é analisado como mais um imitador, isto é, um fazedor de imagens, de imitações. Como nos diz Vernant, “No quinto século, de fato, mimos e mimeisthais colocam o acento menos sobre a relação entre o imitador e aquilo que ele imita do que sobre a relação do imitadorsimulador com o espectador que o observa. Ao cantar, ao simular, não se trata de produzir uma obra que seja a cópia conforme de um modelo, mas de exibir um modo de ser que causa uma mudança num outro, de se fazer ver como tal ou tal ao assumir determinadas maneiras de ser. O ato de mimeithai, mais do que uma representação, é uma efetuação, uma manifestação. (...) Em Platão, fora os casos onde mimeisthai é empregado com seus valores correntes, o acento é colocado decididamente sobre a relação entre a imagem e a coisa da qual ela é imagem, sobre a relação de semelhança que as une e, no entanto, as distingue” (VERNANT, 1979, P. 107-108). 25 Górgias utilizava-se de sua retórica para evitar que os pacientes de seu irmão, que era médico mas não conseguia convencê-los a seguir seus conselhos, não se comportassem da melhor forma possível tendo em vista a sua saúde. Ainda que não fosse capaz de causar uma mudança definitiva no comportamento de tais homens, Górgias era capaz de fazê-los aceitar, daquela vez, o conselho dado por seu irmão (cf. 456a8-c3). Com efeito, tais indivíduos demonstram um comportamento análogo aos incontinentes descritos no Protágoras, na medida em que se recusavam a seguir os conselhos médicos por medo de suas eventuais consequências desagradáveis. Como a fala de Górgias não nos dá muitos detalhes a respeito de tais pacientes, é a rigor impossível dizer que eles são incontinentes, pois não sabemos se eles realmente acreditam que o que o médico lhes indica é o melhor a fazer. Ainda assim, parece seguro afirmar que Górgias seria capaz de intervir no momento da ação de modo a impedir que um determinado indivíduo aja de maneira incontinente.

89 deixássemos comandar por nosso corpo, e só levássemos em conta o prazer proporcionado por tais práticas, nós não seriamos capazes de distingui-las. O que nos permite tal distinção, nos diz ele, é o fato de que é nossa alma que comanda nosso corpo. Enquanto que no Protágoras a distinção entre o que era mais prazeroso num determinado momento e o que seria verdadeiramente bom era possível aos homens que aplicassem a metretiké, no Górgias Sócrates nos diz que tal distinção é possível somente aos homens cuja alma comanda o corpo. Seriam tais afirmações incompatíveis? Creio que não. Em 464e, Sócrates nos diz que se fossem as crianças, ou homens tão desprovidos de razão quanto as crianças, os responsáveis por determinar se era o cozinheiro ou o médico aquele que conhecia

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melhor a qualidade dos alimentos, o médico terminaria morrendo de fome. Tal exemplo, creio, é bastante ilustrativo do argumento socrático que se segue. O que o filósofo nos diz é que tanto as crianças quanto os homens desprovidos de razão escolheriam o cozinheiro, e que sua escolha seria determinada pelo prazer imediato gerado pela comida que ele indicaria. O médico não poderia senão lhes indicar aquilo que seria mais saudável, isto é, mais útil a longo prazo. Do argumento socrático podemos deduzir que as crianças e os homens que a elas se assemelham são comandados pelo corpo, e não pela alma, e acabam optando por aquilo que é mais prazeroso no momento. A estas pessoas, Sócrates chama de anoetos – sem razão. Os comandados pelo corpo, portanto, são aqueles que não possuem razão, e o comando da alma é o comando da razão. Sendo a metretiké uma techne e, portanto, implicando uma forma determinada de atividade, acredito que podemos dizer, juntando o que nos foi dito no Protágoras com o que acabamos de ver no Górgias, que a metretiké é a operação própria da razão através da qual a alma pode comandar o corpo. No que diz respeito ao procedimento da retórica, tais considerações devem bastar para que possamos retomar a exegese do texto. 3.3 O orador, o tirano e a felicidade: o argumento do poder Pólos estranha profundamente a fala do filósofo acerca da natureza da retórica, e lhe pergunta se ele acha mesmo que os bons oradores são vistos com

90 desprezo na cidade pela prática da adulação. Quando o filósofo nega, afirmando que eles não são percebidos nem dessa forma e nem de outra, Pólos pergunta se Sócrates acredita então que eles passam despercebidos26. Ora, protesta o aprendiz de Górgias, não são eles os mais poderosos da cidade? Não podem eles agir como tiranos, matando, espoliando e exilando quem eles quiserem? Como podem tais homens passar despercebidos? Com estas perguntas, o aprendiz de Górgias muda o foco da questão do diálogo: enquanto a crítica de Sócrates visava ressaltar que os retóricos não cuidam do que é melhor para sua audiência, Pólos ressalta que a retórica pode ser um instrumento para que o orador consiga o que ele quer, isto é, o que é melhor para ele, e, consequentemente, que é isto, e não a busca pelo que é melhor para a audiência, que faz da retórica uma arma poderosa.

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Antes de responder as perguntas, o filósofo pergunta a Pólos se ele acredita que o poder é um bem para quem o possui. Quando ele responde afirmativamente, Sócrates então lhe diz que (1) os oradores e os tiranos são os homens menos poderosos, pois não conseguem realizar aquilo que querem (boulontai), mas admite que (2) eles podem fazer o que lhes parece melhor (ho ti autois doxe beltiston einai) (466d-e). Pólos, no entanto, não consegue aceitar o que o filósofo acaba de lhe propor, e o acusa de dizer absurdos (467b). O filósofo procura então esclarecer sua posição. Segundo Sócrates, quando os homens agem em vista de um fim não devemos dizer que eles querem a ação que praticam, mas sim o fim que buscam. Tal é o caso, por exemplo, quando tomam remédios. O que eles querem, neste caso, não é a droga, mas a saúde que ela acarreta. Para Sócrates, existem coisas boas, coisas más e coisas neutras. Estas últimas são aquelas coisas que participam às vezes do bem e às vezes do mal. Segundo o filósofo, quando nós fazemos as coisas neutras são as coisas que chamamos de boas que nós visamos e queremos, isto é, são elas os nossos fins. Vale ressaltar que, na divisão proposta por Sócrates, as ações aparecem dentre as coisas neutras. Com efeito, “é o nosso bem que nós procuramos no caminhar 26

Mais a frente, quase no final do diálogo, Sócrates retomará a analogia entre a culinária e a medicina de maneira a esclarecer o que ele quer dizer quando afirma que os oradores passam despercebidos na cidade. Segundo o filósofo, as vítimas de tais homens “(...) por ignorância, não incriminaram os que os tratam dessa maneira, para considerá-los causadores de suas doenças e da perda da antiga corpulência. Porém, se acontecer de qualquer de seus conhecidos dar-lhes algum conselho, depois de ter sido provocada a doença por tanto abuso contra a saúde, a esses é que eles acusam e repreendem, e até mesmo maltratam, se lhes oferecer a oportunidade para isso, ao passo que só têm elogios para os outros, os verdadeiros causadores de seus males” (518d-e).

91 quando nós caminhamos, esperando ficar melhor, e quando fazemos o contrário, é ainda com o mesmo fim, o bem, que nós ficamos em repouso” (468b). Pólos reconhece a correção do raciocínio do filósofo, que conclui que nós só desejamos fazer algo quando esta ação nos é útil, e nunca quando ela é inútil. Ora, o mesmo deve valer para as ações dos oradores e dos tiranos. Matar, espoliar e exilar são ações e, portanto, coisas neutras, isto é, coisas que só queremos fazer quando nos são vantajosas. Sendo assim, nos diz o filósofo, caso aquilo que lhes pareça ser o melhor acabe se provando desvantajoso, então eles não estarão fazendo aquilo que queriam e, portanto, não podemos dizer que tais pessoas sejam poderosas, caso suponhamos também que o poder seja um bem para quem o possui. A conversa com Pólos chega assim em seu último estágio. Antes de

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seguirmos com a exegese do texto, no entanto, será prudente dizer algumas palavras sobre o argumento que acabamos de expor, argumento esse que convencionou-se chamar, em parte da literatura secundária, de “o argumento do poder”. Tal argumento pode ser resumido da seguinte maneira: segundo Sócrates, embora o tirano faça o que o que ele acredita ser o melhor (espoliar, matar, prender, etc), como ele é desprovido de razão, isso que ele fez não será bom para ele mesmo e, portanto, não será um ato que contribui para sua felicidade. Como todo homem deseja a felicidade, isto é, o estado onde o homem possui o bem e é capaz de desfrutá-lo, segue-se que o tirano não faz aquilo que ele desejava fazer. O filósofo desenvolve o argumento afirmando a diferença entre as coisas boas, neutras e más. Não é difícil perceber que nos encontramos aqui, mais uma vez, diante do famoso paradoxo socrático segundo o qual ninguém faz aquilo que é mal para si voluntariamente, mas somente por ignorância. Segundo Sócrates, seria justamente de acordo com sua capacidade de alcançar o bem que os homens se distinguiriam uns dos outros em sua busca pela felicidade, e não simplesmente por desejá-lo. Sendo a felicidade o fim último de todo ser humano, o bem seria então o fim prático desejado e buscado por todos os homens em suas ações. Não é de estranhar, portanto, que também as ações do tirano sejam compreendidas aqui como meios de alcançar esse fim. Sendo em si mesmas coisas neutras, elas não são desejadas por si mesmas, mas apenas quando elas se mostram benéficas, isto é, úteis (468c). Existe, no entanto, um ponto no “argumento do poder” que suscitou controvérsia entre os especialistas, a saber, a questão a respeito da maneira como devemos compreender a afirmação de que todos desejam o bem e que ninguém

92 faz o mal voluntariamente. De início, o trecho acima parece colocar um problema. Ao mesmo tempo em que Sócrates reconhece que o tirano faz aquilo que lhe parece melhor ele afirma que, caso sua ação não se prove útil, o tirano não terá feito o que ele queria fazer. Mas como podemos compreender essa última afirmação? O fato de que aquilo que ele fez lhe parecesse o melhor a fazer naquele momento parece ser um sinal suficiente de que ele tenha feito o que queria fazer. Afinal, o contexto da discussão parece excluir a possibilidade de que o tirano espolie, mate ou exile acidentalmente ou por ter sido constrangido a tais ações. Ao contrário, tudo indica que ele o faz agindo propositalmente. De início, é difícil não pensar que Sócrates está propondo um critério retroativo para determinação do que um indivíduo queria fazer. Mas seria tal critério legítimo?

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Para Mctighe, por exemplo, a afirmação de que o agente deseja aquilo que é o fim de sua ação, e não a ação ela mesma, é suportada por um argumento ruim e, no fim das contas, simplesmente falso. Após reconstruir o argumento socrático, dividindo-o em 10 passos, o autor nos chama a atenção para os passos (1), a saber, a afirmação segundo a qual toda ação é tal que se uma pessoa faz algo ela deseja não a ação ela mesma, mas sim aquilo pelo que ela age, e o passo (5), a saber, que se certa ação é benéfica ou boa para o agente, seja por si mesma ou por suas consequências, ele deseja fazê-la, mas que ele não deseja fazê-la caso ela seja neutra ou ruim. Segundo o autor: O argumento que suporta tal tese é que ninguém deseja, p. ex., beber um remédio amargo, ou fazer perigosas viagens marítimas. Quando fazemos tais coisas é a saúde ou a riqueza que desejamos, isso é, os fins que temos em vista. É concluído então ser verdadeiro de toda ação com objetivo (purposeful action) que se a ação é um meio nós não a desejamos, mas sim o seu fim. Mas os contra exemplos são muitos. Se o remédio fosse doce, ou a viagem marítima num navio de luxo, nós poderíamos desejá-los por si mesmos, não somente por seus fins. Além disso, não deve o passo (5) afirmar que se uma ação particular é boa – talvez apenas como um meio – então mesmo que ela seja dolorosa em si mesma o agente ainda deseja fazê-la? (...) De qualquer forma, parece absurdo negar que as ações úteis que não sejam dolorosas em si mesmas não sejam jamais objetos de desejo (MCTIGHE, 1984, P.204-205).

Segundo o autor, o argumento socrático acaba se contradizendo. Por um lado, o filósofo afirma que nenhuma ação é desejada por si mesma, mas apenas pelos fins almejados pelo agente. Logo depois, no entanto, Sócrates nos diz que os homens desejam fazer as ações que se mostram úteis. Mctighe toma essa segunda afirmação como significando que tais ações são desejadas por si mesmas. Embora

93 o passo (5) não seja problemático para o autor, o passo (1) lhe parece exagerado justamente porque lhe parece ridícula a afirmação de que também as ações úteis, e não dolorosas, só sejam desejadas por seus fins e não por elas mesmas. Se olharmos com atenção a crítica de Mctighe, no entanto, percebemos que a confusão está do seu lado e não do lado do filósofo. Após reconhecer que ninguém deseja tomar um medicamento amargo ou realizar perigosas viagens pelo mar, mas sim os fins a que tais ações conduzem, a saber, a saúde e a riqueza, o autor nos diz que tais coisas poderiam ser objeto de desejo no caso de, por exemplo, o remédio ter um gosto açucarado, ou a viagem ser realizada dentro de um luxuoso navio de cruzeiro. Uma breve análise dos dois exemplos propostos, no entanto, nos mostra que a coisa não é tão simples quanto parece.

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No primeiro caso, o remédio que era amargo se tornaria doce, deixando de ter um gosto ruim e passando a ter um gosto agradável. Seria concebível, em tais circunstâncias, que alguém desejasse ingeri-lo não porque tivesse necessidade, mas simplesmente porque apreciasse seu gosto. Nesse caso, no entanto, Sócrates ainda assim não diria que tal pessoa desejava o remédio, mas sim o prazer que ele acarretava. Afinal, o indivíduo estaria ingerindo o remédio da mesma forma que ingerimos uma bala ou um doce. Ele definitivamente não o faria desejando os efeitos farmacológicos da droga, ou antevendo a aparição de algum de seus eventuais efeitos colaterais. Como vimos, no entanto, para Sócrates o prazer proporcionado por uma ação – mesmo imediatamente – não pode ser confundido com a ação ela mesma. Nós poderíamos supor, por exemplo, que caso encontrássemos um doce que tivesse o gosto semelhante ao do remédio açucarado, o indivíduo que estivesse ingerindo a droga simplesmente porque apreciava seu gosto passaria, voluntariamente, a ingerir o doce. No segundo caso, uma viagem perigosa pelo mar transformou-se numa viagem num luxuoso cruzeiro. Nesse caso, novamente, uma ação que não parecia conter nenhum prazer imediato tornou-se prazerosa. Mas trata-se ainda de uma viagem perigosa? Existe alguma promessa de recompensa no fim? Caso a resposta para as duas perguntas seja afirmativa, podemos então afirmar que o agente a empreendeu tendo em vista o seu bom desfecho, e procurando evitar os seus perigos. Caso seja negativa, ela deve ser explicada da mesma maneira que o remédio que era amargo e se tornou doce: também aqui vemos um indivíduo se entregar a uma atividade que lhe propicia prazer objetivando simplesmente o puro

94 deleite. Ele alcançará seu objetivo caso tal viagem seja efetivamente prazerosa, isto é, caso ele não fique enjoado boa parte do tempo, caso o barco não afunde em decorrência de algum acidente, etc. Para compreendermos adequadamente o ponto do argumento socrático, devemos reconhecer que nossos desejos demandam satisfação e que, em certo sentido, é esta satisfação que desejamos. No momento que optamos por uma ação, optamos por um determinado rumo para satisfazer nossos desejos. Nada nos garante, no entanto, que este rumo seja o rumo correto. O melhor que podemos fazer é analisar nossas opções de acordo com a metretiké. Muitas vezes, no entanto, ocorre que o rumo escolhido não nos leva onde queríamos ir. No entanto, se, por um lado, o argumento acima é suficiente para afastar as

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criticas de Mctighe, por outro, ele ainda nos deixa com a impressão de que o argumento socrático propõe uma análise retroativa da ação voluntária. Será essa a melhor maneira de compreender o ‘paradoxo’ socrático? Num artigo bastante influente, Santas defendeu uma interpretação deste paradoxo, que ele chamou ‘o paradoxo da prudência’, que parece nos dispensar de tal compreensão. Segundo Santas, Sócrates estaria afirmando o seguinte: (...) se um homem deseja algo, é a sua concepção do que seja o objeto que é o fundamento do seu desejo, não (necessariamente) o que o objeto de fato é (ele pode estar enganado a respeito do tipo de coisa que o objeto é ou não estar consciente de que o dito objeto tem uma dada propriedade). (...) Parece, portanto, que devemos reconhecer que uma afirmação do tipo: “Ele deseja (quer)...” não deve contar como verdadeira a menos que a descrição que a completa seja a descrição sob a qual o objeto é desejado; chamarei tal descrição de a descrição do objeto intencional do desejo. Ao mesmo tempo, isso é compatível com assumir um certo tipo de comportamento em relação a um objeto e o nosso conhecimento do objeto como uma evidência razoável para afirmar que alguém deseja tal objeto; sendo assim, se um homem busca (persegue, etc.) algo, e não mostra nenhuma reserva ou relutância ao fazê-lo, e o que ele está buscando é, p. ex., um saleiro, então nós temos evidências razoáveis para dizer (afirmar) que ele quer o saleiro. Mas é claro que nós devemos lembrar que, quando nossa evidência é de um tal tipo, nós corremos o risco de descrever erradamente o objeto do desejo de um tal homem; para marcar este ponto, eu direi que quando uma afirmação do tipo “Ele deseja (quer)...” é feita tendo por base tais evidências, a descrição que completa tal afirmação é a descrição do objeto atual do desejo. Claro está que a mesma descrição poderia ser a descrição tanto do objeto intencional quanto do objeto atual do desejo. Claro está também que não há nenhuma contradição em afirmar, por exemplo, que o objeto intencional do desejo de um dado homem é a pimenteira e o objeto atual do seu desejo é o saleiro (SANTAS, 1964, P. 144-145).

Santas propõe, em suma, que adotemos a distinção entre o objeto intencional e o objeto efetivo do desejo para explicarmos o argumento socrático.

95 A tese de Sócrates, segundo Santas, afirma que às vezes ocorre que as coisas más sejam os objetos efetivos do desejo dos homens, embora elas jamais sejam o objeto intencional do seu desejo, isto é, eles jamais desejam nada sob a descrição de algo mal, mas sempre pensando que se trata de algo bom. Segundo tal interpretação, Sócrates estaria afirmando que todos os homens desejam coisas que acreditam serem boas, isto é, que os homens podem desejar coisas que de fato lhe são prejudiciais desde que as desejem sob uma descrição que as afirme como sendo benéficas em algum sentido. De início, é importante ressaltar que o argumento de Santas baseia-se não na passagem do Górgias analisada acima, mas numa passagem de outro diálogo, a saber, do Mênon27. Alguns especialistas, no entanto, questionaram a validade da

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interpretação de Santas tomando por base justamente o argumento socrático que vimos no Górgias. Como notaram Penner and Rowe 28 , por exemplo, a interpretação proposta por Santas não é bem adequada ao trecho que vai de 467a até 468e do Górgias, onde o filósofo afirma que se alguém faz voluntariamente algo que acaba por se mostrar como sendo mais desvantajoso do que as alternativas que lhe eram disponíveis, então ele de fato não desejava isto que ele fez29 (PENNER and ROWE, 1994, P. 1 – 25). A explicação de Santas, em suma, implicaria em afirmar que, segundo Sócrates, os homens desejam não o bem verdadeiro, mas o bem aparente, isto é, aquilo que lhes parece bom. Com efeito, a distinção entre o objeto intencional e o objeto atual do desejo coloca o primeiro como sendo o verdadeiro objeto de desejo dos homens. Uma vez que o objeto intencional do desejo pode ser qualquer coisa que seja concebida como benéfica, parece de fato que, segundo a interpretação de Santas, o objeto intencional do desejo humano seria o bem aparente. Ora, Sócrates é bastante preciso quando afirma, a respeito das ações levadas a cabo pelo tirano, que delas podemos dizer que se tratava daquilo que lhe parecia ser o melhor, mas não que se tratava do que ele queria fazer. Encontramos, assim, novamente a mesma questão: se os homens desejam o que lhes parece ser bom, como pode um homem fazer o que lhe parece ser bom e não fazer o que queria fazer? Como ressalta Penner, para que o argumento socrático funcione “é preciso que os fins sejam não apenas coisas que

27

Trata-se do trecho que vai de 77b até 78b. cf. também PENNER, 1991, P. 147-202. 29 A explicação proposta aqui, no entanto, é perfeitamente compatível com ambos os textos. 28

96 aquele que deseja pensa serem boas, mas sim coisas que são de fato boas (benéficas) para a pessoa que deseja” (PENNER, 1991, P. 170). O objetivo da crítica de Penner é chamar a atenção para o fato de que, segundo Sócrates, todos os homens desejam o verdadeiro bem e a verdadeira felicidade, e não aquilo que lhes parece bom ou conducente à felicidade. A possibilidade que o filósofo se preocupa em ressaltar não é que alguém não faça o que queria fazer por tomar como objeto atual de seu desejo uma coisa que não corresponda ao objeto intencional de seu desejo, como no exemplo do saleiro e da pimenteira proposto por Santas, mas que ele não faça o que queria fazer mesmo tendo buscado, e alcançado, aquilo que lhe parecia ser o melhor. O problema da interpretação de Santas é que ela pressupõe que caso o objeto intencional e o

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objeto atual sejam idênticos o ato será voluntário, e é isso justamente o que Sócrates não concede. Como ressalta Penner, o que Sócrates afirma é que todos os homens desejam o que quer que o bem seja, mesmo quando ele é algo diferente do que pensamos que ele seja. Nas palavras do autor: Colocada de forma geral, a posição de Sócrates é a seguinte: a única ação que um indivíduo quer fazer é aquela que de fato o levará para o melhor fim disponível nas circunstâncias em que ele se encontra. Tais considerações tornam a descoberta da ação desejada uma tarefa árdua, especialmente se, como os oradores e os tiranos examinados por Sócrates, tal indivíduo pensa que ele não precisa de conhecimentos como a ciência política ou a ciência da felicidade humana (o conhecimento acerca dos bens e dos males). (PENNER, 1991, P. 196-197).

Podemos juntar a Penner e Rowe a concordância de Reshotko. Para a autora, a razão que nos faz pensar, hoje, que a teoria socrática da motivação seja contra-intuitiva é o fato de que tal teoria pede que abandonemos tanto a maneira como estamos habituados a compreender o objeto de um verbo num contexto intencional, quanto o preconceito que afirma que nossas crenças determinam nossos desejos, uma vez que afirma que aquilo que nós desejamos é determinado pelo que é de fato o melhor meio para o nosso fim, e não aquilo que nos parece ser o melhor meio. Ao contrário do que sugere a maior parte da teoria econômica e política contemporânea, nos diz Reshotko, para Sócrates nós não somos necessariamente ‘experts’ em nossos próprios desejos (RESHOTKO, 1992, P. 151).

97 3.4 Justiça e utilidade Pólos, no entanto, ainda não foi convencido pelo argumento socrático. Afinal, nos diz ele, se acreditarmos no que o filósofo nos diz, pensaríamos que ele preferiria não ter poder nenhum na cidade do que ser livre para agir como lhe aprouvesse, e que ele não tem inveja alguma dos homens que vê matar, expropriar ou jogar na prisão quem bem entendem. Sócrates, de sua parte, se limita a perguntar-lhe se tal homem estaria agindo de forma justa ou injusta. Quando Pólos responde que de uma maneira ou de outra tal homem seria digno de inveja, o filósofo pede que preste atenção na maneira como ele fala. Para Sócrates, em nenhum dos casos tal homem seria digno de inveja, sendo que caso ele o fizesse PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

injustamente seria um miserável digno de pena. Ora, diz Pólos, mas o miserável e o digno de pena é aquele que é morto injustamente e não aquele que mata. Para Sócrates, no entanto, aquele que é morto injustamente é menos digno de pena do que aquele que mata injustamente e do que o homem que é morto com justiça. Quando Pólos lhe pergunta o que ele quer dizer com isso, o filósofo então afirma que (1) ‘o maior dos males é cometer a injustiça’ (469b) e não sofrê-la, como pensa Pólos, que (2) se tivesse que escolher entre as duas opções ele mesmo preferiria sofrer uma injustiça do que cometê-la e que (3) ele mesmo não concordaria em exercer a tirania. Quando Pólos não acredita que Sócrates se recusasse a ser um tirano, o filósofo tenta convencê-lo dando o exemplo de um homem que tivesse uma adaga escondida sob a túnica na Agora, e que afirmasse então ser todo poderoso por poder matar quem ele bem entendesse. Seria este homem realmente todo poderoso? Pólos lhe responde que não, dizendo que um tal homem seria certamente punido por seus atos, e que ser punido é um mal. Sócrates então ressalta que Pólos, assim como ele, acredita que um homem só tem realmente poder quando faz aquilo que se mostra vantajoso para ele, e nunca no caso contrário. É então que o filósofo lhe pergunta em que casos ações como matar, espoliar e exilar valem a pena. Quando Pólos lhe devolve a pergunta, Sócrates responde que elas valem a pena quando são feitas com justiça. Diante de tal afirmação, Pólos oferece um contra-exemplo. Trata-se do tirano Arquelaus, cuja história de injustiças em sua ascensão e manutenção no

98 poder é contada pelo aprendiz de Górgias (471 a-d). Tal exemplo visa sustentar que é possível ser feliz fazendo o mal e vivendo na injustiça, desde que se consiga escapar da punição. Quando Sócrates se mostra discordante, Pólos o acusa de ter má vontade. O aprendiz de Górgias se mostra convencido de que tanto Sócrates quanto todo mundo está de acordo a esse respeito. Nas linhas que se seguem (472d-474b) Sócrates responde não só que ele não está de acordo, mas que acredita que Pólos esteja errado a respeito da crença dos demais homens. Segundo o filósofo, todos estão de acordo com ele, Sócrates, quando afirma que cometer a injustiça é pior do que sofrê-la, que (4) fugir do castigo é pior do que sofrê-lo, e que (5) homem nenhum pode viver feliz sendo injusto. De início, é preciso reconhecer que as cinco teses propostas pelo filósofo

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neste trecho são, no mínimo, contra-intuitivas. Um segundo exemplo dado por Pólos – na forma de uma pergunta – nos dá a medida do espanto que ele experimenta diante delas. Se um indivíduo é apanhado e detido na tentativa criminosa de apoderar-se do poder, é posto a tratos e mutilado; queimam-lhe os olhos, e depois de lhe infligirem as maiores e mais variadas torturas, e de ver ele que a mulher e os filhos são tratados da mesma maneira, por último é colocado na cruz ou besuntado com breu e queimado vivo: esse indivíduo será mais feliz do que se não for descoberto, conseguir tornar-se tirano e, como senhor absoluto da cidade, continuar durante toda a vida a fazer o que bem lhe parecer, objeto de inveja e de admiração tanto dos seus concidadãos como dos estrangeiros? (473b-c).

A única correção feita pelo filósofo é dizer que entre os dois infelizes, o tirano que escapou e o homem que foi capturado, não pode haver nenhuma superioridade em termos de felicidade, mas o filósofo reafirma que aquele que escapou é mais infeliz. Pólos chega então no limite de sua paciência, e acusa o filósofo de sustentar um argumento que ninguém mais sustentaria. Para lhe explicar sua posição, Sócrates pede que eles retornem ao método de perguntas e respostas com o qual começaram a conversa. Dessa vez, será o filósofo quem fará as perguntas. Sócrates então lhe pergunta o que é pior, sofrer a injustiça ou cometê-la, e Pólos reafirma que é sofrê-la. Ele então pergunta o que é mais vergonhoso, e Pólos afirma que é cometê-la. Sócrates então conclui que Pólos não admite a identidade entre o bom e o belo, e o mau e o vergonhoso. Quando Pólos reconhece isso, o filósofo redireciona a discussão para o esclarecimento das relações entre estes termos. Sócrates então lhe pergunta se as coisas que são belas, sejam elas de que natureza forem, não são assim chamadas por proporcionarem ou

99 terem alguma utilidade. Pólos concorda, e reconhece não conceber nenhum outro motivo para chamá-las assim. O feio e o vergonhoso, portanto, nos diz o filósofo, devem ser definidos – por oposição – pela dor e o dano provocado. Pólos, mais uma vez, concorda. Ora, mas se é assim, aquilo que é mais vergonhoso, a saber, cometer a injustiça, deve ser também ou mais doloroso ou mais danoso. Mas que cometer uma injustiça seja mais doloroso do que sofrê-la, isso Pólos, com toda razão, não concede. Resta, assim, que cometer uma injustiça deva ser mais danoso do que sofrê-la. Quando Pólos concede os pontos acima mencionados, Sócrates então lhe pergunta se ele preferiria aquilo que é mais vergonhoso e mais danoso – mesmo sendo menos doloroso – ao que é menos, e lhe pede que responda honestamente e

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sem medo de nenhuma represália. O aprendiz de Górgias, no entanto, responde que não preferiria. Tendo assim vencido o debate no que diz respeito a sua primeira tese, o filósofo avança para provar a segunda, a saber, que fugir do castigo é pior do que sofrê-lo. Sócrates pergunta a Pólos se pagar por seu erro e ser punido justamente são a mesma coisa, e se aquilo que é justo, enquanto justo, não é sempre belo (476a-b). Pólos concorda. O filósofo então pergunta se ele não acha que toda atividade acarreta necessariamente uma passividade correspondente, de modo que a passividade, isto é, o efeito produzido sobre o objeto tocado, é do mesmo tipo que a atividade. Quando Pólos concorda, só resta ao filósofo apontar que ser castigado é uma passividade que corresponde à atividade de castigar e que, quando esta atividade é exercida com justiça, seu efeito deve então ter essa mesma qualidade, sendo assim belo. Ora, o que é belo é ou agradável ou útil. Uma vez que Pólos se recusa a conceder, e com razão, que o castigo produza prazer por si mesmo em quem o sofre, só lhe resta reconhecer que ele é útil e, portanto, bom. Sendo assim, é vantajoso para um indivíduo aceitar a dor do castigo tendo em vista a felicidade. Mas em que sentido o castigo pode ser útil? É então que Sócrates afirma, e Pólos concorda, que a alma de quem é punido é melhorada pela punição, sendo retirada dela a maldade e a injustiça, e que tais defeitos, próprios da alma, são os defeitos mais vergonhosos que o homem pode possuir e, portanto, são também os mais danosos (dado que eles não são os mais dolorosos). Sendo assim, Sócrates conclui que, assim como levamos os doentes ao médico, também levamos os injustos à justiça, e que, dado que a enfermidade da alma é mais vergonhosa do

100 que a do corpo, a arte da justiça deve ser mais bela do que a medicina. Fica claro, então, que aquele que foge do castigo está, na verdade, fugindo da cura de sua enfermidade e não pode, portanto, ser dito mais feliz do que aquele que se entrega ao tratamento tendo em vista melhorar sua condição. Mas porque então acontece de um homem fugir da justiça? Segundo Sócrates, a situação de tais homens é comparável à dos homens que fogem do

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médico com medo do tratamento. Nas palavras do filósofo: Coisa semelhante, Pólos, de acordo com o que assentamos até agora, é o que talvez aconteça com os que se furtam ao castigo. Só vêem o que nele é doloroso, mas são cegos para o que tem de saudável, por ignorarem que é muito mais de lastimar a convivência com uma alma doente do que com um corpo nas mesmas condições, uma alma, digo, corrompida, injusta e ímpia. Por isso, esforçam-se por todos os meios para não virem sofrer castigo nem ficarem livres do maior dos males, cuidando apenas de acumular riquezas, angariar amigos e falar com o maior grau possível de persuasão (479b-c).

É com essas palavras que o filósofo retoma o assunto que havia dado início ao seu debate com Pólos. A partir do que foi conquistado no diálogo de lá até aqui, no entanto, Sócrates pode avançar ainda mais em suas afirmações. Num tom que não deixa de ser um pouco polêmico e até mesmo irônico, o filósofo vai afirmar que, se o que foi dito até aqui é verdadeiro, então a retórica não nos presta nenhum serviço ao nos permitir escapar da punição, sendo mesmo perniciosa em tais casos. O único uso que ela pode ter, é que nós dela nos sirvamos para acusar a nós mesmos, assim como nossos amigos e parentes, ao primeiro sinal de um erro, de forma a buscar o castigo o mais rápido possível. O orador serviria assim para tornar tal erro evidente, e ajudar-nos a nos livrar do maior dos males. É só no caso de tratar-se de um inimigo que seria de nosso interesse utilizar a retórica para fazê-lo evitar o castigo ao máximo, de forma que ele viva para sempre na injustiça e não seja jamais feliz. Pólos se vê forçado a concordar com as conseqüências traçadas pelo filósofo, e sua participação no debate encerra-se na derrota. O diálogo, no entanto, ainda terá uma terceira parte. É nessa última parte, isto é, no confronto com Cálicles, que as bases do argumento socrático serão questionadas da forma mais radical. Antes de passarmos a exegese da parte final do texto, no entanto, será útil dizer algumas palavras sobre o argumento investigado até aqui com o objetivo de esclarecer a relação estabelecida por Sócrates entre, por um lado, agir voluntariamente e agir com justiça e, por outro, entre a injustiça e a incontinência.

101 3.5 O ato voluntário segundo Sócrates Segundo o que foi dito aqui, poderíamos resumir o argumento socrático da seguinte maneira: o tirano que age da maneira que lhe parece melhor não faz aquilo que quer quando a ação realizada não é conducente à sua felicidade. Este último termo, no entanto, não deve ser concebido de modo subjetivo ou relativista. Para Sócrates todos os homens, inclusive o tirano, desejam a verdadeira felicidade e o verdadeiro bem. Ora, mas o único traço que conhecemos até agora como sendo necessário para que alguma coisa seja boa é o fato de que ela seja útil, isto é, benéfica. É somente na medida em que as ações do tirano (matar, espoliar, etc.) não lhe são úteis, portanto, que podemos dizer que ele não PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

faz aquilo que queria fazer. Mas será tal afirmação equivalente a afirmar que o tirano, quando o resultado de sua ação o prejudica, age involuntariamente? Com efeito, é isso que supus quando afirmei, no começo do capítulo, que o “argumento do poder” nos ajudaria a compreender melhor a maneira como o Sócrates de Platão compreende o ato voluntário. No entanto, hekon e akon, que são as palavras gregas que designam habitualmente o ato que nós chamamos de voluntário e involuntário, não aparecem no trecho acima. O termo utilizado por Sócrates é boulontai. O verbo do qual tal termo deriva, bouleo, carrega o sentido de deliberar, fazer planos, aconselhar-se, etc. Como vemos, de início não é claro que os dois termos sejam

simplesmente equivalentes.

Poder-se-ia

objetar, portanto, que a

equivalência proposta aqui carece de justificação. Tal objeção ganha pertinência filosófica se nos lembrarmos que para Aristóteles, por exemplo, os dois termos não são equivalentes. Com efeito, embora o filósofo estagirita reconheça que todos os atos que são executados de acordo com a boulesis, isto é, como veremos mais adiante, com o desejo racional, são voluntários, Aristóteles afirma claramente que o conjunto dos atos voluntários não se reduz aos atos executados de acordo com a boulesis. Sendo assim, devemos reconhecer que Aristóteles não aceitaria um argumento que pretendesse mostrar que um determinado ato é involuntário simplesmente porque ele não está de acordo com tal desejo – e isso mesmo que ele reconhecesse que tal desejo seria um desejo pelo bem verdadeiro e não pelo bem aparente.

102 No que diz respeito a essa discordância, deveremos adiar qualquer consideração de teor comparativo para depois. No momento, gostaria apenas de ressaltar que o Sócrates de Platão se utiliza de ambos os termos na formulação de seus dois famosos paradoxos. Como vimos anteriormente, no Protágoras o filósofo afirma que homem nenhum buscava o mal voluntariamente (“epi ge ta kaka oudeis hekon erkhetai (...)”, Prot. 358c), pois os homens buscam sempre aquilo que julgam ser melhor para si. O “argumento do poder”, por sua vez, contém a afirmação de um outro paradoxo que, embora seja a rigor diferente, está estreitamente relacionado com o paradoxo que encontramos no Protágoras. Como vimos, o que o filósofo afirmou em sua discussão com Polos é que fazer a injustiça é pior do que sofrê-la. No final do diálogo, Sócrates afirma ainda

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que ninguém comete a injustiça voluntariamente (“(...) medena boulomenos adikein (...)”, Gorg. 509e). Ora, é claro que o segundo paradoxo só será verdadeiro se a injustiça for um mal para quem a comete – e a afirmação segundo a qual é preferível sofrer a injustiça do que cometê-la só será verdade se este mal for pior do que o mal no qual se incorre por sofrer uma injustiça – e a justiça um bem. Sendo assim, não é um exagero dizer que dado que o argumento que sustenta ambas as declarações de Sócrates é o mesmo, a saber, que tanto o mal quanto a injustiça não são benéficos para o agente e portanto só são desejados por aqueles que desconhecem suas respetivas naturezas, então é seguro afirmar que o fato de que o filósofo mude de palavra não quer dizer que ele mudou de objeto, e que, portanto, o “argumento do poder” diz respeito ao conceito socrático-platônico do ato voluntário. Em outras palavras, é porque a injustiça é um mal que ela só pode ser desejada pelos que ignoram que ela é maléfica, e este tipo de ignorância, segundo o Sócrates de Platão, faz de uma ação um ato involuntário. Sendo assim, é seguro afirmar que, segundo Sócrates, o homem que detém o conhecimento pertinente acerca da justiça vê a essência da ação justa, isto é, compreende que ela é melhor em si mesma e por si mesma do que a ação injusta. Isso, é claro, implica que se um tal homem agisse de forma injusta quando a ação justa lhe é tanto possível quanto disponível tal ato seria um ato incontinente. Ou seja, no contexto específico da filosofia socrático-platônica o problema da incontinência acaba tocando na questão da justiça. Não obstante, é importante reconhecer que a ação justa só aparece desse modo para aquele que detém o

103 conhecimento pertinente acerca da justiça, e não para a maioria dos homens. No caso destes últimos, não existe nenhum motivo para afirmarmos que uma ação injusta seja também uma ação incontinente. 3.6 Injustiça e vergonha Se a análise do “argumento do poder” acima empreendida nos deixou com a ideia de que todos os homens desejam o verdadeiro bem, isto é, aquilo que lhes é verdadeiramente útil, o desfecho do diálogo com Pólos traz para o primeiro plano a questão da natureza da justiça, que até então não havia aparecido no argumento. O que Sócrates defende ali é que a justiça é mais útil do que a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

injustiça. Com efeito, se assim não fosse seria impossível compreender a afirmação do filósofo segundo a qual ele mesmo preferiria sofrer a injustiça do que cometê-la e que, uma vez a tendo cometido, o melhor é buscar imediatamente o castigo e não fugir dele. Embora não acredite haver grande discordância a respeito desse ponto do argumento socrático, ainda assim nos é interessante prestar atenção em como o argumento é conduzido. O filósofo procura estabelecer que aquilo que é belo é bom, e portanto útil. Quando Pólos reconheceu que cometer a injustiça era mais vergonhoso do que sofrê-la mas que sofrê-la era pior do que cometê-la, ele havia rompido a identidade entre aquilo que é belo, isto é, digno de elogios, e aquilo que é bom, isto é útil. Segundo Pólos, embora a injustiça seja mais vergonhosa, ela não seria mais danosa – ou menos proveitosa – ao indivíduo do que a justiça. O raciocínio de Pólos nos é bastante intuitivo. Quando alguém comete uma injustiça, pensamos que tal ato é danoso não para a própria pessoa, mas para algum outro. Muitas vezes, mesmo na maioria das vezes, nós inclusive achamos que a pessoa que cometeu a injustiça foi de alguma forma, seja pecuniária ou não, beneficiada com este ato. Curiosamente, o argumento de Sócrates contra um tal raciocínio começa por uma análise do belo. Tendo-o definido como algo que gera alguma forma de prazer ou utilidade, o filósofo afirma que para que cometer a injustiça seja mais vergonhoso do que sofrê-la é necessário que ou bem o ato de cometer a injustiça seja mais doloroso ou bem ele seja mais danoso do que sofrê-la. O raciocínio do filósofo, é claro, trata o belo e o vergonhoso como contrários. Como a primeira

104 opção é inimaginável, resta que admitamos a segunda. É assim que Pólos se vê forçado a admitir o ponto central do argumento socrático, a saber, que sofrer a injustiça é menos danoso do que cometê-la. O argumento do filósofo, no entanto, deixa alguns questionamentos em aberto. Tal fica claro se retomarmos a afirmação de que a injustiça é mais vergonhosa do que a justiça tendo em vista toda a conversa entre Sócrates e Pólos. Alguém que quisesse defender Pólos poderia perfeitamente objetar que a injustiça só é vergonhosa quando descoberta, isto é, acidentalmente, e que todo o argumento de Pólos visa defender não a simples injustiça mas sim aquela que passa despercebida e, assim, escapa da punição. Nesse caso, em que tipo de dano poderia incorrer o indivíduo que cometesse a injustiça? Se um ato injusto que passou despercebido não causa

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vergonha, será possível afirmar que a injustiça é vergonhosa em si mesma? Em outras palavras, a injustiça é danosa porque é vergonhosa, ou é vergonhosa porque é fonte de algum dano outro que não a vergonha que ela pode acarretar? Por outro lado, ainda que admitamos que a justiça seja bela, isto é, digna de louvor, e que ela é útil, poderíamos ainda assim perguntar para quem ela é útil. Seria a justiça útil para aquele que age justamente, ou para a comunidade da qual ele faz parte? Que vantagem tira o indivíduo do próprio ato justo? Sócrates pode ter obtido de Pólos o reconhecimento de que cometer a injustiça é mais danoso do que sofrê-la, mas ele ainda não nos disse exatamente que dano é esse que o indivíduo sofre ao cometer a injustiça. É bem verdade que o argumento seguinte, que visa provar que sofrer o castigo é melhor do que evitá-lo, nos dá uma indicação da resposta. Sócrates nos diz que o melhor é não cometer nenhuma injustiça, mas caso isso não seja possível o filósofo nos diz que o melhor é buscar o castigo o mais rápido possível. Ora, se a virtude do castigo justo consiste em expiar a injustiça e a maldade que se instalaram na alma, pode-se concluir que o ato injusto instaura a injustiça na alma dos homens. Tal afirmação, no entanto, não só não é explicitamente defendida por Sócrates aqui como ela arrisca comprometê-lo com um círculo vicioso. Afinal, se são os injustos que agem injustamente, mas o ato injusto que instaura a injustiça na alma humana, nós ficamos sem poder dizer se a injustiça na alma é causa ou consequência do ato injusto. De fato, teremos de esperar até a República para encontrarmos o desenvolvimento desse argumento.

105 3.7 Sobre as aparentes contradições entre o Górgias e o Protágoras Antes de comentar a passagem do diálogo que envolve a discussão entre Cálicles e Sócrates, será útil fazer alguns breves comentários preliminares. A passagem que analisaremos agora é compreendida algumas vezes como estando em conflito direto com a passagem do Protágoras analisada em nosso primeiro capítulo. O problema de compatibilidade entre os dois diálogos surge quando comparamos a concepção do prazer que encontramos no argumento do Protágoras analisado anteriormente e a maneira como o prazer é concebido no Górgias. Pretendo defender, me baseando fundamentalmente na análise já desenvolvida por Gosling e Taylor (GOSLING e TAYLOR, 1982, P. 69-82), que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

tais contradições são apenas aparentes, e que não há nada que é dito no Górgias que contradiga ou refute aquilo que vimos ser afirmado no Protágoras. A origem do questionamento da compatibilidade entre os dois diálogos, a meu ver, só pode ser explicada pela adoção de uma interpretação hedonista do Protágoras. Uma vez que no Górgias vemos Sócrates questionar abertamente a identidade entre o bem e o prazer, caso adotemos uma tal interpretação se torna efetivamente impossível reconciliar os dois argumentos. Quando rejeitamos tal interpretação, no entanto, não resta mais nada que separe o argumento socrático desenvolvido nos dois diálogos de maneira radical. De qualquer maneira, nossa compreensão da relação entre o prazer e o bem tem muito a ganhar com uma análise deste outro diálogo, pois ela pode reforçar e precisar nossas conclusões anteriores.

3.8 Cálicles, a retórica e o binômio natureza e convenção Como vimos anteriormente, embora Pólos tenha afirmado que é possível ser feliz vivendo de modo injusto, desde que se consiga escapar da punição, o aprendiz de Górgias falhou ao tentar sustentar a sua tese no diálogo com Sócrates. Cálicles, no entanto, não está convencido de que o resultado reflete realmente a superioridade do argumento socrático. Após o desfecho do diálogo entre Sócrates e Pólos, Cálicles chega mesmo a perguntar ao filósofo se ele está falando sério. Sócrates responde afirmativamente, e diz que o espanto de Cálicles tem por origem conclusões indicadas pelo que ele tem de mais amado, a saber, a

106 própria filosofia. Caso ele queira se desfazer delas, diz o filósofo, ele deve então refutá-las. Cálicles então enuncia sua tese: segundo ele, o erro de Pólos foi fazer o mesmo que tinha feito Górgias, a saber, conceder um ponto da discussão por vergonha de dizer a verdade. No caso de Pólos, ele concedeu que cometer a injustiça era mais vergonhoso do que sofrê-la. Para Cálicles, a partir desse momento ele se deixou enredar pelos sofismas de Sócrates. Mas no que consistiriam estes sofismas? Segundo Cálicles, existe o que é belo e vergonhoso por natureza e o que é belo e vergonhoso por convenção. A natureza e a lei, nos diz Cálicles, se contradizem na maior parte dos casos. Sócrates teria descoberto este segredo e estaria se utilizando dos dois sentidos para confundir Pólos. Pólos teria

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respondido que cometer a injustiça é mais vergonhoso do que sofrê-la tendo em vista aquilo que determinava a lei. Mas a tese subsequente apresentada por Sócrates, a saber, que aquilo que é mais vergonhoso é também mais desvantajoso, só é verdade se tivermos em vista o que determina a natureza. Ou seja, Cálicles nega que aquilo que é injusto segundo a convenção, isto é, segundo a lei, seja efetivamente o que é mais desvantajoso, e, portanto, afirma que é mais útil ser injusto do que respeitar as convenções. Para Cálicles a lei é feita pelos fracos, que são a maioria, com o intuito de impedir que os mais fortes tenham a parte que lhes é de direito segundo a natureza. É com este objetivo que eles afirmam que toda superioridade é vergonhosa e injusta, e que a injustiça consiste essencialmente em querer estar acima dos outros. No que diz respeito à natureza, Pólos acredita que há um direito natural que afirma que é justo que aquele que vale mais tenha mais do que o que vale menos, isto é, que aquele que tem mais poder domine o que tem menos poder. Esta é, segundo Cálicles, a verdadeira natureza do direito. Segundo o direito natural tal como o compreende Cálicles, é sofrer a injustiça que é mais vergonhoso, e não cometê-la. Cálicles diz que sua tese é respaldada pela observação da natureza tanto no mundo animal quando no mundo humano, seja no âmbito da cidade, da família ou da guerra entre cidades. Não contente com o que disse até aqui, nas linhas que se seguem Cálicles lança um ataque contra a filosofia. Segundo ele, trata-se de uma ocupação adequada para os jovens, mas não para os adultos, dado que a filosofia não sabe nada acerca dos homens, do funcionamento de uma cidade e da natureza das

107 paixões. Quando vê homens adultos se entregarem à filosofia, Cálicles diz sentir vontade de lhes dar uma surra. Dizendo-se preocupado com Sócrates, Cálicles recomenda que ele abandone esse hábito. Ao contrário do que poderíamos esperar, Sócrates recebe muito bem – ainda que não sem alguma ironia – a fala de Cálicles. O filósofo se diz feliz por ter encontrado alguém dotado de ciência, boa-vontade para consigo e sinceridade, as três características necessárias para quem deseja descobrir se uma alma vive bem ou mal. Ele sugere então que ambos se entreguem ao exame da questão, afirmando que se houver algo a respeito de que ambos concordem esse algo deve ser a verdade e que, portanto, eles podem tomá-lo como estabelecido de uma vez por todas. O que o filósofo quer saber é que tipo de homem devemos ser, a que

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trabalho devemos nos dedicar em nossa juventude e em nossa velhice, etc. (488a). Sócrates então inicia o debate com Cálicles pedindo que ele precise o que entende por direito natural. Trata-se do direito do mais forte de utilizar da violência para tomar os bens do mais fraco, que o melhor comande o medíocre e que aquele que vale mais tenha uma parte maior do que aquele que vale menos? Quando Cálicles assente, Sócrates lhe pergunta se é a mesma coisa dizer de um homem que ele é mais poderoso, melhor ou mais forte. O objetivo de Sócrates é descobrir se, segundo Cálicles, a superioridade de um homem sobre o outro reside em sua força física. Quando Cálicles responde que os três termos têm o mesmo significado, ele confirma as suspeitas do filósofo. Mas, logo em seguida, Sócrates afirma que é natural que – quando se trata da força física – os mais numerosos sejam superiores ao indivíduo isolado. Nesse caso, no entanto, as leis da natureza seriam as leis dos mais numerosos, e os mais numerosos seriam os melhores e mais potentes. Aquilo que seria justo segundo tais leis seria também belo por natureza. Ora, mas segundo Cálicles a maioria dos homens é a favor da igualdade, e afirma que é mais vergonhoso cometer a injustiça do que sofrê-la. Sendo assim, o mesmo se provou ser o belo por natureza e pela convenção. Cálicles contesta a conclusão de Sócrates, e afirma só ter proposto que os mesmos homens são os melhores e os mais potentes, mas não que o que quer que um bando de escravos decrete, homens que não são superiores em nada a não ser no vigor muscular, seria a lei natural. Quando Sócrates pede que ele redefina, então, o que entende por melhores, Cálicles lhe responde simplesmente ‘aqueles

108 que valem mais’. Neste momento é Sócrates quem protesta, afirmando que tais palavras são vazias. O filósofo então pergunta se por melhores ele não estaria talvez querendo dizer os mais sábios (phronimóteron). Cálicles responde que é a esses mesmo que ele estava se referindo. Sendo assim, prossegue Sócrates, ele deve concordar que um único sábio é superior a toda multidão de ignorantes, e que é ele quem deve comandá-los. Tendo ambos se acordado sobre este ponto, Sócrates propõe que Cálicles imagine que ambos estão presos num lugar juntamente com uma multidão – uns mais fortes e outros mais fracos – e um médico, dispondo de comida e bebida em abundância. Sendo o médico o mais sábio, e portanto o melhor dentre eles, deve ele ter para si a maior quantidade de alimento ou partilhar entre todos de acordo

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com a necessidade? Cálicles não responde a pergunta de Sócrates, afirmando que ele não está falando de comida, bebida e médicos. Quando o filósofo tenta modificar seu exemplo fazendo referência a outros profissionais, como o tecelão, o agricultor, o sapateiro etc, ele só encontra mais resistência. Quando Sócrates pede então que ele precise melhor seu pensamento, Cálicles afirma que os mais sábios são, para ele, aqueles que são mais inteligentes no que diz respeito ao governo da cidade e que, além disso, são também corajosos o suficiente para executar o que concebem sem recuar por ‘fraqueza da alma’ (491b, malakias tes psykhes). Segundo Cálicles, são estes que merecem o poder e o governo da cidade e uma maior parte de seus bens do que os demais, isto é, os governados. É então que Sócrates pergunta se os governantes não devem também ser, em certo sentido, governados, isto é, se eles devem ser governantes (arkhonta) de si mesmos ou se Cálicles acha que o governo de si mesmo (auton eautou arkhein) é algo inútil. Quando Cálicles pede a Sócrates que explicite como compreende esse governo de si mesmo, o filósofo afirma que o faz da mesma maneira que todo mundo. Para Sócrates o governo de si mesmo consiste na prudência (sophrona), em ser temperante (enkrate), e a comandar em si mesmo os prazeres e as paixões (ton edonon kai epithumion arxhonta ton en auto). Cálicles então afirma que Sócrates está chamando de prudentes os imbecis (tous elithious). Segundo Cálicles, para que um homem possa viver bem ele deve satisfazer as suas mais fortes paixões, fornecendo-lhes o objeto de seu desejo através da coragem e da inteligência, e não reprimi-las. Que tal comportamento seja criticado pela maior

109 parte dos homens, diz Cálicles, só se explica se tivermos em mente que a maioria não é capaz de realizar tal tarefa. É por isso que a multidão critica os descomedidos (ten akolasian), declarando seu comportamento vergonhoso. Na verdade, tudo o que tais homens querem é dominar aqueles que são mais fortes e mais capazes por natureza, que são uma minoria, através de convenções artificiais e anti-naturais. Um homem que esteja na posição de governo em uma cidade, no entanto, não tem nenhuma razão para dar ouvido a tais pessoas. Daí que Cálicles afirme que o descomedimento, a vida fácil e a liberdade são a virtude e a felicidade para aqueles que podem alcançá-las. O argumento então segue por mais algumas páginas antes que Sócrates peça a Cálicles que explicite melhor como ele compreende essa vida de simples

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satisfação de prazeres. Consistiria ela simplesmente em ter fome e comer, sede e beber, etc (494b)? Cálicles então concorda, e adiciona a estes todo e qualquer outro desejo (tas allas epithymias apasas), afirmando ser necessário experimentálos, satisfazê-los e ter prazer para que se possa ser feliz. Sócrates então perguntará a Cálicles se ele acredita mesmo que o prazer, seja qual for sua natureza, leva o homem à felicidade. Talvez, diz o filósofo, o bem não seja idêntico à toda forma de prazer e existam alguns prazeres que são maus (495a). Cálicles, no entanto, não aceita a sugestão de Sócrates. É justamente neste momento que as aparentes contradições entre o Górgias e o Protágoras começam a reaparecer.

3.9 Hedonismo, akolasia e mais algumas aparentes contradições De início, é importante notar que o personagem de Cálicles não aparece no texto como um exemplo de um indivíduo incontinente. Como vimos, o que o sofista advoga é que a akolasia – e não a akrasia – seria o melhor caminho para a felicidade. Esta palavra, que traduzimos aqui por descomedimento, denota uma atitude radicalmente diferente daquela demonstrada pelos incontinentes cujo relato é analisado no Protágoras. Anteriormente, definimos a ação do incontinente como uma ação conscientemente empreendida por um indivíduo e que, de acordo com esse próprio indivíduo, não teria como fim aquilo que ele sabia ser de seu maior interesse. Isso aconteceria na medida em que ele escolheria, dentre as diferentes

110 possibilidades de ação que lhe são tanto possíveis quanto disponíveis, uma outra que não aquela que lhe seria mais benéfica. Segundo esse mesmo indivíduo, ele teria sido levado a fazer essa escolha pelo fato de ser vencido pelo prazer, isto é, pela expectativa do prazer propiciado por esta outra opção. Ora, esta descrição não se encaixa de modo algum no personagem de Cálicles, que, ao contrário do suposto incontinente, defende justamente que a satisfação dos prazeres é o caminho para felicidade, e que o bem é idêntico ao prazer. No Protágoras nos é dito que a maior parte dos homens afirma a diferença entre o bem e o prazer, e diz tentar ir na direção do primeiro mas acabar sendo vencido pelo segundo. Cálicles, por outro lado, afirma desde o início que persegue o prazer e que esse é o verdadeiro caminho para a felicidade.

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O comportamento de Cálicles, portanto, não pode ser compreendido da mesma forma como o comportamento da multidão tal como ele nos é descrito no Protágoras. O próprio Cálicles, inclusive, parece bastante consciente dessa oposição no Górgias. Como veremos, embora ele não trate a multidão como um bando de incontinentes, ele reconhece que a maioria dos homens afirma que a temperança e a moderação dos desejos é um dever de todos os homens, inclusive dos governantes. Tal postura por parte da multidão parece condizente com aquilo que eles afirmam em seu relato no Protágoras, isto é, que o bem é diferente do prazer. O problema, como vimos anteriormente, é que embora eles afirmem essa diferença, eles não têm nenhum critério que lhes permita separar o bem do prazer. É essa ausência de critério que torna tal afirmação vazia e, em última análise, ineficaz para a determinação de sua conduta. No entanto, como vimos no Protágoras, Sócrates não faz nenhuma distinção entre bons e maus prazeres, e chega mesmo a afirmar que o prazer é, em si mesmo, bom. Num primeiro momento, portanto, poder-se-ia dizer que a argumentação desenvolvida nesse trecho do Górgias vai no sentido oposto do argumento que analisamos no Protágoras, pois naquele diálogo é Sócrates quem convence a multidão a aceitar a tese de que o prazer é nele mesmo bom, enquanto no Górgias tal tese será sustentada por Cálicles e refutada pelo filósofo. No entanto, como já mostraram Gosling e Taylor, as coisas não são tão simples. De início, o filósofo pergunta a Cálicles se ele reconhece a existência de algo que se chama ciência e de algo que se chama coragem, ao que o sofista assente, reiterando que acredita serem duas coisas diferentes. Sócrates então

111 pergunta se o prazer e a ciência seriam a mesma coisa, e Górgias responde que não. Fica então estabelecido que, para Cálicles, o prazer e o bem são idênticos, enquanto que a ciência e a coragem diferem não só entre si, mas ambas do bem. Tendo estabelecido esses princípios, Sócrates pergunta a Cálicles se ele reconhece que a felicidade (eu prattontas) e a infelicidade (kakos prattousin) são dois estados opostos e que, como a saúde e a doença, não podem nem (a) estar ao mesmo tempo presentes no mesmo lugar e nem podem (b) ser deste mesmo lugar expulsos simultaneamente (495e). Cálicles concorda. É importante notar, como fazem Taylor e Gosling, que (b) implica que é impossível que alguém seja beneficiado e prejudicado em respeito à mesma coisa ao mesmo tempo. É o que o filósofo estabelece ao afirmar que seria absurdo se nós nos privássemos da

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saúde dos olhos ao mesmo tempo em que nos curássemos da oftalmia (GOSLING e TAYLOR, 1982, P. 72). É então que Sócrates afirma que, de acordo com o que foi dito, se nós encontrarmos duas coisas que possuímos e perdemos ao mesmo tempo, elas jamais poderiam ser a felicidade e a infelicidade. Ora, nos diz o filósofo, parece ser exatamente esse o caso do prazer e da dor. A fome e a sede, por exemplo, são estados nos quais experimentamos a dor. Se nós comemos quando temos fome e bebemos quando temos sede, experimentamos então o prazer da satisfação destes desejos. Quando estamos com sede e bebemos, portanto, nós experimentamos ao mesmo tempo a dor e o prazer. Quando terminamos de matar nossa sede, por outro lado, cessam ao mesmo tempo tanto o prazer quanto a dor. Na medida em que o prazer e a dor provenientes de um desejo podem tanto estar presentes quanto cessar simultaneamente, eles não podem ser confundidos com a felicidade e a infelicidade, e o prazeroso, nos diz Sócrates, deve ser algo diferente do bom (497a). Ao final do argumento, Cálicles afirma não ter entendido nada dos ‘sofismas’ de Sócrates. Antes de passarmos ao próximo argumento do filósofo, no entanto, devemos observar que, ao contrário do que parecia ser o caso, não há nada que foi dito aqui que contradiga aquilo que encontramos no Protágoras. Tudo o que o filósofo afirmou foi que o prazer não pode ser confundido nem com o bem, nem com a felicidade, o que parece bastante claro já no Protágoras, uma vez que mesmo o indivíduo incontinente experimenta o prazer em suas ações. Dado que a incontinência é, por definição, um erro, ela não poderia jamais ser dita uma atividade conducente à felicidade, mas ela é sem duvida uma atividade que conduz

112 a algum prazer. Mais uma vez, devemos lembrar que, segundo o argumento que encontramos no Protágoras, uma ação é boa se e somente se ela traz mais prazer do que dor tendo em vista o conjunto total de suas consequências imediatas e futuras. Quando Cálicles não se mostra convencido por seu argumento, Sócrates então tenta chegar à mesma conclusão através de um argumento diferente. O filósofo pergunta se Cálicles não chama de bons os homens bons devido à presença de algo bom neles. Sem dúvida, responde Cálicles. Sendo assim, acrescenta o filósofo, não são ditos bons os homens que são burros ou covardes. Cálicles concorda. Ora, mas parece claro que em determinadas situações os homens burros ou covardes experimentam tanto ou mais prazer do que os homens

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bons. Para exemplificar seu argumento, Sócrates utiliza a imagem de um combate: Vendo o inimigo em fuga, quem experimenta mais prazer, os covardes ou os corajosos? – Mais prazer? Todos os dois, ao que me parece, ou ao menos a diferença é pequena. – Pouco importa a diferença: de qualquer forma os covardes também sentem prazer? – E mesmo um prazer bem grande. – Os insensatos também, ao que parece? – Sim. – Mas quando o inimigo avança, os covardes somente ficam enervados, ou os corajosos também? – Todos ficam. – Com a mesma intensidade? – Talvez os covardes um pouco mais. – E não têm eles também mais prazer quando o inimigo recua? – Talvez. – Sendo assim, a dor e o prazer podem ser experimentados pelos insensatos assim como pelos sábios, pelos covardes como pelos corajosos, e isso, na sua opinião, numa intensidade quase igual, ou até mesmo com maior intensidade pelos covardes que pelos corajosos? – Sim. – E, no entanto, os sábios e os corajosos são bons, enquanto que os insensatos e os covardes são maus? – Sim. – Consequentemente, o prazer e a dor podem ser experimentados numa intensidade quase igual tanto pelos bons quanto pelos maus (498a-c).

A contradição do discurso de Cálicles torna-se então clara. Para o sofista, o bem é idêntico ao prazer e os homens bons são bons em virtude de algo bom presente neles. Ora, mas se o bem e o prazer são idênticos, então eles devem necessariamente ser bons em virtude do prazer que, estando presente, é experimentado por eles. Este argumento cai por terra no momento em que Cálicles é obrigado a reconhecer que os homens maus, os covardes, os burros, etc., experimentam tanto prazer quanto os homens bons, pois se isso é verdade então é preciso reconhecer que existe alguma outra coisa que faz de alguns homens bons e de outros maus, o que, por sua vez, significaria admitir que o prazer não é idêntico ao bem. Aqui, mais uma vez, estamos diante de uma aparente contradição com o Protágoras. Com efeito, segundo o argumento desenvolvido naquele diálogo, a

113 metretiké seria suficiente para guiar o homem em suas escolhas. Essa técnica, como vimos, consiste simplesmente em medir as quantidades imediatas e futuras de prazer contidas em cada ação. Ora, mas se os homens maus, que por definição não são felizes, desfrutam de tanto ou mais prazer do que os homens bons, então a metretiké não pode ser uma técnica suficiente para conduzir o homem à felicidade, uma vez que parece ser possível que o curso da ação escolhido pelo covarde lhe propicie mais prazer do que a opção escolhida por aquele que é corajoso. Novamente, no entanto, tal aparência é enganadora. Com efeito, o argumento de Sócrates aqui se limita a analisar de forma sincrônica o sentimento de prazer, levando em conta a quantidade de prazer experimentada pelo homem covarde e pelo corajoso em um dado momento e não

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como um todo. Ora, o perigo que vem sendo indicado desde o Protágoras é justamente o de se escolher aquilo que promete mais prazer imediato, mas implica grandes inconvenientes futuros. Com efeito, basta que o covarde “pague caro” pelo excesso de prazer que experimenta em relação ao homem de coragem para que o argumento socrático seja coerente com o que vimos no Protágoras. De que forma ele o faz, no entanto, só nos será dito na República. Ao final do argumento, Cálicles protesta mais uma vez, afirmando que o filósofo argumenta como se não reconhecesse que nem ele, Cálicles, e nem nenhuma outra pessoa se esquece de distinguir entre os prazeres que valem mais e aqueles que valem menos. Sócrates, no entanto, aparenta estar já perdendo a paciência e não acreditar mais na boa-vontade de seu interlocutor para consigo. Ainda assim, o filósofo admite o protesto e retoma a argumentação. Dessa vez, Sócrates pergunta a Cálicles se os prazeres que valem mais seriam os úteis e os que valem menos os prejudiciais. Cálicles imediatamente concorda, e reconhece, logo em seguida, que em relação aos prazeres do corpo são úteis os que trazem a saúde e prejudiciais os que produzem o efeito contrário (499d). Sendo assim, nos diz Sócrates, devemos então dizer também das dores que elas são, sob as mesmas condições, algumas úteis e outras prejudiciais, e que são apenas os bons prazeres e as boas dores que devem ser perseguidas. Ora, conclui o filósofo, então é tendo em vista o bem que os homens fazem aquilo que é agradável e não tendo em vista o agradável que fazem o que é bom. Por fim, o filósofo lhe pergunta se qualquer homem é capaz de distinguir os prazeres bons dos maus, ou se para tal é necessário alguma competência específica,

114 e Cálicles responde que acredita que a competência é de fato necessária. Fica claro, assim, que quando Sócrates fala em prazeres maus no Górgias, ele está se referindo a determinados objetos, ou ações, que comportam ou produzem prazer e não a tipos de prazer que seriam maus. Permanece, portanto, o princípio afirmado no Protágoras segundo o qual o prazer é em si mesmo algo bom. Aqui, como lá, o problema são as consequências futuras acarretadas por determinadas ações, ou objetos, que são imediatamente prazerosos. 3.10 Hedonismo e desenvolvimentismo no Górgias de Platão Até este ponto a argumentação defendida por nós a respeito das aparentes PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

contradições entre o Protágoras e o Górgias não faz senão retomar a análise desenvolvida anteriormente por Goslin e Taylor. A interpretação defendida aqui, no entanto, difere destes autores em um aspecto importante. Embora após analisar os trechos acima Gosling e Taylor terminem por afirmar que “não há nenhuma inconsistência entre a posição defendida por Sócrates a respeito do prazer no Protágoras e no Górgias”, tais autores sustentam que tal afirmação seria enganadora na medida em que deixaria de fora “o provável desenvolvimento do pensamento de Platão do Protágoras até o Górgias” (GOSLING e TAYLOR, 1982, P. 82). Com efeito, os autores dizem acreditar que o Górgias nos apresenta evidências claras de que, naquele momento, Platão havia reconsiderado as idéias a respeito do prazer que vemos Sócrates defender no Protágoras. Para compreendermos tal afirmação, no entanto, é preciso ter em vista a leitura feita pelos autores de uma passagem do Protágoras que foi aqui discutida. Para Gosling e Taylor, assim como para Irwin, é Sócrates quem sustenta a tese hedonista que encontramos no Protágoras, e o argumento dialético desenvolvido pelo filósofo não faz senão obrigar a multidão e Protágoras a admitir uma tese que é o próprio filósofo que tem por verdadeira. Para sustentar tal afirmação, no entanto, os autores não podem senão apontar para o fragmento 351c, isto é, para o fato de que é Sócrates quem traz a tese hedonista para o diálogo e a viabiliza, ao afirmar que o prazer é, em si mesmo, bom. Segundo Gosling e Taylor:

115 Enquanto 351b-e não nos permite identificar a tese de Sócrates, esta passagem deixa claro que ele tem uma tese, e que não está meramente levantando questões ou descobrindo o que Protágoras ou o homem comum pensam. Pois fica claro a partir de 351c que ele pensa que Protágoras e o homem comum estão errados em pensar que existem prazeres maus, i.e ele está comprometido no mínimo com a opinião segundo a qual tudo o que é prazeroso é bom (GOSLING e TAYLOR, 1982, P. 51).

Creio já ter dito o suficiente anteriormente para tornar claro qual o erro cometido aqui pelos autores. Uma coisa é afirmar que todo prazer é bom, isto é, que o prazer é nele mesmo algo bom, e outra afirmar que todas as ações e coisas que são prazerosas, isto é, que proporcionam prazer, são boas. Sócrates só precisa da primeira afirmação para refutar a multidão, pois se ela está correta então dizer que o prazer levou um homem a cometer um ato ruim é o mesmo que dizer que o bem levou tal

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homem a fazer o mal. Mesmo que admitamos tal proposição, ainda podemos reconhecer que uma ação prazerosa pode ser má se, e somente se, ela causar dores maiores do que os prazeres que proporciona. O erro cometido por Taylor e Gosling em 1982 é, em suma, o mesmo que encontramos em Irwin 27 anos depois.

3.11 Sobre o maior dos males No final do capítulo anterior, nos perguntamos se a metretiké seria compatível com o comportamento justo. Para resumir, nossa dúvida era se o indivíduo que se comportasse de modo a fazer sempre o que lhe fosse mais útil seria um homem justo. Embora tal afirmação nos pareça bastante contra intuitiva, creio que o que vimos no Górgias já foi suficiente para nos convencer de que é essa efetivamente a posição socrática a respeito do assunto. Para reforçarmos tal conclusão, basta uma rápida recapitulação a respeito do que nos foi dito aqui sobre o que seria o maior dos males para o homem. Em 458b, enquanto ainda dialogava com Górgias, Sócrates afirma que ele julga que é mais vantajoso para um homem ser refutado do que refutar outro homem, pois é mais vantajoso ser sarado do maior dos males do que sarar um outro. O filósofo, então, acrescenta que “não há nada de tão nocivas consequências para o homem como admitir opinião errônea sobre o assunto com o que nos ocupamos”. Segundo o filósofo, portanto, ser refutado é melhor do que refutar porque ao ser refutado somos sarados de nossas opiniões falsas. No caso da presente conversa, tal

116 benefício é ainda maior dado o assunto tratado. A opinião falsa a esse respeito é ainda mais danosa do que uma opinião falsa sobre qualquer outra coisa. Sócrates ainda utilizará essa mesma qualificação em diferentes momentos do diálogo. Mais a frente, já na conversa com Pólos, o filósofo afirmará que o maior dos males é cometer a injustiça, e não sofrê-la (469b). Mas que relação tem a opinião falsa de que o filósofo falou anteriormente com cometer a injustiça? Como compreender essas duas ocorrências da qualificação ‘o maior dos males’ em conjunto? Em 458b, Sócrates e Górgias tratam da relação do orador para com o justo e o injusto, o belo e o vergonhoso. Sócrates pergunta se, segundo Górgias, é necessário ao orador conhecer a natureza dessas coisas. Quando Górgias admite que sim, ele cai em contradição com sua afirmação anterior, que afirmava que alguns oradores se

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utilizavam da retórica de forma injusta. Para que tal seja uma contradição, é claro, é preciso que aquele que conheça o justo seja necessariamente justo, e não injusto. Mas como pode a natureza do justo justificar por si mesma a conduta do homem? Tudo se passa como se o filósofo associasse sistematicamente a conduta injusta com uma opinião falsa sobre a justiça e a conduta justa com o conhecimento acerca da natureza da justiça. Para que tal seja verdade, no entanto, é necessário que esse conhecimento fundamente de alguma forma não somente a conduta do homem justo, mas a escolha pelo comportamento justo ao invés do injusto. Ora, segundo o que nos foi dito no Protágoras aos homens que quiserem ser felizes, isso é, a todos os homens, a conduta recomendada era que se comportassem de acordo com a metretiké. Se tal conduta implicava efetivamente num comportamento regido pela temperança e por um certo utilitarismo, não parecia claro que ele implicasse também o comportamento justo. Como vimos, no entanto, a forma como se encerra a conversa com Pólos deixa claro que para Sócrates a justiça é mais útil para o indivíduo do que a injustiça. Com efeito, está aí a chave para que compreendamos as sucessivas referências feitas pelo filósofo ao maior dos males. O maior dos males é cometer a injustiça, mas só comete a injustiça aquele que acredita que dela vai tirar alguma vantagem. Dado que a ação justa é, por definição, mais útil para o indivíduo do que a ação injusta, aquele que comete uma injustiça está sendo movido por uma opinião falsa a respeito da justiça, a saber, que ela lhe seria mais prejudicial, ou menos benéfica, do que a injustiça. É esta a opinião que Sócrates acredita estar sendo disseminada pelo ensinamento da retórica. E, com efeito, suas conversas com Górgias, Pólos e Cálicles parecem

117 confirmar esta suspeita, ainda que somente este último tenha franqueza suficiente para defender tal opinião abertamente. Ao redor dessas duas afirmações contraditórias a respeito da justiça se dividem a filosofia e a retórica. Mas é claro que, sendo tanto os filósofos como os oradores homens como todos os demais, e, portanto, aspirantes à felicidade, o que rege a escolha de cada um é a maneira como cada um compreende esse fim último que busca alcançar. Daí que Sócrates diga, em 472c, que a questão sobre a qual é mais belo saber a verdade e mais vergonhoso ser ignorante é a pergunta a respeito de quem é feliz e de que não é. Para o filósofo, não há espaço aqui para relativismos: é impossível ser feliz vivendo na injustiça, e aqueles que acreditam no contrário estão enganados a respeito da natureza da justiça. É este engano que estaria por trás da

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escolha pela retórica, que já se delineia aqui quase como um modo de vida. Sendo a justiça e a temperança o mesmo ou quase a mesma coisa, como prefere Protágoras, não é de se estranhar que dentre os mesmos homens que menosprezam a justiça encontremos também aqueles que fazem pouco da temperança. Ao final do texto, é a vida dos prazeres desregrados que buscam aqueles que visam o poder para fazer o que bem entenderem dentro da cidade. O que Sócrates procura lhes mostrar é que tal busca deve ser abandonada, e isso não porque ela trará danos a outrem, mas porque ela é danosa, e, portanto, vergonhosa, para o próprio indivíduo que a persegue. Tais argumentos nos são importantes por deixar claro que o esquema utilitarista que foi esboçado no Protágoras para dar conta da incontinência não foi abandonado por Platão no Górgias, diálogo no qual já vemos operar a dualidade corpo-alma e vários dos juízos de valor que ela implica. O esquema esboçado no Protágoras permanece válido na medida em que os juízos de valor apresentados no Górgias sobre a retórica, a justiça e a beleza são todos justificados em termos utilitaristas. Como vimos, tais juízos ainda se apóiam em uma estimativa dos prazeres e das dores, dos danos e dos benefícios que são trazidos por cada tipo de ação. 3.12 O ato voluntário e o problema da akrasia Encerro aqui minhas considerações a respeito do Górgias. O presente capítulo serviu principalmente para que fosse possível mostrar duas coisas. A

118 primeira é que não há nenhuma contradição entre o conteúdo do Protágoras e o do Górgias. A segunda, e mais importante para nossa investigação, é o quão estreito é o conceito socrático do ato voluntário. A respeito desse segundo ponto, gostaria de dizer ainda umas poucas palavras antes de passar para a República. Como ficou claro já no primeiro capítulo, o problema da akrasia em Platão está diretamente ligado ao paradoxo socrático segundo o qual ninguém faz o mal voluntariamente. É um tanto quanto surpreendente, portanto, que os especialistas que se debruçaram sobre a questão da akrasia durante o século XX não tenham dedicado mais atenção à definição platônica do ato voluntário. Sobretudo considerando que o chamado “argumento do poder” faz parte de um diálogo que cuja pertinência para o tema da akrasia é geralmente reconhecido. A meu ver, essa

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ausência de atenção só se justifica dada a absoluta estranheza da doutrina socrática. Como veremos no capítulo quatro, a noção do voluntário se transforma quase completamente já na obra de Aristóteles. Que tal transformação é necessária para que Aristóteles consiga classificar a akrasia, tal como ele a compreende, como um ato voluntário, é algo que só ficará claro depois que tivermos compreendido adequadamente a maneira como o filósofo estagirita compreende este fenômeno, tarefa que empreenderemos em nosso quinto capítulo – que trata do livro VII da Ética a Nicômaco. Igualmente digno de nota, no entanto, é o que ficará claro já no final do quarto capítulo, a saber, que, por um lado, essa transformação que sofre o conceito do voluntário em Aristóteles é suficiente para classificar até mesmo a akrasia tal como descrita por Sócrates como um ato voluntário, e, por outro, que a fidelidade à compreensão socrática do ato voluntário implica na classificação da akrasia como um ato involuntário mesmo que adotemos a descrição aristotélica do fenômeno. Se antecipo aqui tais conclusões é porque julgo necessário enfatizar a importância desse conceito para nossa pesquisa. De fato, a diferença de extensão que pode ser constatada entre o que Aristóteles e o que Sócrates entendem por ato voluntário é tal, que nós poderíamos nos perguntar se eles estão falando da mesma coisa, isto é, se Aristóteles está de fato afirmando, quando diz que a akrasia é um ato voluntário, a mesma coisa que Sócrates estava negando. Essa, no entanto, é uma pergunta que só poderemos abordar em nossa conclusão.

4 A República 4.1 Os fundamentos da interpretação tradicional No início do livro II, a discussão sobre a justiça ganha uma nova direção, bem diferente do rumo que a conversa tinha tomado durante o diálogo entre Sócrates e Trasímaco que ocupa a maior parte do livro I. Gláucon, se mostrando insatisfeito com o que foi dito por Sócrates até então, pede ao filósofo que comece um novo argumento para provar que ser justo é sempre, sem exceção, melhor do que ser injusto. Platão gasta algumas páginas do diálogo com a formulação da

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pergunta que Gláucon, com a ajuda de Adimanto, constrói. Segundo Gláucon, dizer que o valor da justiça consiste no seu ser benéfico – como faz Sócrates – é o mesmo que afirmar que nós a valorizamos pelas consequências que ela acarreta. Ora, mas se são as consequências que nós estamos medindo quando escolhemos entre a justiça e a injustiça, então nós daremos preferência à injustiça caso ela nos ofereça consequências melhores. Segundo Gláucon, no entanto, é forçoso admitir não só que muitas vezes a injustiça acarreta consequências mais atraentes do que a justiça, mas também que toda vez que nós agimos de acordo com a justiça estamos abrindo mão de alguma vantagem possível. Gláucon, então, inverte o paradoxo socrático e afirma que nós agimos involuntariamente sempre que agimos de forma justa, e não de forma injusta, que se um homem puder escapar da punição ele agirá de forma injusta, e que a melhor vida não é a vida do homem que é de fato justo, mas sim a vida do homem que consegue parecer justo sendo injusto. Tal homem, é claro, seria o único que conseguiria desfrutar das boas consequências da justiça e da injustiça. Todo argumento de Gláucon é feito com o objetivo de ressaltar a fraqueza fundamental do segundo paradoxo socrático, a saber, que a menos que Sócrates possa mostrar por que a justiça é em si mesma mais desejável do que a injustiça, isto é, mais benéfica, ele terá que admitir que a vida do homem que consegue parecer justo sendo injusto é melhor, porque mais feliz, do que a vida do homem justo. A resposta de Sócrates inclui, dentre outras coisas, uma descrição da alma humana e uma concepção da justiça como harmonia psíquica que pretende mostrar que a justiça é necessária para a felicidade. Além disso, é um pressuposto

120 da dita concepção que as ações virtuosas contribuem para a harmonia psíquica e as ações viciosas a prejudicam, de modo que toda forma de vício – e não somente a injustiça – é maléfica e, portanto, involuntária. A resposta se estende até o final do livro IV, e nós não poderemos tratar aqui de todos os seus passos. O presente capítulo será dedicado principalmente à concepção da alma humana exposta ao longo do livro IV e aos tipos de alma injusta discutidos nos livros VIII e IX. Com efeito, a parte principal da tese daqueles que defendem que Platão admite a akrasia na República pode ser dividida em dois argumentos. O primeiro argumento afirma que com a tripartição da alma, inovação própria deste diálogo, Platão admite claramente a possibilidade de que a parte apetitiva e irracional da alma, chamada de epithymetikon, derrote a parte racional da alma, o

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logistikon, e que tal possibilidade, por sua vez, permite uma nova descrição do fenômeno da akrasia, descrição esta que teria sido desejada e aproveitada por Platão para se distanciar da descrição socrática do fenômeno. Esta última, é claro, seria a descrição que encontramos no Protágoras. O segundo argumento sustenta que se nos diálogos socráticos o conhecimento era suficiente para garantir a virtude, a partir da República Platão reconheceria que além de um lado intelectual plenamente desenvolvido, o homem virtuoso deve também possuir o controle e a mestria de seus próprios desejos, isto é, a enkrateia. Sendo assim, antes de discutirmos a relevância da pergunta sobre a justiça tal como ela é formulada no segundo livro, creio ser importante compreendermos melhor estes dois argumentos e suas bases filosóficas. Uma defesa particularmente minuciosa do primeiro argumento pode ser encontrada no livro Plato’s Ethics, de Terence Irwin (IRWIN, 1995, P. 208-211). Segundo o autor, com a possibilidade da vitória do epithymetikon sobre o logistikon Platão cria uma explicação nova para a akrasia, se distanciando, de certa forma, da negação socrática que encontramos no Protágoras. Embora o Platão da República concorde com o Sócrates dos primeiros diálogos ao reconhecer a existência de um desejo pelo bem que se baseia na crença racional de que, por exemplo, abster-se de beber é, considerando todas as coisas, melhor do que beber em um dado momento, ele teria argumentado que a nossa capacidade para estes desejos racionais não pode explicar a permanência de nosso desejo de beber mesmo nos casos em que seria melhor não beber. Disso seguir-se-ia que a nossa capacidade de desejar coisas boas não pode explicar nem

121 todos os nossos desejos e nem todas as nossas escolhas. Sendo assim, nos diz o autor, Platão acaba negando a alegação socrática de que todas as nossas ações voluntárias devem ser explicadas a partir do nosso desejo pelo bem, isto é, de nossa crença de que a ação que escolhemos é a melhor das opções disponíveis. Como fica claro, mas creio ser importante notar, a interpretação de Irwin assume implicitamente que a tripartição da alma que encontramos na República abre a possibilidade de uma passagem direta entre o desejo e a ação. Tal passagem torna-se possível porque para Irwin o epithymetikon, além de ser uma fonte independente de motivação, ou talvez justamente por isso, é também fonte de possíveis fins auto-explicativos para a ação humana. Segundo o autor, se Sócrates assumia que as ações de um agente só são ininteligíveis a partir do desejo do

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agente pela felicidade, pois só a felicidade é um fim que não necessita de nenhum outro fim para explicar a nossa busca por ele, ‘um crítico simpático’, nos diz o autor, pode achar que tal hipótese é um exagero, e que a afirmação plausível de fato é que a ação completamente inútil e descoordenada não poderia jamais ser interpretada como uma ação intencional. Desnecessário dizer que, para Irwin, este crítico simpático não é outro que o próprio Platão. Segundo Irwin, a ação baseada no apetite exibe algum grau de sistematicidade e coordenação em sua ligação com a natureza geral do agente e com suas necessidades, sem depender para isso de nenhuma concepção do bem formada por ele. Sendo assim, para Platão a felicidade não seria mais o único fim auto-explicativo, na medida em que na República o filósofo reconheceria que os objetos do apetite também o são. Para Irwin, uma vez que nossos apetites explicam algumas de nossas ações da mesma forma como explicam as ações dos animais não-racionais, devemos admitir que muitas vezes nós agimos tendo por objetivo simplesmente saciar tais apetites. O segundo argumento, por sua vez, é defendido de forma clara e sucinta por Dorion em seu artigo intitulado Plato and Enkrateia (DORION, 2007, P. 119138). Todo o argumento deste autor se fundamenta na ressignificação positiva da expressão ‘mestre de si mesmo’, que encontramos na República. Com efeito, como lembra Dorion, em alguns dos chamados diálogos socráticos tal expressão é classificada como ridícula e contraditória30. Nestes diálogos, imperaria ainda uma

30

Cf, Cármides 168b–c; Fédon 68c.

122 perspectiva intelectualista. Perspectiva essa que estaria resumida justamente no argumento do Protágoras que vimos em nosso primeiro capítulo, no qual Sócrates termina afirmando que a enkrateia não é outra coisa que o conhecimento. Segundo Dorion, no entanto, a partir da República a palavra enkrateia ganha o significado de ‘ser continente e mestre de seus desejos’, e tal característica se torna imediatamente um requisito fundamental da sophrosyne, isto é, da temperança, uma das virtudes cardinais. Assim, defende Dorion, se nos diálogos socráticos o conhecimento era suficiente para garantir a virtude, a partir da República Platão reconheceria que além de um lado intelectual plenamente desenvolvido, o homem virtuoso deve também possuir o controle e a mestria de seus próprios desejos, e que tal qualidade é a enkrateia. Segundo o autor, tais

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inovações apontam diretamente para a admissão do fenômeno que havia sido negado no Protágoras. Segundo Dorion, portanto, por um lado, ao admitir a possibilidade da akrasia devemos necessariamente reconhecer que o conhecimento não é uma condição suficiente para o comportamento virtuoso, e, por outro, ao sustentar que o conhecimento é uma condição necessária e suficiente para o comportamento virtuoso estamos descartando tanto a akrasia quanto a enkrateia (DORION, 2007, P. 125-126). Nas páginas que se seguem, criticarei os fundamentos dos argumentos expostos acima e tentarei fundamentar uma opção hermenêutica unitarista. De início, no entanto, creio ser importante notar que não pretendo de forma nenhuma negar tudo o que se encontra afirmado nos parágrafos anteriores. Que a análise da tripartição da alma e o desdobramento de suas consequência sejam a matéria própria da República me parece fora de dúvida, assim como que seja possível ao epithymetikon subjugar o logistikon dentro da alma humana. No entanto, me parece importante reconhecer que a simples derrota do logistikon pelo epithymetikon não pode servir como prova da existência da incontinência tal como analisada por Sócrates no Protágoras. Como vimos, o que Sócrates nega no Protágoras é que seja possível ao indivíduo agir contra o conhecimento. Ora, o logistikon, a parte racional da alma, é algo que todos os homens possuem, ainda que em maior ou menor grau de desenvolvimento. O conhecimento, por outro lado, é algo que, segundo Platão, é possuído por pouquíssimos homens. Seria absurdo, portanto, afirmar que sempre

123 que um homem age contra a sua parte racional ele está agindo contra o conhecimento. Sendo assim, a primeira pergunta que nós temos que nos fazer é se Platão reconhece na República a possibilidade de que o epithymetikon saia vitorioso na luta contra o logistikon mesmo quando o conhecimento se encontra presente neste último. Nesse sentido, parece digno de nota que quando Sócrates afirma, em 589a, que a condição da alma do homem injusto é tal que ele pode ser arrastado de um lado para o outro pelo epithymetikon ou pelo thymoeides, quem é arrastado é o homem, e não o conhecimento. No que diz respeito à enkrateia, é sem dúvida notável que tal palavra apareça com o significado particular que lhe é dado na República. Igualmente importante são, no entanto, tanto o fato de que tal ressignificação já foi antecipada

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no Górgias, onde ambos os paradoxos e o novo significado da palavra enkrateia são advogados por Sócrates31, quanto o lugar secundário que lhe é atribuído na República, onde ela não figura jamais na lista das virtudes, aparecendo somente como condição necessária da sophrosyne (temperança). Sendo assim, podemos afirmar que, segundo Platão, todos os temperantes são continentes, mas nem todos os continentes são temperantes. O que nos importa saber, no entanto, é qual a relação entre o conhecimento e a enkrateia. Mais precisamente, devemos nos perguntar se, para Platão, o conhecimento ainda é suficiente para a enkrateia. Como veremos, é esta a tese que deve ser derrubada para que se possa abrir de fato lugar para o reconhecimento da incontinência tal como ela foi analisada no Protágoras. Pois, do contrário, não podemos afirmar que a akrasia pode ocorrer ao indivíduo que possui o conhecimento. O melhor, portanto, será começar pela exposição de nossa compreensão da tripartição da alma proposta por Sócrates, isto é, da natureza de suas três partes e da maneira como estas partes se relacionam. Ao longo do percurso, analisaremos ainda vários outros argumentos, levantados por diferentes autores, que favoreceriam a interpretação que Irwin e Dorion buscam fundamentar. Tendo feito isso, poderemos então avaliar melhor a interpretação tradicional do problema da akrasia no livro IV da República.

31

cf. P. 99.

124 4.2 A tripartição da alma e o conflito psíquico no livro IV da República A tripartição da alma proposta por Sócrates no livro IV da República aparece como resposta a uma pergunta precisa, feita pelo próprio filósofo. O trecho em que tal pergunta é colocada pode ser lido da seguinte maneira: O difícil será sabermos se fazemos tudo apenas por meio de um princípio ou se cada um deles tem função diferente, a saber: se aprendemos com um, encolerizamo-nos com outro e procuramos satisfazer nossos desejos por meio de um terceiro, o da alimentação, da procriação e outros da mesma natureza, ou se será com toda a alma que realizamos cada um desses atos, quando nos dispomos a isso? Eis o que se me afigura difícil decidir por maneira satisfatória (436a-b).

Nas linhas que se seguem, Sócrates procura responder a esta pergunta

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estabelecendo que o mesmo sujeito, ou coisa, não pode fazer e sofrer ao mesmo tempo movimentos contrários na mesma parte de si mesmo e com relação ao mesmo objeto, e que, portanto, onde quer que isso seja constatado, deve-se concluir que não se trata de um só princípio. Em seguida, Sócrates afirma que a confirmação e a recusa, o desejo e a aversão, a atração e a repulsão e todas as coisas do mesmo gênero são opostas entre si, quer sejam ativas ou passivas. Para o filósofo, a alma de quem deseja tende para o objeto desejado, sendo por ele atraída e visando atraí-lo para si. Ao querer que lhe seja trazida alguma coisa, a alma faz para si mesma um sinal afirmativo – como se fosse interrogada a este respeito – pela ânsia de ver realizado seu desejo. De um lado, portanto, o filósofo coloca o desejo, a atração e a confirmação, e do outro o não querer, o repelir e o recusar. O argumento de Sócrates terminará propondo o seguinte: a alma de quem está com sede (ou fome), enquanto tem sede, não deseja outra coisa senão beber – é isso que ela almeja e é para isso que ela tende. Assim, no caso de alguma coisa puxar para outra direção a alma de quem tem sede, esta alguma coisa terá que ser diferente do princípio que nela tem sede, pois o mesmo princípio não pode produzir ao mesmo tempo e na mesma coisa, a alma, efeitos contrários (439b). Ora, mas é certo que, às vezes, mesmo tendo sede nós podemos nos recusar a beber, assim como, tendo fome, a comer. Nestes casos, diz Sócrates, é forçoso admitir a presença de dois princípios que atuam de forma contrária: o epithymetikon e o logistikon. A respeito do segundo princípio, Platão nos diz, de início, apenas que ele é o princípio racional da alma, isto é, aquele através do qual

125 o homem raciocina. O primeiro, segundo o filósofo, é aquele que ama, tem fome ou sede, ‘e que é arrastado por todas as paixões’ (439d). Tal princípio é qualificado de irracional, alogon. Mais adiante, Platão reconhecerá ainda um terceiro princípio na alma humana, o thymoeides, capaz de se opor tanto ao logistikon quanto ao epithymetikon. Como ressalta Roslyn Weiss, muitos intérpretes afirmam que é possível identificar no quarto livro da República o lugar preciso em que Platão se afasta do Sócrates histórico, aquele que nós veríamos nos diálogos de juventude, no que diz respeito à psicologia da escolha, isto é, a respeito de como uma pessoa escolhe entre as várias alternativas que lhe são possíveis. Enquanto nos primeiros diálogos Sócrates acredita que, em última análise, um homem não pode escolher senão de

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acordo com seu julgamento racional sobre o que é melhor, com a introdução da alma tripartida Platão refutaria tal tese. Para esses autores, de acordo com a nova concepção da escolha humana delineada na República, seria de fato possível alguém acreditar que a alternativa x é melhor para ele do que a alternativa y, mas ainda assim escolher y porque o seu desejo por comida, bebida, ou sexo – ou mesmo o desejo de prestígio e poder, instanciado no thymoeides – é mais forte que a sua razão (WEISS, 2007, P. 87-100). Para tais intérpretes, essa mudança fica clara em 438a. Logo após afirmar que cada desejo em si mesmo só se dirige para o seu objeto natural, Sócrates alerta Gláucon para que ele não dê atenção à possível objeção de um interlocutor hipotético. A passagem em questão pode ser lida da seguinte maneira: Não nos deixemos confundir, continuei, se alguém nos objetar que a ninguém apetece apenas a bebida, mas uma boa bebida, nem tão somente comida, porém, boa comida, pois todo o mundo só deseja o que é bom. [e que] Sendo a sede um desejo, terá de ser desejo do que é bom, pouco importando o objeto do desejo, bebida ou outro qualquer, valendo o mesmo para os demais desejos (438a).

De acordo com a interpretação tradicional, Sócrates refere-se aqui a uma versão anterior de si mesmo, isto é, ao Sócrates dos diálogos de juventude. Ao contrário do que vemos nesses diálogos, Sócrates estaria afirmando agora que quando estão com sede as pessoas desejam simplesmente beber, e não beber algo bom, e negando que todos desejam coisas boas. Como já sublinharam certos especialistas, no entanto, algumas considerações depõem contra tal interpretação. Em primeiro lugar, Platão não dedica nenhum esforço à refutação dos chamados paradoxos socráticos. Em segundo lugar, há, de fato, indicações

126 textuais bastante fortes de que Sócrates não vê incompatibilidade entre a proposição que afirma que todos desejam coisas boas e a proposição que afirma que a sede é simplesmente de bebida e não especificamente de uma boa bebida. Uma delas foi apontada por Weiss. Como nos diz a autora, se analisarmos as proposições (1) Todo mundo deseja coisas boas, (2) A sede é uma forma de desejo, daí (3) A sede é de boa bebida (e não simplesmente de bebida), tal como elas aparecem no diálogo platônico, percebemos que Sócrates pode muito bem estar questionando não a proposição (1), mas sim a validade da conclusão que afirma que se todos desejam coisas boas, e a sede e a fome são desejos, então a sede é de boa bebida e fome de boa comida, isto é, de um objeto cuja utilidade e benefício foram estabelecidos previamente pelo sujeito. Como vimos em nossa

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análise do Górgias, Sócrates não tem nenhum problema em aceitar o fato de que os homens tenham desejos cuja satisfação lhes pode ser prejudicial. O que ele nega é que tais homens busquem a satisfação de tais desejos sabendo que eles lhes serão prejudiciais (WEISS, 2007, P. 89). O ponto de Weiss, creio, é o mesmo que já foi defendido também por Kahn em Plato and the socratic dialogue. Como mostra o autor, a tese sustentada nos primeiros diálogos platônicos, que todos desejam o bem, é perfeitamente compatível com a existência de desejos no homem que não tenham por objeto algo previamente determinado como bom, pois a conclusão de que ninguém deseja coisas ruins, isto é, coisas que sabe serem maléficas, não implica e nem pressupõe que todos os desejos humanos visem algo bom enquanto bom, isto é, que todos os desejos humanos são causados por num juízo de valor. Que todos desejem o bem, em suma, não significa que eles não desejem nada além disso (KAHN, 1996, P. 245). Mas se Sócrates não tem a intenção de corrigir a si mesmo, porque ele introduz o objetor fictício na discussão? Weiss nos mostra algumas razões que podem estar guiando o procedimento do filósofo. Aqui, citarei apenas duas. Em primeiro lugar, não falta quem acredite, como o Cálicles do Górgias, que a comida, a bebida, o sexo e as coisas afins são as coisas boas da vida. A objeção socrática é útil exatamente porque ela ressalta que o simples fato de que a comida seja desejada pelo homem faminto não quer dizer que comer um determinado alimento lhe será benéfico. Além disso, ela é também pertinente tendo em vista a

127 aceitação concedida pelo próprio Gláucon, ou seja, pelo interlocutor direto de Sócrates no diálogo, ao raciocínio que o filósofo quer descartar (438a6). Sendo assim, creio ser mais prudente afirmar que para o Sócrates da República permanece sendo verdadeiro que todos os homens desejam o bem, embora ele reconheça que nem só aquilo que é previamente determinado como sendo bom é objeto de desejo. Com efeito, os desejos que emanam do epithymetikon são irracionais, alogiston, exatamente por não levarem em consideração se o objeto de seu desejo é benéfico ou não, isto é, por serem indiferentes ao juízo de valor. E, no entanto, vale ressaltar que não há nada que diga que o logistikon irá se opor a todo e qualquer desejo que emana do epithymetikon. Ao contrário, devemos reconhecer não só que, de início e na maior

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parte das vezes, será benéfico ao homem faminto saciar a sua fome, como também que desejos como a fome e a sede possam até ser frustrados com o intuito de preservar a saúde de alguém, mas que tal fim não pode jamais justificar que elas sejam frustradas para sempre, uma vez que isso resultaria na morte do indivíduo. Com efeito, vale ressaltar que nos livros VIII (558e-559a) e IX (571a572b) Sócrates enriquece sua descrição do epithimetikon. Segundo o filósofo, é pertinente distinguirmos três tipos de apetites. Em primeiro lugar, existem os necessários, que são aqueles que não podemos suprimir e aqueles cuja satisfação nos é benéfica. O exemplo de Sócrates é o apetite de comer o simples pão, e, em geral, de comer para permanecer saudável. Em segundo lugar, os desnecessários, que são aqueles dos quais podemos nos livrar através da disciplina, provida pela boa educação desde cedo, e cuja presença ou não faz nenhum bem para a alma ou mesmo a prejudica. Em terceiro lugar, durante a discussão da tirania no início do livro IX, o filósofo nos dirá que nós todos possuímos desejos sem lei (571b, paranomoi). Trata-se dos desejos que são, em alguns casos, despertados em nosso sono, quando estamos libertos de nossa razão e de qualquer sentimento de vergonha, isto é, de qualquer interferência por parte do logistikon e do thymoeides. Como podemos ver, segundo Sócrates nem todos os apetites do epithymetikon são contrários ao bem. No que diz respeito ao Protágoras, no entanto, nem mesmo os argumentos considerados por Weiss são suficientes para convencer a autora de que é possível reconciliar o que é dito lá com a psicologia delineada na República. Isto porque, segundo Weiss, no Protágoras – e somente no Protágoras – Sócrates afirma que

128 ‘ninguém pode escolher uma opção que não seja aquela que acredita ser a melhor possível’. Segundo a autora, ao contrário do que vimos no Protágoras, na República, no Mênon e no Górgias, Platão admite que a akrasia é um fenômeno corriqueiro (WEISS, 2007, P. 99-100). Nada do que nós vimos naqueles diálogos, no entanto, nos autoriza a afirmar tal conclusão. Não obstante, a pergunta trazida por Weiss é sem dúvida importante: de acordo com a psicologia delineada pela República, é possível que alguém escolha uma opção que não seja aquela que acredita ser a melhor disponível? Como vimos anteriormente, é exatamente isso que Irwin sugere em sua interpretação. Tal leitura, no entanto, pressupõe uma relação entre o desejo e a ação que, creio, não reflete adequadamente o texto platônico. Como disse anteriormente, a interpretação de Irwin assume implicitamente

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que a tripartição da alma que encontramos na República abre a possibilidade de uma passagem direta do desejo para a ação. Isso porque, segundo Irwin, uma vez que nossos apetites explicam algumas de nossas ações da mesma forma como explicam as ações dos animais não-racionais, devemos reconhecer que eles podem constituir-se por si mesmos em um fim para as nossas ações. Em suma, para o autor da República não seria verdade que o bem é aquilo que temos em vista quando fazemos tudo o que fazemos, na medida em que também podemos agir tendo por objetivo os objetos de satisfação de nossos desejos não-racionais. Não é difícil ver como uma determinada leitura de 436a-b poderia fundamentar tal interpretação. De início, o filósofo parece responder negativamente à pergunta acerca da existência de um princípio único para nossas ações dado que, por fim, é constatada a presença de três princípios motivacionais distintos na alma humana. Sendo assim, poder-se-ia pensar legítima a afirmação de que as três partes da alma podem ser também três princípios independentes capazes de fornecer um fim auto-explicativo para a ação humana. Na medida em que são fontes de motivação, elas seriam também “princípios motores”, isto é, instâncias capazes de estabelecer fins práticos a serem alcançados pelo próprio sujeito. No entanto, a resposta de Sócrates não parece autorizar tal raciocínio. Com efeito, se num primeiro momento o filósofo pergunta se nós aprendemos com uma parte da alma, encolerizamo-nos com outra e procuramos satisfazer nossos desejos por meio de uma terceira, ou se será com toda a alma que realizamos cada um desses atos, quando nos dispomos a isso, já em 437b os pares de opostos com os quais o filósofo está trabalhando são a confirmação e a recusa, o desejo e a

129 aversão, a atração e a repulsão e todas as coisas do mesmo gênero. O que Sócrates quer ressaltar, sem dúvida alguma, é que quando um determinado desejo surge na alma, junto com ele surgem a afirmação de seu objeto como desejado e a atração por este objeto. Mas nem por isso o sujeito necessariamente persegue o objeto, isto é, nem por isso o sujeito necessariamente age de acordo com tal desejo. Além disso, já no início do livro V o filósofo afirma “o bem é isso que toda alma persegue e que tem em vista quando faz tudo o que faz” (505e2). Ora, se isso é realmente verdade, então é forçoso reconhecer não somente que é a alma inteira que age, e não somente uma de suas partes, mas também que toda ação empreendida pela alma tem em vista o bem. Além disso, parece ser digno de nota que quando Sócrates afirma que é

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perfeitamente possível que o homem sedento ou faminto opte por não saciar seu desejo, Gláucon não só admita tal afirmação, mas acrescente que isto é verdade de muitos homens e que acontece frequentemente (439c). Ora, segundo a descrição que nos foi fornecida, estes seriam casos nos quais apesar de as afecções do epithymetikon exercerem sua força, puxando o indivíduo na direção da satisfação destes desejos, a razão, através do cálculo, inibe a ação. Apesar de sua pouca fé no estado de espírito da maioria dos homens, portanto, o fenômeno que é tomado como corriqueiro no livro IV da República não é a vitória do eputhymetikon sobre o logistikon, mas justamente o oposto. Tais argumentos, é claro, ainda serão insuficientes para convencer os defensores da interpretação tradicional. De fato, Sócrates não diz em nenhum momento que é impossível que o homem beba a água caso o logistikon se oponha a tal ação. E ele deixa claro mais a frente que é possível que o epithymetikon subjugue o logistikon, tornando-se a parte diretriz da alma humana. Sendo assim, será necessário que esclareçamos melhor o porquê de nossa descrença diante da interpretação tradicional antes que possamos continuar nossa exegese do texto platônico. 4.3 A hipótese determinista Tomemos mais uma vez o exemplo do homem que tem sede e se recusa a beber. Seguindo o filósofo, devemos dizer que a oposição do logistikon à satisfação do desejo é fundamentada por suas considerações a respeito do bem, isto é, do que é

130 benéfico. Devemos reconhecer, portanto, que o exemplo de Platão nos mostra um homem que apesar de ter sede opta por não beber acreditando que é melhor não beber. Mais precisamente, devemos dizer que ele não bebe porque acredita que é melhor não beber, dado que mais nada nos é dito no exemplo. Como podemos ver, é forçoso reconhecer não somente que não estamos absolutamente diante de um exemplo de akrasia, mas também que, no exemplo dado, não há nada que justifique a vitória do logistikon a não ser a crença do indivíduo de que era melhor não beber. Além disso, como tal fenômeno é tido como corriqueiro, creio ser possível afirmar que o filósofo não está nos dando como exemplo, ou pelo menos não explicitamente, um homem virtuoso e bem educado. Sendo assim, a pergunta que devemos nos fazer é: segundo Platão, é

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possível que um homem em tal situação beba a água ao invés de abster-se? Imaginemos um homem sedento diante de um copo de água que ele sabe estar envenenada, e que o mataria instantaneamente. Será mesmo razoável pensar que exista um homem que estaria disposto a morrer para matar sua sede? Poder-se-ia protestar que o exemplo dado é extremo e injusto, mas embora o primeiro adjetivo se aplique bem a ele, o segundo não se aplica. Com efeito, basta que suavizemos um pouco o exemplo, ou que lhe detalhemos um pouco mais o contexto, para que se torne razoável que um homem beba a água. Nós podemos pensar, por exemplo, que um homem sedento beba um copo de água contendo o vírus de uma doença gravíssima. Neste caso, não é de todo impossível que o agente tenha considerado que saciar aquele apetite valia arriscar os males implicados. O agente poderia, por exemplo, temer morrer de sede ainda antes que pudesse sentir qualquer efeito da doença. Ele poderia também ter pensado que, por pior que fossem os males da doença, ele preferia lidar com eles depois e evitar a dor que a sede lhe impunha – colocando seus interesses imediatos acima de qualquer consequência futura. Ele poderia ainda acreditar que seu corpo seria forte o suficiente para resistir bem à doença ou que, por algum motivo, ele não fosse sequer ficar doente. Ou ele poderia até mesmo desejar a morte como o fim de suas penas. Nenhuma dessas considerações, no entanto, invalida o ponto central de nosso exemplo. Quanto mais extrema e periclitante for a situação do sujeito, e quanto mais brandas ou incertas as consequências maléficas da bebida, mais razoável será que ele beba.

131 Para que ele fosse incontinente, no entanto, seria necessário que o homem bebesse a água embora não temesse tanto assim morrer de sede, ou não estivesse tão sedento a ponto de achar que valia a pena arriscar os males da doença. Mas, então, porque ele bebeu a água quando podia não tê-la bebido? Nos encontramos, assim, diante de um impasse muito parecido com aquele que vimos no Protágoras: se o homem sabe que a ação de saciar o apetite implica em males maiores do que o benefício que trará, a opção por tal ação nos parece inexplicável. Por outro lado, de acordo com nosso argumento se torna cada vez mais plausível que o agente beba água quanto mais plausível for que ele assim prefira. Isto é, ele será tanto mais propenso a saciar seu apetite quanto mais inclinado ele estiver a acreditar que saciá-lo é o melhor a fazer – mesmo que esse não seja o caso.

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Aos defensores da interpretação tradicional, no entanto, ainda resta uma última saída. Com efeito, é possível dizer que o argumento aqui desenvolvido não faz senão importar para a psicologia da República o esboço da teoria racional da escolha desenvolvida por Sócrates no Protágoras, e que é justamente a legitimidade de tal procedimento que está em questão. Com efeito, poder-se-ia dizer que o traço que caracteriza o argumento desenvolvido no Protágoras é o fato de pressupor um agente unificado em torno de seu desejo racional, e que é esta pressuposição que Platão afasta na República. Neste último diálogo, o homem não seria mais pensado como um agente simples, mas como um todo complexo no qual residem três instâncias motivacionais que possuem, todas, as características mínimas de um agente, e que lutariam entre si pelo controle da alma32. Segundo tal concepção, cada parte da alma cuidaria de seus próprios interesses enquanto não fosse subjugada por outra. Com efeito, alguns trechos da República parecem corroborar a hipótese destes especialistas: segundo o Sócrates da República, cada parte da alma tem prazeres e desejos que lhe são peculiares (580d3-587e4), assim como suas próprias necessidades e desejos (437b1-c10, 439a1-d2). Além disso, cada parte parece conversar com a outra, bajulando e mesmo persuadindo as outras da superioridade de seu ponto de vista (442b5-d1, 554c11-e5, 589a6-B6), e cada parte parece poder raciocinar, ou pelo menos envolver-se em atividades cognitivas rudimentares (442b5-d1, 574d12-575a7).

32

Cf. p. ex. (BOBONICH, 1994, P. 4).

132 Além dos trechos acima citados, poder-se-ia também lembrar o vocabulário bélico utilizado por Sócrates para falar sobre a alma. Com efeito, em determinado momento Sócrates chega a afirmar que o logistikon e o thymoeides são os ‘defensores’ em uma batalha travada no interior da alma, sendo o primeiro o responsável pela estratégia e o segundo pela função militar (442b). Um pouco antes, em 430e-431a, o filósofo havia explicado as dificuldades da expressão ‘mestre de si mesmo’, chegando à conclusão de que o único sentido que ela poderia ter seria o domínio da melhor parte da alma sobre a pior. Sendo assim, não é surpreendente que tantos intérpretes tenham considerado as partes da alma não apenas como fontes autônomas de motivação, mas também como quase-agentes. Segundo essa interpretação, é claro, a ação do indivíduo tal como ela é

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concebida na República não seria, de início, fruto do desejo do indivíduo pelo bem. Tal só seria o caso quando o logistikon sai vitorioso do embate com as outras duas forças presentes no interior da alma. O que devemos admitir, se seguirmos essa interpretação, é que a ação de um indivíduo é fruto do resultado do embate entre as três forças motivacionais que existem dentro dele, e que a akrasia seria um dos resultados possíveis desse embate. Não é difícil imaginar como tal interpretação poderia explicar a akrasia: o fenômeno em questão seria um caso onde o epithymetikon sairia vitorioso sobre o logistikon, impondo ao homem a ação que é de seu maior interesse. Como nos mostra Shields, no entanto, essa interpretação não só não faz jus ao texto platônico como também nos traz, por si mesma, dificuldades filosóficas consideráveis no que diz respeito à explicação da akrasia e da dinâmica motivacional do indivíduo (SHIELDS, 2007, P. 77-86). Em primeiro lugar, Shields propõe que consideremos dois polos opostos: num extremo está a discórdia de grupo e no outro o agente racional unificado em torno de seu desejo pelo bem. Como ressalta Shields, se partimos da observação de grupos, não temos dificuldade alguma em compreender o fenômeno da discórdia interna. Como os grupos são agregados de agentes discretos e individuais, quando tentamos explicar o comportamento de um grupo assumimos que cada indivíduo chega ao momento da decisão com uma história que lhe é peculiar, possuindo uma vida afetiva própria e um conjunto distinto de opiniões. Colocada nesses termos, a discórdia de grupo é fácil de entender porque cada membro do grupo é um agente distinto e auto-suficiente. O grupo em si, no

133 entanto, não é um agente, e é por isso que os grupos não são normalmente considerados incontinentes. Ora, mas se nós estivermos de acordo com a interpretação tradicional, o que devemos fazer é considerar a alma como um certo grupo de agentes. Daí que, para Shields, a estratégia adotada seja equivocada no que diz respeito à explicação da akrasia, pois ela busca explicar um fenômeno que diz respeito ao indivíduo isolado, e não a nenhum grupo, pressupondo existir dentro do indivíduo uma estrutura análoga à de um grupo. A colocação de Shields se torna mais compreensível se nos fizermos a seguinte pergunta: em que sentido pode ser dito que os interesses do epithymetikon e do logistikon divergem? Mais precisamente, em que sentido podemos dizer, se é que podemos dizer, que o que é melhor para o epithymetikon

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difere daquilo que é melhor para o logistikon? Ora, segundo Sócrates, o logistikon é a parte da alma que se preocupa com toda a alma, isto é, com aquilo que é bom para o todo e para cada uma de suas partes (441e3-5, 442c4-7). Para Sócrates, portanto, o domínio do logistikon é melhor para a alma toda33, de modo que é do interesse de cada parte ser governada por ele. Sendo no logistikon que reside o desejo do homem pelo bem, é forçoso reconhecer que ele ocupa um lugar especial na divisão da alma tripartida na medida em que seu interesse coincide com o interesse do próprio homem. Daí que ele tenha o papel dominante na unidade anímica que chamamos virtude. Dizer que os interesses do epithymetikon divergem dos interesses do logistikon, portanto, é dizer que eles divergem dos interesses do próprio homem. Ora, mas se é este o caso, então é difícil compreender como alguém poderia escolher satisfazer o epithymetikon em detrimento do logistikon. Afinal, o homem deveria, ao contrário, preferir satisfazer o seu logistikon a seu epithymetikon se ele tem em vista alcançar a satisfação de seu próprio desejo. Para que esse quadro faça sentido, devemos ou bem admitir que este homem não conheça nem a natureza de sua própria alma e nem o que é melhor para si, ou bem retirar a figura do homem e dizer simplesmente que o epithymetikon derrotou o logistikon num ‘combate direto’ que determinou a ação 33

Como vimos anteriormente, o que nos foi dito no Górgias e no Protágoras já nos permitia afirmar que para Sócrates o indivíduo que era comandado pela alma era aquele que se orientava de acordo com seu desejo pelo bem, e não de acordo com o que lhe parecia mais prazeroso no momento, e que tal comando era possível justamente através da metretiké (cf. P. 80). Nesse sentido, a única inovação da República consiste em mostrar que é o logistikon a parte da alma responsável por tal comando.

134 realizada pelo indivíduo. Esta interpretação, no entanto, reduz a zero o papel do agente propriamente dito na escolha da ação. Trata-se, para resumir, de uma concepção absolutamente determinista das ações humanas, segundo a qual os atos dos homens seriam o simples resultado da relação de força existente entre suas diferentes fontes de motivação num dado momento do tempo. Em segundo lugar, Shields mostra que embora às vezes Sócrates fale das partes da alma como se fossem agentes, tal caracterização não é absolutamente uniforme durante a República. Embora seja verdade que Sócrates nos diz que há prazeres, assim como desejos e formas de governo (580d7-8), que são peculiares a cada uma das partes da alma, quando é solicitado a explicar sua afirmação ele imediatamente volta a falar do homem (anthropos) como agente de suas ações e

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sujeito de seus sentimentos. Falando das partes da alma, Sócrates sugere que o logistikon é aquilo através do qual uma pessoa aprende, e o thymoeides aquilo através do qual ela se encoleriza (580d10-e3-27). Como podemos ver, o filósofo passa longe de afirmar que é o logistikon que aprende e o thymoeides que se encoleriza, e que cada parte da alma existe num isolamento discreto que separa sua experiência da experiência das outras partes. E, no entanto, como nos lembra Shields, é isto que sugere a inferência que passa da afirmação dos prazeres peculiares para a existência de três agentes distintos. Para que tal seja verdadeiro, seria necessário que os prazeres do epithymetikon, por exemplo, fossem experimentados só por ele, de modo a estabelecer limites precisos entre a gratificação experimentada por cada uma das três partes da alma com a satisfação de seus desejos específicos. Em terceiro lugar, Platão não se utiliza da alma tripartida na República para explicar a akrasia, mas para sustentar uma determinada avaliação da vida do homem justo e do homem injusto. Como assinala Shields, é importante compreender que para Platão uma alma unida é uma alma melhor, que a harmonia psíquica é preferível à desordem psíquica, até porque só a harmonia psíquica possibilita a felicidade. Sócrates está tentando provar que o homem injusto é mais infeliz que o homem justo porque lhe falta justamente isso. Segundo o filósofo, a razão de sua infelicidade não é que ele seja, de alguma forma, muitos homens, mas que ele não seja o homem que ele realmente preferia ser. Creio ter dito o suficiente para fundamentar minha discordância com a interpretação tradicional da dinâmica que impera na alma humana tal como ela é

135 descrita na República. Segundo a interpretação defendida aqui, portanto, não devemos aceitar que a tripartição da alma proposta por Platão crie três novos agentes dentro do homem. É a alma do homem que age, e não uma parte isolada da alma. Tal fica claro se tivermos em mente a descrição das almas degeneradas que encontramos nos livros VIII e IX. Com efeito, estes dois livros contém alguns exemplos descritos por Sócrates de almas governadas pelo epithymetikon e pelo thymoeides. Como veremos, nenhuma das almas degeneradas descrita nos livros VIII e IX demonstra um padrão de comportamento incontinente. Uma análise dos tipos de alma descritas por Sócrates nos ajudará a compreender melhor a tripartição da alma proposta pelo filósofo e o porquê de nosso ceticismo diante dos especialistas que afirmam que tal

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tripartição traria uma nova explicação para o fenômeno da akrasia. 4.4 As almas injustas dos livros VIII e IX Como dissemos anteriormente, a pergunta feita por Gláucon no início do livro II demandava que Sócrates provasse que a justiça é mais benéfica do que a injustiça ou aceitasse que o homem que conseguir parecer justo, sendo na verdade injusto, é mais feliz do que o homem justo. Nos livros VIII e IX, Sócrates descreve quatro tipos de constituição degenerada e os tipos de cidadão que lhe correspondem. Os quatro tipos descritos são a timocracia, a oligarquia, a democracia e a tirania. Cada tipo de alma descrita nos interessa aqui porque eles exemplificam diferentes tipos de almas não virtuosas, isto é, de almas governadas pelo thymoeides e pelo epithymetikon. Todos os exemplos descrevem homens que se esforçam em parecer justos, mas que não deixam de aproveitar as oportunidades de transgredir a justiça que lhe são oferecidas para obter alguma vantagem. Segundo Sócrates, a timocracia é o regime movido pelo desejo de honra, e o timocrata é o homem governado pelo thymoeides. Tal governo, importa ressaltar, não é estabelecido pela força. Ao contrário, Sócrates nos diz que tal homem entrega o governo de sua alma para o thymoeides, tornando-se um homem desejoso de honra (550a-c). No regime, assim como no homem, o que predomina é o desejo de vitória (philonikia) e de honra (philotimia). O que é interessante de notar, no entanto, é o lugar que ocupa o desejo pelo dinheiro, característico do

136 epithymetikon, neste tipo de governo. Segundo Sócrates, embora no regime timocrático a classe dos guerreiros deva se abster de ganhar dinheiro, a cobiça de tais homens é mantida sob controle apenas pela força da lei. Com efeito, os timocratas possuem o mesmo desejo de riqueza que caracteriza os oligarcas, mas eles o mantêm em segredo, aproveitando as oportunidades de desfrutar de tais prazeres escondidos e correndo da lei como um menino corre do pai (548b). É fácil ver como a descrição do timocrata recupera a discussão acerca da justiça desenvolvida nos livros anteriores. O timocrata, amante da honra, respeita a lei e os costumes porque o não respeito implica em punição e desonra. Ele mantém os seus apetites em cheque, resistindo ao clamor pela sua satisfação, por medo das consequências que tal satisfação poderia implicar. Se ele puder escapar

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de tais consequências, no entanto, ele se permitirá satisfazer seus apetites sem com isso ferir o princípio motor de suas ações. O que é importante notar é que quando escapa da lei o timocrata não age de forma incontinente. O timocrata não é virtuoso, mas isso não porque ele seja incontinente, mas sim porque sua virtude não é pura e sincera, isto é, ela não é guiada pela razão (lógou), que é a única capaz de preservar a virtude na alma durante toda a vida (549b). Dito de outro modo, o timocrata se comporta de forma justa porque deseja a honra, o que implica tanto no fato de que ele só se comportará desta maneira quando tal comportamento lhe trouxer honras, quanto no fato de que ele só evitará se desviar do comportamento injusto e vergonhoso quando acreditar que tal comportamento implicará em desonra e vergonha. Sendo assim, não podemos concordar com Annas quando a autora afirma que o timocrata demonstra certo tipo de instabilidade interna, sendo incapaz de viver de acordo com seus ideais. Com efeito, para a autora, embora tal homem reconheça as reivindicações da razão e o apelo pela consideração racional do que é bom para todos, ele não é capaz, por conta própria, de viver de acordo com esses ideais, de modo que, se a busca do bem comum não for imposta a tal homem pela lei, ele, por si mesmo, será incapaz de sustentar sua motivação para persegui-la, e vai acabar sucumbindo a seu egoísmo e se comportando em interesse próprio (ANNAS, 1981, P. 297). Tal descrição, é claro, pressupõe que o timocrata possui um desejo sincero de perseguir o bem comum, sem que tal desejo, no entanto, tenha a força necessária para movê-lo sem a ajuda, concomitante, do medo de uma eventual punição. Como podemos ver, não é essa a descrição do timocrata que nos é

137 dada por Platão. Ao contrário, o filósofo nos mostra um indivíduo perfeitamente capaz de se comportar de modo coerente ao longo de toda sua vida. Tal indivíduo se desvia do comportamento honrado, quando se desvia, porque acredita que pode desfrutar dos benefícios de tal comportamento sem incorrer em desonra. A oligarquia, por sua vez, é o regime onde o direito de participação no governo é limitado pela quantidade mínima de propriedade exigida, isto é, onde os ricos participam e os pobres são excluídos (550c). Trata-se de um estado guiado pelo desejo de riqueza, onde a aquisição da mesma é aprovada e estimulada publicamente, isto é, onde os cidadãos honram os ricos e não os virtuosos. Tal cidade, nos diz o filósofo, não é mais una, mas sim dupla – uma cidade dos ricos e uma cidade dos pobres (551d) – e portanto marcada

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necessariamente pela luta interna. Os cidadãos de tal estado, é claro, sempre que podem buscam aumentar seu patrimônio, o que faz com que eles relutem, por exemplo, em contribuir com dinheiro para a cidade (551e). O oligarca, por sua vez, é o homem que colocou no trono de sua alma o amor pela riqueza, isto é, o epithymetikon (553c). Tal homem, em conformidade com tal modo de vida, não procura satisfazer sempre todo e qualquer apetite que tenha, mas apenas aqueles que são necessários. Todos os demais apetites, tomando-os por prejudiciais e frívolos, ele escraviza (douloúmenos), reprimindoos na busca por aumentar seus lucros. Sócrates ressalta que tal repressão, no entanto, não se dá através do uso da razão, isto é, do convencimento de que é melhor não satisfazê-los, mas através do mais puro medo de perder suas posses. Daí que tal homem não hesite em se aproveitar da oportunidade de gastar o dinheiro dos outros para satisfazer seus prazeres desnecessários. Afinal, nos diz Sócrates, o oligarca tem esses desejos. No fim, Sócrates diz que o oligarca não se dispõe a gastar seu dinheiro para adquirir fama e coisas desse tipo, embora não chegue a afirmar que ele é avesso à honra. Além disso, o filósofo afirma que tal homem é, de certa forma, como a cidade, isto é, duplo (554e). Embora não nos diga exatamente de que forma, fica claro que Sócrates pensa que tal homem renega e reprime constantemente desejos que jamais desaparecem de dentro dele, e aos quais ele dá vazão sempre que pode fazê-lo sem sofrer as consequências que ele visa evitar, isto é, a perda de suas riquezas.

138 Já a democracia é o regime caracterizado pela eleutheria, isto é, pela liberdade (557b). Em tal regime, cada um é livre para levar sua própria vida como bem lhe agradar, o que faz com que nele se abriguem cidadãos dos mais diversos tipos e com as mais diversas organizações psíquicas. Nem por isso, no entanto, o filósofo abre mão de nos fornecer uma descrição do sujeito que corresponde a tal regime. Segundo Sócrates, o democrata dá igual importância a seus prazeres necessários e desnecessários, e vive entregando o governo de sua alma à satisfação destes apetites na medida em que eles se formam, buscando sempre saciá-los, como se, a cada vez, um destes apetites tivesse ganho um sorteio (561b). Aos que lhe dizem que alguns são desnecessários, ele replica que eles são todos iguais e devem ser igualmente estimados. Tal homem, nos diz Sócrates, está

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convencido de que a vida que escolheu é a vida do prazer, da liberdade e da felicidade. Os únicos prazeres aos quais ele não dá vazão são os sem lei. O tirano, por fim, é aquele que acredita que é justamente na ausência de lei que reside a mais completa liberdade (572e). Um homem tem uma alma tirânica, segundo Sócrates, quando ela se permite satisfazer acordada até mesmo aqueles prazeres que os demais homens só satisfazem dormindo, isto é, os prazeres sem lei. Tal homem, nos diz o filósofo, se tornou por natureza ou por hábito como os bêbados, os tomados por Eros e os loucos (573c), e não reprime jamais seus apetites. Se utilizando de todos os meios a seu dispor para satisfazê-los, ele não recua diante de nenhuma atrocidade (575a). Sob a tirania de suas paixões, o tirano vive na mais pura anarquia e ausência de lei (anomia). A descrição dos quatro tipos de politeia e de almas injustas não deixou de suscitar controvérsias entre os especialistas. Aqui, nos limitaremos a examinar os aspectos da descrição que são pertinentes à nossa investigação. Com efeito, se há de fato consenso entre os especialistas em reconhecer que a estrutura do argumento platônico nos leva da melhor constituição política e psíquica para a pior, num movimento que nos mostra a decadência dos regimes e das almas, ainda se discute no que exatamente consiste essa decadência. Segundo Julia Annas, por exemplo: Todas as descrições fornecidas por Sócrates são perpassadas pela idéia de que a degeneração consiste numa dissolução de unidade. Assim, no estado timocrata a justiça é incompleta porque os ideais de tal estado não garantem a unidade, que é minada pelo egoísmo dos governantes. O estado oligárquico tem uma unidade frágil porque os ricos e os pobres se identificam mais com os interesses de seu

139 próprio grupo do que com os interesses do estado como um todo. O estado democrático não tem nenhuma unidade significativa, dado que as demandas do estado têm menos força do que os interesses privados dos grupos. De forma análoga, o timocrata não está completamente em harmonia consigo mesmo porque o seu interesse privado o desvia dos ideais imparciais. O oligarca está em conflito internamente porque ele tem que suprimir determinadas partes de si mesmo em nome da busca por dinheiro. O democrata não vê a sua vida como uma unidade, vivendo sempre a curto prazo (ANNAS, 1981, P. 302).

A explicação de Annas associa unidade e harmonia de forma estreita. Não é um exagero afirmar que, segundo Annas, ser uno é possuir completa harmonia na alma. Tal explicação cria um sério problema. Dado que as almas injustas não são harmônicas, a autora é forçada a descrevê-las como se lhes faltasse unidade. Mas no que implicaria exatamente esta falta de unidade? Como vimos anteriormente, segundo Annas essa falta de unidade faz com que tais homens não PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

consigam viver a altura de seus próprios ideais. No entanto, como vimos, a descrição de tais almas fornecida nos livros VIII não lhes retrata deste modo. Como ressalta Gavrielides, as almas degeneradas possuem a habilidade de organizar suas vidas a longo prazo. Mesmo o tirano, que, segundo Sócrates, está no pior estado possível, é capaz de deixar uma cidade sob seu completo controle (578d). O oligarca, por sua vez, tem a aquisição de dinheiro por fim, e faz de tudo para alcançá-la ao longo de sua vida (553c-d, 554c). Já o timocrata visa a honra e organiza seus esforços nesse sentido (548a, 549a). Mesmo no caso do democrata, que visa a satisfação de seus apetites necessários e desnecessários, é forçoso reconhecer que as almas injustas descritas por Platão se comportam ao longo do tempo de acordo com sua concepção da felicidade e, portanto, do bem. Para o democrata, a satisfação destes desejos, a liberdade e a felicidade são praticamente a mesma coisa (GAVRIELIDES, 2010, P. 206-207). Indivíduos governados pelo epithymetikon e pelo thymoeides, portanto, simplesmente não são apresentados como agentes incapazes de ordenar suas vidas a longo prazo de acordo com sua concepção da felicidade. Se eles de fato não chegam a alcançar a felicidade, isto se deve ao fato de que a concepção que eles tinham dela era equivocada. Afinal, o timocrata alcança a honra, o oligarca tornase rico, o democrata vive da forma que lhe agrada e o tirano obtém o poder máximo na cidade (577d). Neste sentido, é importante notar que, após a descrição dos quatro regimes políticos, Sócrates passa a discutir qual tipo de vida deve ser considerado o mais prazeroso, o do amante da sabedoria, o do amante da vitória,

140 isto é, da honra, ou o do amante do lucro (581c). Segundo o filósofo, caso façamos a pergunta a cada um dos três tipos de homem, receberemos de cada um a recomendação do seu próprio tipo de vida. Tal capacidade de organização só pode parecer problemática caso acreditemos, contra o que foi dito até aqui, que num indivíduo governado pelo epithymetikon ou pelo thymoeides tais instâncias são responsáveis não só pelo estabelecimento dos fins práticos perseguidos pelo sujeito, como também pela maneira através da qual o sujeito os persegue. Tal hipótese torna-se ainda mais verossímil se aceitarmos o modelo de conflito psíquico proposto pela interpretação tradicional, onde a vitória de uma dessas duas instâncias implica que tal instância toma o controle do próprio indivíduo e determina, sozinha, suas

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ações. Segundo essa interpretação, poder-se-ia pensar que dado que o epithymetikon e o thymoeides não têm a mesma capacidade de raciocinar a longo prazo que é característica do logistikon, então o indivíduo no qual tais partes governam tal capacidade encontrar-se-ia prejudicada. É justamente este modelo, no entanto, que a argumentação aqui desenvolvida visa descartar. Como ressalta Gavrielides, mesmo que um indivíduo seja governado por uma parte não-racional incapaz de raciocinar a longo prazo, o indivíduo é certamente capaz de raciocinar de tal forma (GAVRIELIDES, 2010, P. 207). No entanto, se o que foi dito acima está correto, uma pergunta se coloca imediatamente diante de nós: em que sentido podemos dizer, se é que podemos dizer, que as almas injustas são marcadas pelo conflito interno? Com efeito, ninguém duvida que a tripartição da alma tenha sido introduzida por Sócrates para dar conta dos casos de conflito psíquico. Igualmente fora de questão está o fato de que é o homem justo o exemplo de alma unificada e harmônica que nos é apresentada na República (443c8- 444a2). Segundo a interpretação que propomos aqui, no entanto, nas almas injustas o logistikon serve seja o epithymetikon seja o thymoeides, sem a eles se opor. Tal explicação, portanto, ainda não mostrou no que consiste o estado de conflito que impera em tais almas. Se não pudermos fazê-lo, poder-se-ia objetar que, apesar de todos os defeitos da interpretação tradicional, ela tem o mérito de apresentar uma idéia clara e intuitiva do que seja o conflito psíquico segundo Platão. É justamente em tal tarefa que o artigo de Gavrielides nos é de grande ajuda.

141 Como ressalta a autora, segundo Sócrates o conflito surge no interior da alma quando partes inferiores da alma se tornam pretendentes ao trono do logistikon (444a10-b5). Isto é, ele ocorre quando uma dessas partes procura subordinar as demandas das outras partes às suas próprias demandas, fazendo com que a alma toda sirva a seus próprios fins. Neste sentido, é importante notar que a descrição de uma pessoa governada pelo logistikon caracteriza-se pela harmonia, pela amizade e pelo acordo entre as partes de sua alma (589b4-5, 591d2), enquanto que as almas das pessoas governadas pelo epithymetikon e pelo thymoeides, por outro lado, são apresentadas como sendo unificadas pela força. Não é difícil compreender porque. Como o epithymetikon e o thymoeides não são capazes de governar a alma a partir de um projeto que tenha em vista o bem da

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alma inteira, é forçoso admitir que o governo de qualquer uma dessas partes implicará, diversas vezes, em ações executadas não só em detrimento das outras partes, mas também em detrimento da alma como um todo. Mais do que isso, no livro IX Sócrates nos diz que, quando o thymoeides governa a alma ele força (anakadzein) as outras partes da alma a perseguirem prazeres estranhos e falsos, sendo ele incapaz até mesmo de assegurar “seu próprio prazer” (587a3-5). Também no caso do oligarca, do democrata e do tirano – que são os casos de governo da alma por parte do epithymetikon – o vocabulário da necessidade e da escravidão abundam. O oligarca reprime seus apetites desnecessários através da compulsão e do medo (554d-e), mas ele não se livra deles. Como vimos, caso a oportunidade de satisfazer tais apetites sem com isso diminuir sua riqueza se apresente, ele não hesitará em satisfazê-los. Já no caso do democrata, os prazeres escravizados são os sem leis, que, em princípio, só encontrarão satisfação em seus sonhos (574e) ou no caso de ele vir a se tornar um tirano. É só neste ultimo que tais apetites são libertados de sua escravidão (574d56). No caso do tirano, já não são mais certos apetites que são escravizados, mas sim as melhores partes da alma (577d2-4). Se o que foi dito acima está correto, creio que podemos caracterizar o tipo de conflito psíquico que Platão tem em vista ao introduzir a alma tripartida na República da seguinte maneira. As almas injustas são governadas seja pelo thymoeides seja pelo epithymetikon. Em tais casos, o que vemos são indivíduos que sacrificam as demandas que têm por secundárias em relação a seu objetivo principal, reprimindo assim determinados desejos que nem por isso desaparecem

142 da alma. Esse sacrifício e essa repressão, no entanto, se baseiam não na crença de que a satisfação de tais apetites seria prejudicial ao indivíduo, mas sim na percepção de que ela comprometeria seu objetivo principal. Segundo Gavrielides, nós devemos compreender a piora progressiva das almas degeneradas comparando-as com a alma dos homens justos, que foi unificada através da persuasão, mas não tentando buscar diferentes tipos de unidade em cada alma injusta. Existiriam, assim, dois tipos de unidade possível para a alma: a unidade alcançada através da persuasão e a unidade alcançada através do constrangimento. Como ressalta a autora, para que uma pessoa alcance a virtude é necessário que sua alma esteja unificada pela persuasão, e não pelo constrangimento, dado que a virtude é um estado psíquico caracterizado pela

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concórdia entre as partes da alma, e não somente pela predominância de uma parte sobre a outra. Assim, nos diz a autora, segundo a tripartição da alma proposta na República o comando do logistikon é necessário para “qualquer tipo de virtude”. A distinção proposta por Gavrielides entre uma unidade imposta pela força e uma unidade alcançada através da persuasão me parece bastante explicativa. Com efeito, como ressalta a autora, o fato de que um equilíbrio alcançado e mantido pela força seja problemático é sugerido em dois momentos do primeiro livro. O primeiro é quando, logo na abertura do diálogo, Polemarco ameaça reter Sócrates no Pireu através da força (327c6-9), e o segundo quando Céfalo cita com aprovação a sentença de Sófocles, afirmando estar feliz por ter envelhecido e se tornado menos propenso às paixões sexuais. Céfalo diz sentir-se como um escravo que fugiu de um mestre raivoso e selvagem (329c2-3). A explicação de Gavrielides, no entanto, não pode deixar de parecer um tanto quanto circular. Com efeito, o que a autora nos diz, em suma, é que a unidade através da persuasão é melhor porque ela é a unidade trazida pelo governo do logistikon, e que é só através do governo do logistikon que alcançamos a virtude porque a virtude é o governo através da persuasão e não da força. Para que tal argumento seja realmente convincente, no entanto, ainda lhe falta mostrar por que a união através da força é inferior à união através da persuasão no que diz respeito à virtude. Creio ser possível responder a essa pergunta ainda me atendo à descrição das almas injustas do livro IX. De início, desconsideremos o tirano. A descrição do timocrata, do oligarca e do democrata nos mostra almas que são perfeitamente capazes de comportar-se

143 de forma virtuosa. No entanto, elas só o fazem ocasionalmente. Mais precisamente, elas só o fazem quando o desvio de tal comportamento prejudicaria seus objetivos de longo prazo. Tomemos, por exemplo, o comportamento de tais homens no que diz respeito à justiça. O timocrata se comporta de forma justa somente quando desviar-se de tal comportamento implicaria em desonra. Como vimos, embora em sua cidade a classe guerreira seja proibida de ter posses, o timocrata procurará driblar tal lei e possuir ouro, prata e todo tipo de propriedade em segredo. O oligarca reprime os seus apetites desnecessários e os sem lei somente quando não reprimi-los implica na diminuição de sua riqueza, mas se aproveitará de qualquer chance de satisfazer tais apetites com o dinheiro dos outros. O democrata, por sua vez, só demonstra respeito pela lei da cidade quando

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quer, isto é, quando tal comportamento não fere sua liberdade (557e-558a). O timocrata, o oligarca e o democrata, portanto, se comportam ocasionalmente de forma virtuosa. É somente quando chegamos ao tirano que nos deparamos com um tipo de homem cujo comportamento não parece jamais coincidir com o comportamento justo. Mesmo neste caso, no entanto, não seria impossível pensar que podem existir ocasiões onde mesmo o tirano se comporte de forma justa – caso tal comportamento lhe pareça ser o melhor a fazer. Segundo Gravielides, a piora progressiva das almas descritas no livro IX nos mostra almas cada vez menos comprometidas com a lei. Isto é importante porque, para Sócrates, a lei pode ser uma espécie de substituto do logistikon. Com efeito, a sugestão de que um determinado indivíduo pode assemelhar-se, em certo grau, aos indivíduos governados por seu logistikon é explicitada em 590c-d, onde nos é dito que, no caso de indivíduos cujo logistikon não está em condições de governar, o objetivo é garantir que eles são governados por "algo semelhante (homoiouο) ao que governa a melhor pessoa" (590c7-8). Este algo semelhante não é outra coisa que a razão imposta de fora (590d3-4), isto é, a lei (nomos) (590d7). É neste momento, no entanto, que Gavrielides faz uma observação com a qual não podemos concordar. Segundo a autora: A importância da lei nesse contexto não é funcionar como um constrangimento externo, mas sim o fato de sua presença poder levar os indivíduos a internalizar determinados modos de comportamento, modos esses que podem diferir das inclinações naturais do indivíduo. (...) almas degeneradas podem se assemelhar aos indivíduos comandados pelo logistikon (e portanto unificados pela persuasão) na medida em que eles internalizaram leis e convenções sociais que os levam a

144 reagir a determinadas situações da maneira como a pessoa unificada pela persuasão reagiria. Obviamente o grau no qual as ações e respostas de um tal indivíduo se assemelharia às ações e respostas do indivíduo que possui o tipo certo de unidade pode variar, nos fornecendo a gradação necessária (GAVRIELIDES, 2010, P. 217).

De acordo com a autora, portanto, as almas injustas internalizariam, umas mais e outras menos, as leis e convenções sociais de suas respectivas cidades. Ora, não é absolutamente esse o retrato feito por Sócrates de tais almas. Com efeito, ao contrário do que propõe a autora, o timocrata não reprime seu desejo pela riqueza porque recebeu uma boa educação e internalizou o que a lei lhe transmite. Tanto que ele transgredirá a lei caso uma oportunidade adequada se apresente. Sendo assim, a imagem de uma progressão da alma menos injusta, a do timocrata, para a alma mais injusta, a do tirano, em termos de uma maior ou menor internalização PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

da lei não se sustenta. Desde o primeiro exemplo que nos é dado, o do timocrata, a obediência à lei só acontece quando o descumprimento da mesma implica em alguma consequência outra que o ato injusto ele mesmo. Em todos os casos de almas injustas, portanto, a lei aparece como um instrumento coercitivo externo ao próprio sujeito que visa guia-lo em direção ao comportamento justo. Segundo a interpretação proposta aqui, portanto, nenhuma das almas injustas chega a internalizar os comandos da lei. E é por isso que todas elas driblam tais comandos quando tal lhes é possível e preferível. Mas, então, em que sentido podemos dizer que a alma do democrata é pior do que a do timocrata? Creio que tal se explica pelos desejos a cuja satisfação cada um desses homens dedica sua vida. De fato, a descrição de Sócrates das almas injustas nos mostra homens cada vez mais dispostos a satisfazer aqueles desejos que são mais afastados do bem. Além disso, é claro, deve-se ter em mente que a progressiva deterioração das almas injustas é acompanhada pela progressiva deterioração da força da lei na cidade. Sendo assim, seria razoável pressupor que quanto menos a lei se faz presente, mais tais homens praticam o comportamento injusto, e quanto mais eles praticam o comportamento injusto mais injustas elas se tornam. Não obstante, se afirmarmos que é a fraqueza da lei que torna o democrata pior do que o timocrata, por exemplo, devemos admitir que tal diferença é acidental, e que, portanto, o timocrata que vivesse numa democracia seria mais injusto do que o democrata que vivesse numa timocracia.

145 Sendo assim, se há uma lição que pode ser retirada do progressivo enfraquecimento da lei descrito por Sócrates é que quanto mais sem lei forem as almas injustas, seja elas quais forem, quanto mais liberdade lhes for dada, mais elas prejudicarão a si mesmas por escolherem as ações injustas. É o que parece confirmar a descrição do tirano: o mais infeliz dentre os injustos é aquele que conquistou o maior poder possível dentro da cidade, e que é totalmente livre para fazer o que lhe parece melhor. A liberdade de agir como bem entende torna-o mais infeliz do que ele seria se não tivesse atingido a posição de tirano, tal como já foi dito no Górgias. Com efeito, se é verdade que para Platão a razão da infelicidade dos homens injustos não reside em sua falta de unidade, mas sim no fato de que eles

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não sejam o homem que eles realmente preferiam ser, o argumento que encontramos nos Górgias já nos preveniu para o fato de que, segundo Sócrates, aquilo que um determinado indivíduo prefere não coincide necessariamente com o que lhe parece ser melhor. Sendo assim, não devemos estranhar que o filósofo sustente ao mesmo tempo que tais homens optam pelo modo de vida que lhes parece o melhor e se comportam de acordo com tal escolha mas que, ainda assim, eles não são quem eles queriam ser. Com isso, é claro, o filósofo está afirmando simplesmente que eles não são felizes, quer eles saibam ou não. Creio ter explicado de forma suficiente, para os fins da presente investigação, a descrição e a ordenação das almas injustas que encontramos nos livros VIII e IX. Antes de passar aos próximos passos de nossa investigação, no entanto, será pertinente dizer ainda algumas palavras a respeito do que foi dito até aqui. Como dissemos anteriormente, para muitos intérpretes a ação do indivíduo tal como ela é concebida na República não seria, de início, fruto do desejo do indivíduo pelo bem. Para estes autores, esse só seria o caso quando o logistikon sai vitorioso do embate com as outras duas forças presentes no interior da alma. Essa interpretação, é claro, procura explicar a akrasia como um caso onde o epithymetikon sairia vitorioso sobre o logistikon, impondo ao homem a ação que é de seu maior interesse. Contra tal interpretação, nós já havíamos chamado a atenção para o fato de que Sócrates afirma na própria República que “o bem é isso que toda alma persegue e que tem em vista quando faz tudo o que faz” (505e2). Nossa descrição das almas injustas não fez senão corroborar tal afirmação. Como vimos, todas as

146 almas injustas descritas por Sócrates se comportam de acordo com sua concepção do bem e da felicidade. Ora, mas se é no logistikon que reside o desejo do homem pelo bem, então como é possível que as almas injustas sejam governadas pelo thymoeides e pelo epithymetikon e ainda assim persigam seu desejo pelo bem acima de seus outros desejos? A chave para tal questão reside, creio, na concepção que tais almas têm do bem e da felicidade. Com efeito, a tripartição da alma proposta por Platão visa isolar três fontes de motivação dentro do homem. Cada uma dessas três fontes, por sua vez, é uma instância através da qual a força de atração de determinados móbiles se faz sentir dentro do homem. O logistikon faz sentir o poder de atração do bem, o thymoeides o da honra, e o epithymetikon o da satisfação dos apetites. Como podemos ver,

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tais móbiles podem perfeitamente orientar os fins práticos escolhidos pelo agente, isto é, as ações que ele decide empreender e os fins em vista dos quais ele as empreende. No entanto, devemos reconhecer que a formulação destes móbiles é vaga o suficiente para que ela deixe rapidamente de ser explicativa. Tomemos por exemplo o thymoeides. No livro IX (582c), Gláucon afirma, e Sócrates concorda, que tanto o homem rico, quanto o corajoso e o sábio são honrados pelos homens, o que implica em reconhecer que um homem é capaz de alcançar a honra independentemente da parte de sua alma que o guia, caso ele alcance seus objetivos. Se isso é verdade, é perfeitamente possível imaginar que um determinado indivíduo persiga o saber ou a riqueza por causa da honra que proporcionam. Um tal homem poderia até ser confundido com alguém que é governado pelo logistikon ou pelo epithymetikon, pois os fins práticos por ele perseguidos coincidem com os fins perseguidos pelos que são governados por tais instâncias. No entanto, ele seria na verdade governado pelo thymoeides. Da mesma forma, devemos reconhecer que a concepção do bem varia muito entre os homens. É perfeitamente possível afirmar que para o timocrata o bem é a honra, para o oligarca a riqueza, para o democrata a satisfação de seus desejos necessários e desnecessários; e para o tirano a satisfação de todos os seus desejos. Ora, tais concepções acabam por misturar o desejo pelo bem com o desejo pela honra, no caso do timocrata, ou com alguns, ou todos, os apetites do epithymetikon, nos demais casos. Sendo assim, creio ser possível afirmar que o domínio do thymoeides ou do epithymetikon na alma humana se estabelece quando a alma se mostra incapaz

147 de separar a honra, ou a satisfação de determinados apetites, do bem. Com efeito, também na República Sócrates acusa a multidão de ser hedonista, afirmando que a maioria dos homens acredita que o prazer é o bem (505b). Na alma de tais homens, é claro, o logistikon jamais poderia se opor à satisfação do epithymetikon, uma vez que tal satisfação implica necessariamente em prazer. O logistikon, nesses casos, servirá o epithymetikon porque a concepção do bem sustentada pelo indivíduo confere grande importância à satisfação de determinados apetites. Creio, portanto, ser possível afirmar que o epithymetikon retira seu poder da confusão que impera na alma da maioria dos homens. Incapazes de distinguir o bem do prazer, eles não podem evitar que o epithymetikon transgrida os limites de seu lugar natural e se imponha sobre o logistikon. O mesmo pode ser dito, creio,

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nos casos de domínio do thymoeides. Para que cada parte da alma seja capaz de exercer sua função própria, portanto, importa que o sujeito saiba diferenciar a honra e o prazer do bem. Daí que o filósofo, no livro VI, coloque tanta ênfase na busca pela definição do bem. Como afirma Sócrates: Já me ouviste, em várias ocasiões, dizer que a ideia do bem constitui o mais elevado conhecimento, e que na medida em que dela participam são úteis e vantajosas a justiça e as demais virtudes. Neste momento deves saber que vou dizer-te isso mesmo, com o acréscimo de que não a conhecemos bem e que sem isso nada nos servirá o conhecimento de todo o resto, por mais perfeito que seja, como inútil nos seria possuir tudo, porém, com exclusão do bem (505a-b).

Embora Sócrates afirme não ser capaz de atingir uma definição, o filósofo com certeza nos dá elementos suficientes para que consigamos separar o bem, o prazer e a honra. Tal capacidade de separação, aliás, é justamente o que falta às almas injustas descritas por Sócrates. O timocrata não acredita que a satisfação de seu desejo desmesurado pela riqueza é mau em si mesmo, mas apenas pelas consequências que ele pode trazer caso suas transgressões sejam descobertas. Da mesma forma, o oligarca não acredita que a satisfação dos desejos desnecessários prejudica sua alma, mas apenas que eles lhe custam dinheiro e que a acumulação deste é mais importante. Em ambos os casos, portanto, tais indivíduos optarão pela satisfação destes desejos caso possam evitar as possíveis consequências maléficas. Segundo tais indivíduos, o que é mal são as consequências acidentais acarretadas pela satisfação do desejo, e não a satisfação do desejo ou suas consequências necessárias. O democrata, por sua vez, considera os prazeres

148 necessários e os desnecessários como bons, e o tirano ainda acrescenta a esta lista os prazeres sem lei. Para concluir nossa análise do livro IX, gostaria apenas de ressaltar que ao que tudo indica a capacidade do indivíduo em distinguir o bem, a honra e o prazer é importante não só para o bom governo da alma, mas também para que a forma pertinente de conflito psíquico se instaure. Afinal, como seria possível que um indivíduo experimentasse alguma forma de conflito psíquico quando se tratasse de escolher entre algo que é bom e algo que é prazeroso se ele não soubesse diferenciar o bem do prazer? Com efeito, se a maioria dos homens é realmente hedonista, tal como propõe o Sócrates tanto na República quanto no Protágoras, é difícil imaginar que

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tal conflito seja um evento corriqueiro em suas vidas. De fato, tudo se passa como se no caso destes homens fosse necessário algo como um copo de água envenenado num momento de extrema sede para que tal conflito se instaure. Que mesmo tais homens não beberiam a água é o que Sócrates parece indicar não somente com sua análise das partes da alma do livro IV, mas também das almas injustas dos livros VIII e IX. 4.5 A enkrateia na República Tendo concluído a análise das almas injustas, me volto agora para a questão da enkrateia na República. Como nos diz Dorion, as primeiras aparições do termo enkrateia na literatura grega, assim como do adjetivo enkratés, com o significado preciso de ‘mestria de si mesmo’ no que diz respeito aos prazeres, encontram-se nas obras de Platão e Xenofonte (DORION, 2007, P. 119). No que diz respeito à Platão, segundo Dorion a enkrateia só receberia um valor positivo, ainda que secundário, a partir do momento em que o filósofo começa a se afastar dos ensinamentos de Sócrates. No momento em que Platão reconhece a existência de uma qualidade chamada enkrateia, que consiste na mestra de si mesmo no que diz respeito aos apetites, o filósofo reconheceria também que é possível que o homem seja derrotado e governado pelo prazer, e que tal derrota não é imputável à ignorância, ao contrário do que pretendia seu mestre (DORION, 2007, P. 129).

149 Com efeito, existem boas razões para que reconheçamos que a enkrateia que vimos aparecer no Górgias, e que agora encontramos novamente na República, deve ser pensada em estreita conexão com a discussão do Protágoras acerca da incontinência. Como vimos, no Protágoras a maioria dos homens dizia ser possível ‘ser vencido pelo prazer’ (upo ton hedonon ettastai). Ora, em Rep. IV, 430e Sócrates faz uso do termo enkrateia para designar a mestria sobre os apetites e afirma (431b) que aquele que não a possui é “etto eautou”, isto é, vencido por si mesmo. Sócrates nos diz que a sophrosyne, uma das virtudes cardinais, é um tipo de concórdia (xynphonía) e harmonia, sendo composta por uma certa bela ordem (kosmos) e pela enkrateia no que diz respeito aos prazeres e apetites (epithymion). No entanto, não creio que Dórion tenha razão ao pretender

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que a noção de enkrateia que aparece aqui implique em nada que contradiga o que foi afirmado no Protágoras. Tal fica claro se nos mantivermos atentos para a relação entre as virtudes da coragem e da temperança, por um lado, e destas virtudes com a enkrateia, por outro. Como é fácil constatar, a temperança e a coragem são pensadas de forma bastante similar na obra platônica desde os chamados diálogos socráticos. E isso a tal ponto que a definição que nos é dada destas virtudes nos diálogos que a elas se dedicam, o Cármides e o Laches, é virtualmente idêntica: de acordo com tais diálogos será corajoso, assim como temperante, aquele que tiver conhecimento acerca do bem e do mal (Cármides 174c, Laches 199c). Tal definição, é claro, não deixa de ser problemática. Como o próprio Sócrates chega a dizer no Laches, um homem que possuísse tal conhecimento não teria somente uma dessas virtudes, ou mesmo somente as duas, mas também todas as outras. Poder-se-ia objetar, inclusive, que é essa a principal fraqueza do chamado intelectualismo socrático e que na República, ao contrário, tais virtudes encontrar-se-iam perfeitamente separadas. Em favor dessa tese, poder-se-ia observar ainda que de acordo com a República a temperança é a virtude da parte apetitiva da alma, isto é, do epithymetikon, enquanto que a coragem é a virtude específica do thymoeides. Tal separação nos parece, de início, intuitivamente compreensível. Com efeito, parece perfeitamente possível que um homem seja corajoso na batalha e totalmente intemperante, ou incontinente, no que diz respeito aos prazeres da mesa ou do sexo. Assim, a temperança e a coragem nos parecem distintas porque tanto as situações nas quais elas aparecem quanto seus respectivos objetos nos parecem

150 distintos. Corajoso é o homem capaz de superar o medo, temperante aquele que não comete excessos no que diz respeito aos prazeres apetitivos. Vale lembrar, no entanto, que a investigação socrática a respeito da incontinência incluía o medo dentre as suas possíveis causas. Embora o fenômeno receba o nome de ‘ser vencido pelo prazer’, o que a grande maioria dos homens pensa é que o conhecimento, muitas vezes, é derrotado pela cólera, pelos prazeres, pela dor, pelo amor, ou pelo medo. A derrota do conhecimento para o medo, portanto, é um exemplo de ato incontinente segundo Sócrates. Sendo assim, o caso hipotético de um homem que sabe que o melhor para si é se comportar bravamente, mas acaba sucumbindo ao medo e fugindo, seria tanto um caso de covardia quanto de incontinência. Tal caso, inclusive, poderia ser explicado

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através do modelo proposto no Protágoras caso substituíssemos o conhecimento pela opinião verdadeira, e afirmássemos que o medo dos males imediatos foi supervalorizado pelo sujeito em questão em detrimento dos prazeres futuros que o comportamento corajoso lhe reservava e que, portanto, tal indivíduo abandonou momentaneamente a opinião que tinha. Além disso, mesmo no que diz respeito à República, não parece claro que as virtudes da coragem e da temperança sejam completamente separáveis. Como ressalta Irwin, para que possamos estabelecer definitivamente a separação entre a coragem e a temperança não devemos afirmar somente que um homem pode ser corajoso em um dado momento e incontinente em outro, mas sim que ele pode ser ao mesmo tempo corajoso e incontinente, isto é, que um mesmo ato pode ser descrito como corajoso e incontinente sem que tais descrições impliquem em nenhuma contradição (IRWIN, 1995, P. 225). Tomemos, de início, a definição da coragem e da temperança que nos é dada no livro IV da República. Segundo Sócrates: (…) não serão essas duas partes [o logistikon e o epithymetikon] os melhores defensores da alma e do corpo, uma delas aconselhando e a outra defendendo, e ambas sempre obedientes ao comandante e pondo corajosamente em prática suas determinações? Exato. É por isso que damos o nome de corajoso ao indivíduo cuja parte animosa, tanto nos prazeres como nas dores, o conserva sob o comando da razão a respeito do que deve ou não deve ser temido. É muito certo, disse. É sábio graças à parte mínima que nele exerce o mando e determina tudo aquilo, e, além disso, possui o conhecimento preciso do que é útil a cada parte e ao conjunto da comunidade constituída pelos três. Exato. E mais: não dizemos que é temperante pelo fato da amizade e harmonia dessas mesmas partes, quando a que

151 comanda e as que obedecem ficam de acordo em reconhecer que cabe à razão comandar, e não se insurgem contra ela? Temperança não é senão isso mesmo, replicou, tanto na cidade quanto no indivíduo (442b-c).

A definição da coragem dada acima não faz senão repetir o que já havia sido dito em 429c-d a respeito da mesma virtude na cidade. Segundo Sócrates, uma cidade é corajosa quando seus cidadãos conservam sob quaisquer condições a opinião transmitida pela lei a respeito do que deve e não deve ser temido. O filósofo ainda esclarece que por sob qualquer condição ele quer dizer tanto na dor quanto no prazer, tanto no desejo quanto no medo, jamais expelindo tais opiniões de sua alma. Como podemos ver, ainda na República a coragem tem a ver não só com o medo, mas também com os prazeres. Essa associação se torna compreensível se nos lembrarmos do que nos é dito no Laches a respeito do que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

deve ser temido. Segundo Sócrates, o medo é a expectativa de males futuros (198c). Nesse sentido, podemos dizer, por exemplo, que um homem pode temer incorrer em dores, ou mesmo ser privado de prazeres. Daí que faça sentido, do ponto de vista platônico, falar em ser corajoso diante dos prazeres e das dores. Tal feito, ademais, está longe de ser dos mais fáceis. Com efeito, Sócrates elabora melhor o desafio contido na manutenção da opinião transmitida a respeito do que deve ou não deve ser temido no livro III da República. O trecho a que me refiro começa em 412b, e trata da maneira utilizada para escolher os governantes na cidade criada por Sócrates. Segundo o filósofo, os governantes devem ser selecionados entre os melhores guardiões. A proposta do filósofo é que sejam selecionados aqueles guardiões que têm o maior cuidado possível com os interesses da Cidade, isto é, aqueles que durante toda a sua vida demonstraram estar sempre zelosos na defesa de tais interesses e que são menos propensos a agir contra tais interesses. Que a propensão a agir de acordo com o interesse da cidade é tanto maior quanto maior for a coincidência entre os interesses do indivíduo e os interesses da cidade é algo que o filósofo aceita como óbvio (412d). Sendo assim, a cidade deverá fazer de tudo para inculcar em tais indivíduos a opinião de que sua prosperidade está estreitamente ligada à prosperidade da cidade. Mesmo que tal tarefa tenha sucesso, no entanto, ainda resta que a opinião, mesmo quando é verdadeira,

é instável.

Com efeito,

como dissemos

anteriormente, Sócrates afirma aqui que a opinião pode ser ‘expelida da alma’ seja de forma voluntária ou involuntária. As opiniões falsas, por serem maléficas, são

152 voluntariamente expelidas, enquanto que as verdadeiras, por serem benéficas, só podem ser expelidas involuntariamente. A saída involuntária de uma opinião verdadeira da alma, segundo Sócrates, pode se dar de várias maneiras. Os homens podem ser roubados de suas opiniões, abandonando-as por causa do esquecimento ou por serem persuadidos a tal. Eles podem ainda ser constrangidos a mudar de opinião, através de algum tipo de dor ou outro sofrimento qualquer, ou podem mudar de opinião sob a influência do prazer ou do medo (413c). Sendo assim, não bastará selecionar dentre os guardiões os mais zelosos dos interesses da cidade. Será necessário ainda submetê-los a todos os tipos de provação, isto é, às situações nas quais esse princípio é mais ameaçado pelas forças capazes de expelir a opinião da alma do homem. Somente aquele que passar por todos os testes,

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quando criança, jovem e adulto, poderá governar a cidade ideal desenhada por Sócrates na República. Como podemos ver, segundo Sócrates não só a coragem pode se dar através da manutenção de uma opinião transmitida pela parte governante da alma, ou por algo que o valha, mas o prazer e o medo são listados, lado a lado, como forças capazes de exercer o mesmo tipo de influência nefasta sobre as convicções do indivíduo. Sendo assim, é de fato falso afirmar que para Platão a temperança e a coragem têm a ver com objetos absolutamente distintos. Além disso, o simples fato de que a coragem seja definida na República como a manutenção da opinião correta a respeito do que se deve ou não temer é suficiente para nos colocar em guarda contra a afirmação de que Platão tenha se distanciado verdadeiramente do intelectualismo socrático. Além disso, ainda no livro IV, logo após definir a coragem na cidade, Sócrates compara o treinamento proposto para os guardiões da cidade ideal com a manipulação da lã, feita pelos tintureiros antes de aplicar a tintura, que tem por objetivo garantir a resistência da cor aplicada à lavagem. Nas palavras do filósofo: Podes ficar certo de que não tínhamos outra intenção a não ser a de prepará-los para absorverem as leis do melhor modo possível, como se deu com a cor, no exemplo apresentado há pouco, a fim de que se tornem indeléveis suas convicções a respeito das coisas a temer e de muitas outras, por isso mesmo que são todos de boa natureza e receberam educação adequada, e para que a tinta resista a esses sabões descolorantes e de ação tão violenta – refiro-me aos prazeres – muito mais ativos do que a cinza e todas as lixívias, e à dor, ao medo, às paixões, barrelas de ação mais rápida do que qualquer lavagem (429a-430b).

153 Tal trecho nos é importante por duas razões. Em primeiro lugar, ele afirma claramente que o objetivo da educação dos guardiões é possibilitar a preservação das opiniões transmitidas pela lei e pelos governantes através, inclusive, dos mitos que fazem parte dessa educação. Os prazeres e o medo, por sua vez, são apresentados como capazes de impedir o comportamento virtuoso porque, e somente porque, eles são capazes de mudar nossas convicções. Sendo assim, creio ser possível afirmar que a descrição do ato incontinente que vimos no Protágoras ainda permanece pertinente, tendo em vista o novo conteúdo da República. Como vimos, também no Protágoras o ato incontinente é explicado através do abandono da opinião verdadeira em favor de um juízo enganador a respeito dos prazeres e das dores propiciados por uma determinada opção.

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Em segundo lugar, o trecho atribui explicitamente ao prazer e às paixões o poder de alterar as convicções do indivíduo. Não parece um exagero, portanto, sustentar que é através de tal poder que o prazer ou qualquer paixão pode influenciar o comportamento do indivíduo, e que, portanto, a possibilidade de que um indivíduo cometa um erro que poderíamos dizer ter sido causado por um tal sentimento está atrelada à possibilidade de que este mesmo indivíduo tenha suas convicções alteradas por este sentimento. Em outras palavras, esse trecho só vem confirmar o que nossa interpretação já afirmou anteriormente, a saber, que Platão só admite a possibilidade da akrasia tal como ela é descrita no Protágoras, isto é, como uma oscilação por parte do indivíduo no que diz respeito a uma ou mais de suas crenças. Creio ter dito o suficiente para estabelecer que a covardia é descrita na República de forma equivalente ao ato incontinente no Protágoras. Resta ainda mostrar por que devemos acreditar que tal descrição deve ser estendida também à temperança. Neste sentido, será instrutivo relembrar o início do livro III, quando Sócrates começa a crítica dos mitos acerca dos heróis. De início, a preocupação do filósofo se volta para a melhor maneira de fazer dos cidadãos homens corajosos. Tendo este fim em vista, o filósofo afirma que o melhor será permitir apenas os mitos que os tornam o menos propensos possível a temer a morte (386a-b). Daí que o filósofo proíba os mitos que narram os horrores sofridos pelas almas que descem ao Hades. Não é difícil ver como procede Sócrates. Com efeito, caso os cidadãos acreditem em tais mitos, eles terão medo de ser vítima de tais horrores e, portanto, de morrer. Para evitar isso, o filósofo propõe que os mitos exaltem a vida no

154 Hades, de modo a tornar a morte mais atrativa para os homens. Os mitos da kallipolis, portanto, devem transmitir a opinião de que a morte não é o pior dos males que um homem pode sofrer. Como vimos, no entanto, ainda que tal opinião seja transmitida para os cidadãos, nada garante que na hora da batalha eles venham a agir de acordo com ela. A opinião verdadeira a respeito do que deve ser temido é uma condição necessária da coragem, mas ela não é suficiente. Após determinar o conteúdo dos mitos no que diz respeito à formação dos cidadãos tendo em vista a coragem, Sócrates passa para a temperança, que é definida aqui como ser obediente aos governantes e governar sobre os próprios apetites e prazeres corporais (389d). No que diz respeito aos prazeres, o filósofo condena dois trechos da Odisséia (IX.8-10 e XII 342). No primeiro trecho,

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afirma-se que a mesa farta é a coisa mais bela do mundo. No segundo, diz-se que morrer de fome é a morte mais penosa que um homem pode sofrer. Ora, como sabemos, Sócrates jamais concederia nem que os prazeres da mesa são os mais belos prazeres, o que dirá as mais belas coisas, nem que a fome é o pior mal que um homem pode sofrer. Neste sentido, o critério utilizado pelo filósofo para excluir tais mitos parece ser o mesmo que é utilizado para excluir os mitos a respeito do Hades, que fazem com que os homens temam a morte mais do que qualquer outra coisa. A opinião por eles transmitida é não só prejudicial, pois atrapalha a formação de homens virtuosos, como é também falsa. Da mesma forma que aquele que acredita que a morte é o pior dos destinos jamais se tornará um homem corajoso, aquele que acredita que a mesa farta é a mais bela das coisas jamais será capaz de restringir seus apetites no que diz respeito à comida. Os mitos que o filósofo permite em sua cidade, portanto, devem ir na direção oposta, incentivando sempre o comportamento corajoso e o auto-controle. E, no entanto, todo o problema do ensino através do mito é que ele pode transmitir apenas a opinião verdadeira, mas não o conhecimento. Como nos diz Sócrates no Mênon, embora ambos possam guiar o homem em direção ao comportamento virtuoso, a opinião verdadeira é instável. É nesta diferença, creio, que reside a chave para a compreensão da enkrateia na República. Segundo a interpretação fornecida aqui, para Sócrates o homem temperante deve possuir ou a opinião correta ou o conhecimento a respeito de qual é a ação temperante numa determinada situação, de outro modo ele não poderia agir de forma temperante.

155 Ninguém age de forma temperante involuntariamente. O mesmo pode ser dito a respeito do homem que age de forma corajosa. Ora, como o conhecimento é privilégio somente daqueles que são capazes de alcançá-lo, cabe a estes poucos, isto é, aos governantes, transmitir a opinião verdadeira a respeito do que deve ou não deve ser temido, inclusive no que diz respeito aos prazeres, através dos mitos e da lei. É enkratés aquele que é capaz de manter a opinião transmitida pelos governantes no que diz respeito aos prazeres corporais mesmo diante da capacidade de tais prazeres de mudarem nossas opiniões. Se o que foi dito acima é verdade, então podemos compreender por que todos aqueles que possuem o conhecimento relevante a respeito de tais prazeres possuem necessariamente a enkrateia. Com efeito, o que é instável é a opinião e

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não o conhecimento. É a opinião verdadeira que pode ser expelida involuntariamente da alma humana, e não o conhecimento. Mais uma vez, o que o Sócrates de Platão nos mostra é a possibilidade de que os indivíduos abandonem a opinião verdadeira a respeito do que deve ou não ser feito, e não o conhecimento. Sendo assim, a falha que corresponderia à akrasia só pode se dar dentre aqueles que possuem a opinião. Não há, portanto, contradição entre o que nos é dito na República e o que nos foi dito no Protágoras. 4.6 Leôncio Antes de concluir nossa análise da República, gostaria de dizer algumas palavras sobre um trecho do livro IV que parece depor contra a interpretação defendida até aqui. Refiro-me ao trecho no qual Sócrates nos conta uma anedota sobre um homem chamado Leôncio. Apesar de não dizer quem lhe contou a estória, o filósofo afirma acreditar nela. O trecho em questão pode ser lido da seguinte maneira: (...) lembro-me de ter ouvido certa vez uma anedota a que dou inteira fé. É o seguinte: Leôncio, filho de Aglaião, de uma fita, ao subir no Pireu, quando passava pelo lado de fora do muro setentrional, notando a presença de cadáveres no lugar das execuções, foi tomado a um tempo do desejo (epithymoi) de contemplá-los e da repugnância (dyskherainoi) que o levava a afastar-se dali. Durante alguns instantes lutou consigo mesmo e tapou o rosto, até que, dominado pelo desejo (kratoumenos d’oun upo tes epithymias), arregalando os olhos e correndo para os cadáveres, gritou: Eis aí, miseráveis; saciai-vos desse belo espetáculo! (439e-440a).

156

Sócrates introduz a anedota sem nos dizer nada sobre Leôncio, de modo que a anedota é de difícil interpretação. O que é certo, pois o trecho imediatamente anterior o afirma, é que essa estória é citada como prova de que o thymoeides pode se opor ao epithymetikon. A maneira como tal oposição se dá na anedota em questão, no entanto, não é clara. De início, poderíamos pensar que se trata de um caso de akrasia. O desejo de ver cadáveres, no entanto, é um caso no mínimo curioso para se usar como exemplo de um desejo apetitivo. Ainda assim, parece possível dizer que, num primeiro momento, ao saber da presença dos cadáveres, Leôncio teve seu epithymetikon despertado pelo desejo de vê-los e pelo sentimento de repulsa. Parece razoável também supor que o sentimento de repulsa tenha a ver com um sentimento de vergonha diante da ideia de desfrutar de um tal prazer. A PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

escolha de Leôncio, segundo essa descrição, seria simples: frustrar seu desejo e fugir da vergonha ou satisfazer seu desejo e sofrer o sentimento de repugnância. É claro que, dada a tripartição da alma proposta por Platão, devemos levar em consideração também a hipótese de que os objetivos de uma determinada parte da alma sejam valorizados e perseguidos em detrimento dos objetivos das outras partes. Em outras palavras, a inovação que a República traz em relação ao Protágoras é a possibilidade de conferir diferentes valores aos desejos, e, portanto, também aos prazeres, provenientes das diferentes partes da alma. No caso de Leôncio, no entanto, o que vemos é um homem em conflito, isto é, em dúvida, a respeito de que parte frustrar, sem no entanto que fique claro se algumas das partes em questão é mais valorizada por si mesma. Explico: o que o exemplo nos mostra é um homem que experimenta diante dos mesmos objetos – os cadáveres – dois sentimentos em tudo opostos. Por um lado, o desejo de vê-los causa a expectativa de prazer. Por outro lado, a presença desses mesmos objetos lhe desperta também repugnância, isto é, um sentimento de mal estar mais próximo da dor do que do prazer. É interessante notar que, embora o trecho nos permita supor que a repugnância seja causada por considerações de ordem moral possivelmente provenientes do thymoeides, em nenhum momento tais considerações são invocadas separadamente como razões para um determinado comportamento. Com efeito, tudo se passa como se a escolha de Leôncio não tivesse levado em consideração nada a não ser o prazer e a repugnância causados pelos objetos. Sendo assim, ainda que Leôncio sinta-se

157 envergonhado com sua ação, segundo tal descrição essa vergonha só pesa para a determinação da ação na medida em que lhe causa um sentimento de desagrado. Podemos ver tudo o que separaria Leôncio descrito por essa interpretação da Fedra de Eurípides. Com efeito, a vergonha na qual a personagem da tragédia arriscava incorrer ameaçava não só a sua própria reputação como também o status cívico de seus filhos. Ainda que adotemos a interpretação da anedota sugerida acima, no entanto, podemos perfeitamente utilizar a descrição do ato incontinente que encontramos no Protágoras para explicar a estória de Leôncio. Nós diríamos, então, que quando afirma que Leôncio foi dominado pelo seu apetite Sócrates quer dizer na verdade que ele agiu, contrariamente ao que havia decidido previamente, de acordo com a

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inclinação proveniente desse apetite, isto é, com o objetivo de saciá-lo. Mas se ele o fez podendo não fazê-lo, isto é, se ele o fez quando era livre para agir de outro modo, então devemos dizer, segundo Sócrates, que ele o fez porque acreditava que era o melhor a fazer naquele momento. No momento da ação, portanto, devemos afirmar que Leôncio acreditava que o prazer de ver os cadáveres superaria o eventual sentimento de repugnância causado pelos mesmos objetos. Este exemplo, no entanto, traz ainda uma outra inovação importante em relação ao Protágoras. A estória de Leôncio não nos mostra um indivíduo que tomou uma decisão num momento mas que mudou de opinião na hora da ação por ter acreditado num juízo que provinha das aparências. Após decidir não ver os corpos, Leôncio não vai embora mas tapa seu rosto. O gesto de tapar o rosto é digno de nota porque parece tornar impossível imputar o erro de Leôncio a um juízo sugerido pelas aparências. Sendo assim, será de fato necessário encontrar uma outra explicação para que Leôncio não tenha agido da maneira como havia decidido. Seguindo a interpretação delineada aqui, direi que o que levou Leôncio a abandonar sua decisão foi não suportar a frustração do apetite implicada pelo curso por ele escolhido. Assim como num primeiro momento o sentimento de repugnância o levou a tapar os olhos, foi o sentimento de frustração do apetite que o levou a arregalar os mesmos e correr na direção dos cadáveres. Por mais que nada nos tenha sido dito a esse respeito, é notável a diferença de importância, no que diz respeito à determinação da ação de Leôncio, entre o desprazer provindo do thymoeides e o desprazer provindo do epithymetikon. Com efeito, a repugnância

158 não o levou a tapar os olhos e sair correndo para longe dos cadáveres. Ao que tudo indica, portanto, é o epithymetikon que comanda a sua alma. Nem isso, no entanto, nos é possível dizer com certeza. Como vimos anteriormente, as almas injustas – isto é, aquelas que são governadas pelo thymoeides e pelo epithymetikon – são caracterizadas na República como capazes de sacrificar as demandas que têm por secundárias em relação a seu objetivo principal, reprimindo assim determinados desejos que nem por isso desaparecem da alma. Esse sacrifício e essa repressão, no entanto, não se baseiam na crença de que a satisfação de tais apetites seria prejudicial ao indivíduo, mas sim na percepção de que ela comprometeria seu objetivo principal. Daí que tais almas optem por dar vazão a tais desejos quando acreditam poder

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fazê-lo sem sofrer nenhuma consequência negativa importante. Ora, este parece ser justamente o caso de Leôncio, o que torna impossível saber se estamos falando de um homem cuja alma é governada pelo epithymetikon ou pelo thymoeides. Segundo a interpretação exposta até aqui, o que a anedota a respeito de Leôncio nos mostraria é justamente que o homem que determinar sua ação levando em conta unicamente as quantidades relativas de prazer e de dor, isto é, de bem estar e de mal estar, imediatamente implicados por uma ação, terminará por dirigir sua alma tendo por objetivo a satisfação do desejo que for a cada hora mais intenso, procurando, assim, o que é a cada momento mais prazeroso ou menos doloroso. Que nem mesmo as almas injustas descritas nos livros VIII e IX se comportem dessa maneira o tempo todo nos mostra que a maioria dos homens teme as possíveis consequências práticas de um tal comportamento. Que estes mesmos homens acreditem que tais consequências são acidentais, isto é, advindas seja da punição legal ou da recriminação social, é o que nos mostra o fato de que eles se comportam assim quando podem fazê-lo impunemente. Para terminar, eu diria que Sócrates afirma que acredita na anedota porque sabe que os homens descrevem dessa maneira algumas de suas ações. Que ele mesmo não aprove tal discurso, no entanto, fica claro quando, na crítica aos mitos, ele condena as estórias que falam dos heróis e dos Deuses sendo dominados pelo riso. Neste trecho, Sócrates nos diz o seguinte a respeito da maneira como os heróis devem ser retratados:

159 (...) importa que não sejam inclinados a rir (philogelotas); de regra, muito riso provoca violentas reações (skhedon gar hotan tis ephie iskhuro geloti, iskhuran kai metabolen dzetei to toi outon). É assim também que eu penso. Não devemos, por conseguinte, admitir que poeta algum nos apresente homens respeitáveis dominados pelo riso (kratoumenous upo gelotos), e muito menos deuses (388e389a).

De início, é importante notar que a tradução brasileira se afasta do original em alguns pontos importantes. Em primeiro lugar, ela traduz philogelotas por inclinados a rir e não por ‘amantes do riso’, que seria, a meu ver, a tradução mais literal e mais indicada. Isso porque a segunda oração do trecho citado se utiliza do verbo ‘ephiemi’ para caracterizar a maneira como procedem os philogelontas. Tal verbo tem o significado de ‘incitar’, mas também de ‘permitir’, ‘conceder’. Como termo jurídico, é utilizado inclusive para expressar o ato de deixar que um outro, a

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assembleia, por exemplo, decida. Na tradução inglesa, esta oração é traduzida da seguinte maneira: “For ordinarily when one abandons himself to violent laughter his condition provokes a violent reaction”. Os philogelotas, portanto, entregam-se ao riso. É porque ele acredita que isso pode, e deve, ser evitado que o filósofo propõe que os cidadãos da kallipolis sejam incentivados a fazê-lo. Segundo nossa interpretação, o mesmo poderia ser dito a respeito de Leôncio, a saber, que ele se entregou ao seu apetite. Afinal, parece com certeza mais razoável aceitar que os homens se ponham a rir espontaneamente, isto é, por conta de um reflexo quase automático, do que aceitar que os homens se ponham a satisfazer seus apetites dessa mesma forma.

4.7 Platão e o ‘princípio valor-força’ Termino aqui minha exegese da República. Para concluir, e antes que passemos para a análise do corpus aristotélico, gostaria de fazer uma última observação de cunho teórico a respeito do que foi dito no presente capítulo com o intuito de situar melhor o conteúdo exposto acima com os resultados obtidos anteriormente em nossa investigação. O argumento desenvolvido ao longo do presente capítulo teve por objetivo contrapor à interpretação hegemônica do problema da akrasia, interpretação essa de claro cunho desenvolvimentista, uma interpretação de cunho unitário que pretende sustentar que os três diálogos abordados até aqui podem ser lidos de

160 forma complementar. No item III do presente capítulo, analisei conjuntamente duas teses a respeito da República que são particularmente importantes para a interpretação hegemônica. A primeira é a tese que afirma que nesse diálogo o homem não seria mais pensado como um agente simples, mas como um todo complexo no qual residem três instâncias motivacionais que possuem, todas, as características mínimas de um agente, e que lutariam entre si pelo controle da alma. A segunda é a tese que afirma que a ação de um indivíduo é fruto do resultado do embate entre as três forças motivacionais que existem dentro dele, e que a akrasia seria um dos resultados possíveis desse embate. A análise conjunta das duas teses empreendida aqui se justifica porque aqueles que vêm na República uma nova explicação do

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fenômeno da akrasia lançam mão de ambas as teses. No entanto, é forçoso e importante reconhecer que a segunda tese é independente da primeira, e que mesmo alguns especialistas que não aceitam a descrição da alma proposta pela primeira tese parecem aceitar a segunda tese. Dentre os exemplos especialistas que assim procedem, podemos citar, por exemplo, Vlastos. Como vimos anteriormente, para o autor as quatro teses que explicam verdadeiramente a posição socrática a respeito da akrasia são as seguintes: (S1) Se um indivíduo sabe que X é melhor que Y, ele vai querer X mais do que Y; (S2) Se um indivíduo quer X mais do que Y, ele vai escolher X ao invés de Y; (S3) Todos os homens desejam a felicidade; e (S4) Tudo o mais que os homens desejam eles desejam apenas como meios de alcançar a felicidade (VLASTOS, 1969, P. 83-84). De início, é importante reconhecer que as teses propostas por Vlastos não são retiradas da República. De fato, no contexto do Protágoras, onde duas opções são analisadas em termo de sua utilidade, dizer que um indivíduo ‘quer mais’ X do que Y quer dizer simplesmente que ele acha que X é mais útil do que Y. Tratase de um mesmo desejo, o desejo pelo bem, que o atrai em direção a uma opção em detrimento da outra, mesmo que essa tendência se inverta no momento da ação. Sendo assim, afirmar que tal indivíduo ‘quer mais’ uma opção do que outra parece não ter maiores implicações num tal contexto. No entanto, no Protágoras todo o problema enfrentado pelo indivíduo para escolher entre duas opções reside no fato de que a pior opção parece ser a mais prazerosa – por implicar na satisfação de certos apetites que a melhor opção

161 interdita – e no fato de que tal indivíduo não sabe separar o bem do prazer e, portanto, a felicidade da satisfação de seus apetites. Sendo assim, ao parecer mais prazerosa, a pior opção parece também ser a melhor. Daí que não seja fora de propósito nos perguntarmos se Vlastos acredita que tais teses permaneceriam de pé na República, onde a instância que impele o homem na direção da satisfação dos apetites é diferente da instância que impele o homem na direção daquilo que é melhor para si. Nesse contexto, no entanto, tal tese tem algumas implicações que são dignas de nota. De fato, se reconhecermos tais teses como verdadeiras no contexto da República, seria possível sustentar, ao mesmo tempo, tanto que a análise da akrasia empreendida no Protágoras permanece pertinente mesmo no contexto da

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República, quanto que a ação de um indivíduo é fruto do resultado do embate entre as três forças motivacionais que existem dentro dele. Se o que tais teses afirmam é justamente que um indivíduo ‘quer mais’ aquilo que ele julga ser melhor, então elas nos levariam a concluir que, nos casos onde o desejo provindo do logistikon não coincidir com a satisfação dos desejos provindos do epithymetikon ou do thymoeides, é o logistikon que sai vitorioso porque é o desejo provindo daí o que possui maior força no homem. Segundo tal explicação, é claro, ainda é o fato de ‘querer mais’ uma determinada coisa que explica a ação. Que uma tal explicação possa ser imputada a Platão já foi proposto por Santas34. Segundo o autor, Platão aceitaria o que ele chama de “the value-strenght principle” (o “princípio valor-força”). Tal princípio, segundo Santas, pode ser resumido da seguinte maneira: caso um homem se depare com a opção entre fazer ou evitar um determinado curso de ação, e ele saiba ou acredite que perseguir este curso de ação será ruim para ele ao todo, mas também prazeroso, e portanto possua tanto o desejo racional de evitar o mal quanto o desejo pelo prazer que este curso de ação oferece, então o seu desejo de evitar o mal é mais forte do que o seu desejo pelo prazer. Por outro lado, se este mesmo indivíduo acredita ou sabe que o prazer da dita ação é maior do que os seus malefícios, então o seu desejo pelo prazer é mais forte do que o seu desejo de evitar os malefícios. No contexto da República, portanto, o ‘princípio valor-força’ implicaria em que, no caso de conflito entre um desejo racional e um desejo apetitivo, o

34

(SANTAS, 1969, P. 186-188).

162 desejo racional, que é o desejo por aquilo que o agente julga ser melhor ao todo para si, seja mais forte que o desejo apetitivo. Mas será mesmo razoável sustentar isso? Para que tal tese seja devidamente analisada, é necessário que nós esqueçamos momentaneamente o problema da incontinência e analisemos essa hipótese em separado. Será mesmo razoável afirmar que segundo Sócrates – ou Platão – o homem age sempre de acordo com o desejo que é mais forte dentro dele e que, portanto, as ações humanas devem ser explicadas através da referência aos desejos do agente e às suas forças relativas? A meu ver, essa hipótese tem menos méritos do que deméritos. De fato, nós dizemos corriqueiramente que um determinado indivíduo ‘quis mais’ a opção que ele de fato escolheu, e parece intuitivamente razoável dizer que os indivíduos

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escolhem aquilo que preferem, e que preferem aquilo que desejam mais do que as outras coisas. O problema, no entanto, é que o que Vlastos e Santas sugerem é que existe uma relação direta entre o valor relativo dado por um indivíduo a um objeto, ou uma ação, e a força relativa do desejo que impele tal indivíduo por esta ação. Ora, mas que ‘força’ é esta? Dado que trata-se de comparar desejos, parece razoável pressupor que ‘ser mais forte’ é o mesmo que ‘ser mais intenso’, e que ‘querer mais’ implicaria, portanto, ‘querer mais intensamente’. Se isto estiver correto, o que o princípio valor-força afirmaria é que toda ação empreendida pelo sujeito é explicável a partir da correlação entre as relações de força, isto é, de intensidade, dos desejos que o agente possui na hora da ação. Isso equivale a afirmar, por exemplo, que um homem que opta por não satisfazer sua fome quando está faminto, ou sua sede quando está sedento, possui naquele mesmo momento, isto é, enquanto está faminto ou sedento, um outro desejo dentro de si que é mais intenso do que sua sede ou sua fome. Tal hipótese não só não parece verossímil como é também, a meu ver, desnecessária. Com efeito, toda a argumentação que foi desenvolvida até aqui procurou explicar as ações de um indivíduo não tendo por referência os desejos que tal indivíduo tem em si no momento da ação, mas sim os fins práticos adotados por tal indivíduo. Tal argumentação não pressupõe, é claro, que os desejos de um agente são irrelevantes para a explicação de sua ação. O que proponho é somente que esses desejos só podem ser satisfeitos na medida em que tal indivíduo toma a satisfação desses desejos como fim de sua ação.

163 Que a intensidade de um desejo deva, em certos casos, ser levada em consideração na hora em que um indivíduo opta por sua satisfação também nos parece certo. Afinal, de início e na maioria das vezes, parece razoável afirmar que quanto mais fome um indivíduo tenha mais ele precisará se alimentar. No entanto, haverá sem dúvida casos nos quais os indivíduos terão de restringir desejos intensos em nome de seu bem estar. Pois não é verdade que quanto mais intenso seja um desejo mais digno de ser satisfeito ele é. Isso é particularmente claro no caso dos desejos apetitivos, que podem se tornar muito intensos em consequência de doenças e outros estados alterados. Devemos nós presumir que todo homem que resiste a tais desejos possui – no momento em que age – um desejo racional dentro de si que supera seus apetites em intensidade?

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Creio ter mostrado que Platão não precisa dessa hipótese. Com efeito, se nossa interpretação está correta, Sócrates mantém, na República, que todos os homens desejam o bem a despeito de afirmar, talvez pela primeira vez, que nem todos os desejos que os homens têm são sequer influenciados por um juízo de valor. Mais do que isso, o filósofo afirma que tais desejos pertencem a uma instância motivacional perfeitamente capaz de dominar a alma. Esse domínio, no entanto, não se dá quando tal instância se torna a fonte de desejos tão intensos que o homem não consegue mais resistir a ela. Ele se dá quando o homem se convence de que a satisfação dos desejos oriundos dessa instância deve orientar o seu modo de vida, e ele só pode se convencer disso se acreditar que essa mesma satisfação o conduzirá à felicidade. Em suma, o que proponho aqui é que Platão não sustentava o princípio valor-força porque sustentava um modelo teleológico de explicação da ação que adota o bem e a felicidade como, respectivamente, o fim prático e o fim último das ações humanas. De acordo com esse modelo, a importância de um desejo para um dado indivíduo no que diz respeito às suas ações deve ser explicada não pela intensidade deste desejo, mas sim pela importância relativa deste desejo na maneira como tal indivíduo concebe a vida feliz. Não é necessário, portanto, presumir que um dado valor implica numa dada intensidade porque segundo Platão são os valores adotados pelos sujeitos, e não a intensidade relativa de seus desejos, que explicam a maneira como tais indivíduos se comportam.

5 O ato voluntário em Aristóteles 5.1 As duas investigações do conceito Neste capítulo, analiso o pensamento aristotélico sobre o ato voluntário. Há duas elaborações desta ideia nas obras de Aristóteles, uma no segundo livro da Ética a Eudemo (EE), provavelmente o mais antigo, e outra no terceiro livro da Ética a Nicômaco (EN), o preferido por quase todos os especialistas. Dada esta preferência, me parece prudente seguir aqui o movimento da exposição contida nesta segunda obra. Ao longo do caminho, e na medida em que for pertinente,

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citarei trechos da análise da EE. De início, creio ser importante fazer duas observações preliminares. A primeira diz respeito à importância da investigação aristotélica acerca do voluntário para o nosso trabalho e à razão pela qual decidimos dedicar a ele um capítulo inteiro. A segunda observação diz respeito à tradução do termo grego proposta aqui. Após tais observações, analisarei o conceito, levando em consideração os textos pertinentes tanto da EN quando da EE, assim como alguns trechos importantes da Retórica e da Física. Tendo esclarecido suficientemente o conceito, responderei a algumas críticas das quais ele foi alvo ao longo do século XX. No final do capítulo, discutirei o argumento aristotélico contra o paradoxo socrático que afirma que a injustiça é involuntária.

No que diz respeito à comparação entre o conceito

socrático e o conceito aristotélico do ato voluntário, creio que, tendo em vista a ordem e a clareza da exposição, o melhor será adiá-la para a conclusão.

5.2 Aristóteles e o paradoxo socrático Como já ressaltaram Gauthier e Jolif, o estudo aristotélico da virtude em geral é na verdade um exame dos grandes problemas socráticos da vida moral, e o argumento desenvolvido por Aristóteles acerca do voluntário e do involuntário tem por objetivo explícito criticar a explicação socrática do vício. Segundo os autores:

165 Para Aristóteles, a submissão da doutrina socrática do vício a um exame crítico era algo de primeira necessidade porque a dita doutrina era profundamente enraizada na cultura grega, e porque as crenças das quais ela era a transposição deveriam assegurar ao seu desenvolvimento um terreno favorável. Não foi o grego sempre inclinado a pensar que o homem é o brinquedo de suas paixões, que o obrigavam a despeito de si mesmo a executar atos dos quais nós não poderíamos tê-lo como verdadeiramente responsável? Trata-se de uma das molas da tragédia, e nós veremos Eurípides se fazer seu teórico. Mas constrangimento, como ele dirá, ou ignorância, como diz Sócrates, é a única diferença: para um como para o outo, o vicioso age involuntariamente (GAUTHIER, R. A.; JOLIF, J. Y, 2002, P. 169).

Sobre Eurípides e sobre o quadro evolutivo oferecido por Gauthier e Jolif no que diz respeito à akrasia, nós já falamos no final de nossa introdução35. O que importa aqui ressaltar é que a investigação aristotélica visa provar, contra a crença popular no caráter irresistível da paixão e contra a doutrina socrática do vício,

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que, se a virtude é voluntária, então o vício também é voluntário. No entanto, ainda que o maior interesse de Aristóteles seja a explicação do vício, a investigação aristotélica do ato voluntário não pode deixar de tocar na questão da incontinência. Como nós vimos anteriormente, para Sócrates a akrasia era apenas mais um caso de uma ação feita por ignorância e, portanto, involuntariamente. Como nós veremos, para Aristóteles somente um tipo de ignorância é pertinente para a classificação de um ato como voluntário ou involuntário. O incontinente, segundo Aristóteles, não é alguém que age involuntariamente, embora possa ser, em certo sentido, classificado como ignorante. Podemos ver, portanto, que a investigação aristotélica a respeito do ato voluntário é de grande importância para nossa questão, e que nos será necessário chegar a uma compreensão adequada desta investigação, assim como das conclusões que ela autoriza, antes de passarmos para a análise da investigação aristotélica sobre a akrasia. Com efeito, se é na investigação da akrasia contida no livro VII da EN que devemos buscar a compreensão aristotélica do fenômeno, é somente após compreendermos como Aristóteles pensa o ato voluntário que compreenderemos porque o ato incontinente é, segundo o filósofo, voluntário. É este justamente o objetivo principal do presente capítulo. Tendo deixado claro os motivos que guiam a nossa escolha, passo agora para a justificação da tradução adotada aqui para os principais termos da investigação. O que traduzo aqui por voluntário diz-se em grego hekon (que se diz 35

Cf. P. 34-36.

166 do sujeito que age) e hekousios (que se diz da coisa que é feita), e o que traduzo por involuntário, akon e akousios. Embora ainda hoje esta opção de tradução seja geralmente aceita, ela foi repetidamente criticada ao longo do século XX. Será conveniente, portanto, começar justificando nossa opção de tradução através do confronto com seus críticos mais conhecidos. Para Gauthier e Jolif, as palavras ‘voluntário’ e ‘involuntário’ carregam consigo toda uma ‘filosofia da vontade’ que Aristóteles jamais soube elaborar. Segundo os autores, a utilização da tradução proposta aqui se utiliza de palavras eruditas através das quais a filosofia da vontade de exprimirá adulta, e acaba por tornar ininteligíveis os primeiros balbucios desta teoria (GAUTHIER, R. A.; JOLIF, J. Y, 2002, P. 170). As palavras de Aristóteles, ao contrário, seriam

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palavras familiares, que possuem um sentido vago mas rico. Os autores propõem traduzi-las, em francês, por “de son plein gré” e “malgré soi”. Além disso, os autores nos chamam a atenção para o fato de que Aristóteles, na EN, afirma que o cachorro que morde a própria pata o faz ‘hekousios’. Como os animais não possuem vontade, nos dizem eles, a tradução que propomos aqui é ruim (GAUTHIER, R. A.; JOLIF, J. Y, 2002, Volume II.1, p. 179). Outro argumento deste tipo foi defendido também por David Charles. Segundo o autor, uma vez que na EN Aristóteles classifica as chamadas ‘ações mistas’ como voluntárias, e que nós as classificamos somo feitas sob constrangimento, devemos reconhecer então que a classificação aristotélica diz respeito ao ato não em seu ser voluntário, mas em seu ser “intencional” (CHARLES, 1984, P. 60-61). Contra o primeiro argumento de Gauthier e Jolif, me limitarei a dizer que a adoção dos termos voluntário e involuntário não nos compromete com nenhuma concepção prévia destas palavras, e que o objetivo de nosso trabalho é determinar, através de um estudo formal, qual a definição que destes conceitos nos é dada no corpus aristotélico. Além disso, não me parece correto afirmar que as palavras voluntário e involuntário sejam empregadas exclusivamente em contextos eruditos ou técnicos. Ao contrário, creio que tais palavras ainda são utilizadas em nossa vida cotidiana de forma corriqueira, e que é exatamente por isso que elas são aptas a traduzir os termos da investigação aristotélica. Por último, também não creio que as expressões sugeridas pelos autores são melhores para exprimir o pensamento aristotélico. Com efeito, diz-se em francês que alguém fez algo ‘de

167 son plein gré’ quando ele o fez de acordo com sua própria vontade, gosto ou conveniência, ou ainda amigavelmente. Como veremos, Aristóteles confere uma extensão maior ao ato voluntário do que a sugerida por tal expressão. O segundo argumento de tais autores e a objeção de Charles, por outro lado, partem do mesmo princípio: eles pretendem nos convencer de que uma vez que Aristóteles classifica como voluntárias determinadas ações que nós classificamos de forma diferente, então nós devemos mudar nossa tradução. Discutirei a natureza de tais ações e a classificação proposta por Aristóteles mais adiante. Por ora, direi apenas que quando comparamos a investigação que encontramos na EE com a investigação contida na EN, percebemos que Aristóteles muda sua classificação tanto no que diz respeito aos animais quanto às

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ações mistas, sem no entanto mudar nem a palavra que designa seu objeto de estudo e nem as linhas primordiais de sua investigação (EE 1222b19-21, 1225a17-19). Nós vemos, portanto, que se trata de uma mudança da posição filosófica de Aristóteles, e não do seu objeto de estudo. Além disso, como já notou Heinaman (HEINAMAN, 1986, P. 129-130), essa oscilação do tratamento aristotélico é, por si só, um motivo forte para preferirmos traduzir hekon por voluntário e não por intencional: com efeito, no que diz respeito às ações mistas, não faz o menor sentido hesitar em classificá-las como intencionais ou não intencionais, dado que elas pertencem claramente ao primeiro grupo, mas faz todo o sentido que a classificação de tais ações como voluntárias seja controversa. No que diz respeito à tradução proposta por Charles, é importante ressaltar ainda que o ato voluntário foi distinguido do ato intencional por ninguém menos que a própria Anscombe, já no final de seu livro Intention. Segundo a autora: A distinção entre o voluntário e o intencional parece consistir no seguinte: (1) Meros movimentos físicos, a cuja descrição a pergunta “Por quê?” é aplicável, são chamados voluntários ao invés de intencionais quando (a) a resposta é p.e. “Eu estava brincando (fiddling)”, “foi um movimento casual”, ou até “eu não sei porquê”, (b) os movimentos não são considerados pelo agente, embora ele possa dizer no que eles consistem se ele os considerar, (...) (2) Alguma coisa é voluntária embora não seja intencional se ela é o resultado concomitante e previamente conhecido da ação intencional do agente, de modo que ele pudesse tê-lo evitado se ele tivesse desistido da ação; mas não é intencional: rejeita-se a pergunta “Por quê?” quando é aplicada a ela. De outro ponto de vista, no entanto, tais ações podem ser chamadas de involuntárias, se o agente se arrepende muito delas, mas se sente ‘compelido’ a persistir na ação intencionalmente a despeito disso. (3) Coisas podem ser voluntárias sem que tenham sido feitas pelo próprio

168 indivíduo, se tiverem acontecido em prol de seu divertimento, de modo que o indivíduo tenha consentido e nem protestado ou tentado evitá-las; como, por exemplo, quando alguém na margem empurra um barco para dentro do rio de modo a carregar-nos para nosso divertimento. (...) (4) Toda ação intencional é também voluntária, embora, como foi dito em (2), as ações intencionais possam ser descritas como involuntárias de outro ponto de vista, como quando alguém se arrepende ‘de ter que’ fazê-las. Mas ‘relutante’ seria a palavra usada mais comumente nesse caso (ANSCOMBE, G. E. M, 1957, p. 89-90).

Se o que propõe Anscombe está correto, será prudente evitar toda assimilação apressada do ato voluntário com o ato intencional. Creio ter dito o suficiente para justificar a manutenção da tradução adotada aqui. No que diz respeito à oscilação de Aristóteles diante das chamadas ações mistas, ela parece evidenciar a dificuldade encontrada pelo filósofo para classificar tais ações, e não uma mudança no objeto de sua investigação. Sendo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

assim, o que é necessário não é simplesmente excluir uma formulação da questão em detrimento de outra, que nos parece mais fácil ou mais aceitável, mas sim colocar lado a lado as duas formulações e suas respectivas fundamentações. É somente assim que poderemos descobrir como, segundo Aristóteles, tais ações devem ser classificadas. É este o procedimento que será adotado aqui no que diz respeito não somente a tais ações, mas também aos demais pontos de discordância que encontrarmos entre a investigação da EN e da EE. 5.3 Reprovação, louvor e os limites do constrangimento As primeiras linhas da EN já nos dão uma clara ideia da importância do conceito de ato voluntário no pensamento aristotélico. Segundo Aristóteles: Uma vez que a virtude diz respeito às afecções e às ações, e que somente as ações voluntárias são objeto de louvour e reprovação, as ações involuntárias são objeto de tolerância ou até mesmo de pena. Logo, é sem dúvida necessário para o estudante da virtude saber diferenciar o voluntário do involuntário. Tal é igualmente útil para o legislador que estabelece as recompensas e os castigos (1109b30-35)36.

O que lemos aqui se encaixa bem com o que é dito na EE (II 6, 1222b8-20), onde Aristóteles afirma que o homem é o único ser vivo capaz de ser princípio não 36

As traduções do texto grego para o português contidas neste capítulo e no próximo são todas do autor, e feitas com a ajuda da tradução inglesa das edições Loeb.

169 apenas de outros seres vivos, mas também de ações. É a forma como ele exerce essa capacidade que determina se o ato foi voluntário ou involuntário. O homem é o princípio de suas ações enquanto causa delas, mas se as ações são as consequências necessárias do que o homem inicia, esta necessidade é de um tipo especial. Na verdade, não podemos dizer que as ações dos homens são estritamente necessárias, isto é, que elas devem necessariamente acontecer. Muito pelo contrário, as ações que o homem faz podem sempre não ocorrer. A necessidade que caracteriza as ações humanas, portanto, é o tipo de necessidade que Aristóteles chama de necessidade hipotética. As ações empreendidas pelos homens só são necessárias para o fim preciso que o indivíduo que as empreende deseja alcançar. É por isso que dizemos que o homem é ele mesmo causa de tudo que ele pode fazer ou não fazer.

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Sendo a virtude e os vícios dignos de louvor e de reprovação, e tendo em conta que a reprovação e o louvor são dirigidos não ao que acontece por constrangimento (ananke), fortuna (tyche), ou natureza (physis) (EE 1223a10-15), mas às coisas de que nós mesmos somos causa, é óbvio, diz o filósofo, que a virtude e o vício dizem respeito às ações cuja causa e princípio são o próprio homem, isto é, às ações voluntárias, e não às ações involuntárias. Separar as ações voluntárias das involuntárias, no entanto, não é tão fácil quanto parece. Na EN, Aristóteles começa explicando o ato involuntário, buscando alcançar uma determinação do ato voluntário por exclusão. Segundo o filósofo, acredita-se geralmente que o ato é involuntário quando é feito sob constrangimento (bia) ou por ignorância, e que é feito por constrangimento tudo aquilo que tem início fora de nós e ao que nós não prestamos nenhuma ajuda. Os dois exemplos claros de atos feitos por constrangimento que Aristóteles nos dá são extremamente restritos. Segundo o filósofo, agimos por constrangimento quando somos levados para algum lugar, seja pelo vento ou por pessoas que nos mantêm em seu poder (1109b35-1110a5). No entanto, já nos tempos de Aristóteles falava-se em constrangimento para descrever outros tipos de ação. É o caso das chamadas ações mistas, cuja classificação já era bastante debatida naquela época. São ditas mistas as ações realizadas por medo de represálias ou de algum mal futuro, e as ações más que são feitas tendo em vista objetivos nobres. Os dois exemplos dados por Aristóteles são o homem que joga a carga de seu barco no mar durante a tempestade, e o homem que é forçado por um tirano a realizar um ato reprovável quando este tem sua

170 família sob seu poder. A classificação de tais ações é tão difícil que o próprio Aristóteles oscila em seus tratamentos do problema. Na EE, o filósofo nos diz que nós poderíamos talvez dizer que alguns desses atos são necessários e outros não, e que seriam necessários aqueles cuja realização ou não realização não depende de nós. Nós diríamos então que nós fomos forçados, em certo sentido, a realizá-los, pois não escolhermos estes atos por si mesmos, mas sim os fins em vista dos quais os realizamos. Segundo tal explicação, nós seríamos forçados a realizar uma ação quando (1) não temos outro meio de alcançar o fim que nós desejamos, (2) quando sofreríamos um mal maior caso não a realizássemos, ou (3) quando fazemos algo de mal para alcançar um bom fim. Ao fim da análise das ações mistas na EE, o filósofo nos diz que o que

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depende de nós é aquilo que nossa natureza é capaz de suportar. Dado que certos pensamentos e certas afecções são insuportáveis, nos diz o filósofo, os atos conformes a tais pensamentos e tais afecções não dependem de nós. Como podemos ver, portanto, na EE Aristóteles aceita que algumas das chamadas ações mistas sejam classificadas como involuntárias. Ao que tudo indica, no entanto, Aristóteles não ficou satisfeito com tal posição. Prova disso é que na EN encontramos uma explicação substancialmente diferente das ações mistas. Neste livro, o filósofo nos diz que tais ações podem ser chamadas de mistas, mas que elas se assemelham mais às ações voluntárias porque eles foram escolhidas (airetai, 1110a17-20, 1110a12-24). Como prova do pertencimento de tais ações ao campo do voluntário, Aristóteles nos diz que mesmo que às vezes elas possam ser motivo de pena (1110a24-26), elas também podem ser objeto de reprovação e de elogio. Nós poderíamos pensar, é verdade, que Aristóteles pretende separar dentre as ações mistas, as que são voluntárias das que são involuntárias. Nós diríamos, então, que embora o exemplo do homem que joga a carga ao mar durante a tempestade não seja um exemplo de uma ação involuntária, uma vez que tal homem deve ser elogiado por colocar a sua vida e a de seus companheiros acima da perda pecuniária implicada por sua ação, o exemplo da ação vergonhosa realizada sob ameaça da própria vida ou da vida de seus amigos e familiares seria um exemplo de ação involuntária, dado que o homem que realiza tal ação é digno de pena e indulgência.

171 No entanto, Aristóteles é bem claro quando classifica os dois exemplos dados como exemplos de ações voluntárias. Segundo o filósofo: (…) no momento em que são realizadas, elas [as ações mistas] foram escolhidas, e o fim de uma ação varia de acordo com a ocasião, de forma que os termos ‘voluntário’ e ‘involuntário’ devem ser aplicados em referência ao momento da ação. Fazemo-las [as ações mistas], portanto, voluntariamente, pois nestes casos o princípio do movimento das partes do corpo reside no agente que pratica o ato, e quando o princípio reside no agente, depende dele realizá-lo ou não. Tais ações são, portanto. voluntárias, embora talvez involuntárias se pensadas de forma separada de suas circunstâncias – pois ninguém escolheria uma tal ação por si mesma (1110a15-20).

Para o filósofo, portanto, nenhuma ação mista pode ser considerada involuntária, uma vez que tal classificação não deve deixar de considerar as

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circunstâncias nas quais a ação foi realizada. Para sustentar tal classificação, Aristóteles nos diz que, apesar da indulgência causada por alguns desses atos, devemos

necessariamente

reconhecer

que

existem

ações

que

jamais

concordaríamos em realizar, e às quais preferiríamos mesmo sofrer a morte mais terrível. Sendo a forma como respondemos a essas tentativas de coação objeto de louvor ou reprovação, ela é necessariamente voluntária. O objetivo do filósofo na análise das ações mistas da EN parece claro: Aristóteles quer estabelecer o que pode ser considerado como uma verdadeira força de constrangimento, separando estes casos daqueles que poderíamos descrever como casos de coação. Ao negar que a ameaça de futuros sofrimentos, assim como o desejo de realizar um fim bom através de uma ação má, seja uma força capaz de constranger-nos, Aristóteles busca evitar que todas as ações executadas para evitar o mal ou para fazer algo de nobre através do mal sejam classificadas como involuntárias. Ainda assim, no entanto, poder-se-ia objetar que, em certo sentido, em tais casos os homens são forçados a escolher uma determinada ação. Quando falamos dessa forma, no entanto, o que estamos dizendo é que o estado de coisas no qual estão dispostas as alternativas que esses homens têm diante de si foi criado por uma força externa. Quando tal situação se dá, nós às vezes dizemos que agimos sob coação. Esta força externa, no entanto, não nos obriga a escolher uma determinada opção. Ela define as opções entre as quais devemos escolher. Ora, Aristóteles diz explicitamente na EN e na EE que o ato que resulta de uma escolha preferencial (prohairesis) é sempre voluntário, embora nem todo ato

172 voluntário seja fruto de uma escolha preferencial (EN 111b4 -8, EE 1226b34-38). A definição da escolha preferencial, por sua vez, permanece praticamente a mesma em ambos os tratados. Assim, se na EE o filósofo nos diz que fazer uma escolha preferencial é tomar uma coisa em detrimento de outra, o que é impossível sem exame e deliberação (1226b5-10), na EN ele nos diz que o que foi escolhido preferencialmente é o que foi escolhido antes de outras coisas (1112a13-15). Parece, portanto, que há escolha preferencial sempre que o agente se depara com pelo menos duas opções dentre as quais ele deve escolher, e que essa escolha é feita a partir de uma deliberação prévia. Como nós não temos nenhuma razão para supor que as ações mistas não atendem a esses requisitos, elas devem ser classificadas como voluntárias. No caso de ações mistas, portanto,

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não podemos falar propriamente nem em ignorância e nem em constrangimento. No que diz respeito ao constrangimento, no entanto, somos forçados a concluir que, a rigor, segundo Aristóteles, ninguém é jamais constrangido a realizar ação nenhuma, pois um homem pode sempre escolher fazer ou não fazer uma ação. Se nos lembrarmos bem, os exemplos dados pelo autor de ações realizadas por constrangimento foram ser levado para algum lugar, seja pelo vento ou por pessoas que nos mantêm em seu poder (1109b35-1110a5). Ora, a rigor tais exemplos não nos mostram ações feitas, mas sim sofridas pelo agente de forma involuntária. Tal conclusão, ademais, parece perfeitamente plausível, uma vez que é forçoso reconhecer que nós podemos sofrer ações de forma voluntária ou involuntária. Basta pensar nas intervenções médicas às quais nos submetemos tendo em vista melhorar nossa saúde, e para as quais muitas vezes devemos nos preparar com antecedência. Se nossa interpretação está correta, o primeiro critério dado por Aristóteles para separar as ações voluntárias das involuntárias diz respeito não às ações realizadas por um agente, mas sim às ações sofridas por um paciente (ROSS, 1995, p. 204). Essa explicação, vale ressaltar, tem a virtude de se adequar bem a uma leitura do ato voluntário feita a partir da teoria aristotélica das quatro causas. Como sabemos, Aristóteles distingue quatro tipos de causa: material, formal, motora e final. Além disso, para o filósofo não existem somente quatro tipos de causas, mas também várias causas da mesma coisa, e coisas que mantêm relações causais recíprocas umas com as outras, mas não no mesmo sentido. Uma coisa pode ter várias causas do mesmo tipo, mas dentre as causas que são do mesmo

173 tipo algumas são anteriores e outras posteriores, o que significa que existem causas ‘mais próximas’ e ‘mais distantes’ do evento. É preciso esclarecer, portanto, que o homem pode ser causa de suas ações em mais de um sentido. Para que haja constrangimento, no entanto, é preciso somente que o homem não seja a causa motriz da ação que ele sofre, isto é, que ele não esteja realizando tal ação sobre si mesmo, e que ele não participe em nada no que diga respeito à realização da ação (NATALI, 2010, P. 319). Explico: um homem pode sofrer involuntariamente uma cirurgia que visa melhorar sua saúde, quando, por exemplo, ele tem objeções de cunho religioso à realização de tal procedimento. Neste caso, dado que a finalidade da ação é o paciente, isto é, a melhoria de sua saúde, talvez pudéssemos afirmar que o agente é a causa final da

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ação, no sentido de que é por sua causa, tendo em vista o seu bem, que ela é realizada. Não obstante, ele não se submeteu a ela voluntariamente. O que foi dito até aqui deve ser suficiente para que compreendamos o porquê da classificação das ações sofridas sob constrangimento, e somente de tais ações, como involuntárias. Com efeito, é fácil compreender por que o filósofo concede que tais ações sejam involuntárias, mas rejeita duramente o que alguns chamam hoje de “constrangimento psicológico” como verdadeiros casos de constrangimento. Para Aristóteles, é bastante claro que nestes casos a causa motriz da ação não é um princípio externo ao homem. Nas palavras do filósofo: Será que nenhuma das nossas ações que são causadas pela raiva (thumon) ou pelo apetite (epithumían) são voluntárias, ou seriam as ações nobres voluntárias e as ações vergonhosas involuntárias? Isto é certamente absurdo, na medida em que a mesma pessoa é a autora de ambas. (...) que diferença pode existir, no que diz respeito ao seu ser involuntário, entre os erros de cálculo (katá logismon) e os devidos à raiva (thumón)? Ambos devem ser evitados, e nós acreditamos que nossas afecções irracionais também são parte de nossa natureza, de forma que as ações feitas por raiva ou apetite também pertencem ao homem que as faz. Seria, portanto, estranho classificá-las como involuntárias (EN 1111a24-1111b4).

Ainda que aceitemos a explicação do constrangimento oferecida aqui, nos resta, no entanto, a tarefa de explicar o porquê da classificação das ações feitas por ignorância fora do campo do voluntário. De início, vale ressaltar que não parece claro porque Aristóteles concede à ignorância tamanho peso em sua classificação. Como vimos, o filósofo define o ato voluntário como o ato cuja causa e o princípio residem no próprio agente. Parece, portanto, que para que a

174 ignorância possa ter o peso que Aristóteles lhe concede, o filósofo deveria afirmar que, de alguma forma, a ignorância de um agente reside fora dele. Ora, isto seria absolutamente ridículo. Da mesma forma que não podemos dizer que nossa concupiscência é um princípio externo a nós capaz de nos fazer agir de forma involuntária, nossa ignorância também não parece residir em nenhum outro lugar senão em nós mesmos. De fato, não parece haver nenhuma razão para acreditarmos que o simples fato de que um homem tenha agido por ignorância é suficiente para que possamos afirmar a existência de um princípio externo que possa ser dito causa de sua ação. Poder-se-ia lembrar aqui que na EN Aristóteles diz explicitamente, em 1111a22-24, que o ato voluntário é o ato “cujo princípio encontra-se no agente

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que conhece as circunstâncias específicas em que a ação tem lugar”. Esse trecho, no entanto, simplesmente afirma os dois requisitos propostos pelo filósofo sem justificá-los. Existe alguma relação entre a ignorância das circunstâncias particulares da ação e a residência do princípio da ação fora do agente que a realiza? Ou devemos dizer que estas duas exigências são simplesmente paralelas? Uma compreensão adequada do conceito de voluntário em Aristóteles deve ser capaz de responder a essas perguntas. Para Susan Meyer, a resposta que procuramos deve ser buscada no uso corrente dos termos hekon e akon no grego antigo. Segundo a autora: No grego corrente do tempo de Platão e Aristóteles, a distinção entre atos voluntários e involuntários serve para separar as ações que têm origem (issues from) numa pessoa daquelas que não têm. No entanto, os critérios implícitos que orientam essa separação variam bastante dependendo do contexto. De acordo com um paradigma, a distinção entre voluntário e involuntário separa o que chamaríamos comportamento avisado (witting) e desavisado (unwitting). Édipo, que mata seu pai e casa com sua mãe desavisadamente, age de forma involuntária (Sofócles, Édipo em Colônia 964ff.), assim como o transeunte que perturba o ninho de vespas (Homero, Ilíada 16.263-4). De acordo com um outro paradigma, a distinção é entre o comportamento eletivo (willing) e não eletivo (unwilling). Por exemplo, um mensageiro relutante traz más notícias para o seu Rei de forma involuntária (Sófocles, Antígona 274-7). Quando Zeus ameaça destruir toda a prole de Inachus se ele não expulsar Io, Inachus cede, mas involuntariamente (Ésquilo, Prometeu Acorrentado, 663-72). (MEYER, 2006, P. 141).

Assim, nos diz Meyer, embora Aristóteles tenha rejeitado a classificação dos atos que a autora chama “não eletivos” como involuntários, Aristóteles aceitou classificar como involuntários os atos caracterizados por ela como “desavisados”. Dado que tal classificação emana do senso comum, ela dispensaria

175 justificação. É assim que Meyer explica a importância dada por Aristóteles à ignorância das circunstâncias particulares do ato. Infelizmente, no entanto, esta explicação é insuficiente para esclarecer a classificação dos atos proposta por Aristóteles. Com efeito, no que diz respeito aos atos feitos por ignorância, é importante notar que o filósofo distingue ainda entre a ignorância da qual o indivíduo é a causa e a ignorância da qual ele não é causa. Tal distinção, aliás, está presente nas duas éticas.

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Nas palavras de Aristóteles: Uma vez que compreender (epistasthai) e conhecer (eidenai) possuem dois sentidos, sendo um o de possuir o conhecimento e o outro o de usá-lo, um homem que possui o conhecimento sem utilizá-lo pode ser, em certo caso, adequadamente descrito como ignorante, mas em outro não – a saber, quando ele não se serve do conhecimento por negligência (ameleian). Da mesma forma, nós reprovamos aquele que não possui o conhecimento, se este conhecimento era fácil ou necessário de ser adquirido, e ele não o possui devido à negligência, ao prazer ou à dor. Isto deve, portanto, ser acrescentado à nossa definição (EE 1225b15-18). Com efeito, nós castigamos e obrigamos a reparação àqueles que praticam atos vis, a menos que eles tenham agido sob constrangimento ou por uma ignorância da qual eles mesmos não são a causa, e louvamos aqueles que praticam atos nobres, de modo a encorajar um tipo e desencorajar o outro. Mas ninguém tenta nos encorajar a praticar atos que não dependem de nós e que, portanto, não são voluntários. (...) a ignorância é ela mesma castigada nos casos nos quais o próprio indivíduo é a sua causa. Por exemplo, a penalidade é dobrada caso o infrator esteja bêbado, pois o princípio da ofensa reside no próprio agente, que poderia ter evitado inebriar-se, sendo assim a causa de sua ignorância. (...) e da mesma forma em outros casos nos quais a ignorância é imputada à negligência, pois era possível ao agente ter evitado sua ignorância, ou ter procurado instruir-se (EN 1113b22-1114a3).

Isto significa que, para Aristóteles, se alguém dá veneno para uma pessoa desavisadamente, este ato terá sido voluntário se a ignorância do agente é uma consequência da sua própria negligência, mas não será voluntário se não houve negligência. Sendo assim, não podemos simplesmente afirmar que para Aristóteles os atos feitos desavisadamente estão fora do campo do voluntário porque o indivíduo não sabia o que estava fazendo no momento da ação. Afinal, esse também é o caso nos atos feitos por negligência, e estes são considerados voluntários. A resposta para nossa questão, portanto, deve ser procurada no próprio texto aristotélico, e não no uso corrente do termo na época do filósofo.

176 5.4 Os atos feitos por ignorância Segundo Aristóteles, “o ato feito por ignorância é sempre não voluntário; ele só é involuntário se o agente sente aflição e arrependimento” (EN 1110b1819). Como podemos ver, para Aristóteles devemos dividir as ações não só em voluntárias e involuntárias, mas sim em voluntárias, não-voluntárias e involuntárias. Além disso, ele distingue ainda entre agir por ignorância (di'agnoian) e agir em estado de ignorância (agnoounta). Se é verdade que o texto das éticas tal como ele chegou até nós nem sempre se utiliza desta segunda distinção, creio que ela é suficientemente importante para que nos mantenhamos sempre atentos a ela. Antes de explicar o porquê dessa importância, no entanto, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

farei algumas considerações sobre as diferenças entre o texto da EN e da EE no que diz respeito ao critério da ignorância. Com efeito, em nenhuma parte da EE Aristóteles nos fala em atos nãovoluntários: neste livro, a única separação que vemos é entre o voluntário e o involuntário. Tal tripartição aparece somente na EN. Além disso, devemos notar também que mesmo na EN a classificação de atos como não-voluntários se aplica apenas aos atos feitos por ignorância, não fazendo parte da explicação dos atos feitos por constrangimento. Que sentido devemos dar a esta diferença? Porque Aristóteles tem necessidade de uma tripartição se o senso comum e o próprio Platão só falam de atos voluntários e involuntários? Dado que as obras de Aristóteles contêm duas investigações acerca do voluntário, e que em uma dessas investigações tal tripartição está ausente, a pergunta sobre a pertinência da divisão proposta pela EN nos parece inevitável. Nesse sentido, parece digno de nota que nem todos os especialistas tenham dado a esta tripartição um valor positivo. Segundo Ross, por exemplo, a divisão proposta na EN não tem nenhuma razão de ser. Nas palavras do autor: Essa distinção não é satisfatória. Não existe nenhuma diferença de significado entre ‘involuntário’ e ‘não-voluntário’. Poder-se-ia sugerir que por akousion Aristóteles quer dizer ‘unwilling’ e por oukh ekoúsion ‘involuntário’; mas está claro que não se pode diferenciar os atos que são ‘unwilling’ dos atos meramente involuntários através da referência à atitude adotada pelo agente após o ato (ROSS, 1995, p. 206).

177 Não creio, no entanto, que Ross tenha razão. A meu ver, a patologia do ato involuntário, tal como descrita por Aristóteles nas duas éticas, justifica a tripartição que encontramos na EN. De fato, tanto na EN quando na EE Aristóteles afirma que ato involuntário é sempre acompanhado de arrependimento ou de aflição, e que o ato sofrido por constrangimento é sempre acompanhado de aflição (EE 1223a26-30, 110 b 12-14), mas ele não diz em nenhuma das duas éticas que os atos feitos por ignorância são sempre acompanhados de arrependimento – o que deveria ser o caso se o objetivo fosse classificá-los todos como involuntários, dado que um agente que age por ignorância não sabe o que está fazendo, e portanto não pode sentir aflição durante a realização da ação. Podemos, então, compreender a pertinência da tripartição proposta por Aristóteles. Com a aparição

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do não voluntário, temos a possibilidade de classificar separadamente os atos feitos por ignorância que não são acompanhados de tristeza ou de arrependimento, e nem devidos à negligência. Trata-se, portanto, de um desenvolvimento do qual a teoria ética aristotélica precisava. Creio ter dito o suficiente para justificar a preferência, dentro do contexto do pensamento aristotélico, pela tripartição que encontramos na EN em detrimento da bipartição que vigora na EE. Resta ainda, no entanto, determinar mais exatamente como devemos compreender esta tripartição. Com efeito, alguns especialistas chegaram a defender que o tipo de ignorância que torna um ato não voluntário não é o mesmo tipo de ignorância que torna um ato involuntário. Para McGinley, por exemplo: Existem três grandes tipos de ignorância que são relevantes para a Psicologia do Comportamento Moral [de Aristóteles]. Elas são: f-4-i. Ignorância do fim adequado (i.e., ignorância do que é benéfico) f-4-ii. Ignorância dos universais éticos f-4-iii. Ignorância das circunstâncias particulares que cercam uma ação particular. É claro que, segundo Aristóteles, somente f-4-iii implica em aflição e arrependimento por parte do agente quando ele percebe o que fez. Sendo assim, ações que são devidas à f-4-iii são tanto não voluntárias quanto involuntárias. Existem alguns tipos de caráter cujo comportamento é caracterizado por f-4-i ou f-4-ii. (...) é importante perceber que os critérios dados por Aristóteles forçam o leitor a classificar como não voluntárias (nv) e não involuntárias (ni) ações que são devidas à f-4-i e f-4-ii. (MCGINLEY, 1980, P. 127).

A partir da constatação de que existiriam, segundo Aristóteles, “tipos de comportamento que, em razão da ignorância, não são nem voluntários e nem

178 involuntários” (MCGINLEY, 1980, P. 126), McGinley propõe que nós devemos classificar neste grupo – que ele designa com a fórmula (ni + nv) – os atos que são feitos por ignorância do que é mais vantajoso, isto é, dos universais éticos. Para McGinley, portanto, o que separa as ações involuntárias das não voluntárias é o tipo de ignorância que elas implicam: embora somente (f-4-iii) possa fazer de uma ação um ato involuntário, (f-4-i) e (f-4-ii) são suficientes para fazer com que uma ação seja não voluntária. Se a interpretação proposta por McGinley está correta, então segundo Aristóteles as ações viciosas seriam não voluntárias. Como nós sabemos, segundo Aristóteles o homem vicioso ignora a justa medida, isto é, tanto os universais éticos quanto aquilo que lhe é na verdade mais vantajoso. Se McGinley tiver

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razão, então a diferença que separa Aristóteles de Sócrates e de Platão é bem menor do que se poderia imaginar. Enquanto que para os dois últimos o vicio seria involuntário, para Aristóteles ele seria apenas não voluntário. Mcginley, é importante notar, não foi o único a propor tal tese. Segundo Gauthier-Muzellec: A classe das ações involuntárias é assim reduzida. Ela compreende os atos executados na ignorância das circunstâncias, quando a tomada de consciência a respeito do que foi feito é acompanhada no autor de aflição ou arrependimento, assim como o conjunto já estudado das ações executadas sob a pressão de um constrangimento exterior. Os atos mistos são somente não voluntários, enquanto que as ações executadas na ignorância, sob a influência do vício ou da impulsividade, são elas mesmas não voluntárias (GAUTHIER-MUZELLEC, 2003, P. 179)37.

Se reconhecermos a classificação proposta por tais autores, portanto, Aristóteles não teria cumprido o objetivo que Gauthier e Jolif atribuem a sua investigação. No fim, ainda seríamos forçados a dizer que a ação viciosa não é jamais voluntária. No entanto, se Gauthier-Muzellec permanece calada no que diz respeito aos problemas suscitados por tal leitura, McGinley tem o mérito de expor os inconvenientes por ela implicados. Como nos diz o autor, tal classificação implicaria em sérios problemas para a compreensão da psicologia do comportamento moral delineada por Aristóteles (MCGINLEY, 1980, P. 125). Como nos relembra McGinley, segundo Aristóteles os atos feitos por escolha preferencial são uma subdivisão dos atos voluntários. Isso quer dizer que nenhum ato feito por escolha é nem não voluntário e nem involuntário, ou seja,

37

Cf. também (MEANS, 1927, P. 89).

179 que o fato de que um ato tenha sido realizado por escolha é suficiente para faze dele um ato voluntário. No entanto, se aceitarmos tal classificação dos atos feitos por escolha e a classificação dos atos viciosos proposta acima, então devermos concluir que existem atos que são, sob uma mesma descrição, tanto voluntários quanto não voluntários, o que seria absolutamente contraditório. McGinley nos mostra dois casos de tais atos. O primeiro caso exposto por McGinley é “violador intencional da justiça

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parcial”. Como nos diz o autor: Para que se possa classificar um homem como um violador da justiça parcial de forma não incidental, Aristóteles afirma que determinados critérios devem ser satisfeitos. Eles são: Vpj-1. A questão tem que dizer respeito à ‘honra, bens materiais, segurança ou qualquer termo simples que encontrarmos para exprimir todas estas coisas coletivamente...’ Vpj-2. A motivação do agente tem que ser o prazer oriundo do lucro Vpj-3. O agente deve ter agido voluntariamente Vpj-4. O paciente correspondente à ação do agente deve sofrer contrariamente ao seu desejo (MCGINLEY, 1980, P. 130).

Nós não podemos explorar detalhadamente aqui o pensamento aristotélico acerca da justiça. Ressaltarei apenas que o ponto que McGinley deseja ressaltar se torna claro se observarmos a afirmação contida na EN 1135b25: segundo Aristóteles, “quando o ato procede de uma escolha preferencial, é então que o agente é um homem injusto e mau”. Como nos mostra tal passagem, para o filósofo o homem verdadeiramente vicioso é aquele que age viciosamente e de acordo

com

sua

escolha

preferencial.

Sendo

manifesto,

portanto,

o

reconhecimento de atos viciosos que são consequência de escolhas preferenciais por parte de Aristóteles, e sendo estes atos realizados por um agente que é ignorante da boa medida, devemos reconhecer que tais atos deveriam ser classificados como voluntários e não voluntários. O segundo caso citado por McGinley é o akolastos. Também ele, contrariamente ao akrates, ignora a justa medida e age de acordo com sua escolha preferencial. Em ambos os casos, portanto, nós encontramos um grave problema na diferenciação entre os atos voluntários e os não voluntários que pretende colocar no segundo grupo os atos viciosos. Se nós conservarmos tal compreensão, será difícil não dar razão à McGinley quando ele acusa Aristóteles de tentar conciliar duas explicações incompatíveis do ato voluntário. Segundo o autor, por

180 um lado Aristóteles compreende, seguindo seu mestre, que o conhecimento do bem é suficientemente importante para que sua ausência seja suficiente para que uma ação seja classificada fora do campo do voluntário. Por outro lado, no entanto, o filósofo desejaria também manter a opinião segundo a qual a escolha preferencial – mesmo e sobretudo as escolhas feitas pelos homens maus, cuja vida não está voltada para a busca do verdadeiro bem – são voluntárias. Ora, estas duas opiniões são absolutamente incompatíveis. Daí que McGinley afirme que, na sua opinião, Aristóteles teria feito melhor se tivesse contestado o senso comum, como fizeram Sócrates e Platão (MCGINLEY, 1980, P. 131). Não creio, no entanto, que a divisão proposta por McGinley e GauthierMuzellec esteja correta. Com efeito, até onde sei, tal compreensão não convenceu

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a maioria dos especialistas que se debruçaram sobre o assunto. Nas próximas páginas, apresentarei a leitura dominante a respeito de tal diferença, que creio ser bastante superior, explicarei a diferença entre agir por ignorância e em estado de ignorância, e tentarei também responder à acusação de McGinley segundo a qual Aristóteles estaria tentando reconciliar duas opiniões incompatíveis a respeito do ato voluntário. 5.5 Involuntário e não voluntário Como vimos anteriormente, Aristóteles começa sua explicação da ignorância na EN afirmando que todo ato feito por ignorância é não voluntário, e que tais atos só são involuntários se forem acompanhados de arrependimento por parte do agente. Mais à frente, ele distingue entre agir por ignorância e agir em estado de ignorância, e afirma que nós erramos quando chamamos de involuntário o ato feito pelo indivíduo que ignora aquilo que lhe é mais vantajoso (EN 110b30). Um pouco mais adiante, Aristóteles dirá que a ignorância capaz de tornar o ato involuntário é a ignorância das particularidades da ação. Nós podemos, então, compreender de que forma McGinley e GauthierMuzellec chegaram a formular suas interpretações. Se todo ato feito por ignorância é não voluntário, mas somente os atos feitos por ignorância das particularidades da ação são involuntários, então é plausível que pensemos que os atos feitos por ignorância do que é mais vantajoso são não voluntários. Ora, mas

181 se a distinção tem três termos, devemos ainda considerar a possibilidade de que os atos feitos por ignorância do que é mais vantajoso sejam voluntários. Como vimos, é este o caso, segundo Aristóteles, tanto do akolastes quanto do violador intencional da justiça parcial. De fato, o que o filósofo nos diz é que “o ato feito por ignorância [di’agnoian] é sempre não voluntário; ele só é involuntário se o agente sente aflição e arrependimento” (EN 1110b18-19). Mais à frente, ele esclarece a diferença entre agir por ignorância (di'agnoian) e agir em estado de ignorância (agnoounta). É ao estabelecer essa diferença que Aristóteles começa a se afastar do famoso paradoxo socrático que afirma que o vício é involuntário. Segundo Aristóteles, o homem que age ignorando aquilo que lhe é mais vantajoso age em

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estado de ignorância, mas não por ignorância. Este tipo de ignorância, que o filósofo chama de ignorância na escolha ou ignorância do universal ético, não é pertinente para a caracterização de um ato como não voluntário ou involuntário. Ou seja, o que proponho aqui, seguindo a interpretação dominante desta passagem 38 , é que é o mesmo tipo de ignorância que é pertinente para a classificação dos atos como involuntários ou não voluntários, e que a única diferença entre tais atos, em princípio, é que o primeiro tipo provoca arrependimento no agente. O porquê desta diferença, no entanto, só poderá ser elucidado um pouco mais adiante. Segundo Aristóteles, portanto, de início e na maior parte das vezes, o homem bêbado ou com raiva não age por ignorância, mas sim em estado de ignorância. Além disso, todo homem perverso ignora o que deveria fazer e o que deve evitar, mas, segundo Aristóteles, é errado classificar como involuntário o ato de um agente simplesmente porque ele desconhece o que lhe é mais vantajoso. Para o filósofo, não é este tipo de ignorância que faz de uma ação um ato involuntário. Tal ignorância faz de uma ação um ato perverso, e um ato perverso é objeto de reprovação. O que faz com que a ação seja um ato involuntário é a ignorância sobre as circunstâncias particulares envolvidas na ação. Aristóteles determina quais são estas circunstâncias. Segundo ele, nós agimos involuntariamente quando ignoramos o ato (p. ex. falar de coisas secretas sem saber que eram secretas), a coisa que é afetada pelo ato (p. ex. quando

38

Cf. por exemplo (ROSS, 1995, P. 205).

182 tomamos nosso filho por um inimigo), o instrumento através do qual agimos (p. ex. quando tomamos uma pedra de polimento por uma pedra de afiar), o efeito gerado pelo ato (p. ex. quando matamos um homem tentando salvar-lhe a vida) ou a maneira através da qual agimos (p. ex. se agimos de forma violenta quando pretendemos agir gentilmente). O homem que ignorou qualquer uma destas circunstâncias deve ser considerado como tendo agido de forma não-voluntária ou, se e somente se ele se arrepender, involuntária (EN 1110b17)39. A ignorância sobre as circunstâncias da ação por si só, portanto, não é suficiente para classificar um ato como involuntário. A essa ignorância deve se juntar um arrependimento que tais ações só acarretam de vez em quando, ou seja, acidentalmente. No entanto, devemos sim reconhecer que esse tipo de ignorância

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é suficiente para colocar uma ação fora do campo do voluntário. O porquê disso, no entanto, ainda não foi explicado. É a essa explicação que passarei agora. Retomemos mais uma vez os exemplos dados por Aristóteles desse tipo de ação: falar sobre coisas secretas sem saber que eram secretas, tomar nosso filho por um inimigo, tomar uma pedra de polir por uma pedra de amolar, matar alguém dando-lhe uma poção com a intenção de salvar a sua vida, fazer algo violentamente ao invés de gentilmente. Ora, é fácil ver que todos os exemplos dados descrevem ações acidentais. Poderíamos pensar, portanto, que as ações que são fruto desse tipo de ignorância resultam sempre em acidentes, e que uma ação acidental não pode, por definição, ser voluntária. Esta hipótese é confirmada quando constatamos, seguindo Rossi, a relação estrutural entre o que Aristóteles chama de “fortuna” (tyché), na Física (II 5-6), e sua descrição das ações que são o resultado da ignorância nos tratados éticos (ROSSI, 2011, p. 249). 39

Como podemos ver, fica aberta a possibilidade de um indivíduo bêbado ou vicioso combine em sua ação a ignorância do que lhe é mais vantajoso com a ignorância das circunstâncias particulares da ação como, por exemplo, quando um bêbado se envolve numa briga de bar e acaba acertando um golpe em um de seus companheiros. Em tais casos, é claro, apenas a ignorância das circunstâncias particulares é determinante para a classificação da ação como involuntária ou não voluntária, sendo a ignorância do que é mais vantajoso uma característica acidental do ato. Sendo assim, podemos afirmar que, para Aristóteles, o simples fato de que um homem esteja bêbado ou seja mal não implica que ele vá agir involuntariamente, embora possa vir a ocorrer que ele assim o faça caso aja por ignorância das circunstâncias particulares. Além disso, e contrariamente ao que talvez se pudesse esperar, a exceção aberta por Aristóteles no que diz respeito aos atos cometidos por ignorância das circunstâncias particulares nos casos em que tal ignorância é causada pela negligência do agente não faz com que sejamos forçados a afirmar que todo homem bêbado age de forma voluntária porque foi negligente ao se embebedar. Com efeito, pode perfeitamente acontecer que o ato realizado por tal homem seja fruto de uma ignorância que não podia ser evitada, e que, portanto, não foi causada por sua negligência. O simples fato de que um homem esteja bêbado quando fala de coisas secretas sem saber que eram secretas não significa que esta ignorância era evitável, ou que este conhecimento era necessário e nem fácil de ser adquirido.

183 Na Física, Aristóteles nos diz que dentre as coisas que fazem parte do devir, algumas acontecem em vista de algo, outras não, e que são em vista de algo todas as coisas que são realizadas pelo pensamento, incluindo aí todas as coisas que são feitas seja por escolha preferencial seja sem, e tudo que é feito pela natureza. Segundo Aristóteles, é devido à fortuna tudo aquilo que é do domínio da ação, e que poderia ter sido feito tendo em vista o fim alcançado mas que não foi feito tendo em vista tal fim. O exemplo dado pelo filósofo é o de um homem que poderia ter ido para a Ágora tendo em vista recuperar um dinheiro que ele havia emprestado, caso ele soubesse que seu devedor estaria lá. Se, no entanto, tal homem não foi para a Ágora com este objetivo, mas ainda assim encontrou o homem e recuperou seu dinheiro, nós dizemos então que isso aconteceu por

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acidente. A fortuna é definida, então, como uma “causa por acidente (katá symbebekós) que acontece dentre as coisas que, sendo em vista de alguma finalidade, acontecem por escolha” (Física, 197a6-7). Como podemos ver, o exemplo dado por Aristóteles poderia perfeitamente ilustrar um caso de ação feita por um indivíduo que ignora o resultado de sua ação. Se o exemplo parece diferente dos que encontramos nas éticas, isso se deve somente ao fato de ele retratar uma ação que teve um final feliz. Ora, a fortuna é boa quando algo de bom acontece e má quando algo de mau acontece: existe sorte e azar. Nós diremos, então, que uma ação feita por ignorância é involuntária se o resultado é infeliz, o que acarreta o arrependimento, mas que se o resultado é feliz, ou mesmo se não acontece nada de ruim ou bom, devemos dizer então que a ação foi não voluntária. Como ressalta Rossi, tal interpretação encontra ainda outra confirmação numa passagem do primeiro livro da Retórica. Lá, Aristóteles nos diz o seguinte: Ora, em todos os casos, o agente ou bem é a causa ou bem não é a causa da ação. No primeiro caso, os atos são cometidos seja por fortuna (tyché) seja sob constrangimento (1368b33-35).

Como vimos anteriormente, na EN Aristóteles nos diz que nós não somos responsáveis pelas ações feitas por constrangimento ou por ignorância. Já na EE, no entanto, o filósofo nos diz que nós elogiamos e reprovamos não aquilo que acontece por necessidade, fortuna (tyché) ou natureza (EE 1223a10-15), mas somente aquilo que depende de nós. Agora, nós vemos que também na retórica o filósofo nos fala das ações que são causadas pela fortuna, afirmando que as ações

184 das quais nós não somos causa são feitas por constrangimento ou por acidente. Tanto na Retórica quando na EE, portanto, a fortuna aparece no lugar da ignorância sobre as particularidades do ato, assim como a necessidade (ananke) aparece no lugar do constrangimento (bia). Creio que as passagens citadas acima reforçam a interpretação sugerida por Rossi, segundo a qual as ações feitas por ignorância são, segundo Aristóteles, devidas à fortuna. Ora, como sabemos, para Aristóteles, “(...) é necessário que as causas de onde provêm os efeitos da fortuna sejam indeterminadas” (Física 197a8). É porque os efeitos da fortuna são imprevisíveis que o filósofo nos diz que nos casos onde o resultado de uma ação é devido à fortuna o agente não é por ele responsável. Em tais casos, embora seja impossível negar que o agente é causa

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dessas ações em certo sentido, isto é, como princípio do movimento, devemos dizer que o ato não foi voluntário porque, no momento da ação, o indivíduo não tinha como saber no que resultaria seu ato. Mas não seria um certo contra-senso dizer que uma ação foi feita por ignorância e que sua causa é indeterminada? Quando dizemos que uma ação foi feita por ignorância, não estamos afirmando que é justamente a ignorância que é a sua causa? Sim, mas somente num sentido muito particular. Quando dizemos, por exemplo, que Édipo matou seu pai acidentalmente porque ignorava que o homem que matou era seu pai, estamos sim dizendo que, caso ele não o ignorasse, Édipo jamais teria feito o que fez. Mas a ignorância de Édipo, por si só, não pode ser dada como causa de seu ato no sentido que tal ignorância não explica por que Édipo decidiu agir como agiu e nem explica por que o homem que ele matou era seu pai. De posse de tal explicação, podemos entender melhor por que Aristóteles classifica as ações feitas por uma ignorância causada pela negligência como voluntárias. Com efeito, se não estamos errados em dizer que a razão pela qual a ignorância das circunstâncias particulares exclui uma ação do campo do voluntário é porque as ações feitas por causa deste tipo de ignorância são acidentes, devemos reconhecer a necessidade de abrirmos uma exceção para os casos onde tal ignorância é consequência de nossa própria negligência. Tais ações não poderão ser consideradas involuntárias porque, segundo o próprio Aristóteles, não podem ser consideradas acidentais, pois seria ridículo pretender que os atos causados pela negligência são atos cuja causa é indeterminada. Com efeito, se dissermos que um médico levou seu paciente à morte por não se dar ao trabalho de ler o rótulo da

185 droga, ou de verificar as substâncias às quais o paciente era alérgico, a negligência aparece aqui como a causa que levou o agente a agir como agiu. Sendo assim, devemos dizer que, segundo Aristóteles, para que um ato seja voluntário é necessário que ele tenha um resultado que esteja de acordo com os esforços do agente. Daí que Aristóteles nos diga, na EE, que o ato voluntário consiste num agir acompanhado de pensamento (1224a6-8) ou de acordo com o pensamento (1225b). O pensamento que deve estar de acordo com a ação é este pensamento prático que vincula a ação com o seu fim. É isto justamente o que não acontece nos acidentes, onde o resultado obtido não está de acordo com o pensamento que guiou a ação. Se o que foi dito acima está correto, o critério da ignorância das

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circunstâncias particulares envolvidas na ação, assim como o do constrangimento, também pode ser compreendido a partir da teoria aristotélica das causas. Com efeito, como nos diz o filósofo, o fim também é chamado de causa, no sentido de que ele é o porque, isto é, a razão, pela qual algo é feito. Nós caminhamos tendo em vista a saúde, e neste sentido a saúde é a causa do caminhar (Met. V. 2, 113a30-35). Como foi dito anteriormente, no caso do constrangimento o homem não é causa da ação que sofre no sentido de que ele não é o princípio motor do movimento, embora possa ser, em certo sentido, a causa final do mesmo. No caso da ignorância dos particulares, ao contrário, é justamente o que foi realizado que não corresponde à finalidade da ação empreendida pelo agente. O que não quer dizer, é claro, que o agente não desejasse o que foi realizado, mas apenas que não era com o fim de satisfazer tal desejo que ele havia empreendido a ação. A diferença entre os atos não voluntários e os atos involuntários visa marcar a diferença que existe em cada caso na relação do agente com o fim realizado, isto é, ela separa os casos nos quais o resultado é experimentado como negativo dos demais casos.

5.6 Sobre o papel do conhecimento na ação voluntária Creio que a interpretação apresentada até agora nos dá uma explicação satisfatória do que significa a afirmação de que a ação voluntária é a ação de acordo com um pensamento. No entanto, acredito que esta explicação pode ser

186 enriquecida com algumas precisões. O objetivo dessa segunda parte de minha exposição é mostrar o que não quer dizer estar de acordo com um pensamento. De início, é preciso reconhecer que alguns especialistas questionaram aspectos fundamentais do conceito de voluntário em Aristóteles. Heinaman, por exemplo, defende que a teoria aristotélica que encontramos na EE apresenta três graves problemas, problemas esses que Aristóteles não consegue sanar completamente na EN (HEINAMAN, 1986, P. 128-147). Como veremos, o artigo de Heinaman será bastante útil para esclarecermos melhor o conceito de ato voluntário em Aristóteles, mesmo que não possamos, em última análise, concordar com as críticas do autor. O primeiro problema colocado por Heinaman diz respeito à identificação dos

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atos voluntários com os atos pelos quais somos responsáveis. O segundo problema diz respeito ao papel do conhecimento na definição do ato voluntário proposta por Aristóteles. O terceiro problema, por sua vez, diz respeito a como devemos integrar a explicação geral do papel do conhecimento no ato voluntário com a explicação da akrasia que encontramos na EN VII. 3. A resposta aos dois primeiros problemas, é claro, deve nos fornecer a chave para respondermos ao terceiro. A identificação que é objeto do primeiro problema pode ser encontrada em 1228a11. Como bem notou Heinaman, nesse trecho Aristóteles nos diz que (1’) nenhum ato involuntário mau é passível de reprovação, (2’) nenhum ato involuntário bom é passível de elogio, (3’) todos os atos voluntários maus são passíveis de reprovação, (4’) todos os atos voluntários bons são passíveis de elogio. Como sublinha o autor, (1’) – (4’) implicam que (5’) o agente é moralmente responsável por uma ação se, e somente se, ela for voluntária. Heineman tenta nos mostrar que tal identificação é fonte de sérios problemas. Segundo ele, como Aristóteles reconhece que existem diversas ações pelas quais um agente é responsável e que são involuntárias, o filósofo se vê forçado a tornálas voluntárias. É dessa forma que Heinaman entende a afirmação segundo a qual nós somos responsáveis pelos atos que realizamos por ignorância se essa ignorância é uma consequência de nossa negligência. Segundo Aristóteles, isto pode acontecer de duas maneiras: quando possuímos um conhecimento mas não chegamos a utilizá-lo, e quando não chegamos nem mesmo a adquirir tal conhecimento, mas ele era necessário e fácil de ser adquirido. Que Aristóteles classifique tais ações

187 como voluntárias não é absolutamente algo controverso. Heinaman, no entanto, afirma que embora nós devamos reconhecer que a explicação da causa de nosso erro é pertinente para a questão da responsabilidade moral do agente, ela não deveria absolutamente influenciar a determinação do caráter voluntário da ação (HEINAMAN, 1986, P. 144-145). É interessante observar que Aristóteles só cita as ações feitas por negligência no final da análise do ato voluntário contida na EE. Nesse momento, o filósofo chega mesmo a afirmar que está fazendo precisões que precisam ser acrescentadas ao que foi dito antes.

Na EN também, é quase no final da

investigação que estes casos aparecem na discussão. De início, como nós estamos acostumados a acreditar que a EN foi escrita posteriormente, e que ela contém

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uma formulação mais precisa do pensamento de Aristóteles, a alegação feita por Heinaman, segundo a qual isso que ele chama de “o problema da confusão das condições de responsabilidade e do voluntário” é consideravelmente reduzido na EN, não é nada surpreendente. Segundo o autor, nesta segunda formulação da questão Aristóteles reconheceria que o agente pode não ser responsável por uma ação voluntária, assim como ser responsável por uma ação involuntária (HEINAMAN, 1986, P. 146). Para sustentar tais afirmações, o autor nos reenvia respectivamente para 1111b8-9 e 1113b23-1114a3. O problema é que, quando examinamos tais passagens, nós não encontramos a devida rejeição de (1’) e (3’). Comecemos pela afirmação de que (1’) nenhum ato involuntário mau é passível de reprovação. Em 1113b23-1114a3 o filósofo afirma que nós punimos as pessoas por sua ignorância se tais pessoas são culpadas de sua própria ignorância. No entanto, é importante ressaltar que esse exemplo, assim como os demais que encontramos nessa passagem e que dizem respeito seja a nossa vida privada seja à nossa vida pública, é introduzido como uma evidência que apóia a seguinte consideração: Mas se isso é manifesto [que o homem é o princípio de suas próprias ações], e se nós não podemos imputar nossas ações a princípios outros que não os que residem em nós mesmos, então estas ações cujos princípios residem em nós dependem elas mesmas de nós e são voluntárias (1113b19-24).

Longe de recuar da identificação por ele proposta anteriormente, o filósofo está nos dizendo por que devemos aceitar que todas as ações que dependem de nós são voluntárias. Não é difícil ver o que confunde Heinaman. Os exemplos de

188 ações feitas por uma ignorância que é causada pela negligência nos mostram atos que se assemelham aos atos involuntários e não voluntários por um lado e ao voluntário por outro. Nestes casos, o agente era de fato ignorante das circunstâncias particulares envolvidas em sua ação no momento em que agia, mas o culpado por esta ignorância é ele mesmo. Como dependia dele não ter realizado a ação, ela é classificada como voluntária. No que diz respeito à afirmação segundo a qual (3’) todos os atos voluntários maus são reprováveis, 1111b8-9 também não parece conter uma rejeição da identificação proposta por Aristóteles. Nessa passagem, o filósofo afirma apenas que embora as crianças e os animais possam agir voluntariamente, eles não fazem escolhas preferenciais. Ele acrescenta em seguida que nós

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podemos muito bem chamar os atos espontâneos de voluntários, mas não podemos dizer que eles são feitos por escolha. Se compreendo bem Heinaman, ele quer mostrar que, segundo Aristóteles, as crianças e os animais agem voluntariamente, mas não são passíveis de reprovação por seus atos. Mas isso, vale ressaltar, não é jamais afirmado por Aristóteles. Tudo que ele diz é que os animais e as crianças são incapazes de escolha preferencial. Ora, a responsabilidade está ligada não à escolha preferencial, mas sim ao ato voluntário 40 . Sendo assim, nós não temos nenhuma razão para afirmar que, segundo Aristóteles, os animais e as crianças não são responsáveis pelo que fazem. Que os primeiros possam ser adestrados e os segundos educados, e que em ambos os casos façamos uso para tal tanto do castigo quanto da recompensa, Aristóteles diria, nos mostra claramente que nós acreditamos que eles podem agir de forma voluntária. Creio ter dito o suficiente para mostrar que Heinaman não tem razão quando afirma que Aristóteles abriu mão da identificação entre os atos voluntários e os atos pelos quais os agentes são responsáveis. Essa identificação, da maneira como é compreendida aqui, não implica em nenhuma contradição no que diz respeito à classificação dos atos proposta por Aristóteles. Passarei agora para o segundo problema colocado por Heinaman, isto é, à questão acerca do papel reservado por Aristóteles para o conhecimento na definição do ato voluntário. 40

É surpreendente constatar que muitos especialistas ainda confundem agir voluntariamente e agir de acordo com a deliberação, ou com a escolha preferencial. Susana de Castro, por exemplo, afirma que, para Aristóteles, “a responsabilidade moral só pode ser atribuída a quem age deliberadamente” (CASTRO, 2009, P. 81).

189 Para esclarecer nossa discordância com Heinaman, começaremos esclarecendo como ele vê esse papel. Segundo Heinaman: A discussão do voluntário na EE pode ser encontrada no livro II, capítulos 6 a 9, e no final do capítulo 9 (1225b8-10; cf. 1226b30-32) Aristóteles nos dá a seguinte definição: (6) A fez X voluntariamente se e somente se (i) A fez X (ii) A podia não fazer X (iii) A fez X com conhecimento [das circunstâncias particulares envolvidas na ação] (iv) A fez X por si mesmo (di’auton). (HEINAMAN, 1986, p. 131).

Como podemos ver, Heinaman tenta formular quais seriam as condições necessárias para o ato voluntário segundo Aristóteles. Se o conhecimento das PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

circunstâncias particulares deve realmente estar entre elas, então devemos reconhecer que para Aristóteles a condição (iii) é satisfeita sempre que um homem age voluntariamente. O problema, segundo o autor, é que embora Aristóteles a tenha afirmado o filósofo não conseguiu acomodar adequadamente tal exigência em suas obras. O primeiro “caso problema” que encontramos são, novamente, as ações feitas por uma ignorância que é causada pela negligência do próprio agente. Uma vez que Aristóteles classifica tais ações como voluntárias, nos diz Heinaman, nós devemos assumir que a exigência acerca do conhecimento das circunstâncias particulares foi satisfeita. E no entanto, é realmente difícil explicar como podemos sustentar que em tais casos o indivíduo agiu tendo conhecimento das circunstâncias particulares de sua ação. O simples fato de que um médico deveria ter atentado para o fato de que o vidro que ele tinha em mãos era um frasco de veneno, e não um antídoto, não é suficiente para que possamos afirmar que ele sabia o que estava fazendo quando administrou o veneno ao seu paciente. Sendo assim, nos diz o autor, é difícil ver como Aristóteles poderia sustentar a exigência do conhecimento das circunstâncias particulares da ação mantendo ao mesmo tempo a classificação das ações voluntárias tal como ele nos apresenta nas duas éticas. Daí que Heinaman afirme que Aristóteles estava errado ao formular tal exigência, que ela “é evidentemente forte demais” (HEINAMAN, 1986, P. 140), e que o melhor que nós podemos fazer é nos desprendermos dela. É

190 justamente o que Heinaman busca fazer em seu artigo, analisando possíveis substitutos para o conhecimento. O primeiro dos substituto analisado pelo autor, como não poderia deixar de ser, é a opinião verdadeira. De início, tal sugestão parece óbvia. Suponhamos que um indivíduo não saiba, mas apenas creia, que o homem diante dele é seu pai. Se ele mata esse homem, devemos dizer que ele matou seu pai voluntariamente. Com efeito, seria ridículo sugerir que tal homem matou seu pai involuntariamente alegando que ele não sabia, mas apenas achava, que o homem em pé diante dele era seu pai. No entanto, através de mais um exemplo Heinaman tenta nos convencer de que mesmo a opinião verdadeira ainda é um requisito excessivo para o ato voluntário. Suponhamos que um homem quer abrir um cofre mas não tem a

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menor ideia de como fazê-lo. Tudo de que ele dispõe é de uma dinamite. Embora não acredite que vá ter sucesso, como ele não possui nenhum outro meio a sua disposição, o homem decide que não tem nada a perder e tenta abrir o cofre com a dinamite. Para seu espanto, o cofre se abre. Segundo Heinaman, em tal caso nós devemos dizer que o agente abriu voluntariamente o cofre, mesmo que ele não acreditasse que fosse ter sucesso. Sendo assim, nos diz Heinaman, “nós não podemos afirmar que um agente realizou voluntariamente o fim de uma ação somente se ele acreditava realmente que este fim se realizaria” (HEINAMAN, 1986, p. 141).. Neste momento a solução ao problema apresentado por Heinaman já se torna clara, mas, surpreendentemente, o autor não a percebe. A solução que ele propõe é que nós modifiquemos o critério (iii) fazendo dele uma disjunção entre a boulesis, isto é, o desejo racional pelo que é bom (EN 1113a23-25), e a crença verdadeira, o que implicaria que uma ação seria voluntária ou bem se o agente desejava o resultado produzido ou bem se ele acreditava que ele se produziria. Tal disjunção, no entanto, acaba classificando certos acidentes como ações voluntárias. Os dois exemplos dados pelo próprio autor serão suficientes para nos convencer disso. Suponhamos, tomando mais uma vez o exemplo do homem diante do cofre, que tal indivíduo acreditasse que havia uma chance em um milhão de que a explosão da dinamite pudesse machucá-lo. Suponhamos ainda que ele tenha se protegido e feito de tudo para evitar qualquer lesão. Caso, no entanto, a explosão acabasse por machucá-lo mesmo assim, de acordo com a disjunção proposta

191 anteriormente nós seríamos obrigados a afirmar que ele se machucou voluntariamente, dado que ele acreditava que isso poderia ocorrer. Ora, está claro que não foi esse o caso. O segundo exemplo é o de um ator que deve memorizar um texto para sua apresentação, e que deseja verdadeiramente repetir o texto de forma exata no momento oportuno. No entanto, dada a dificuldade do texto, ele está totalmente convencido de que não conseguirá. No momento da apresentação, eis que ele erra o texto. De acordo com a disjunção proposta por Heinaman, dado que um dos critérios foi satisfeito – o da crença – nós somos mais uma vez obrigados a afirmar que tal indivíduo agiu voluntariamente. E no entanto, é claro que a ação foi involuntária. A disjunção proposta por Heinaman, portanto, é absolutamente

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inadequada. Com efeito, tudo indica não somente que nem a boulesis e nem a mais forte crença por parte do agente no resultado de sua ação são suficientes para fazer de uma ação um ato voluntário, mas também que a crença do agente em seu próprio sucesso não pode ser uma condição necessária para que um ato seja dito voluntário. O erro cometido por Heinaman, após ter chegado à inevitável conclusão de que o conhecimento não pode ser considerado uma condição necessária do ato voluntário, foi tentar enquadrar os casos por ele propostos fazendo recurso a uma disjunção absolutamente estranha ao texto aristotélico. Tal recurso é, além do mais, desnecessário. De fato, todos os casos descritos pelo autor, e repetidos por mim aqui, são casos de prohairesis, isto é, casos onde o indivíduo determinou sua ação através de uma escolha preferencial. Ora, como vimos anteriormente, segundo Aristóteles todas as ações executadas de acordo com tal escolha são ações voluntárias. O filósofo é claro a este respeito. Sendo assim, a teoria aristotélica é perfeitamente capaz de classificar adequadamente tais exemplos. Mais do que isso, se observarmos que a escolha preferencial é orientada pela deliberação, e que, segundo Aristóteles, nós não deliberamos sobre aquilo de que temos conhecimento, então devemos reconhecer que para o filósofo o conhecimento não poderia jamais ser uma condição necessária do ato voluntário. Nós podemos concluir, portanto, que “agir de acordo com um pensamento” não é a mesma coisa que “agir segundo o conhecimento”, mas que alguma forma de pensamento teve lugar e guiou a ação mesmo nos casos onde o conhecimento não estava implicado.

192 É importante ter isso em mente para classificarmos adequadamente o exemplo do homem que se machuca após a explosão, mesmo tendo tomado todas as providências para proteger-se. Seguindo Aristóteles, nós diremos que ele se machucou involuntariamente se ele acreditava que podia impedir tal resultado e havia tomado as medidas cabíveis, pouco importando o quão otimista ele pudesse estar. Em tal caso, o homem não escolheu se ferir, e sim explodir a dinamite. Por outro lado, se o mesmo homem tinha certeza de que acabaria se ferindo, mas decidiu proceder com a ação mesmo assim, devemos dizer, de acordo com o filósofo, que ele se feriu voluntariamente. Nesse caso, ele aceitou ferir-se para realizar sua ação. Se o raciocínio aqui desenvolvido está correto, então Heinaman errou ao

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atribuir a Aristóteles a ideia de que o conhecimento seja uma condição necessária para o ato voluntário. Segundo Heinaman, a formulação das condições necessárias do ato voluntário que encontramos em seu artigo se fundamenta em duas passagens da EE, 1225b8-10 e 1226b30-32. Tais passagens podem ser lidas da seguinte maneira: Sendo assim, tudo que um homem não faz por ignorância e que ele pode fazer ou não fazer é necessariamente voluntário, e é nisso que consiste o voluntário (EE 1225b8-10). Isso que um homem faz ou não faz por si mesmo e não por ignorância, estando em seu poder fazer ou não fazer, ele faz ou não faz voluntariamente, e se nós fazemos muitas coisas sem deliberar e nem previamente refletir (ou’ bouleusámenoi oudé pronoésantes), segue-se que o voluntário não é o deliberado (proairetón), e embora tudo o que seja deliberado é feito voluntariamente, nem tudo que é feito voluntariamente foi objeto de deliberação prévia (EE 1226b30-35).

Como podemos ver, em ambas as passagens Aristóteles exclui do campo do voluntário os atos feitos por ignorância. A meu ver, Heinaman passou rápido demais de ‘não ser ignorante’ para ‘possuir o conhecimento’. Trata-se de um erro comum, cometido, por exemplo, pelo próprio Ross 41 . Porque ser ignorante de determinadas particularidades da ação exclui uma ação do campo do voluntário, conclui-se rápido demais que é o conhecimento que faz de uma ação um ato voluntário. Se nossa interpretação está correta, no entanto, o único tipo de ignorância pertinente na caracterização de um ato como involuntário, ou não voluntário, é o tipo que pode fazer desse ato um acidente. Na medida em que a 41

(ROSS, 1995, p. 206): “A ação é voluntária, portanto, quando (1) sua origem reside no agente, e (2) ele conhece as circunstâncias nas quais o ato é realizado”.

193 opinião verdadeira sobre as circunstâncias que envolvem a ação é suficiente para evitar que ela acabe de forma acidental, ela deve ser também suficiente para que o ato seja voluntário. Além disso, nós também não podemos concordar com Heinaman quando ele afirma que um indivíduo pode agir voluntariamente mesmo sem a opinião verdadeira a respeito do resultado da ação, isto é, que tal opinião não é necessária para o ato voluntário. Para que possa fundamentar melhor minha discordância, tomemos ainda uma última vez o exemplo do homem que explode a dinamite sem acreditar verdadeiramente que ele abrirá o cofre. Creio que, segundo a teoria de Aristóteles, nós podemos classificar este exemplo de duas maneiras: (1) Se o ato foi realizado a partir de uma escolha preferencial, então ele foi

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voluntário. Neste caso, nós devemos supor que o agente acreditava, quando realizou a ação, que a explosão da dinamite poderia abrir o cofre. O importante aqui é notar que ele tentou abri-lo desta maneira, e não se ele achou que teria sucesso. O agente escolheu a dinamite como o melhor meio para o fim que ele se colocou, e explodiu a dinamite com o único fim de abrir o cofre. (2) Se, por outro lado, a explosão da dinamite não foi feita com a intenção de abrir o cofre mas sim, digamos, porque o indivíduo desejava testar a dinamite ou a resistência do material do qual era feito o cofre, então o resultado poderia ser classificado como um acidente se, e somente se, não houve negligência por parte do agente. Neste caso, ainda que possamos pensar numa situação onde a abertura de tal cofre tenha sido um feliz acidente, e portanto um ato não voluntário, ela não poderia jamais ser descrita como uma ação voluntária. Com as considerações precedentes, creio ter elucidado de forma suficiente a teoria aristotélica do ato voluntário tal como ela é elaborada nas duas éticas. Como nos diz o filósofo, todas as nossas ações são, de início, voluntárias, e nós só podemos afirmar que agimos de forma involuntária caso possamos apontar algum outro princípio, que nos seja exterior, para tais ações. Somente a necessidade, que chamamos aqui de constrangimento, e a fortuna são causas capazes de ocupar este lugar.

194 5.7 O vício, assim como a virtude, é voluntário Antes de passarmos para o próximo capítulo, ainda resta discutir o argumento final de Aristóteles contra o paradoxo socrático. Trata-se do argumento que visa mostrar que, ao contrário do que propunha Sócrates, o vício, assim como a virtude, é voluntário.

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Segundo Aristóteles: (...) os homens são eles mesmos responsáveis por terem se tornado negligentes por ter vivido de forma negligente, como o são por serem injustos (adikous) e descomedidos (akolastous) se eles praticam o mal ou passam seu tempo bebendo ou procrastinando (diagontes). Eles adquirem uma qualidade particular por agirem constantemente de uma forma particular. Isso é mostrado pela maneira através da qual os homens treinam para alguma competição ou outra tarefa qualquer: eles praticam continuamente. Sendo assim somente um idiota (anaithetou) pode não perceber que nosso caráter é o resultado de nossa conduta; mas se um homem age de forma injusta sem ignorar que o que faz o tornará injusto, devemos dizer que ele é injusto voluntariamente (...) isso não implica, no entanto, que ele pode deixar de ser injusto e tornar-se justo apenas o desejando (bouletai) da mesma maneira que um homem doente não pode se curar apenas o desejando, mesmo que possa ser o caso que a sua doença seja voluntária, no sentido de ser devida a ele ter vivido de forma incontinente (akratos biteuo) e não ter confiado nos médicos. No começo, então, é verdade que ele poderia ter evitado a doença, mas uma vez que ele se deixou ir ele não pode mais. (...) Da mesma forma aquele que é injusto e descomedido poderia no início ter evitado se tornar assim, e portanto eles o são voluntariamente, embora uma vez que eles se tornaram injustos e descomedidos não lhes é mais possível não sê-lo (EN 1114a4-22).

Como já ressaltou Roberts, esse trecho é comummente compreendido como alegando que até que o caráter de um homem esteja firmado ele pode escolher entre a virtude e vício, e o faz conscientemente (ROBERTS, 1999, P. 234-251). De acordo com essa interpretação, o vicioso escolheu, em um dado momento, executar um tipo de ação que ele sabia que teria por consequência um prejuízo ao seu caráter, a saber, a instauração de um estado de vício. Sendo assim, é forçoso admitir que tal homem queria tornar-se mal e, além disso, que ele queria se tornar mal num momento quando ainda era possível ser bom. Mas, de acordo com tal argumento, embora esta primeira decisão tenha sido voluntária, as ações de um homem de caráter firmemente estabelecido, porque são totalmente determinadas por esse caráter, não são, estritamente falando, voluntárias. Ora, como mostra Roberts esta interpretação não é satisfatória, e incorre em numerosas dificuldades.

195 A primeira dificuldade em que incorre tal leitura é o fato de que ela se utiliza de um critério para determinar uma ação como involuntária, a saber, o fato de ela ser determinada pelo caráter do sujeito, que não é citado por Aristóteles em sua descrição de tais critérios. Sendo assim, nos diz Roberts, tal leitura deve afirmar que o filósofo mudou de critério no meio do caminho, ou acrescentou um novo critério após o final da investigação, uma vez que tudo o que foi dito até aqui nos leva a afirmar que as ações que são devidas ao caráter são voluntárias. A segunda dificuldade é que tal leitura torna certas ações levadas a cabo antes da formação do caráter do indivíduo, e portanto, presumivelmente, ainda antes de sua idade adulta, mais voluntárias do que as ações empreendidas pelo mesmo indivíduo em idade adulta. Embora tal posição não implique em nenhuma

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contradição imediata, ela é no mínimo bastante contra intuitiva, e sua atribuição a Aristóteles necessitaria de um argumento bem desenvolvido. A terceira dificuldade diz respeito a como conciliar tal leitura com a importância dada por Aristóteles à educação moral. Com efeito, é difícil ver por que, uma vez que a questão sobre o que determina, ou determinou, o caráter de qualquer indivíduo é colocada, a resposta não deve fazer referência aos educadores dessa pessoa. Ou seja, se a questão aqui é ‘o que causou o caráter de tal indivíduo?’, Aristóteles deveria dizer, para ser coerente, que as pessoas que o educaram tiveram muito a ver com isso. Uma quarta dificuldade para tal leitura é a distinção traçada por Aristóteles entre as ações que são consequência de um caráter firmemente estabelecido e determinados processos naturais sofridos pelo sujeito. Com efeito, o problema colocado pelo caráter é que ele é, como diz o filósofo, como uma segunda natureza. Ainda assim, no entanto, Aristóteles afirma não só que as ações que estabelecem o caráter são voluntariamente empreendidas pelos indivíduos, mas também que as ações levadas a cabo por um indivíduo de caráter firmemente estabelecido refletem os variáveis aspectos da natureza humana, e tem que ser explicadas a partir dos desejos e das escolhas do agente. Sendo assim, o caráter não é nem simplesmente uma questão de natureza e nem fruto da sorte. Com efeito, em princípio, nos diz Aristóteles, caso o sujeito se mostrasse honestamente surpreso e lamentasse o ocorrido ao descobrir que adquiriu um determinado caráter, poder-se-ia dizer que tal homem não é responsável porque não previu que seu modo de vida implicaria na formação de

196 seu caráter. No entanto, para que isso fosse verdade tal homem teria que ignorar o fato de que nossas ações formam nosso caráter, e isso, afirma o filósofo, só um homem incrivelmente insensível (anaisthetos) poderia deixar de perceber. Sendo assim, o caráter por si mesmo não fornece um princípio exterior ao agente que possa ser dito causa de sua ação. Como vimos, é isso que é preciso para que uma ação possa ser excluída do campo do voluntário. A quinta e última dificuldade colocada por Roberts reside no fato de que, segundo a hipótese de tal leitura, o que seria necessário para que se afirmasse que a injustiça é voluntária são casos de pessoas que exercem ações injustas, sem que o desempenho dessas ações seja totalmente determinado pelo estado de suas almas. Segundo Roberts, só é razoável afirmar que uma dada ação poderia, dado o

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estado da alma do agente, ser executada ou não se assumirmos que o agente tinha disponível algum tipo de motivo que o levasse a agir diferentemente. Para o autor, esse princípio não está de acordo com a psicologia moral de Aristóteles. Segundo Roberts, Aristóteles sustenta que aqueles que agem injustamente acham que a ação injusta é boa, e portanto agirão de forma injusta inevitavelmente. É a ignorância que impede essa pessoa de ter qualquer motivo para ação justa, e é esta cegueira, por sua vez, que faz com que tal agente seja incapaz de agir de forma justa. Ou seja, a ignorância que explica a atração exercida pela injustiça também corta qualquer atração à justiça. Sendo assim, nos diz Roberts, de acordo com a psicologia moral de Aristóteles o homem injusto não pode agir senão como ele age. Embora esteja convencido, como Roberts, de que para Aristóteles as ações que são devidas ao caráter são voluntárias, creio que o último argumento exposto aqui é injusto com a psicologia moral de Aristóteles. Com efeito, não acredito que seja verdade que, segundo Aristóteles, aqueles que são injustos não podem evitar agir injustamente. De acordo com Roberts, isto se deve ao fato de a ignorância manter essa pessoa sem qualquer motivo para a ação justa, dado que ela não vê em tal ação nada que a atraia. Mas isso certamente não é verdade. A afirmação de Roberts exige demais da simples ignorância do que é vantajoso. Com efeito, não é difícil ver que o simples fato de que um agente deseje executar uma ação injusta, e não veja nenhuma vantagem na ação justa enquanto justa, não significa que ele não poderá se conter. Na verdade, é perfeitamente razoável acreditar que um agente evitará tal ação se, por exemplo, ele acredita que pode ser descoberto, e

197 que o castigo no qual incorreria seria maior do que o ganho que poderia auferir. Esse fato, creio, é por si mesmo suficiente para que reconheçamos que um homem injusto não é forçado a agir injustamente sempre, e ele requer apenas que admitamos que um homem pode ser justo ou injusto acidentalmente (katá symbebekós, NE V 1135b3-11). Como nos diz Aristóteles, um homem injusto pode devolver um depósito por medo das consequências. Se é verdade que, segundo o filósofo, nós não podemos afirmar que tal homem age de forma justa, a não ser acidentalmente, é forçoso reconhecer que ele se absteve de cometer uma ação injusta. Sendo assim, não é verdade, ao contrário do que pretende Roberts, que o homem de caráter injusto é incapaz de comportar-se de acordo com a justiça. Tal

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afirmação pressupõe que a ação justa jamais parecerá atraente a um tal sujeito, o que simplesmente não é verdade. O que é verdade é somente que o indivíduo injusto não vê nenhuma vantagem na ação justa em si mesma. Podemos concluir, portanto, que, segundo Aristóteles, o caráter é voluntário porque ele é o resultado concomitante e previamente conhecido das ações voluntariamente empreendidas por nós. As ações que executamos de acordo com tal caráter são também voluntárias na medida em que é verdade tanto que nós não somos forçados a agir de acordo com nosso caráter, quanto que o caráter, por não residir fora de nós, não poderia jamais ser citado como um princípio externo capaz de nos constranger.

5.8 O ato voluntário e o problema da akrasia (II) Creio ter esclarecido de forma suficiente a maneira como Aristóteles pensa o ato voluntário. Nossa investigação entra agora em seu último movimento. No próximo capítulo, será abordado o tratamento aristotélico do problema da akrasia e a maneira como ele difere do tratamento dado ao problema por Platão. Antes de passarmos adiante, no entanto, será útil dizer algumas palavras sobre a maneira como a incontinência é classificada por Aristóteles. Como disse anteriormente, Heinaman questiona se a análise aristotélica do ato voluntário é compatível com a análise feita pelo filósofo do fenômeno da akrasia na EN. Ora, creio ser pertinente ressaltar que, se seguimos a interpretação

198 do texto aristotélico delineada até aqui, nós não temos nenhum motivo para acreditar que o ato incontinente seja involuntário. Com efeito, o conceito aristotélico do ato voluntário é por si só suficiente para incluir o ato incontinente até mesmo como ele é descrito por Sócrates no Protágoras. De fato, embora Sócrates argumente que o ato incontinente é fruto da ignorância, trata-se de uma ignorância a respeito do que é mais vantajoso para o agente. Em nenhum momento Sócrates argumenta que o indivíduo que age de forma incontinente ignora isso que Aristóteles chamou de as circunstâncias particulares da ação ou que ele age sob constrangimento. Sendo assim, podemos perceber a força e a importância do tratamento aristotélico do ato voluntário. Daí que, se desejarmos responder somente por que a incontinência é para Aristóteles

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um ato voluntário, bastará ressaltar que, segundo o filósofo, são voluntários todos os atos cujo princípio reside no próprio agente, isto é, que não foram cometidos nem por constrangimento e nem por ignorância. Tal definição, eu repito, é suficiente para classificar a incontinência, mesmo tal como ela é descrita por Sócrates, como voluntária. Com isso, é claro, não pretendo sugerir que o objetivo de nossa investigação foi alcançado. Como veremos no próximo capítulo, o tratamento aristotélico do fenômeno da incontinência também traz diferenças consideráveis em relação ao tratamento dado ao problema por Platão. Nossa investigação não pode, portanto, economizar o esclarecimento e a avaliação de tais diferenças, sob pena de ficar incompleta. Não obstante, a importância da maneira como Aristóteles concebe o ato voluntário e a enorme diferença que o separa de Platão no que diz respeito a isso, creio eu, não receberam a devida atenção por parte dos comentadores que se debruçaram sobre o problema da akrasia. Sendo assim, parece pertinente encerrar o presente capítulo ressaltando essa importância.

6 EN VII, I-X 6.1 O método da investigação Na abertura do livro VII da EN, Aristóteles anuncia um novo começo. Dado que o vício e a virtude já foram examinados nos livros anteriores, e a declaração inicial de Aristóteles que afirma que os estados de caráter (ta ethe) a serem evitados são o vicio, a akrasia e a bestialidade, e que seus contrários são a virtude, o autocontrole (enkrateia) e a virtude sobre-humana, de início parece que o livro VII será dedicado à discussão tanto da akrasia quanto da bestialidade

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(theriotés) e da virtude sobre-humana. O argumento que segue esta declaração, no entanto, faz apenas um pequeno esboço do que seriam a bestialidade e este misterioso tipo de virtude, antes de declarar que o seu estudo deve ser adiado para depois, e que a investigação que abre o livro VII se dedicará especialmente ao estudo da akrasía42. Junto com ela, serão discutidas a fraqueza (malakía) e a luxúria (tryphés) assim como o autocontrole (enkrateia) e a resistência (kartería). A investigação, afirma o filósofo, procederá da seguinte maneira (1145b2-1043): em primeiro lugar, serão apresentadas as diferentes opiniões recebidas (ta endoxa) a respeito dos objetos da investigação; em segundo lugar, serão apontadas as dificuldades que tais opiniões implicam; por fim, será estabelecido quais destas opiniões devem ser preservadas e quais devem ser descartadas. Segundo o filósofo, se as dificuldades puderem ser resolvidas e um mínimo dessas opiniões puder ser preservado, incluindo nesse mínimo, talvez, as mais importantes, então teremos atingido uma compreensão adequada dos fenômenos em questão. Para os fins da presente investigação, será útil que nos desviemos da maneira como Aristóteles procede em seu texto. Ao invés de apresentar primeiro as endoxa que Aristóteles se propõe a investigar e depois as dificuldades que elas implicam, apresentarei aqui cada opinião seguida da dificuldade levantada em relação a ela, para depois passar à explicação aristotélica do fenômeno da akrasia. 42

O livro VII da EN contém duas investigações que só estão ligadas pelo fato de partilharem um mesmo método de investigação. A investigação sobre a akrasia vai do capítulo I ao capítulo X. O resto do livro é dedicado a uma investigação acerca do prazer. 43 Cf. também (EN I, 9, 1098b27).

200 6.2 A primeira opinião: akrasia e malakia, enkrateia e karteria A primeira opinião apresentada por Aristóteles afirma que (1) o autocontrole (enkrateia) e a resistência (karteria) fazem parte das disposições louváveis, enquanto que a akrasia e a fraqueza (malakia) estão entre as condenáveis (1145b8-11). Embora tal afirmação não seja jamais questionada por Aristóteles, é importante ressaltar que, de início, não está claro o que diferencia, por um lado, a enkrateia da karteria e, por outro, a akrasia da malakia. Com efeito, parece ser perfeitamente plausível afirmar que o homem controlado é resistente, e que o acrático é fraco. Aristóteles só nos dará sua razão para distinguir entre os quatro termos no sétimo capítulo do livro VII da EN. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

Segundo Aristóteles: No que diz respeito aos prazeres e às dores do tato e do paladar, e aos correspondentes apetites e rejeições, que dizem respeito à akolasia e à temperança, é possível tanto ter uma disposição tal de forma a ser vencido (hettastai) pelo que a maioria dos homens conquista, quanto a conquistar até mesmo o que vence a maioria dos homens. Os homens que manifestam tais disposições em relação ao prazer são o akrates e o enkrates, em relação à dor, o malakos e o karterikos (EN 1150a9-15)

Para Bobonich, como para a maioria dos intérpretes, o filósofo estaria afirmando aqui que a akrasia é a disposição do homem que é mais fraco do que a maioria no que diz respeito aos prazeres, e a enkrateia a disposição do homem que é mais forte do que a maioria no que diz respeito aos prazeres. Por outro lado, a malakia seria a disposição do homem que é mais fraco do que a maioria no que diz respeito às dores, e a karteria a disposição do homem que é mais forte do que a maioria no que diz respeito às dores (BOBONICH, 2005, P. 137). Segundo tal interpretação, o que separaria a akrasia e a enkrateia, por um lado, da malakia e da karteria, do outro lado, seria o fato de que as duas primeiras disposições têm a ver com o prazer, ao passo que as duas últimas têm a ver com a dor. Como ressalta Bobonich, no entanto, tal distinção é problemática. Com efeito, ainda no próprio livro VII da EN (1148a5-14), Aristóteles afirma, por um lado, que é akratés tanto aquele que persegue os prazeres excessivos quanto aquele que esquiva-se das dores tais como a fome, o calor ou o frio, e as demais dores ‘do tato e do paladar’, não por escolha mas sim contra sua própria razão, e, por outro lado, que aquele que se excede em relação aos divertimentos (paidia)

201 deve ser classificado como malakos, argumentando que tal hábito é na verdade desejo de descanso e, portanto, preguiça (1150b16-19). No que diz respeito à primeira afirmação, poder-se-ia argumentar que, se há um tipo de dor que é decorrente da não satisfação de desejos que a ação incontinente satisfaz, então não há nada que nos impeça de afirmar que o enkrates deve ser capaz de resistir a esta dor, assim como que alguns casos de akrasia poderiam ser imputados justamente à falha em resistir a esta mesma dor. Se é esse realmente o caso, então o homem que não resistir a tais dores poderia ser chamado tanto de akrates quanto de malakos, assim como o homem que resistir poderia ser chamado tanto de enkrates quanto de karterikon. Já a segunda afirmação nos mostra um caso onde Aristóteles parece

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decidir quase que arbitrariamente ao classificar tal indivíduo como malakos e não como akrates, se é verdade mesmo que o que separa ambas as disposições é o fato de que a primeira tem a ver com as dores e a segunda com o prazer. Com efeito, o que nos impede de dizer que o homem que se excede nos jogos o faz pelo prazer que tem ao fazê-lo? Que tal divertimento apresente a vantagem de ser fácil, no sentido de não exigir grandes esforços, não exclui a possibilidade que o prazer proporcionado pelos jogos seja ele mesmo a razão da escolha. Sendo assim, talvez o melhor fosse não afirmar que se trate realmente de quatro disposições diferentes, mas sim de duas disposições, a saber, ser mais forte ou mais fraco do que a maioria dos homens, e que tais disposições recebem nomes diferentes quando se manifestam em relação à dor ou ao prazer. No entanto, se tais diferenciações fossem meramente nominais, seria difícil explicar por que Aristóteles afirma ainda no livro VII que a enkrateia é uma qualidade mais louvável do que a karteria (1150a32-1150b1). Segundo o filósofo, a karteria implica somente o ter sucesso em resistir (antekhein) ao passo que a enkrateia implica na mestria (kratein), sendo assim, e dado que não perder (me ettastai) é diferente de vencer (nikan), nos diz o filósofo, o autocontrole é uma qualidade mais louvável (airetoteron) do que a resistência. Como ressalta Bobonich, no entanto, este argumento ainda não convence diversos especialistas (BOBONICH, 2005, P. 149). Não é difícil perceber de onde emana um tal ceticismo. Em primeiro lugar, não está claro por que a vitória sobre as dores é classificada aqui como uma mera ‘não-derrota’, enquanto a vitória sobre os prazeres é classificada como uma mestria. Como veremos mais adiante,

202 segundo Aristóteles o enkrates se diferencia do sophron, isto é, do temperante, exatamente pelo fato de possuir desejos nefastos. É o temperante, e não o autocontrolado, quem possui verdadeiramente a mestria de seus desejos. Em segundo lugar, não parece haver nenhum motivo para afirmarmos que a vitória sobre as dores é menos louvável do que a vitória sobre os prazeres. Ao que tudo indica, para que uma distinção forte entre as quatro disposições seja fundamentada filosoficamente, seria necessário ou bem mostrar por que a vitória sobre as dores é menos louvável do que a vitória sobre os prazeres, ou então encontrar algum outro ponto relevante a partir do qual seja possível comparar e diferenciar tais estados. Gauthier e Jolif, por exemplo, optam pela segunda opção e nos apresentam dois argumentos que visam manter a separaração entre a enkrateia e a karteria

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(GAUTHIER e JOLIF, 2002, P. 640-641). O primeiro argumento ressalta a suposta diferença etimológica – na qual o próprio Aristóteles, segundo os autores, estaria confiando – dos verbos kratein e karterein. Segundo os autores, enquanto o primeiro significa dominar, ter a posição de comando, o segundo é um sinônimo de antechein, que significa aguentar firme, resistir, etc. Ainda que aceitemos o que nos propõem os autores, parece difícil que tal argumento possa ser usado para mostrar que a enkrateia é em si mesma mais louvável do que a karteria. Digamos, por exemplo, que a dor à qual o indivíduo tenha que resistir seja consideravelmente maior do que o prazer que ele tenha que dominar. Isso não implicaria, é claro, que esse prazer fosse necessariamente fraco. Mesmo que aceitemos, como propõe Aristóteles, que a enkrateia tenha que ser uma resistência a um desejo forte para que seja louvável, ainda é possível admitir que a força de tais desejos possa variar consideravelmente. Dado que o filósofo reconhece que a intensidade de tais sentimentos é levada em conta na hora de atribuir elogios ou censura, será mesmo possível afirmar que a enkrateia é, em si mesma e, portanto, sempre, mais louvável do que a karteria? O segundo argumento propõe uma outra forma de distinguir entre o enkrates e o karterikos. Segundo os autores, enquanto o primeiro domina a concupiscência causada pela expectativa de prazeres excessivos, o outro suporta a dor advinda da insatisfação dos desejos naturais. No entanto, é forçoso admitir que os prazeres naturais admitem o excesso. Essa definição, portanto, carrega consigo uma implicação importante: de fato, não raramente a dor advinda da insatisfação dos

203 desejos naturais – como o desejo por comida e de bebida – será causada pela resistência ao desejo dos prazeres excessivos que caracteriza a enkrateia. Pois está claro que o desejo que caracteriza a akrasia é um desejo de excesso, isto é, um desejo que vai contra a boa medida. Dado que: (1) o enkrates, como ressalta o próprio Aristóteles, possui o desejo pelo excesso no que diz respeito a certos prazeres naturais; (2) a despeito disso, no entanto, ele age de acordo com o que manda a boa regra; e (3) a entrakeia é uma disposição de agir de certo modo habitualmente, e não de forma isolada; parece razoável concluir que se um homem é verdadeiramente enkrates, isto é, se ele o é habitualmente, então ele deve necessariamente ser karterikos. De outro modo, ele não resistiria às dores nas quais seu comportamento implica, e tornar-se-ia, por definição, um malakos.

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Sendo assim, não creio que os argumentos apresentados por Gauthier e Jolif sejam satisfatórios. Por fim, poder-se-ia dizer talvez que a karteria e a malakia dizem respeito a um grupo ainda mais restrito de dores, a saber, aquelas advindas da abstenção de satisfazer na medida certa, e não de forma excessiva, os desejos naturais. Tal argumento poderia sublinhar que às vezes um homem deverá passar fome, sede, frio e todo tipo de privações no que tange às suas necessidades mais básicas, e que chamamos resistentes justamente aqueles que resistem a tais dores como se deve. Mas não deverá tal homem resistir também ao seu inevitável desejo de desrespeitar a medida que lhe convém em tal situação e satisfazer seus desejos naturais? Como seria possível, então, separar o enkrates do karterikon? Sendo assim, é necessário admitir que não conhecemos nenhuma fundamentação possível não somente para a distinção forte entre a malakia e a karteria por um lado, e a akrasia e a enkrateia por outro, mas também para a afirmação de que a enkrateia seria mais louvável do que a karteria. No entanto, não podemos excluir a possibilidade de que a análise dos textos da obra aristotélica acerca do prazer – que não fazem parte da presente investigação – possam trazer uma nova luz para a razão desta distinção. Dado o objetivo da presente investigação, no entanto, deveremos postergar a análise detida dessa questão para outra ocasião.

204 6.3 A segunda opinião: autocontrole e obstinação A segunda opinião apresentada por Aristóteles afirma que (2) o homem que possui o autocontrole é aquele que se mantém fiel a seu raciocínio, e o incontinente (akratés) é aquele que o abandona facilmente. Em relação a esta opinião, são apresentadas duas aporias (1145b10-12). A primeira afirma que se o autocontrole torna um homem fiel a todas as suas opiniões, ele pode então ser algo reprovável, a saber, no caso em que ele fizer com que o indivíduo se recuse a abandonar uma opinião falsa. E se, por outro lado, a akrasia faz com que ele abandone qualquer opinião, então ela será louvável em alguns casos, a saber, quando ela fizer com que ele abandone uma opinião falsa 44. Ora, tais conclusões PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

entram em conflito direto com o que foi afirmado em (1). A estratégia adotada por Aristóteles para combater esta primeira aporia torna-se rapidamente compreensível à luz de sua teoria do ato voluntário. Dado que nós só somos louvados e reprovados pelo que fazemos voluntariamente, para descartar o primeiro caso proposto pela aporia bastará que o filósofo mostre que aquele que se mantém fiel a uma opinião falsa voluntariamente não é enkrates. No que diz respeito ao segundo caso, o que importa ressaltar é que a akrasia não é um caso de abandono louvável, mas sim reprovável, de uma deliberação prévia. É o que faz o filósofo em 1151a29-1151b23. Comecemos pelo caso no qual um homem persiste numa opinião que sabe ser falsa. Segundo Aristóteles, é necessário saber distinguir entre o obstinado (iskhurognómonas) e o homem controlado (enkratés). O primeiro é difícil de convencer, não se deixando facilmente persuadir a mudar de opinião. O que move tal homem, segundo Aristóteles, é o próprio prazer que propicia o fato de não se deixar convencer, prazer esse que advém de um sentimento de vitória. Tal homem, argumenta o filósofo, se parece portanto mais com o akolastos do que com o enkrates, pois ele também escolhe deliberadamente desfrutar de um prazer nefasto (sem, no entanto, saber que ele é nefasto). O enkratés, ao contrário, resiste

44

O mesmo problema é formulado de maneira diferente quando Aristóteles afirma que então parece ficar aberta a possibilidade de que um homem pode chegar na virtude combinando a estupidez (aphrosyne) com a akrasia. Tal homem, nos diz Aristóteles, teria a opinião errada a respeito do que fazer por causa de sua estupidez, mas não agiria de acordo com tal opinião por conta de sua intemperança. Isso é, ele acabaria fazendo a coisa certa por acidente. Tal argumento, segundo o filósofo, é oriundo dos sofistas.

205 aos desejos e às paixões, mas não à persuasão racional. Tal homem não vê nenhum mérito intrínseco em persistir numa mesma opinião, mas sim em resistir aos desejos nefastos que nele se manifestam. A diferença apontada por Aristóteles é clara. Como ressalta Broadie, o filósofo esclarece que a enkrateia não implica numa fidelidade à opinião, isto é, que o enkrates pode ser convencido a mudar de opinião sem com isso deixar de ser enkrates (BROADIE, 2005, P. 167-172). É importante ressaltar, no entanto, que Aristóteles parece assumir que a enkrateia possa se manifestar, ainda que acidentalmente, tendo por fundamento uma opinião falsa. É o que parece estar dito em 1151a34-35, quando é admitido que embora seja essencialmente a opinião verdadeira que o enkrates mantem e o akrates abandona, não pode ser descartada a

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possibilidade de que, acidentalmente, o seja também a opinião falsa. Aristóteles, no entanto, faz mais do que mostrar que o enkrates está aberto à persuasão. Ele afirma que o não deixar-se convencer é motivado em si mesmo pelo desfrute de um prazer nefasto, e dado que a indulgência em tais prazeres é característica do akolastos por oposição ao enkrates, não parece um exagero afirmar que Aristóteles mostra que o homem obstinado está mais próximo do primeiro do que do segundo. No que diz respeito à possibilidade da akrasia ser louvável, Aristóteles ressalta que é perfeitamente possível que as pessoas abandonem suas deliberações por motivos outros que não a incontinência. O exemplo citado é Neoptolemus, personagem do Philotetus de Sófocles. Na peça, Odisseu tem a missão de ir buscar Filocteto e o Arco de Herácles, que um vidente havia dito serem necessários para a vitória grega sobre os Troianos. Uma vez que Filocteto odiava Odisseu e os gregos por o terem abandonado na ilha de Lemos, só resta a este último convencer Neoptolemo a enganar Filocteto, para ganhar sua confiança, se apossar do arco e capturá-lo. Neoptolemo resiste honrosamente aos argumentos de Odisseu, mas acaba sendo persuadido. No entanto, depois de ganhar a confiança de Filocteto, e quando já tem o arco na mão, Neoptolemo vê Filocteto ter uma crise aguda de dor no pé. Sentindo-se envergonhado, Neoptolemo hesita, sua consciência se manifesta, e ele devolve o arco. Ora, parece claro que tal exemplo não é um caso de akrasia. A personagem em questão decidiu abandonar sua deliberação após refletir melhor, e não devido à pressão de um desejo interno. A prova de que trata-se de casos diferentes é o fato de que Neoptolemo não se arrependeu ao tomar o arco, mas sim após ver a dor de

206 Filocteto. Além disso, ainda que admitamos, como Aristóteles, que o que levou Neoptolemo a agir como agiu foi o prazer advindo de dizer a verdade, vale ressaltar, como faz o filósofo, que nem todos aqueles cuja conduta é guiada pelo prazer são ou bem casos de akolasia ou bem casos de akrasia. Como veremos mais adiante, para Aristóteles tanto a akolasia quanto a akrasia têm a ver com prazeres peculiares, e não com qualquer prazer, prazeres esses que são nefastos e vergonhosos (aiskhran). Ou seja, não há nada de louvável na akrasia, e se há algo de louvável no abandono de uma opinião então ele não é devido à akrasia. Assim é respondida a primeira aporia. A segunda aporia decorrente da segunda opinião afirma que aquele que persegue o prazer por convicção e escolha, isto é, o akolastos, é um homem melhor do que o akratés, na medida em que o

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primeiro, caso seja convencido de que está agindo mal, pode mudar sua opinião e consequentemente mudar seu comportamento, enquanto que no caso do akratés o problema é exatamente que a mudança de opinião não implicaria na mudança do comportamento. Tal raciocínio, é claro, se baseia na semelhança entre o akolastos e o enkrates, a saber, no fato de que ambos agem de acordo com sua escolha deliberada, por oposição ao akrates. Com efeito, dado que o akolastos se assemelha mais ao enkrates do que o akrates, e que o enkrates é, dos três, o que está mais próximo da virtude, pode parece razoável afirmar que o akolastos estaria mais perto da virtude do que o akrates. No entanto, se é verdade que em seu agir de acordo com sua própria deliberação o akolastos pode ser assemelhado ao homem virtuoso, é importante lembrar que, segundo Aristóteles, o vício também é voluntário. Mais do que isso, como vimos anteriormente, segundo Aristóteles a verdadeira ação viciosa é aquela que é executada por uma escolha deliberada. Sendo assim, é forçoso reconhecer que o simples fato de que ele aja de acordo com sua deliberação não coloca o akolastos mais próximo da virtude do que do vício. Muito pelo contrário, segundo Aristóteles a akolasia é um vício, e é exatamente por isso que Aristóteles afirma que o akolastos age deliberadamente e não se arrepende de seus atos, enquanto que o akratés se arrepende invariavelmente de seu ato (EN 1150b29-35), e que (2’) o akolastos é mais digno de censura do que o akratés. Como ressalta Broadie, para Aristóteles o arrependimento do akrates nos mostra que ele falha ao tentar alcançar seus próprios objetivos práticos, coisa que não acontece com o akolastos. O akratés, ao contrário do akolastos, queria ter

207 agido de outra maneira porque deliberou e decidiu agir de outra maneira. É justamente porque ele está consciente de que seu comportamento é uma falha que o akrates não pode deixar de estar consciente de sua própria condição de akrates, ao contrário do vicioso (BROADIE, 2005, P. 163-164). Para que consigamos reformar o akolastos, portanto, deveremos primeiro convencê-lo de que ele precisa se reformar, algo que não será necessário no caso do akratés. É justamente isso que o filósofo nos diz quando afirma que no akratés ‘o princípio não está corrompido’.

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Segundo Aristóteles: (...) a virtude preserva o princípio (archen) enquanto o vício o destrói, e o ponto de partida em matérias práticas é o fim proposto, que corresponde às hipóteses matemáticas, de modo que assim como nas matemáticas também nas matérias práticas este não é apreendido através do raciocínio, mas através da virtude, seja ela natural ou adquirida pelo treinamento na opinião correta no que diz respeito ao princípio (EN 1151a15-20)

O princípio preservado pelo akrates, portanto, é o fim proposto pela deliberação e não o fim de fato perseguido na ação. No que diz respeito a este último, o akrates e o akolastos não se diferenciam, isto é, ambos acabam perseguindo de fato a satisfação de determinados desejos. Não obstante, o akrates ainda reconhece o fim verdadeiro, isto é, o mesmo fim reconhecido pelo homem virtuoso, como devendo ser o fim de sua ação. É isso que, segundo Aristóteles, o diferencia do akolastos e o aproxima do homem virtuoso. E é por isso que o akrates é mais fácil de reformar do que o akolastos. 6.4 A terceira opinião e a explicação platônica da akrasia A terceira opinião apresentada por Aristóteles afirma que (3) o incontinente, sabendo que o que ele faz é mau, faz por causa da paixão (diá páthos), enquanto que aquele que possui o autocontrole, sabendo que seus apetites são perversos, recusa-se a segui-los por causa da regra que ele se impôs (1145b1215). Embora tal opinião não seja questionada por Aristóteles, é importante notar que é na forma de uma objeção à esta terceira opinião que é apresentada a opinião de Sócrates a respeito da incontinência. Será importante analisarmos tal objeção à

208 parte, portanto, para que possamos esclarecer a maneira como o próprio Aristóteles compreendeu Sócrates. O trecho que introduz a opinião de Sócrates pode ser lido da seguinte maneira: Como pode um homem agir de forma incontinente (akrateuetai) se apoiando na verdade (upolambanon orthos)? Alguns dizem que ele não pode fazê-lo sabendo (epistamenon) que o seu ato é mau; uma vez que, como afirmou Sócrates, seria estranho se, quando um homem possui o conhecimento, alguma outra coisa o conquistasse (kratein) e o arrastasse (perielkein) como um escravo. Sócrates costumava combater essa visão, sugerindo que a akrasia não existe dado que ninguém, afirmava ele, age contrariamente ao que acredita ser o melhor sabendo que o que faz é mau, mas somente por ignorância. Tal teoria está em desacordo com os fatos (amphisbetei tois phainomenois), de modo que deve-se investigar mais uma vez esta paixão (to pathos). (EN 1145b22-29).

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É importante ressaltar que a palavra phainomena, que é traduzida neste trecho na maioria das vezes por “fatos” ou “fenômenos”, foi utilizada algumas linhas acima por Aristóteles fazendo referência às endoxa. Não obstante, como ressaltam Gauthier e Jolif, dado que algumas das endoxa enunciadas entram em conflito umas com as outras, seria estranho que tal conflito fosse ressaltado somente quando a opinião socrática é introduzida. Ao que tudo indica, portanto, é de um conflito com os fatos, isto é, com o fenômeno da akrasia, que Aristóteles está falando aqui. Se o incontinente age mesmo por ignorância, nos diz Aristóteles, é necessário dizer de que tipo de ignorância se trata, pois está claro que ele não acredita que deva agir da maneira como age antes da ação. A maioria dos intérpretes, no entanto, reconhece que, ao contrário do que esta primeira crítica parece indicar, a análise aristotélica da akrasia conserva um certo sentido da opinião socrática. Com efeito, como veremos, após apresentar sua solução para o problema da akrasia Aristóteles conclui que sua investigação o levou à mesma conclusão que Sócrates buscou estabelecer (1147b13-14). Resta saber qual o sentido preciso em que a conclusão de Sócrates é aqui recuperada. Tal pergunta, é claro, só poderá ser adequadamente respondida no final do presente capítulo. No momento, gostaria de chamar atenção para outra coisa que Aristóteles diz logo em seguida. Segundo o filósofo, já em seu tempo existiam autores que aceitavam a doutrina socrática ‘numa forma modificada’. Para estes, embora não seja possível agir contra o conhecimento, é totalmente possível agir contra a opinião, e eles afirmam também, é claro, que o incontinente possui não o

209 conhecimento mas apenas a opinião. Aristóteles, no entanto, descarta essa visão. Antes que possamos analisar os argumentos de Aristóteles, no entanto, devemos compreender o que exatamente afirmam os que sustentam uma tal doutrina. Segundo Gauthier e Jolif, essa forma modificada da teoria socrática deve ser compreendida da seguinte maneira: Os que sustentam a opinião que é exposta aqui pensam, com Sócrates, que ninguém que possui o conhecimento pode ser vencido pela paixão e conduzido a agir mal; mas, para evitar encontrarem-se em desacordo com os fatos, eles concedem que a opinião (doxa) pode ser derrotada; assim, poder-se-ia ser incontinente mesmo ajuizando corretamente – mas ajuizando a partir de uma opinião e não do conhecimento. (GAUTHIER e JOLIF, 2002, P. 594).

Se é essa realmente a opinião visada, então não se trata da mesma

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explicação que encontramos na obra platônica. Como vimos, segundo Platão o incontinente abandona o juízo correto por acreditar, ainda que brevemente, num juízo falso que lhe foi sugerido pelas aparências. Segundo Platão, caso o indivíduo possua o juízo correto no momento da ação, ele jamais agirá de forma incontinente. Creio, no entanto, que o argumento de Aristóteles pode, e deve, ser compreendido num outro sentido. Tal fica claro se tivermos em mente que tal argumento visa excluir a possibilidade de reduzirmos o problema da akrasia ao agir contra o opinião, excluindo portanto que um indivíduo possa agir contra o conhecimento (1146b24-26). Ora, se compreendermos a dita opinião da mesma maneira que Gauthier e Jolif a compreendem, isto é, como afirmando que o incontinente possui a opinião correta na hora em que age, então é forçoso reconhecer que o descarte desta opinião não será suficiente para que Aristóteles consiga estabelecer que não faz sentido sustentar que o incontinente pode agir contra a opinião correta, mas jamais contra o conhecimento. Prova disso é que o próprio Platão afirmou a pertinência dessa distinção e sustentou que o incontinente não poderia possuir a opinião correta na hora em que age. Para que tal argumento funcione, portanto, nós precisamos compreender a opinião citada por Aristóteles de forma diferente. Se a manutenção ou o descarte da opinião citada deve implicar na restrição ou não do problema da akrasia ao agir contra a opinião verdadeira, então a opinião citada deve ser compreendida como afirmando justamente isso, a saber, que é perfeitamente possível que um homem possua a opinião correta a respeito do que deve fazer num dado momento e, mesmo assim, aja de forma diferente

210 quando o momento se apresenta, mas que não é possível que este mesmo homem possua o conhecimento a respeito do que deve fazer num determinado momento e não aja da maneira como deve quando o momento se apresenta. Dado que, segundo a interpretação fornecida aqui, é exatamente esta ‘forma modificada’ da doutrina socrática que encontramos no Protágoras de Platão, será oportuno fazer uma breve análise dos dois argumentos apresentados por Aristóteles em favor de tal descarte. O primeiro, que encontramos em 1145b36-1146a4, afirma que se fosse realmente somente contra a opinião e não contra o conhecimento que o incontinente age, isto é, segundo Aristóteles, se tal homem agisse não contra uma convicção forte (iskhura hypolepsis) mas sim contra uma convicção fraca, então,

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nos diz o filósofo, nós poderíamos perdoar um homem que não age de acordo com tais opiniões mas sim de acordo com seus desejos mais fortes (prós epithymías iskhuras). Dado que nós não perdoamos nem o vício e nem nenhuma outra qualidade reprovável, nos diz Aristóteles, então a forma modificada da doutrina socrática é falsa. Este primeiro argumento, no entanto,

só se torna plenamente

compreensível através do segundo, que encontra-se em 1146b24-31. Neste trecho, Aristóteles afirma que alguns homens confiam em suas opiniões com a mais absoluta certeza, tomando-as por um conhecimento seguro. Sendo assim, argumenta Aristóteles, se é a falta de convicção que leva tais autores a afirmar que a opinião é mais fraca do que o conhecimento, eles devem admitir também que tal diferença é acidental, isto é, que é perfeitamente possível que um indivíduo tenha numa opinião a mesma confiança que ele tem no conhecimento e que, portanto, a opinião e o conhecimento não diferem de forma essencial no que diz respeito à confiança que despertam no indivíduo. Se o que foi dito acima está correto, devemos afirmar que para Aristóteles o argumento socrático que encontramos no Protágoras só faria sentido se postularmos que a confiança do indivíduo acrático na opinião que ele tinha antes da ação já não era forte, ou seja, que o indivíduo não estava totalmente convencido de sua veracidade, e que isto, por si só, já explica o porquê de seu abandono. Aristóteles, segundo tal argumento, estaria afirmando que tal ato seria perdoável exatamente porque uma opinião a respeito da qual se duvida é uma opinião que se tem motivos para acreditar que seja falsa, e ninguém deve se

211 manter fiel a uma opinião falsa. O incontinente teria, segundo tal argumento, uma boa desculpa para abandonar tal opinião e, portanto, uma boa desculpa também para seu ato. Proponho que deixemos de lado a parte do argumento que diz respeito ao ser perdoável ou não do ato em questão45, e nos centremos sobre a questão da convicção, que é o verdadeiro pilar do argumento aristotélico. Ora, como já mostrei anteriormente, para o Sócrates de Platão não se trata de distinguir entre quanta convicção o indivíduo tinha na opinião verdadeira que ele acaba abandonando. Trata-se antes justamente de distinguir entre a opinião e o conhecimento. É porque a opinião é instável, seja ela qual for, que a akrasia é possível, ainda que, a rigor, seja verdadeiro dizer que ninguém age contra aquilo

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que acha ser o melhor para si. O ponto da análise socrática é que uma avaliação desse tipo, que é fundada numa opinião, e não num saber, é tão instável quanto a própria opinião. O que Aristóteles propõe, em suma, é que não faz sentido restringir o problema da akrasia ao conhecimento porque os homens podem confiar excessivamente em suas opiniões. Ora, mesmo que aceitemos que os homens possam fazê-lo, daí não se seguiria que devêssemos necessariamente abandonar tal restrição. Pois ainda é possível argumentar, do ponto de vista socráticoplatônico, que embora não faça sentido afirmar que os homens que tivessem essa excessiva confiança no momento da ação teriam abandonado a opinião em prol do que as aparências lhe mostravam, ainda restaria o grupo dos homens que não tem tanta confiança assim em suas opiniões e, poder-se-ia argumentar, seria justamente neste grupo que estariam os eventuais incontinentes. Além disso, a diferenciação entre o saber e a opinião proposta pelo Sócrates de Platão se mostra especialmente pertinente se analisarmos um pouco mais de perto o texto aristotélico. Com efeito, parece digno de nota que Aristóteles afirme em 1146b24-31 que alguns homens não duvidam de suas opiniões, ‘supondo saber de forma segura’ (all’oiontai akribos eidénai). O que o filósofo parece sugerir, portanto, é justamente que a confiança de tais homens não se manifesta a respeito de qualquer opinião, mas sim a respeito daquilo que eles acham que sabem. O que acontece, portanto, é que determinados indivíduos não

45

Como vimos, tal especto não é nem sequer discutido pelo Sócrates de Platão.

212 têm clareza a respeito da natureza dos juízos que sustentam, não sendo capazes de distinguir entre o que sabem e aquilo a respeito do que opinam. Tal sugestão, aliás, ganha força se lembrarmos da maneira como o próprio Aristóteles define a opinião nos Analíticos Posteriores.

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Segundo o filósofo: O conhecimento e seu objeto diferem da opinião e do seu objeto no fato de que o conhecimento trata do universal e procede através de proposições necessárias, e o que é necessário não pode ser de outro jeito. Mas existem algumas proposições que, embora verdadeiras, poderiam ser de outro modo. (...) é a opinião que diz respeito ao que é verdadeiro ou falso e pode ser de outra maneira. Em outras palavras, a opinião é a assunção de uma premissa (protasis) que não é mediada e nem necessária. Essa descrição concorda com o fenômeno, pois a opinião, como os eventos do tipo que nós descrevemos, é incerta. Além disso, ninguém pensa que está opinando quando acha que algo não pode ser de outra forma, mas sim pensa que sabe. É quando pensamos que uma coisa é de uma certa maneira, mas que não existe nenhuma razão para que tal coisa não seja de outra maneira, que achamos que estamos opinando (An. Pos. 88b30-a9).

Ora, se o motivo pelo qual os homens citados por Aristóteles na EN VII confiam em suas opiniões a respeito do que é melhor para si é pelo fato de acharem que possuem o conhecimento, tal como sugere a formulação aristotélica, então duas conclusões se impõem: a primeira, é que se eles descobrirem que não sabem, mas apenas acham, isso sobre o que opinam, então tal confiança deve diminuir; a segunda, que tais homens confiam mais no que sabem do que naquilo sobre o que têm apenas opiniões, dado que sua excessiva confiança numa determinada opinião é consequência justamente de sua incapacidade de separá-la de seu conhecimento. Por último, gostaria de ressaltar mais uma vez que o que explica o abandono da opinião verdadeira no Protágoras não é o fato de que falta convicção ao sujeito. Com efeito, tal aspecto está inteiramente ausente da análise ali empreendida. O que interessa é que se trata de uma opinião, e portanto de algo suscetível ao poder das aparências. É justamente a imunidade a este poder que a metretiké confere ao indivíduo. Que essa técnica não possa dispensar o saber moral a respeito dos bens e dos males, descrito por exemplo no Laches e no Charmides, parece óbvio. De outra forma, o juízo que daí emergiria seria apenas mais uma opinião e, portanto, suscetível ao mesmo poder das aparências que desbancou a opinião correta que o incontinente possuía anteriormente.

213 Sendo assim, não creio que Aristóteles tenha razão ao afirmar que a sugestão de que o incontinente age não contra o saber, mas sim contra a opinião, não seja de nenhuma importância para o argumento sobre a akrasia. Tais observações, é importante ressaltar, visam apenas reafirmar a coerência da reflexão platônica acerca da akrasia. No que diz respeito ao pensamento de Aristóteles, no entanto, devemos reconhecer que o critério de instabilidade proposto pelo Sócrates de Platão para diferenciar a opinião verdadeira do conhecimento não poderia ser mantido no caso da akrasia. Como veremos, o que Aristóteles vai propor no livro VII é justamente que o conhecimento também é, em certo sentido, instável. Isto é, que o fato de que um homem possua o conhecimento a respeito do que deve fazer num determinado

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momento não quer dizer que ele agirá de acordo no momento oportuno, dado que o conhecimento pode estar nele impedido de atuar. Sendo assim, uma vez que, de acordo com Aristóteles, o conhecimento pode ser impedido de atuar por forças outras, então, do ponto de vista aristotélico, ele não nos oferece nenhuma garantia extra em relação à opinião verdadeira no que diz respeito à ação correta. Antes de retomar a exegese do texto aristotélico, gostaria de ressaltar que não pretendo sustentar, com a leitura aqui defendida, qualquer hipótese a respeito de uma suposta diferença entre a análise socrática e a análise platônica da akrasia. O trecho da obra de Aristóteles fala de ‘outros autores’ e não de Platão. Não me parece razoável, portanto, afirmar que se trata da leitura aristotélica do Protágoras. Ao contrário, dada a maneira como a opinião de Sócrates foi citada anteriormente, tudo parece indicar que é esta a opinião retirada do Protágoras de Platão. Sendo assim, parece forçoso admitir que Aristóteles não tenha compreendido o que é dito lá da mesma maneira como foi compreendido aqui. Dizer que a opinião que Aristóteles atribui a ‘outros autores’ seria advinda de membros da academia que se mantiveram mais próximos do texto platônico parece afirmar algo possível mas, no contexto da presente investigação, fruto de pura especulação. Não obstante, como já vimos anteriormente, tais dificuldades não impediram que determinados autores utilizassem o argumento aristotélico para compreender o texto platônico46. Nós podemos, agora, perceber o que orientava 46

Como vimos nos capítulos anteriores, foi exatamente isso que fez Irwin quando se dedicou ao estudo de tal assunto não somente na obra platônica, mas também nas peças de Eurípides.

214 tais tentativas: estando convencidos de que a distinção entre conhecimento e opinião não era pertinente para o problema da akrasia, tais autores buscavam compreender o argumento que encontramos no Protágoras de forma a salvá-lo de uma eventual crítica. Tal tarefa, é claro, foi facilitada pelo fato de que é sem dúvida verdadeiro, em certo sentido, afirmar que segundo o argumento que encontramos ali ninguém age contra aquilo que acha ser o melhor para si. Isso, no entanto, só é verdadeiro num certo sentido, sentido esse que não exclui a pertinência da distinção entre opinião correta e conhecimento para a compreensão do problema da akrasia. Tendo esclarecido de forma suficiente esse ponto, retomo agora à exegese

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do texto aristotélico. 6.5 Temperança, autocontrole e algumas formas de akrasia por analogia: as três últimas opiniões A quarta opinião enunciada por Aristóteles afirma que (4) o homem temperante (sóphrona) é sempre controlado (enkratés) e resistente (karterikon) (1145b15-18). Alguns homens, nos diz o filósofo, afirmam ainda que o homem controlado e resistente é sempre temperante, mas outros negam. Os que afirmam, nos diz Aristóteles, identificam o akolastos e o incontinente, enquanto os que negam separam os dois. No entanto, diz o filósofo, se o autocontrole implica na presença de poderosos desejos nefastos, então o homem moderado não pode ser controlado, e nem o controlado moderado, pois o homem moderado não possui tais desejos. E, de fato, para Aristóteles o autocontrole implica necessariamente na presença de tais desejos, pois caso os desejos fossem bons, a disposição que a impediria de satisfazêlos seria má, o que entraria em conflito com (1), e caso os desejos fossem nefastos porém fracos, não haveria nada de realmente louvável no autocontrole. Além disso, segundo Aristóteles a temperança é uma virtude da parte irracional da alma, e o homem temperante é justamente aquele que não tem nenhum prazer nas coisas das quais mais desfruta o akolastos, isto é, aquele que não encontra prazer no excesso e nem excesso de dor na abstinência de certos prazeres corporais (EN 1119a11-21). Ou seja, o temperante é caracterizado pela moderação de seus apetites, sendo definido como aquele que ocupa a posição intermediária entre o akolastos e o raríssimo homem que, devido a sua própria

215 constituição, goza menos do que deveria dos prazeres corporais e não se mantém fiel à regra. Sendo assim, é apenas por similitude que nós falamos do autocontrole do homem moderado, uma vez que tanto o homem auto controlado quanto o homem moderado se comportam de modo a não ir contra a regra sob o comando dos prazeres corporais. Permanece verdade, no entanto, que o primeiro possui os apetites perversos enquanto que o segundo não os possui. O homem moderado não sente prazer em nada que seja contrario à regra. A quinta opinião afirma que (5) o homem prudente (phronimon) não pode ser incontinente. Aristóteles afirma ainda que havia aqueles que acreditavam que mesmo os homens prudentes e hábeis (deinous) podiam comportar-se às vezes de forma incontinente (1145b18-19). Aqueles que acreditam nisso, no entanto, são

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forçados a admitir que o mesmo homem possa ser ao mesmo tempo prudente e incontinente, o que para Aristóteles é absurdo. Segundo o filósofo, o que marca o homem prudente é a capacidade de deliberar bem (NE 1140a24-29), e deliberar bem, é claro, pressupõe ser capaz de levar a deliberação ao seu bom termo, a saber, a ação. Se é justamente nisso que falha o akrates, então é realmente um absurdo admitir que o mesmo homem possa ser, ao mesmo tempo e no mesmo sentido, prudente e incontinente. A sexta e última opinião afirma que (6) existem homens incontinentes no que diz respeito à cólera (thumou), à honra (time) e ao ganho (kerdous) (1145b1920). Mas se isso é assim, pergunta Aristóteles, qual o significado preciso da palavra akrasia quando ela é usada, como é o caso na maioria das vezes, sem nenhuma qualificação? A resposta a esta última endoxa, no entanto, nos levará direto ao começo da teoria propriamente aristotélica a respeito da akrasia, pois para respondê-la será necessário esclarecer qual é, segundo Aristóteles, o objeto próprio desta disposição. Passarei, então, imediatamente a tais esclarecimentos. 6.6 Sobre os objetos da akrasia Aristóteles começa a expor sua teoria acerca da akrasia com uma declaração metodológica. Em primeiro lugar, nos diz o filósofo, é preciso examinar se o incontinente age com saber ou não, e se ele age com saber em que

216 sentido podemos dizer que ele sabe. Em seguida, que tipo de objetos devem ser admitidos como entrando na esfera do incontinente e do temperante, ou seja, se a incontinência se relaciona com todo tipo de prazer e de dor ou somente com algumas espécies determinadas. Mais uma vez, creio que para os fins da presente análise o melhor será não seguir o movimento do texto aristotélico, mas sim dispor os argumentos da forma mais organizada possível. De forma a facilitar a compreensão, começarei esclarecendo quais são, segundo Aristóteles, os objetos da akrasia, para só depois passar para a explicação aristotélica do fenômeno. De início (1147b20-1148b14), Aristóteles afirma que é óbvio que a akrasia, a enkrateia, a malakia e a karteria dizem respeito aos prazeres e às dores.

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Mas, nos diz ele, as coisas que nos dão prazer são de dois tipos: algumas são necessárias e as outras são desejáveis por si mesmas, mas admitem o excesso. Os prazeres necessários são aqueles do corpo, como os do sexo e da nutrição. Já os prazeres como a vitória, a honra, a riqueza e as demais coisas do mesmo tipo, Aristóteles coloca no segundo grupo. Segundo o filósofo, aqueles que se excedem no que diz respeito a este segundo grupo não são chamados de incontinentes absolutamente, mas apenas de uma forma qualificada. Isso quer dizer, nos diz ele, que nós os vemos como distintos daquele que é akrates no sentido estrito do termo, e que na verdade nós só chamamos os demais homens pelo menos nome por analogia. Com efeito, nos diz o filósofo, em relação a este segundo tipo de prazeres não pode haver vício, embora a devoção excessiva à sua aquisição possa trazer malefícios, e, portanto, talvez deva ser evitada. Ao contrário, aquele que é incontinente em relação aos prazeres do corpo, que persegue os prazeres excessivos e evita as dores do corpo como “a fome, a sede, o calor, o frio e todas as sensações dolorosas ao tato e ao paladar, e isso não por uma escolha refletida mas contra sua escolha e sua razão” (1148a4-12), é este que é chamado de incontinente sem nenhuma especificação, isto é, incontinente no sentido estrito. O ponto de Aristóteles parece claro. No que diz respeito a prazeres como a honra, é só de vez em quando que a sua busca excessiva é verdadeiramente prejudicial, isto é, acidentalmente. Pode acontecer, de fato, que a dedicação excessiva à honra acabe arruinando um homem. Mas também pode ser que não, e que ele acabe alcançando seu objetivo sem arruinar-se. O excesso de honra, em si

217 mesmo, nunca arruinou ninguém. O excesso no que diz respeito aos prazeres do outro tipo, no entanto, é, segundo Aristóteles, maléfico por si mesmo e, por isso, constitui propriamente um vício. Segundo essa primeira definição do objeto da akrasía, portanto, o fenômeno teria a ver exclusivamente com os prazeres do tato e do paladar. Como já foi observado47, no entanto, esta definição é ainda incompleta. Com efeito, na investigação aristotélica acerca do objeto da akrasia que encontramos no livro VII o filósofo afirma que a akrasia, assim como a akolasia, tem a ver com os mesmos prazeres que são objeto da temperança (1148a4-6). Ora, tanto nas linhas que seguem essa primeira definição no livro VII da EN quanto nos textos pertinentes das éticas nos quais trata da akolasia e da temperança, a saber, EN III 10 e EE III

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2, Aristóteles nos fornece uma definição mais restrita de seus objetos. Na EE, Aristóteles afirma que a akolasia não tem por objeto todo e qualquer prazer corporal. Como nos diz o filósofo, embora aqueles que são demasiadamente inclinados ao desfrute dos prazeres visuais, sonoros e olfativos possam ser passíveis de crítica eles não são severamente reprováveis, ao contrário do que acontece no caso dos prazeres do tato (1231a22-25). O filósofo, no entanto, vai mais longe ainda e afirma que a akolasia não diz respeito nem mesmo a todos os prazeres do paladar, mas somente aqueles que são menos refinados e, portanto, mais próximos do tato (1231a15-16). Segundo o argumento da EE, se existe algum traço que une todos os prazeres que são objeto da akolasia, da akrasia e da sophrosyne é o fato de eles serem prazeres que não são próprios do homem, sendo partilhados até mesmo com os animais menos desenvolvidos (1230b35-1231a1). Neste sentido, parece importante ressaltar que é justamente se mantendo fiel a este traço de sua definição que Aristóteles vai reduzir ainda mais a extensão do grupo de objetos com os quais esses fenômenos se relacionam na análise da akolasia contida na EN III 10. Lá, após reafirmar a relação da akolasia com os prazeres partilhados com os animais (1118a24-26), o filósofo exclui do campo da akolasia até mesmo os prazeres mais refinados do tato, tais como os prazeres oriundos do ginásio, a saber, os banhos quentes e a fricção provocada pelos exercícios marciais (1118b5-8).

47

Cf. p. ex. (LORENZ, 2005, PP. 72-101).

218 Sendo assim, se é de fato possível constatar que nos diferentes momentos em que fala dos objetos da akrasia e da akolasia Aristóteles nos fornece definições de extensão diferente, não parece necessário, no entanto, nem lançar mão de uma hipótese desenvolvimentista nem atribuir os diferentes textos a diferentes autores para explicar tal variação 48. Como vimos, a intuição principal que guia o pensamento do filósofo permanece a mesma tanto na EE quanto na EN, a saber, a idéia de que a akrasia e a akolasia têm a ver com os prazeres que os homens partilham com os animais. Não me parece, portanto, que a constatação de uma variação na extensão da definição signifique nenhuma mudança essencial no pensamento, mas apenas um descuido técnico sem maiores implicações. Com efeito, é claro que a definição mais completa é aquela encontrada na EN III 10, e

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que, portanto, é ela também a melhor definição49. No entanto, embora exista consenso entre os especialistas em torno da constatação de tal definição do objeto da temperança, e portanto também da akrasia e da akolasia, é importante ressaltar que essa restrição já foi alvo de críticas. Segundo Curzer, por exemplo, Aristóteles errou ao restringir demais o campo da temperança (CURZER, 1997, P. 5-25). Em primeiro lugar, argumenta o autor, ao excluir os prazeres da visão, da audição, e do cheiro da esfera da temperança, Aristóteles está ignorando a complexidade dos objetos com os quais tal virtude se relaciona. Muitos itens reconhecidos por Aristóteles como objetos da temperança envolvem complicadas combinações de sentidos. Talvez seja verdade, nos diz o autor, que os cães não se deliciam com o perfume de lebres, mas para os homens o prazer do alimento não pode ser separado de seu cheiro, de sua aparência ou até mesmo da atmosfera do restaurante. Da mesma forma, o prazer do sexo não pode ser separado da 48

Como sabemos, foi a segunda opção a preferida por Cook Wilson num estudo clássico, publicado pela primeira vez no final do século XIX, intitulado Aristotelian Studies, On the structure of the seventh book of the Nichomachean Ethics: Chapters I-X (Oxford: Clarendon Press, 1871). Embora o questionamento da autoria de determinadas passagens levado a cabo por Cook Wilson não tenha se imposto entre a maioria dos especialistas, as dificuldades de interpretação ressaltadas pelo autor influenciaram enormemente as reflexões sobre o tema da akrasia na obra de Aristóteles durante o século XX. Como veremos mais adiante, intérpretes como Gauthier, Jolif e Marco Zingano ainda se mostram marcados pela interpretação de Cook Wilson, ainda que rejeitem a tentativa do autor de atribuir os textos mais problemáticos do livro VII da EN a outro autor que não Aristóteles. 49 Sendo assim, e a não ser pela recusa da hipótese desenvolvimentista, creio que o que foi dito aqui não é muito diferente do que já foi dito por Lorenz. No que diz respeito à restrição do domínio da incontinência aos prazeres partilhados pelos demais animais e da coerência de tal definição com a teoria dos sentidos desenvolvida tanto no De Anima quanto nos tratados biológicos, cf: (SISKO, 2003, P. 135-140).

219 aparência dos participantes, da ternura dispensada ou não, ou mesmo do romântico passeio à luz do luar que o antecede. Sendo assim, argumenta Curzer, se os objetos da temperança são agradáveis também por causa de sua aparência, de seu som e de seu cheiro, então mesmo estes prazeres do tato estão interligados com estes outros sentidos, não podendo, portanto, ser separados deles. Em segundo lugar, segundo Curzer é perfeitamente plausível que pessoas sejam chamadas de temperantes ou imoderadas com relação aos prazeres do jogo, dos vídeo games, das drogas recreativas, etc., embora nós não compartilhemos esses prazeres com animais. Segundo Curzer, a forma como as pessoas erram em seu comportamento para com essas coisas é tão semelhante à maneira como elas erram em sua relação com a comida, a bebida e o sexo que é forçoso reconhecer

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que ambas as classes de objetos devem ser regidas por uma única virtude. Tais argumentos, no entanto, não me parecem convincentes. No que diz respeito ao prazer táctil ser ou não separável do prazer visual, auditivo e olfativo, creio que o primeiro argumento é falacioso. Sim, é razoável admitir que prazeres advindos destes outros sentidos aumentem ou diminuam nosso deleite com as atividades em questão. Não obstante, que um sentimento de prazer ou de dor advindo de um outro sentido no mesmo momento em que experimentamos um prazer táctil possa prejudicar ou melhorar nossa experiência não significa que este prazer seja dependente do prazer que advém dos outros sentidos. No que diz respeito aos prazeres advindos do jogo, dos vídeo games e das drogas recreativas, a discussão é mais complicada. No que diz respeito ao jogo, seria necessário precisar exatamente qual é o erro cometido pelo homem. Se ele consiste em arriscar perder o próprio dinheiro, então devemos reconhecer que tal atividade só é má de vez em quando, e não em si mesma. O bom jogador de poker, por exemplo, terá provavelmente mais lucro do que prejuízo. Por outro lado, se o jogador joga pelo prazer de arriscar, e não pelo desejo de vencer, será necessário dizer que tipo de prazer é este, isto é, que desejo ele sacia, e se ele pertence à esfera da temperança ou de alguma outra virtude. No que diz respeito aos vídeo games, talvez seja razoável relembrar que Aristóteles classifica aquele que se excede em relação aos divertimentos (paidia) como malakos, argumentando que tal hábito é na verdade desejo de descanso e, portanto, preguiça (1150b16-19). O terceiro exemplo, o das drogas recreativas, parece ser o mais parecido com os prazeres que Aristóteles tem em mente quando fala da

220 temperança. Com efeito, tais prazeres podem ser desfrutados na medida certa, e é justamente quando nos excedemos que eles se tornam prejudiciais. Não obstante tais considerações, como vimos anteriormente a definição do âmbito da temperança como dizendo respeito aos prazeres partilhados com os animais é algo que aparece já na EE e se repete na EN, e, portanto, não pode ser facilmente descartada do pensamento de Aristóteles. Tal definição, aliás, se encaixa quase perfeitamente com a lista que nos é dada em 1148a4-12. Como vimos anteriormente, neste trecho do livro VII da EN Aristóteles relaciona a akrasia com a fome e a sede, o calor e o frio50, e todas as sensações dolorosas que dizem respeito ao tato e ao paladar. A definição que restringe a akrasia aos prazeres partilhados com os animais só faz diminuir um pouco mais essa primeira

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circunscrição, ao excluir do grupo de casos pertinentes determinadas sensações do tato e do paladar que, por seu refinamento, não são partilhadas com os animais. Além disso, que o filósofo reconheça que nós podemos usar o termo akrasia por analogia nos mostra que ele está atento para o fato de que existem muitas experiências que podem ser explicadas de maneira similar. Mais interessante do que determinar exatamente quais os limites que separam uma virtude de outra, tendo em vista os fins da presente investigação, é compreender por que o filósofo esforça-se para separar o que ele chama de akrasia no sentido estrito daquilo que poderia ser assim chamado por analogia. É só assim que poderemos especular a respeito de como Aristóteles classificaria determinadas atividades que ele nem sequer conheceu. 6.7 A akrasia theriodes e a akrasia tou thymou Tendo definido o objeto da akrasia propriamente dita, Aristóteles separa ainda um outro grupo de casos, bem diferente do caso das coisas que são belas e boas em si mesmas, a respeito dos quais usa-se o termo por analogia. Essa parte do livro VII da EN pode ser dividida em duas seções, que analisaremos aqui subsequentemente. A primeira seção (114815-1149a24) trata da akrasia theoriodes, isto é, da incontinência bestial. A segunda seção (1149a26-b26) trata da akrasia tou thymou, isto é, da akrasia proveniente do thymos. 50

Sobre o lugar do calor e do frio na teoria aristotélica dos sentidos cf. (GAUTHIER, R. A.; JOLIF, J. Y, 2002, P. 622).

221 Antes de passarmos à primeira seção, será útil expor o que é dito por Aristóteles no começo do livro VII sobre a bestialidade. Segundo Aristóteles, “(...) assim como não existe virtude nem vício entre os animais, também não existe entre os deuses” (1145a25-27; cf. Também 1148b34-1149a5). Embora Aristóteles não diga por que os animais não são capazes de virtude ou de vício, parece razoável seguir Cooper quando ele afirma que a razão implícita num tal argumento é que tanto o vício quanto a virtude requerem a posse da razão (logos), que os animais, obviamente, não possuem. Porque, segundo Aristóteles, a virtude consiste no aperfeiçoamento da razão e o vício consiste na corrupção da razão, nos diz Cooper, os animais estariam fora do âmbito do comportamento moral (COOPER, 2005, P. 16).

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Ora, a akrasia theorides, no entanto, é justamente uma disposição humana, mas o que caracteriza tal disposição, segundo Aristóteles, é o fato de que ela leva certos homens a partilhar com os animais determinados prazeres cujo desfrute, no entanto, vai contra a natureza humana. Como nos diz o filósofo, algumas coisas são agradáveis por natureza, seja de modo absoluto ou somente por uma dada classe de animais ou de homens. Outras, não são agradáveis por natureza mas se tornam agradáveis seja em consequência de uma natureza corrompida, de uma deformidade ou má formação, seja por habituação. Tal diferença, é claro, será pertinente também no que diz respeito aos prazeres que dizem respeito à akrasia. Dado que a akrasia propriamente dita diz respeito aos prazeres que os homens partilham naturalmente com os animais, Aristóteles quer separar os casos onde o desfrute de tais prazeres se deve à alguma forma de desvio da natureza. Se Cooper tem razão em afirmar que é a ausência da razão que faz com que os animais sejam incapazes de virtude ou de vício, então parece razoável assumir que o processo envolvido na aquisição da akrasia theriodes implica na perda ou em alguma forma de prejuízo da razão. De fato, como ressalta Cooper, os casos de canibalismo citados por Aristóteles como exemplos de ações bestiais – exemplos estes que incluem o de certas criaturas em forma de mulher que abrem a barriga das grávidas para devorar os bebês – parecem de fato mostrar ações que objetivam a satisfação de um desejo apetitivo através de objetos cujo desfrute vai contra a natureza humana, mas não contra a natureza dos demais animais. Além disso, vale ressaltar a justificativa dada por Aristóteles para afirmar que a akrasia theoriodes é mais medonha do que o vício (phoberoteron) sem, no

222 entanto, superá-lo em maldade (kakia). Segundo o filósofo, o que não possui um princípio originador (hekhontos archen) tal como a inteligência (nous) é necessariamente menos capaz de fazer o mal do que aquilo que possui. Um homem vicioso, diz Aristóteles, consegue fazer muito mais mal do que um animal ou um homem bestial (EN 1150a1-9). Não podemos seguir Cooper, no entanto, quando ele afirma que a bestialidade implica, além da perda ou do prejuízo da razão, a impotência do homem bestial diante de seus desejos bestiais (COOPER, 2005, P. 18). De fato, o filósofo nos diz que o excesso de insanidade, de preguiça ou de incontinência são traços de bestialidade, isto é, dos estados mórbidos, e que o homem constituído de modo a ter medo de tudo é preguiçoso de uma preguiça animalesca, e alguns

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chegam a ter fobias específicas como fruto de doenças. No entanto, Aristóteles afirma claramente que é possível aos que possuem uma disposição mórbida tanto agir de acordo com ela como não agir (EN 1149a12-14). Sendo possível, portanto, a resistência, será possível também a falha em resistir. Sendo assim, devemos reconhecer que tanto a incontinência bestial quanto a incontinência mórbida existem, assim como a perversidade bestial e a perversidade mórbida. Mas só é incontinência e perversidade no sentido estrito, segundo Aristóteles, aquela que corresponde ao desregramento propriamente humano. Como podemos ver, o argumento do filósofo tem por objetivo limitar o fenômeno da akrasia propriamente dita aos prazeres que os homens partilham por natureza com os animais, excluindo deste grupo aqueles prazeres que vieram a ser partilhados contra a natureza. Tendo encerrado este argumento, Aristóteles passa à análise da akrasia tou thymou (1149a26-b26), que deve ser incluída no grupo dos casos que são ditos incontinência apenas por analogia. É interessante notar que, ao contrário dos tipos de akrasia por analogia apontados até aqui, a akrasia tou thymou parece ser classificada tendo em vista não o tipo de prazer com o qual ela se relaciona, mas sim a instância de onde provém determinados impulsos ou emoções. O thymos, segundo Aristóteles, está estreitamente conectado com a coragem e a raiva, mas às vezes também aparece ligado à amizade e ao sentimento de dignidade. Além disso, ele indica, como ressalta Natali, a faculdade da qual pensamos resultar o comportamento impulsivo (NATALI, 2005, P. 114). Dado que, como veremos mais a frente, Aristóteles distinguirá dois tipos de akrasia no sentido estrito, a fraqueza e a impulsividade, é

223 particularmente importante mostrar por que a akrasia tou thymou não deve ser confundida com a impulsividade. De início, parece relevante ressaltar que neste trecho do livro VII Aristóteles nos apresente diversos argumentos que visam mostrar por que a akrasia tou thumou é menos vergonhosa do que a akrasia ton epithymon (EN 1149a25-26). Aristóteles nos dá como exemplo do primeiro tipo de akrasia a raiva (orgé) despertada por um insulto e o consequente desejo de vingança (timoria). Segundo o filósofo (1149a32-b2), quando a razão ou a imaginação sugerem que um insulto foi cometido, a raiva aparece imediatamente e o indivíduo, como se raciocinasse que se deve vingar todos os insultos, se apressa em buscar a vingança. Com efeito, já aqui há uma diferença entre a akrasia que

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segue o desejo proveniente do thymos e aquela que tem a ver com os prazeres que os homens partilham com os animais. Neste último caso, como nos diz Aristóteles, basta o reconhecimento de que algo é prazeroso para que o desejo desperte (1149a35). Presumivelmente, o juízo que desperta a raiva e o desejo de vingança é mais complexo do que aquele que desperta os desejos apetitivos. Ainda resta explicar, no entanto, por que esse tipo análogo de akrasia é menos vergonhoso que a akrasia no sentido estrito. Segundo Aristóteles, em primeiro lugar a raiva ouve a razão, embora o faça de forma errada (149a26-28), enquanto que o desejo não ouve a razão. Em segundo lugar, a raiva é, segundo Aristóteles, um sentimento mais natural do que o desejo por prazeres excessivos e desnecessários. Em terceiro lugar, dado que os homens são tanto mais injustos quanto mais são ardilosos (epibouloteroi), nos diz Aristóteles, e o desejo é ardiloso enquanto que o thymos não é ardiloso mas sim phaneros, isto é, visível, manifesto, então, conclui Aristóteles, a akrasia no sentido estrito é mais injusta e mais vergonhosa que a akrasia tou thymou (1149b19-20). Embora o argumento acima não seja dos mais claros, não é difícil ver qual a relação entre a akrasia tou thymou e a justiça que Aristóteles visa ressaltar. Com efeito, tudo se passa como se o indivíduo que padecesse desse mal tivesse que ter a impressão de ter sofrido um tratamento injusto. Sendo assim, devemos reconhecer que tal indivíduo age acreditando que a justiça está do seu lado, e não a despeito dela. Se ele tem ou não razão de achá-lo pouco importa. O que interessa é que esse tipo de comportamento se mantém aberto a considerações racionais a respeito da justiça, e, por isso, está mais perto da razão.

224 De acordo com Aristóteles, no caso da akrasia tou thymou o thymos não se opõe à razão, mas sim a compreende mal. Isto é, como diz Natali, ele ouve uma ordem quando a razão não fez senão uma asserção factual. Tendo recebido a informação a respeito de um determinado estado de coisas, o thymos se enfurece imediatamente, como se a razão tivesse deliberado e chegado à conclusão ‘Devese vingar todo insulto recebido’. O erro em questão é o de não dar o tempo suficiente para que a razão faça o seu trabalho (NATALI, 2005, P. 117). Antes de passarmos para a próxima parte de nossa investigação, gostaria de fazer uma última observação a respeito da akrasia tou thymou. Como vimos anteriormente, para Aristóteles o desejo de honra não deve ser incluído dentre as fontes da akrasia. Ora, é óbvio que o desejo de vingança está estreitamente

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relacionado ao desejo de honra. O insulto é percebido como vergonhoso, e a vingança visa justamente vingar tal desonra. Como vimos, é este o caso, por exemplo, de Medéia. Sendo assim, por mais que neste capítulo do livro VII Aristóteles não se concentre no tipo de prazer perseguido pelo indivíduo que demonstra este tipo de comportamento quando o separa da akrasia propriamente dita, mas sim nos apresente uma série de argumentos que visam estabelecer que a akrasia propriamente dita é mais vergonhosa do que a akrasia tou thymou, devemos reconhecer que a delimitação do objeto da akrasia proposta por Aristóteles exclui o desejo de vingança de suas possíveis causas. Mais do que isso, devemos reconhecer também que a insistência do filósofo em separar este tipo de akrasia do fenômeno propriamente dito só faz sentido a partir da restrição do âmbito deste fenômeno aos prazeres corporais partilhados com os animais. Pois, de outra forma, como veremos mais adiante, seria impossível separar a akrasia tou thymou da impulsividade, que é um dos tipos de akrasia em sentido estrito reconhecidos pelo autor.

6.8 Os dois sentidos de ‘conhecer’ Tendo elucidado de forma suficiente o objeto da akrasia propriamente dita, e separado adequadamente o fenômeno propriamente dito dos casos nos quais o mesmo nome é utilizado por analogia, passo agora para a explicação da akrasia oferecida por Aristóteles. A pergunta chave que deve ser respondida nesta

225 seção já foi enunciada anteriormente, a saber, em que sentido podemos afirmar que o incontinente age com saber ou não, e, se ele age com saber, em que sentido podemos dizer que ele sabe. De início, Aristóteles afirma que nós dizemos de um homem que ele sabe em dois sentidos, a saber, seja quando ele possui o saber mas não o está exercitando, seja quando ele o está exercitando (1146b31-35). Para o filósofo, faz toda a diferença afirmar que um homem erra sabendo que o que faz é errado e exercitando seu saber ou se ele o faz sem exercitar o saber no momento da ação. Enquanto o primeiro caso seria difícil de explicar, diz Aristóteles, o segundo é compreensível. Para exemplificar a diferença que tem em mente, Aristóteles lança mão de sua teoria do silogismo prático. Assim, nos diz o filósofo, um homem pode

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saber e estar consciente de que um determinado tipo de comida é boa para todos os homens, e de que ele mesmo é um homem, sem no entanto estar consciente de que um determinado alimento diante dele pertença àquele tipo de comida. O exemplo citado acima nos mostra um homem que não exercita seu saber por desconhecer a natureza do objeto que tem diante de si. Em tal caso, parece lícito supor que se tal sujeito tivesse o conhecimento adequado do objeto, ele exercitaria seu conhecimento. Aristóteles, no entanto, ainda acrescenta um terceiro sentido no qual pode-se dizer que um determinado homem possui o conhecimento, a saber, quando ele possui o conhecimento mas está momentaneamente impedido de se utilizar dele. Este é o caso, por exemplo, nos diz Aristóteles, daqueles que estão dormindo, loucos ou bêbados. Segundo o filósofo, as pessoas que estão sob o efeito das paixões estão numa condição parecida com a desses homens, “pois é evidente que a raiva (thumoi), os desejos sexuais (epithymia aphrodision) e algumas outras paixões chegam a alterar o estado do corpo, causando mesmo, em alguns casos, a loucura” (1147a15-17). Sendo assim, conclui Aristóteles, só é possível dizer que o incontinente sabe neste terceiro sentido, isto é, da mesma maneira que os que estão dormindo, loucos ou bêbados. O filósofo ainda elabora tal comparação, afirmando que essas pessoas são capazes de recitar até mesmo as proposições de geometria de Empédocles, sem no entanto saberem verdadeiramente do que estão falando, como se fossem atores numa peça ou estudantes que apenas começaram a estudar um assunto, sendo capazes de repetir fórmulas sem saber os seus verdadeiros significados.

226 Como podemos ver, segundo Aristóteles é perfeitamente possível que o conhecimento seja impedido de funcionar pelo apetite. Daí que não faça sentido, no contexto da filosofia aristotélica, a afirmação socrática segundo a qual o conhecimento é mais confiável do que a opinião porque não é suscetível à força das aparências. Segundo Aristóteles, o erro do akrates não é devido a uma mudança, influenciada pelas aparências, da sua avaliação no que diz respeito à ação que ele iria empreender. Para o filósofo, o que acontece é que o conhecimento que reside em tal indivíduo é impedido de funcionar pela força de seu apetite. Tendo esclarecido tal ponto, Aristóteles se propõe a dar uma explicação da causa da akrasia do ponto de vista do physikos, isto é, do médico ou ainda do naturalista. A passagem que segue (1147a24-1147b19), na qual Aristóteles explica a

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akrasia lançando mão de um silogismo prático, é de importância capital para a compreensão do texto aristotélico. Antes que passemos a ela, no entanto, será prudente dizer algumas palavras a respeito tanto da teoria do silogismo em Aristóteles quanto do lugar particular do silogismo prático no pensamento do filósofo, tendo em vista evitar confusões posteriores a respeito da explicação aristotélica da akrasia.

6.9 Sobre o silogismo prático Como sabemos, nos An. Pr., I 24 b 18-23, Aristóteles definiu o silogismo como “um argumento segundo o qual, estabelecidas certas coisas, resulta necessariamente destas, por serem o que são, outra coisa distinta das anteriormente estabelecidas”. Tal definição, no entanto, pede observações suplementares. Por um lado, como ressalta Ferrater Mora51, ela é tão geral que acaba abarcando não somente a inferência silogística, por outro, como veremos mais adiante, Aristóteles parece ter considerado como silogismos determinados raciocínios que não cumprem a exigência estabelecida. Nos An. Pr., no entanto, o filósofo estagirita não nos dá apenas uma definição mas também vários exemplos que visam esclarecer a definição. Trata-se, é claro, de exemplos do que se convencionou chamar de ‘silogismo categórico’. Um silogismo categórico é uma inferência, isto é, um processo dedutivo, que conduz ao estabelecimento de uma relação de tipo sujeito-predicado partindo 51

FERRATER MORA, 2009, P. 3275-3280.

227 de enunciados que manifestam tal relação. Neste processo dedutivo, a conclusão, que possui dois termos, é inferida de duas premissas que possuem também, cada qual, dois termos, dos quais um é o mesmo e um não está presente na conclusão. Um exemplo bastante simples seria o seguinte: [Se] Todos os homens são mortais [E] Todos os gregos são homens [Então] Todos os gregos são mortais Neste silogismo, estabelece-se primeiro que ‘ser mortal’ é predicado de ‘ser homem’, em seguida que ‘ser homem’ é predicado de ‘ser grego’ e, por último, conclui-se logo que ‘ser mortal’ é também predicado de ‘ser grego’. A PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

primeira premissa é chamada maior justamente porque, em certas figuras mas não em todas, ela apresenta o termo de maior extensão, ao passo que a segunda premissa é chamada menor por conter, nestas mesmas figuras, o termo de menor extensão. O chamado termo médio, por outro lado, é aquele que figura nas premissas mas não na conclusão. No presente exemplo, o termo médio é ‘homens’. Como é fácil perceber, o termo médio é justamente a qualidade que explica a conclusão. É justamente porque são homens que os gregos são mortais. Para os fins da presente investigação, não será necessário nenhuma explicação a respeito das diferentes figuras ou dos diferentes modos do silogismo aristotélico. Limitarei nossa análise a algumas importantes diferenças entre o exemplo de silogismo categórico apresentado acima, e os exemplos de silogismo prático que encontramos fora da EN52. Um primeiro exemplo de silogismo prático pode ser encontrado em Metafísica 1032b6-10 e 1032b18-21. Lá, o filósofo estagirita nos apresenta o seguinte raciocínio: [Se] Um determinado paciente deve recuperar sua saúde [Se] A recuperação da saúde por parte deste paciente será alcançada através do balanceamento de seus humores [Se] Os humores do paciente serão balanceados se ele for massageado [Então] Eu (o médico) massagearei o paciente

52

Os exemplos citados foram recolhidos por Santas (cf. SANTAS, 1969, P. 163-164).

228 Como podemos ver, tal exemplo difere do exemplo de silogismo categórico oferecido acima não somente por apresentar três, e não duas, premissas, mas também porque no caso do silogismo prático apresentado acima não há nenhuma verdade necessária que é estabelecida através das premissas. Pois poderia perfeitamente ser o caso que mesmo que todas as premissas fossem verdadeiras o médico ainda assim se recusasse a tratar o paciente, caso fosse seu inimigo, por exemplo, ou ainda se ele fosse impedido por forças externas. Dado que ainda há alguma controvérsia a respeito deste ponto, devemos nos deter rapidamente sobre ele. De fato, alguns intérpretes chegaram a argumentar que os quatro exemplos de silogismo prático que nos são dados no De Motu Animalium (701a12-33)

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visam mostrar justamente que a conclusão de um silogismo prático se segue necessariamente de suas premissas. Esses exemplos são os seguintes: [Se um indivíduo pensa que] Todo homem deve andar [E] Ele é um homem [Então] Ele anda imediatamente [Se um indivíduo pensa que] Nenhum homem deve andar [E] Ele é um homem [Então] Ele para imediatamente [Se] Eu preciso fazer algo bom [E] Uma casa é algo bom [Então] Eu faço uma casa imediatamente [Se] Eu preciso de roupas [Se] Uma capa é uma roupa [Se] Eu preciso fabricar as roupas de que preciso [Então] Eu fabrico uma capa imediatamente [Se] Eu quero beber [E] Tal coisa é uma bebida [Então] Eu bebo imediatamente

229 Como podemos ver, em todos estes exemplos o filósofo está preocupado em ressaltar o imediatismo da ação apontada pela conclusão. No entanto, o filósofo faz questão de afirmar que tal imediatismo só se dá caso nada impeça a ação (De motu VII 701a10 e NE VII 1147a27-31). Aristóteles não é explícito a respeito do que pode constituir um impedimento para a ação, mas não parece ser um exagero afirmar que as razões que podem impedir uma ação são bastante diversas. Se tomarmos, por exemplo, o último silogismo apresentado acima e tivermos em mente o caso do homem controlado, isto é, daquele que resiste aos seus apetites maus se mantendo fiel ao seu raciocínio, então podemos concluir que o raciocínio pode ser um impedimento para a ação no caso de tais homens. Com efeito, é perfeitamente possível que o desejo pela bebida e a própria bebida

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estejam ambos presentes num momento onde o melhor para o agente seria não beber. Neste caso, não seria nada surpreendente que tal indivíduo não bebesse. Além deste exemplo, podemos facilmente pensar num homem que chega a uma conclusão a respeito do que deve fazer, mas não faz por ser impedido por imprevistos externos. Um terceiro caso, como veremos, é o da akrasia, onde um determinado pathos impede que o silogismo prático seja eficaz. Sendo assim, não creio ser correto afirmar que o silogismo prático necessita a ação da mesma maneira que o silogismo categórico necessita a conclusão53. Resta, no entanto, indicar como devemos então compreender o silogismo prático, dado que o que define o tipo de raciocínio que é o silogismo é justamente a relação de necessidade que nele vigora entre as premissas e a conclusão. A meu ver, uma boa resposta a esta pergunta já foi dada por Santas (SANTAS, 1969, P. 172-173). Como ressalta o autor, os silogismos práticos representam raciocínios que oferecem uma explicação teleológica que satisfaz a teoria aristotélica a respeito da causa da locomoção animal, tal como a encontramos no De anima (III, 9). Lá, Aristóteles nos diz que esse tipo de movimento possui três características marcantes: 1. ele tem um limite, isto é, um fim (télos, péras); 2. ele constitui sempre o perseguir ou evitar algo; 3. ele é sempre feito tendo em vista algo (heneka tou) e este algo é justamente o fim, ou o limite. Para determinar a natureza de tal causa, Aristóteles lista os candidatos mais comumente associados a este tipo de movimento, refuta as respostas 53

A esse respeito, sigo Santas e (CASANOVA, 2007) contra: (NUSSBAUM, 1978); (VIGO, 2001-2002); (VIGO, 1999).

230 equivocadas e propõe sua própria resposta. Como sabemos, segundo a resposta do filósofo estagirita é o intelecto prático combinado com o desejo que provoca todo movimento animal que é feito tendo em vista um fim (433a10-15). Que as ações pertençam a este grupo, é algo que dispensa justificação. Aristóteles, no entanto, é ainda mais preciso quando afirma (III 10) que o objeto do desejo (tó orektón) é o princípio da razão prática, enquanto que o fim da razão prática é o começo do movimento. Ora, o silogismo prático não nos mostra senão a maneira como estes dois fatores se juntam num determinado indivíduo. No De Motu Animalium, por outro lado, Aristóteles afirma que as premissas de um silogismo prático são de dois tipos, as que dizem respeito ‘ao bem’ e as que dizem respeito ‘ao possível’ (VII 701a23-25). Parece razoável, portanto, supor que

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a premissa que nos silogismos categóricos é chamada de maior é a que nos silogismos práticos dirá respeito ‘ao bem’, e que a menor será a que diz respeito ‘ao possível’. Isso porque é na primeira premissa do silogismo prático que encontramos afirmado aquilo que é perseguido, e portanto desejado, como um bem. Tal premissa, é claro, pode afirmar como objeto de desejo seja um bem real ou um bem aparente . Ela pode, no limite, afirmar como objeto de desejo o objeto que satisfaz o apetite, como no último caso de silogismo prático listado acima54. Dado que, segundo Aristóteles, “as coisas possíveis são aquelas que podem ser realizadas através das nossas ações (ou das ações dos outros que começam em nós)” (NE, 1112b27), é possível afirmar que a segunda premissa afirma algo que pode ser feito pelo próprio indivíduo para alcançar um dado objeto de desejo. Como podemos ver, Santas parece ter razão quando afirma que para cada explicação teleológica relativa ao movimento animal é possível construir um silogismo prático correspondente. O que não quer dizer, é claro, que o indivíduo em questão tenha sempre refletido a respeito de cada uma das proposições que fazem parte do dito silogismo na hora em que agiu; afinal, como reconhece o próprio Aristóteles, “aquilo que fazemos sem calcular (me logisamenoi) nós fazemos rápido” (701a28-29). No que diz respeito à conclusão, no entanto, Santas ressalta que ela pode ser pensada seja como uma intenção, seja simplesmente como um juízo a respeito do que deve ser feito, ou ainda como uma decisão, ou uma resolução, mas jamais 54

[Se] Eu quero beber, [E] Tal coisa é uma bebida, [Então] Eu bebo imediatamente.

231 como uma ação. Tendo dito isso, é importante ressaltar que embora seja verdade que a conclusão do silogismo prático pode ser executada ou não, é forçoso reconhecer que a não execução da conclusão é um fato problemático. Dado que, como quer Aristóteles, o que move os homens é a conjunção da razão prática com o desejo, e dado que o silogismo prático não nos mostra senão a maneira como estes dois fatores se juntam num determinado indivíduo, devemos reconhecer que o raciocínio representado no silogismo prático deveria ser capaz de mover um indivíduo na direção de um determinado objeto ou ação. Que um tal silogismo esteja presente mas a ação não seja executada é algo, portanto, que requer uma explicação própria e, obviamente, independente do silogismo que originou a conclusão.

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A interpretação do silogismo prático delineada acima tem a vantagem de deixar claro o porquê de Aristóteles recorrer a tal silogismo para oferecer uma explicação da causa da akrasia. Dado que a akrasia, como qualquer outra ação, é um caso de movimento feito tendo em vista um fim, não basta dizer que o que a torna possível é a inatividade do conhecimento. De fato, para que consigamos explicar a incontinência, teremos que explicar não só por que o akrates não age de acordo com sua decisão mas também o que o leva a agir da forma como ele age. Em outras palavras, o silogismo prático é utilizado aqui para explicar a incontinência como mais um caso de movimento que é levado a cabo tendo em vista um fim. Creio ter dito o suficiente para situar o silogismo prático no pensamento aristotélico. Retomarei agora a exegese do texto da EN no qual o filósofo se utiliza deste tipo de silogismo para esclarecer o fenômeno da akrasia. Como veremos, este texto é importante não só para o esclarecimento do fenômeno em questão, mas também para nossa compreensão da natureza do silogismo prático.

6.10 O silogismo prático na ação incontinente Como disse anteriormente, em 1147a24-1147b19 Aristóteles se propõe a dar uma explicação da akrasia do ponto de vista do physikos, e ele o faz lançando mão de um silogismo prático. Dada a importância dessa passagem, creio que os dois trechos nos quais o filósofo descreve tal silogismo merecem ser citados por inteiro. Segundo o filósofo:

232

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Num silogismo prático a premissa maior é uma opinião universal, e a outra sobre o particular, que é do âmbito da percepção. Quando as duas premissas são combinadas, assim como no raciocínio teorético a alma necessariamente afirma a conclusão resultante, no caso das matérias práticas ela deve atuar (prattein). Por exemplo, dadas as premissas ‘todas as coisas doces devem ser provadas’ (pantos glukeos geuesthai dei) e ‘tal coisa é doce’ (touti de gluku), que pertence ao particular, o indivíduo provará, caso não seja impedido, a coisa. Quando, portanto, estão presentes uma proposição universal proibindo que se prove e uma outra afirmando que ‘tudo que é doce é prazeroso’ (pan gluku hedu), e uma premissa menor ‘tal coisa é doce’ (touti de gluku), e é essa premissa menor que está ativa, e quando o apetite (epithymia) está presente ao mesmo tempo, então, apesar da premissa universal afirmando ‘Evite tal coisa’ (pheugein touto), o apetite conduz o homem ao objeto . Pois ele move as várias partes do corpo. Assim, quando os homens agem de forma incontinente (akrateuetai) eles o fazem agindo de acordo com um princípio (logou) e uma opinião que não é ela mesma oposta ao princípio, mas somente de forma acidental. O que é oposto é o apetite e não a opinião. (EN 1147a25-1147b4). Na medida em que a última premissa (he teleutaia protasis) diz respeito à percepção e é mestra da ação (kuria ton praxeon), e é essa premissa que o homem que está sob a influência da paixão ou não possui ou possui somente da maneira que, como vimos, não é verdadeiramente saber, mas apenas a capacidade de repetir as máximas de Empédocles, e dado que tal premissa não diz respeito ao universal, e não é um objeto do saber em sentido estrito da mesma maneira que o universal o é, então parece que nós somos levados a afirmar a mesma conclusão que Sócrates procurou estabelecer. Pois não é o conhecimento soberano (tes kurios epistemes) que está presente quando o fenômeno ocorre e que é arrastado por ele, mas sim o conhecimento sensível (tes aisthetikes). (EN 1147b91147b19).

A primeira passagem começa com uma rápida explicação do silogismo prático seguida por um exemplo: “Todas as coisas doces devem ser provadas”, “Essa coisa é doce”. Diante destas duas premissas, nos diz Aristóteles, o indivíduo é levado imediatamente, caso não seja impedido por fatores externos, a provar a coisa que está diante dele. O exemplo é claro, mas também é claro que ele não é um exemplo de akrasia, mas sim de akolasia. No que diz respeito à akrasia, a descrição de Aristóteles complica-se significativamente. Em primeiro lugar, o exemplo de silogismo prático que nos é oferecido por Aristóteles aqui difere de todos os outros exemplos que encontramos em sua obra na medida em que a explicação aristotélica da akrasia não se utiliza apenas de um silogismo prático, mas de dois. Há um silogismo prático que tem por fim a satisfação de um desejo racional e um silogismo prático que tem por fim a satisfação de um desejo apetitivo. Por um lado, nos diz Aristóteles, temos um juízo universal proibindo o sujeito de provar tal coisa, e, por outro, um juízo universal que afirma que “Todas as coisas doces são agradáveis”. Neste mesmo

233 momento, estando presentes tanto o apetite (epithymia) quanto a premissa menor segundo a qual “Tal coisa é doce”, o sujeito é então levado a provar da comida. Para que compreendamos a explicação do filósofo, portanto, devemos compreender por que um silogismo é eficaz, pois leva o sujeito à ação, e o outro não. O começo do segundo trecho supracitado nos dá uma pista, ao afirmar que o que falta ou está ineficaz no silogismo é a última protasis. Isso, no entanto, nos leva ao segundo fator complicador da descrição aristotélica. Com efeito, como já ressaltaram tanto Santas (SANTAS, 1969, P. 184) quanto Charles (CHARLES, 2005, P. 42), a expressão he teleutaia protasis é ambígua, e sua interpretação divide os especialistas. De fato, embora a palavra protasis possa significar ‘premissa’, caso no qual a expressão designaria a

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premissa menor, protasis às vezes quer dizer simplesmente proposição. Tal diferença é crucial, pois no segundo caso a última proposição não seria a premissa menor, mas sim a conclusão. A maioria dos especialistas, seguindo São Tomás de Aquino, entende até hoje que Aristóteles está se referindo à premissa menor. Embora a posição adotada aqui seja a mesma preferida por Santas e Charles, isto é, a posição de que a expressão se refere à conclusão do silogismo, será importante analisarmos algumas das mais importantes interpretações que optaram pela outra compreensão do texto aristotélico, com o objetivo de fundamentar melhor nossa escolha. Segundo Gauthier e Jolif, por exemplo, o incontinente conhece a boa regra, isto é, ele sabe que “tudo que é doce é prejudicial à saúde”, que “não se deve comer nada que faça mal à saúde”, e que, portanto, “não se deve comer nada do que é doce”. Mas, ao contrário do homem temperante (que não sofre com as tentações dos prazeres nefastos), o incontinente tem outra premissa maior, a saber, “Tudo que é doce é agradável”. Sendo, assim, nos dizem os autores, quando, por meio da percepção, tais indivíduos adquirem uma premissa menor que afirma que “Esta comida aqui é doce”, tal alimento pode ser subsumido em uma ou em outra das duas premissas maiores. Que ele só se utilize de uma das premissas maiores, é claro, se deve ao fato de estar sob a influência de um apetite (GAUTHIER e JOLIF, 2002, P. 611-614). É devido a tal apetite, nos dizem Gauthier e Jolif, que o akrates tem consciência de que o alimento diante dele é agradável, sem no entanto se dar conta de que ele é também prejudicial à saúde. Essa última informação, nos dizem

234 os autores, ou bem ele não a possui ou bem ele a possui somente de forma ‘virtual’, isto é, em potência mas não em ato. Para Gauthier e Jolif, conhecer o universal é conhecer em potência o particular e, portanto, aquele que conhece a premissa universal conhece a premissa particular em potência (GAUTHIER e JOLIF, 2002, P. 606). No entanto, este modo de conhecimento é insuficiente para que a conclusão possa aparecer, e é somente a partir do aparecimento da conclusão que a ação pode ser conforme a premissa universal. Como fica claro, para os autores o ponto do argumento aristotélico é que tal indivíduo não conhece da maneira adequada a premissa menor do silogismo (GAUTHIER e JOLIF, 2002, P. 606).

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Segundo Gauthier e Jolif: O incontinente é então vítima de um erro (apate, cf. Acima, 1147a 4-7) cujo mecanismo pode facilmente ser explicado (cf. Anal. Pr., II, 21, 66b18-67b26): dada uma série de quatro termos, A (coisa doce), B (coisa agradável), C (coisa que faz mal à saúde), e D (coisa que não devemos provar), tais que todo A é B, e todo C é D; o incontinente pensa que todo A é B, mas ele não pensa que todo A é também C, e, por consequência, é também D (ele pode pensar separadamente as duas séries: todo A é B, e: todo C é D, mas ele não as coloca em relação através do termo médio C). (GAUTHIER e JOLIF, 2002, P. 612).

É importante ressaltar que essa explicação não esgota o papel do apetite no erro do incontinente tal como é concebido pelos autores. Para Gauthier e Jolif, dado que o máximo que o silogismo apetitivo poderia afirmar é que “Tal coisa é agradável”, é necessário que o apetite intervenha ainda uma outra vez para formar a regra “Deve-se comer tudo o que é prazeroso”, que seria a regra específica do apetite. A interpretação de Gauthier e Jolif, no entanto, apresenta dificuldades tanto no seu ajuste ao texto aristotélico quanto em si mesma. A primeira destas dificuldades, que é reconhecida pelos próprios autores, consiste no fato de que, dado que antes da intervenção do apetite as duas premissas maiores não estão em contradição, pois não são juízos contrários, e que no momento em que elas entram em contradição o apetite impede que a premissa menor seja subsumida como um caso da regra provinda da razão, então é forçoso afirmar que no momento da ação o akrates não está em estado de conflito (GAUTHIER e JOLIF, 2002, P. 614). Com efeito, segundo os autores não só o silogismo racional está impedido como o indivíduo está agindo de acordo com uma premissa universal formulada como uma regra. Dessa dificuldade decorre uma segunda. Dado que a ausência de conflito se deve justamente ao fato de que o indivíduo sequer chega à conclusão do

235 silogismo racional, isto é, ao fato de que ele jamais conclui que não deve comer o alimento que encontra diante de si, então é forçoso reconhecer que tal indivíduo não está consciente, no momento em que age, de que sua ação vai contra a regra racional que ele possui. Segundo tal explicação, portanto, embora tenha consciência da regra o akrates, no momento em que age, não sabe que sua ação está entre as ações proibidas pela regra, o que vai contra aquilo que foi afirmado pela terceira opinião. Uma terceira dificuldade decorre do mecanismo proposto por Gauthier e Jolif para explicar o comportamento do akrates. Como vimos, de acordo com a descrição fornecida pelos autores o incontinente, no momento em que age, pensa que toda coisa doce é agradável (todo A é B) e que toda coisa que faz mal à saúde

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deve ser evitada (todo C é D), mas não pensa que toda coisa doce faz mal à saúde (todo A é C), e portanto que toda coisa doce deve ser evitada. Ora, Aristóteles afirma claramente que a premissa maior do silogismo racional – que está presente e ativa no momento da ação – afirma que “Tudo o que é doce deve ser evitado”. Tal premissa, aliás, consta na reconstrução do silogismo prático do akratés feita pelos próprios autores55. Tal interpretação, portanto, embora afirme que é a premissa menor do silogismo racional que falta ao incontinente no momento da ação,

acaba explicando o mecanismo

desse mesmo

erro através do

desconhecimento por parte do agente do conteúdo expresso pela premissa maior do silogismo racional. Uma quarta dificuldade da interpretação de Gauthier e Jolif é o papel desempenhado nela pelo que os autores chamam de regra específica do apetite, e que equivale à presença da premissa ‘Deve-se comer tudo o que é prazeroso’. Com efeito, embora tal premissa esteja presente no primeiro trecho do texto aristotélico citado acima, ela não faz parte do silogismo apetitivo do incontinente. Não é difícil compreender por que: tal premissa, com efeito, é a premissa que caracteriza o silogismo do akolastos, que é quem segue o apetite por escolha própria e não contra a própria escolha, e não do akrates. Além disso, é difícil compreender por que um dado indivíduo precisaria acreditar que tudo o que é prazeroso deve ser comido para que ele coma um dado alimento prazeroso. Os autores só precisam desta premissa porque acreditam que 55

(GAUTHIER, R. A.; JOLIF, J. Y., 2002, P. 611) : “O incontinente possui a regra correta; ele sabe portanto que ‘Tudo o que é doce faz mal à saúde’ (...)”.

236 a conclusão do silogismo apetitivo proposto por Aristóteles, que afirma que uma coisa é prazerosa, é insuficiente para causar a ação. No entanto, se pensarmos que a premissa maior de um tal silogismo, que afirma que ‘tudo o que é doce é prazeroso’, não faz senão evidenciar o desejo do indivíduo por algo doce, e que a premissa menor liga tal desejo a um objeto, então esse silogismo nos mostra de forma suficiente como um determinado desejo, em conjunto com a razão prática, move o indivíduo incontinente na direção de sua satisfação. Dada a compreensão do silogismo prático defendida aqui, portanto, o akrates não precisa da premissa que afirma que “Deve-se comer tudo o que é prazeroso”. A quinta e última dificuldade diz respeito à importância da ausência da premissa menor do silogismo racional no momento da ação incontinente. Como

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vimos, o texto Aristotélico imputa à ausência da última protasis, que Gauthier e Jolif entendem como sendo a última premissa, o erro do incontinente. Ora, dado que a última premissa dos dois silogismos, tais como eles são reconstruídos por Gauthier e Jolif, é idêntica, é difícil ver como Aristóteles poderia aceitar a reconstrução proposta pelos autores e manter, ao mesmo tempo, que é devido à inoperância ou à ausência desta premissa que o erro do incontinente ocorre. Que sentido pode haver em dizer que a última premissa do silogismo racional está ausente da mente do incontinente no momento da ação quando um juízo idêntico ao expressado nesta premissa se faz presente na mente do mesmo indivíduo naquele mesmo exato momento? Uma vez que está claro que o akrates age sabendo que o que ele tem diante de si é doce, que sentido pode fazer imputar ao erro do akrates a inoperância ou a ausência de uma premissa menor que afirma justamente que o que ele tem diante de si é doce? De fato, tudo indica que se quisermos sustentar que a ausência da premissa menor do silogismo racional tem alguma importância no erro cometido pelo akrates devemos mudar ou o silogismo prático de seu lado racional ou o de seu lado apetitivo, de forma que as premissas menores de ambos não coincidam. Mais do que isso, será necessário postular não somente que a premissa menor que falta ao indivíduo é outra que não a premissa menor do silogismo apetitivo, mas também que a premissa maior do lado da razão não proíbe que o indivíduo prove a mesma coisa que a premissa menor do silogismo apetitivo reconhece, pois, se assim fosse, e a premissa menor do lado racional fosse diferente da premissa menor do lado

237 apetitivo, então as premissas do lado racional não formariam nenhuma conclusão. Sendo assim, teremos que modificar ambas as premissas do lado racional. Um possível exemplo de akrasia descrito a partir do silogismo prático seria o seguinte: do lado da razão, nós teríamos “Tudo o que é gorduroso deve ser evitado”, “Este sorvete é gorduroso”, e do lado do apetite, “Tudo o que é doce é agradável” e “Este sorvete é doce”. Estando a premissa menor do lado da razão inativa, o primeiro silogismo não chegaria à conclusão “Este sorvete deve ser evitado”. Já o segundo, concluiria que “Este sorvete é agradável” e, estando o apetite presente, levaria o indivíduo em sua direção. Tal descrição, no entanto, também não parece ser adequada ao fenômeno da akrasia. Com efeito, de acordo com ela é forçoso reconhecer que o indivíduo

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comeu voluntariamente algo doce, e não algo gorduroso. Dado que a proibição não se referia ao doce, mas ao gorduroso, é perfeitamente razoável dizer que esse mesmo indivíduo infringiu a proibição desavisadamente. Isto é, ele ainda incorre nas duas primeiras dificuldades que ressaltamos a respeito da interpretação de Gauthier e Jolif. Ao que tudo indica, trata-se de dificuldades que aqueles que compreendem a expressão última protasis como se referindo à última premissa não conseguem evitar. De fato, não é difícil perceber que toda interpretação que basear sua explicação na ineficácia ou na ausência da premissa menor deverá comprometer-se com a afirmação de que nenhum incontinente chega à conclusão do silogismo, e, portanto, que ele não acha no momento em que age que não deveria fazer aquilo que faz. Tal homem, é forçoso reconhecer, se desvia da interdição desavisadamente. Digo desavisadamente porque me parece um exagero afirmar, como faz Charles, que essa interpretação acaba afirmando que o akrates infringe tal proibição involuntariamente (CHARLES, 2005, P. 49). Para o autor, a interpretação delineada acima acaba afirmando que a akrasia é causada pela ignorância das particularidades do ato e, portanto, que ela é involuntária. No entanto, como vimos anteriormente, Aristóteles não considera que todo ato feito por ignorância das particularidades da ação é involuntário, pois ele abre uma exceção para os atos que são cometidos por uma ignorância da qual o próprio agente é responsável. Se é verdade que na EN a negligência é a única causa citada para tal ignorância (EN 1113b22-1114a3), é importante ressaltar que na EE o filósofo coloca ao lado dela o prazer e a dor (EE 1225b15-18). Sendo assim, os

238 defensores da interpretação tradicional podem perfeitamente argumentar que a akrasia seria um caso de ignorância pela qual o próprio sujeito é culpado. Com efeito, dado que a inatividade da premissa menor é devida à influência da paixão, isto é, do apetite, e que este apetite reside no próprio homem, então parece razoável dizer que no caso da akrasia não há nenhum princípio externo ao homem que pode ser dito causa de sua ação. Sendo assim, ainda que não seja razoável sustentar que a interpretação tradicional deve necessariamente afirmar que o ato incontinente é involuntário, devemos reconhecer que ela implica não só numa considerável concessão por parte de Aristóteles à teoria socrática, mas também no abandono de uma das opiniões citadas no início deste capítulo. Como vimos, a terceira opinião

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apresentada por Aristóteles afirmava que (3) o incontinente, sabendo que o que ele faz é mal, faz por causa da paixão (eidos hoti phaula prattein dia páthos, EN 1145b12-13). Ora, se a interpretação delineada acima está correta, então o akrates não sabe, no momento da ação, que o que ele faz é algo proibido pela razão e, portanto, não tem nenhum motivo para acreditar que tal ação seja má. Poder-se-ia argumentar, é claro, que a explicação aristotélica da akrasia através do silogismo prático visa justamente recuperar a teoria socrática, e que portanto não é surpreendente que ela abandone a opinião que, como vimos, entra em conflito direto com tal teoria. É exatamente esta a explicação que nos oferecem Gauthier e Jolif. Seguindo Cook Wilson (COOK WILSON, 1912, P. 78), tais autores ressaltam o que acreditam ser uma discordância importante entre a maneira como o fenômeno da akrasia é explicado no livro VII da EN e a maneira como o fenômeno é descrito em outros lugares da obra de Aristóteles. Para tais autores, existe uma verdadeira contradição entre as passagens do resto da obra de Aristóteles que falam sobre o tema da akrasia, onde Aristóteles explica a incontinência como fruto de um conflito entre o logos, ou a prohairesis, e o desejo, e o livro VII da EN, onde encontramos uma explicação que sustenta que o conhecimento que o incontinente possui está impedido de funcionar. Tais autores, é claro, pensam que se o conhecimento está impedido de atuar, então não há conflito prático. Gauthier e Jolif no entanto, ao contrário de Cook Wilson, preferem não explicar tal discordância postulando que estes diferentes textos foram escritos por diferentes autores, preferindo imputar tal incongruência ao método adotado por

239 Aristóteles em sua investigação da akrasia. Para Gauthier e Jolif, é provável que a opção metodológica do filósofo o tenha levado a fazer concessões que talvez ele não fizesse “num exame mais científico” (GAUTHIER e JOLIF, 2002, P. 603). Dado que o filósofo jamais levou a cabo tal investigação, no entanto, os autores são forçados a concluir que ele jamais conseguiu superar o esquema intelectualista socrático e, portanto, jamais conseguiu explicar satisfatoriamente a akrasia. Para que isso seja feito, nos dizem os autores, é necessário explicar de que maneira a akrasia e a enkrateia constituem “uma guerra que é lutada em nós contra nós mesmos”. Em certo sentido, portanto, a interpretação de Gauthier e Jolif é mais conservadora do que a de Cook Wilson. Ambas as interpretações, no entanto, partem da mesma constatação: dado que a explicação fornecida no capítulo V

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supõe que o saber está ausente, não há de fato o conflito prático ao qual as passagens que encontramos fora do livro VII da EN fazem referência. Como podemos ver, as interpretações citadas acima não podem senão encontrar insuficiências no texto do livro VII da EN. Se prestarmos a devida atenção ao objetivo do método adotado neste livro, no entanto, veremos imediatamente que ele depõe contra o ponto central que orienta tais interpretações, a saber, contra a compreensão da expressão última protasis como última premissa. De fato, é importante reconhecer que o objetivo de Aristóteles é salvar o máximo possível todo o conteúdo que é afirmado pelas opiniões recebidas acerca do fenômeno. Ora, se a interpretação destes autores estiver correta, então a explicação que eles imputam ao filósofo acaba entrando em conflito com uma das mais importantes opiniões citadas por Aristóteles. É justamente buscando escapar dessas dificuldades que certos autores tentaram entender a expressão he teleutaia protasis como se referindo à conclusão, isto é, à última proposição do silogismo prático. Esta opção, no entanto, ainda admite algumas opções hermenêuticas que devem ser analisadas devidamente. 6.11 Sobre o suposto intelectualismo do livro VII da Ética a Nicômaco Dentre os que admitem que o que falta ao akratés é a conclusão se encontra, por exemplo, Zingano (ZINGANO, 2007, P. 427-461). Para o autor, o conflito entre razão e apetite representado pelo silogismo prático é composto por

240 dois lados opostos e completos. Nós teríamos, assim, de ambos os lados tanto as duas premissas quanto a conclusão (ZINGANO, 2007, P. 435-436). Segundo esta interpretação, o apetite está em conflito com a razão, que ordena abster-se do que é doce através da premissa universal “nada do que é doce deve ser provado” que, unida à premissa particular que afirma que “tal coisa é doce”, leva o indivíduo a concluir que “tal coisa não deve ser provada”. Mas por que então o agente não age conforme o que reconhece? Porque, segundo Zingano, há, do outro lado, o silogismo governado pelo apetite, que, por ser mais forte em seu aspecto desiderativo, inclina o agente em sua direção. É o desejo que consegue fazer com que o agente aja na direção oposta, mobilizando a premissa “Tudo o que é doce é agradável”, que, unida à segunda premissa “Isso é

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doce”, leva à opinião, sob forma de conclusão, de que “Isso é agradável”, e, portanto, é objeto de busca. A interpretação de Zingano tem o mérito de conceder que, segundo Aristóteles, o agente incontinente sabe, durante sua ação, que ele não deveria fazer o que está fazendo, pois ele possui a conclusão pertinente. Se tal conclusão é ineficaz para determinar sua ação, isso se explica pelo fato de que ele só a possui da mesma forma que o bêbado citado por Aristóteles anteriormente fala das demonstrações de Empédocles. Ainda assim, ele está consciente de que a razão prescreve que ele se abstenha da ação, mas, e seria justamente nisso que consistiria a akrasia, a razão não teria sobre ele nenhuma força, uma vez que ele só repete os seus preceitos sem no entanto ser verdadeiramente capaz de compreender o que eles significam. A interpretação oferecida por Zingano, no entanto, tem outros problemas que convém ressaltar. Em primeiro lugar, segundo o autor, mesmo que Aristóteles afirme que o incontinente age sob a influência de um argumento (logou) ou de uma opinião (doxes) que não é em si mesma mas apenas acidentalmente oposta à reta razão (ortho logo) (1147a35-b1), Zingano afirma que a opinião que guia o incontinente é uma opinião falsa (ZINGANO, 2007 P. 435). No entanto, se observarmos com atenção as proposições que fazem parte do silogismo prático do lado apetitivo devemos reconhecer que não há entre elas nenhuma afirmação que seja obviamente falsa. Com efeito, o simples fato de que a razão interdite um determinado tipo de alimento, p. ex. os doces, não implica na negação de que tal tipo de alimento seja agradável. Daí que Aristóteles afirme que a ação do

241 incontinente está apenas acidentalmente oposta à reta razão, isto é, segundo nossa interpretação, ela vai contra o que indica a razão mas sem ser movida por nenhuma proposição falsa. Em segundo lugar, também para Zingano a explicação da akrasia oferecida por Aristóteles no livro VII da EN não visa nos apresentar a solução propriamente aristotélica para a explicação do fenômeno, solução essa que apelaria para a presença de um apetite que desbanca o que pensa o sujeito, mas sim preservar a posição socrática, apresentando-a corretamente e defendendo-a (ZINGANO, 2007 P. 450). Aos olhos de Zingano, assim como para Gauthier e Jolif, tal objetivo só se justifica dado o método adotado por Aristóteles nas éticas, que pressupõe que a investigação terá tanto mais sucesso quanto mais opiniões for

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capaz de salvar. Embora o autor reconheça ser difícil determinar por quanto tempo Aristóteles aderiu a este método e até onde pretendeu expandi-lo, ele não teme afirmar que em outras passagens do próprio livro VII, mas após 1147b19, bem como fora do livro VII, mas ainda na EN, ou mesmo em outras obras além da EN, a perspectiva não é mais a de conciliação e preservação da posição socrática. Nestes outros textos, ressalta Zingano, é o conflito entre um desejo racional e um apetite que é acentuado, conflito este do qual o último sai vencedor (ZINGANO, 2007 P. 459). Se é verdade, como dissemos anteriormente, que segundo Gauthier e Jolif Aristóteles jamais teria conseguido superar o esquema intelectualista socrático, para Zingano, por outro lado, a explicação da akrasia que encontramos no livro VII da EN não seria a última palavra de Aristóteles sobre o assunto. Para o autor, na medida em que Aristóteles concebe a ação no cruzamento de duas faculdades distintas, a faculdade racional e a parte da alma irracional (mas capaz de escutar a razão), o fenômeno da fraqueza da vontade explica-se naturalmente sob a forma de um conflito entre o que o agente sabe (do ponto de vista prático) e aquilo que lhe apetece em um dado momento. Posso saber, por exemplo, que fumar é prejudicial à saúde e, mesmo assim, ter vontade de fumar um cigarro. Neste conflito entre saber prático e desejo, o vencedor leva o agente a cada vez em uma ou em outra direção (ZINGANO, 2007 P. 428). Segundo Zingano, o abandono do socratismo que ainda se faz presente no livro VII da EN se justifica pelo fato de que mesmo a versão dessa teoria preservada por Aristóteles não soube escapar da mesma incongruência ressaltada

242 por Cook Wilson e Gauthier e Jolif: dado que o akrates conhece em um sentido relevante as premissas, mas não conhece a conclusão como decorrendo das premissas, então ele é de fato como o homem louco, isto é, puramente irracional (ZINGANO, 2007 P. 459-460). De acordo com Zingano, o problema da explicação fornecida no livro VII é que ela apaga qualquer traço de racionalidade no agente, e, junto com ela, o conflito prático que é essencial para a própria akrasia. Certo, o estado de insanidade do akratés é um estado momentâneo. Não obstante, dado que quando a ação ocorre o reconhecimento está ausente, e que é neste momento que o conflito ocorre ou não ocorre, então é forçoso reconhecer que o indivíduo incontinente não experimenta nenhum conflito prático na hora da ação. É tal incongruência, sugere Zingano, que talvez tenha feito Aristóteles

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desistir de uma vez por todas do método proposto por ele no início do livro VII da EN. Não creio, no entanto, que tais críticas façam justiça ao texto de Aristóteles. Em primeiro lugar, não parece verdade que no livro VII da EN Aristóteles tenha feito alguma concessão de princípio no que diz respeito ao conflito prático entre apetite e razão. Com efeito, o que o filósofo busca mostrar é justamente como tal oposição se dá e sob que condições o apetite pode sair vitorioso. De início, portanto, a sugestão de que a investigação analisada aqui difere substancialmente da maneira como o problema aparece no resto da obra de Aristóteles carece de justificação. Segundo Zingano, a investigação levada a cabo no livro VII peca por ceder demais à formulação socrática. Para o autor, Aristóteles teria fornecido neste livro uma explicação do fenômeno adequada a determinadas exigências socráticas que seriam, presumivelmente, estranhas à filosofia do estagirita. Zingano nos dá uma pista de que exigências seriam estas quando afirma que, segundo a perspectiva socrática, uma ação deve ser explicada fazendo referência unicamente às crenças do sujeito que age, e que tal sujeito pode mudar de opinião mas não ter opiniões contrárias, o que, segundo Zingano, “seria necessário para pensar o conflito” (ZINGANO, 2007 P. 429). O que Zingano parece buscar, portanto, é um conflito direto entre razão e apetite no qual ambos os termos se fundamentem em opiniões contrárias a respeito de um mesmo objeto. Zingano, no entanto, erra ao afirmar que isso seria uma exigência para que pensemos a akrasia propriamente dita.

243 Da fato, caso o apetite e a razão estivessem atrelados a opiniões contrárias, então ou apenas uma destas opiniões seria verdadeira ou então ambas seriam falsas. De toda forma, seria impossível que um dos lados estivesse com a verdade sem que o outro estivesse equivocado. Não haveria, portanto, akrasia sem ignorância, ou seja, o fenômeno da akrasia estaria novamente atrelado de forma inseparável ao da ignorância, como acontece na análise socrática. Dado que o indivíduo incontinente se arrepende de seu ato porque sofre as consequências dele, este mesmo indivíduo constataria a veracidade do juízo proveniente da razão e, ao mesmo tempo, a falsidade que o impelia na direção da satisfação de seu apetite. Se fosse esse o caso, nós deveríamos, seguindo a teoria aristotélica, afirmar que o ato incontinente é feito por ignorância, no sentido de que caso o

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agente soubesse que a opinião que guiava o apetite era falsa ele não teria agido como agiu. A solução aristotélica, ao contrário, separa o agir por ignorância da akrasia exatamente porque dispensa a presença de juízos contrários dentro de um mesmo indivíduo. Recorrendo apenas a um estado de ignorância no indivíduo, o filósofo estagirita consegue retratar a akrasia de forma que ela não seja devida à ignorância, embora seja um ato que só é possível quando o indivíduo está num estado de ignorância causado por um apetite. Zingano ainda nos apresenta um segundo argumento que poderia ser invocado em favor de sua tese. Segundo o autor, a explicação aristotélica da akrasia que encontramos no livro VII acaba retratando a ação do indivíduo incontinente não como o resultado de um impulso advindo de uma pura afecção, mas sim de “um silogismo prático bastante elaborado”. Além disso, Zingano ressalta que no fim Aristóteles afirma que o indivíduo agiu de acordo com uma opinião, isto é, um pensamento expresso tipicamente em proposições, distinto, portanto, da mera irrupção de um elemento por inteiro avesso à razão (ZINGANO, 2007 P. 435). Embora essa expressão não seja utilizada pelo autor, não creio ser um exagero afirmar que tal argumento contém uma acusação implícita de ‘intelectualismo’. Essa acusação deve ser devidamente analisada para que possamos acatar ou descartar a crítica feita por Zingano. Creio que a melhor forma de fazê-lo é analisando o silogismo apetitivo que nos é apresentado por Aristóteles. Na EN, Aristóteles constrói tal silogismo da seguinte maneira: “Tudo o que é doce é agradável”, “Isso é doce”, logo “Isso é agradável”. De início, é

244 importante notar que se a conclusão deve levar o agente a comer o doce, então ser agradável, na situação em questão, é ser objeto de busca, isto é, ser objeto de desejo. Ora, como já foi dito antes, o objeto da incontinência são aqueles prazeres que nós partilhamos por natureza com os animais. É preciso reconhecer, portanto, que o doce, ou mesmo todo doce, só é tido como agradável na medida em que é um objeto capaz de saciar um determinado desejo ou, mais precisamente, um determinado apetite desse tipo. É importante ter isto em mente porque de outra forma o silogismo apetitivo pode se parecer muito com o resultado de uma deliberação. Que não seja este o caso é exatamente o que nos prova o fato de que Aristóteles se utiliza de silogismos deste tipo para caracterizar o comportamento animal. É o que fica

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claro no seguinte trecho do De Motu Animalium. (...) quando um homem age tendo em vista um objeto indicado pela percepção (aisthesei), pela phantasia ou pelo pensamento (nous), ele imediatamente faz o que deseja; o realizar o seu desejo toma o lugar da investigação ou do pensamento. Meu apetite diz, eu preciso beber, isso é bebida, diz a sensação, a imaginação ou o pensamento, e o homem imediatamente bebe. É dessa forma que os animais são impelidos a se mover e agir, a causa final de seu movimento sendo o desejo e se realizando através da sensação ou da phantasia. (701a29-36).

Ao que tudo indica, portanto, o silogismo prático proposto por Aristóteles pode se fazer presente tanto nos homens quanto nos demais animais. Se isso for realmente verdade, é importante reconhecer que a presença de um silogismo prático não implica necessariamente na presença da razão. Tal conclusão, no entanto, parece extremamente paradoxal à primeira vista, e requer alguns esclarecimentos. De fato, parece razoável pensar que o silogismo prático é uma operação levada a cabo pela razão. Segundo tal interpretação, mesmo o indivíduo orientado pelo silogismo apetitivo descrito por Aristóteles teria que incluir um determinado particular, o objeto em questão, num universal, ou, pelo menos, num termo mais geral, a saber, o conjunto dos objetos que satisfazem um determinado desejo. Dado que tal operação é uma operação racional por definição, poder-se-ia argumentar que a noção de silogismo apetitivo, tal como a usamos até aqui, carece de sentido objetivo. No entanto, o simples fato de que Aristóteles tenha se utilizado do silogismo prático para descrever o comportamento dos animais deve nos colocar em guarda contra essa linha de raciocínio.

245 Sendo assim, parece mais razoável lembrar do que já foi dito por Santas a respeito do silogismo prático, a saber, que ele está ligado com toda explicação teleológica do movimento. O que o silogismo nos mostra é a maneira como o fim buscado determina a ação perseguida por um determinado indivíduo. Ora, está claro que para Aristóteles o comportamento teleológico, isto é, o comportamento em vista de um fim, não é privilégio somente do homem dentre os animais. Se é verdade que todo movimento empreendido tendo em vista um fim pode ser traduzido em termos de um silogismo prático, então é forçoso reconhecer que o conjunto das ações que podem ser assim descritas ultrapassam o conjunto das ações humanas. Uma última objeção a esta interpretação consistiria em afirmar que embora

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as ações dos outros animais possam ser descritas em termos de um silogismo prático isto não quer dizer que elas se deram devido à motivação racional que este silogismo implica na medida em que o animal, como o incontinente, não possuiria a razão necessária para realizar o silogismo. Tal objeção, no entanto, falha, por um lado, na medida em que afirma justamente o que nossa interpretação nega, a saber, que todo silogismo prático só se dá através de uma operação racional, e, por outro, ao exigir demais para reconhecer a existência de comportamento teleológico entre os animais. Pois que sentido pode haver em dizer que um determinado animal tem sede, está diante de água e bebe, mas que ele não o faz motivado pelo desejo de saciar sua sede através do objeto que encontra diante de si? Se o que foi dito acima está correto, então devemos reconhecer que a explicação da akrasia através do silogismo prático fornecida no livro VII da EN não tem nada de intelectualista. Muito pelo contrário, ela mostra de que forma os homens podem se comportar como animais, isto é, como é possível que alguns homens sigam determinados apetites da mesma forma como o fazem os animais. Que tal comportamento não seja classificado como bestialidade se deve ao fato de Aristóteles reservar este termo para caracterizar o comportamento humano que se assemelha ao comportamento animal a despeito da natureza humana, isto é, contra tal natureza. A akrasia, ao contrário, nos mostra o que há de animalesco na própria natureza humana. Além disso, ela nos mostra também um ponto de comparação importante entre a abordagem aristotélica e a abordagem socrática da akrasia. Como podemos ver, não há nada que impeça Aristóteles de admitir que a phantasia

246 possa desempenhar um papel importante na ação do indivíduo incontinente. Como veremos ao final de nosso texto, no entanto, ele só a menciona de passagem quando trata da impulsividade, que, segundo ele, é um dos tipos de akrasia em sentido estrito. Ora, se é verdade que o conceito de phantasia não permanece exatamente o mesmo em Platão e em Aristóteles, devemos reconhecer que a utilização do conceito feita por Aristóteles aqui parece bastante semelhante ao papel que tem o conceito no pensamento platônico. Aqui, como lá, a phantasia é um juízo a respeito de um determinado objeto que é sugerido pela sensação. Aqui, como lá, tal juízo pode perfeitamente ser falso. No que diz respeito à akrasia tal como descrita por Aristóteles, no entanto, o juízo do silogismo prático que poderia ser expressado pela phantasia – que seria supostamente a premissa menor

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– não é falso. Sendo assim, é forçoso reconhecer que ainda que Aristóteles admita que o incontinente possa estar agindo guiado por uma phantasia, o filósofo estagirita tem o cuidado de ressaltar que essa phantasia não precisa ser necessariamente falsa, isto é, ele explica a incontinência de forma a mostrar que o indivíduo incontinente pode agir sendo guiado por uma phantasia sem no entanto ter agido por ignorância. Creio ter dito o suficiente para responder à acusação de intelectualismo tal como formulada acima. Ainda resta, no entanto, responder a uma questão que já foi levantada mas, no entanto, ainda não foi tratada de forma devida. Com efeito, uma coisa é dizermos que o silogismo apetitivo pode ser pensado sem fazer nenhum recurso à razão, e que portanto não há intelectualismo em imputar a um tal silogismo a ação empreendida pelo akrates. Outra completamente diferente é explicar como devemos compreender a afirmação de que mesmo que tal indivíduo possua as três proposições que fazem parte do silogismo prático racional ainda assim este mesmo silogismo pode ser ineficaz, na medida em que o conhecimento pode estar impedido de atuar no indivíduo. Segundo nossa interpretação, o akrates ou bem não possui a conclusão ou bem a possui, mas ela é ineficaz. Se ele possui a conclusão do silogismo enquanto conclusão, isto é, se ele a possui sabendo que ela é uma conclusão, como é possível que o silogismo racional seja ineficaz? Por outro lado, como é possível que ele possua tanto a premissa maior quanto a premissa menor do silogismo sem possuir ao mesmo tempo a conclusão? Charles busca responder a essa pergunta esclarecendo de que forma devemos compreender os termos ‘conhecer’ (epitasthai, 1146b31, 33) e

247 ‘conhecimento’ (episteme, 1146b32, 1147a2) no trecho acima. Tomando por base o trecho do livro VI – que faz parte das duas éticas – onde Aristóteles trata do conhecimento científico (1139a19-24, 1139b32, 1140b35), o autor nos lembra que, para Aristóteles, o conhecimento é um ‘estado demonstrativo’ (hexis apodeiktiké) no qual aquele que sabe é capaz de demonstrar a necessidade do conhecimento que possui a partir de princípios aos quais se chegou da maneira apropriada. Sendo assim, nos diz Charles, é legítimo afirmar que utilizar o conhecimento consiste em exercitar um determinado estado, isto é, em contemplar (theorein) determinadas afirmações como fazendo parte de um corpo de conhecimento. Segundo o autor, estar no estado demonstrativo é possuir a habilidade necessária para contemplar desta maneira. O akratés pode possuir tanto

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a premissa menor quanto, em um dos casos, a conclusão do silogismo, sem no entanto ser capaz de articular essa mesma premissa como parte de um corpo de conhecimento (CHARLES, 2005 P. 45-46). Segundo a interpretação defendida aqui, a distinção proposta entre 1147a5-10 separa dois grupos de indivíduos. O primeiro grupo tem o conhecimento da premissa universal mas ou bem não tem ou bem não exercita a premissa menor. Nesse caso, portanto, é claro que tais indivíduos sequer chegam à conclusão do silogismo, dada a ausência ou inefetividade da premissa menor. Já o segundo grupo, que é o grupo que será comparado com os indivíduos incontinentes, está impedido de utilizar o seu conhecimento ou por conta de um processo, como no caso dos que estão loucos, bêbados ou dormindo, ou por conta de um pathos, como no caso da akrasia, que os afeta. Neste segundo caso, nos diz Charles, a falha na utilização do conhecimento independe até mesmo da presença da conclusão no indivíduo. O que o autor propõe, em suma, é que no caso da akrasia as três proposições que formam o silogismo do lado racional podem estar presentes exatamente porque o que acontece é que tal indivíduo é incapaz de utilizar estas premissas em conjunto, como parte de um corpo de conhecimento. No akrates, portanto, tais proposições estão presentes, mas elas não têm a força do conhecimento porque o processo cognitivo necessário para tal não se deu. Se é verdade que a explicação oferecida por Charles pode parecer estranha à primeira vista, é importante reconhecer que se encaixa muito bem no texto de Aristóteles. Em primeiro lugar, Aristóteles parece reconhecer, em 1146a34-35, que o indivíduo incontinente possui a premissa ‘evite tal coisa’, que equivale à

248 conclusão do silogismo racional. Em segundo lugar, Aristóteles afirma que, devido ao estado em que se encontram, o fato de que os indivíduos do segundo grupo utilizem a linguagem do conhecimento não é prova de que eles o possuem (1147a19-20). Tais pessoas, nos diz Aristóteles, são capazes de repetir tanto proposições de geometria quanto as máximas morais de Empédocles da mesma maneira como os estudantes que acabaram de iniciar-se num determinado campo do conhecimento são capazes de repetir determinadas fórmulas, sem que tenham, por isso, o conhecimento adequado a respeito do seu significado. Daí que, segundo Aristóteles, nós devamos concluir que os homens incontinentes falam do conhecimento da mesma maneira que os atores que recitam as falas de seus papéis. Como podemos ver, Aristóteles não pressupõe que, em seu estado

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alterado, aqueles que repetem as proposições geométricas omitam alguma parte da demonstração, ou repitam pela metade os versos de Empédocles. O texto que é repetido, por assim dizer, pode estar inteiro. Ora, é somente se compreendermos a expressão teleutaia protasis como se referindo à conclusão que poderemos afirmar que, segundo Aristóteles, existe um akrates que possui o silogismo racional completo. Com efeito, se a protasis em questão é a própria conclusão, então teremos um akrates que possui um silogismo completo mas ineficaz, pois a conclusão do silogismo é ineficaz, e um akrates no qual a conclusão está ausente. Como veremos mais adiante, é exatamente isto que diz Aristóteles quando afirma que existem dois tipos de akrasia. Em terceiro lugar, se Charles tem mesmo razão, então o que Aristóteles está afirmando aqui é que o incontinente não possui a confiança apropriada nisso que ele diz que sabe. Isto é, nas palavras do autor, embora não seja impossível que eles acreditem no que dizem quando fazem seus discursos, eles são como os que aprenderam um script sem ser capazes de avaliar a verdade de seu conteúdo. O que lhes falta é o devido suporte baseado nas evidências que faz com que nós tenhamos confiança em nossos próprios juízos. Tal explicação é perfeitamente coerente com a crítica aristotélica da restrição do problema da incontinência ao conhecimento. Como vimos anteriormente, o que Aristóteles afirma é que tal restrição não faz sentido se o problema do akrates é a falta de convicção naquilo que a razão lhe aponta. Aristóteles estaria, com tal explicação, fazendo mais do que afirmar que um homem pode ter numa opinião a mesma confiança que tem no conhecimento. Ele estaria nos mostrando que o conhecimento de um determinado

249 indivíduo, quando impedido de funcionar, é incapaz de gerar neste mesmo indivíduo o tipo de confiança que se espera do próprio conhecimento. Em quarto lugar, a explicação de Charles permite pelo menos afirmar que num dos tipos de akrasia o indivíduo está consciente, no momento em que age, de que aquilo que ele faz vai contra o que lhe recomenda a razão, dado que ele está consciente da conclusão do silogismo. Mesmo que o indivíduo em questão não possua a confiança necessária naquilo que o silogismo racional lhe recomenda, o simples fato de que este indivíduo esteja consciente da recomendação da razão já é suficiente para que o conflito entre a razão e o desejo se instaure, ainda que a maneira como tal conflito se instaure acabe tendendo naturalmente para a vitória do desejo. Com efeito, nada do que foi dito acima diminui a confiança do

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indivíduo no silogismo apetitivo. Até porque as proposições que dele fazem parte – “Tudo o que é doce é agradável”, “Tal coisa é doce” e “Tal coisa é agradável” e, portanto, tal coisa é um objeto que satisfaz um determinado apetite – são praticamente auto evidentes. A primeira representa simplesmente a presença de um desejo, a segunda é provinda da sensação e a terceira é uma reunião das duas primeiras. Ora, o mesmo não pode ser dito do silogismo racional. Sendo assim, conclui Charles, não é absolutamente necessário imputar a Aristóteles a afirmação de que nenhum akrates está consciente, no momento em que age, de que ele não deveria fazer aquilo que ele está fazendo, isto é, de que ele está desobedecendo a proibição da razão56.

6.12 Os dois tipos de akrasia: impulsividade e fraqueza Chegamos, assim, à última parte da exegese do texto aristotélico. Para concluir, em primeiro lugar explicarei brevemente quais são os dois tipos de akrasia definidos por Aristóteles e como podemos compreendê-los à luz do que já foi dito até aqui. Tendo feito isso, analisarei uma interpretação da explicação aristotélica da akrasia que, a meu ver, importa descartar. Comecemos, então, pelos dois tipos de incontinência descritos por Aristóteles. No trecho que diz respeito a essa bipartição (EN 1150b19-28), Aristóteles afirma que existem dois tipos de incontinência (akrasias), a impulsividade 56

(CHARLES, 2005, P. 64).

250 (propeteia) e a fraqueza (astheneia). Enquanto alguns incontinentes deliberam mas são impedidos pela paixão (dia to pathos) de se ater à sua deliberação, outros, por não deliberarem, são carregados pela paixão. Dado que algumas pessoas resistem aos ataques das paixões, sejam elas prazerosas ou dolorosas, se antecipando

a

elas

e

despertando-se,

isto

é,

despertando

sua

razão

antecipadamente, da mesma maneira como alguém se previne contra as cócegas se já tivé-las sofrido, então, nos diz o filósofo, é natural que sejam os apressados (hoxeis) e os coléricos (melankholikoi) aqueles que são mais suscetíveis à impulsividade, sendo ambos inclinados a não esperar pela razão e agir de acordo com suas imaginações (phantasia). Como dissemos anteriormente, é importante ter em mente a restrição feita

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por Aristóteles ao objeto da akrasia para que não confundamos a impulsividade com a akrasia tou thymou. A akrasia, como nos disse Aristóteles, diz respeito aos prazeres que nós partilhamos com os animais, de modo que mesmo o akrates que é vítima da impulsividade desfruta destes prazeres, e não de nenhum outro. Ainda assim, no entanto, não é simples saber como devemos compreender a impulsividade. No que diz respeito à fraqueza da qual Aristóteles fala aqui – que não deve ser confundida com a malakia de que tratamos anteriormente – é fácil ver que ela é perfeitamente compreensível a partir da explicação do fenômeno dada anteriormente. A impulsividade, por outro lado, é um tipo de akrasia que impede o indivíduo de deliberar. Mas se tal indivíduo não deliberou, como pode ele ter chegado à conclusão de que não deveria fazer a ação? Se ele jamais chegou a tal conclusão, podemos realmente afirmar que ele sabia que a ação por ele empreendida era desaconselhada pela razão? Ao que tudo indica, a explicação da impulsividade difere da explicação padrão do fenômeno da akrasia no sentido de que, no caso específico da impulsividade, não é de fato possível afirmar que o indivíduo que agiu de forma impulsiva sabia, no momento em que agiu, que a razão lhe desaconselhava a ação que ele executou. Trata-se de um caso, portanto, que se situaria no limite entre a akrasia e a akolasia, e cuja classificação está longe de ser fácil. A meu ver, só podemos explicar o fato de Aristóteles tê-lo classificado de uma forma e não de outra se postularmos, por um lado, que os homens impulsivos se arrependem do que fazem, e chegam mesmo a reconhecer que sua impulsividade é uma fraqueza de caráter e que ela deve ser superada, e, por outro lado, que a impulsividade da

251 qual Aristóteles fala aqui se manifesta exclusivamente em relação aos prazeres que são objeto da akrasia, da akolasia e da temperança. Ainda assim, é forçoso reconhecer que o trecho em questão é o que apresenta a maior dificuldade para a interpretação proposta acima. De fato, tudo se passa como se admitir a impulsividade como um tipo de akrasia implicasse em reconhecer que a terceira opinião apresentada por Aristóteles, isto é, aquela que afirma que o akrates sabe, no momento em que age, que não deveria fazer o que faz, não é verdade em todos os casos de incontinência. Trata-se, creio, de uma conclusão não só inevitável mas também que não ameaça a viabilidade da teoria aristotélica da akrasia.

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6.13 Aristóteles e o ‘princípio valor-força’ Como podemos ver, a explicação dada por Aristóteles do fenômeno da akrasia difere consideravelmente da explicação oferecida no Protágoras de Platão. Apesar disso, Santas, no final de seu artigo anteriormente citado57, parece ainda acreditar que a explicação aristotélica conserva um dos traços fundamentais da explicação socrática. Isso porque, segundo o autor, a explicação aristotélica da akrasia implicaria numa assimetria de forças entre o silogismo racional e o silogismo apetitivo, na medida em que sugere que se nada impedir que o silogismo racional funcione então o homem agirá de forma autocontrolada mesmo que o silogismo apetitivo esteja ativo no momento da ação. Segundo Santas, isso é confirmado pelo fato de que Aristóteles não vê necessidade de dar uma explicação paralela para a ação do enkrates, isto é, o filósofo não diz em lugar algum que para que o homem se comporte de forma continente algo deve impedir o silogismo apetitivo de funcionar. E no entanto, dado que tal homem possui fortes desejos nocivos, é difícil ver por que um tal silogismo não estaria presente em sua alma. Sendo assim, não é de se estranhar que Santas impute a Aristóteles o mesmo “princípio valor-força” que, como vimos anteriormente, ele vê operante na explicação socrática da incontinência. Segundo o autor, portanto, tanto Platão quanto Aristóteles acabariam admitindo – ainda que apenas de forma implícita – que caso um homem se depare com a opção entre fazer ou evitar um determinado 57

(SANTAS, 1969, P. 186-188).

252 curso de ação, e ele saiba ou acredite que perseguir este curso de ação será ruim ao todo para ele, mas também prazeroso, e portanto possua tanto o desejo racional de evitar o mal quanto o desejo pelo prazer que este curso de ação oferece, então o seu desejo de evitar o mal é mais forte do que o seu desejo pelo prazer. Por outro lado, se ele acredita ou sabe que o prazer é maior do que os malefícios, então o seu desejo pelo prazer é mais forte do que o seu desejo de evitar os malefícios. Que tal princípio se apoia na mesma tese que vimos estar implícita na interpretação tradicional da alma tripartida da República de Platão, a saber, a tese que afirma que a ação de um indivíduo é fruto do resultado do embate entre as forças motivacionais que existem dentro dele, parece claro. Não será necessário, portanto, repetir aqui todas as desvantagens que uma tal explicação implica. No

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que diz respeito a Aristóteles, creio ser importante ressaltar que ainda que seja verdade que ele afirme que o objeto da escolha é algo que torna-se desejado por nós após a deliberação (EN III 1113a9-12), e que, portanto, a deliberação que chega a uma decisão gera no indivíduo o desejo de executar o que foi decidido pela deliberação, o filósofo não diz nada a respeito da força relativa deste desejo em relação aos demais desejos. Segundo Santas, é seguro assumir que Aristóteles aceitava o “princípio valor-força” porque (a) ele reflete corretamente a assimetria existente na explicação aristotélica da akrasia entre a motivação racional e a motivação apetitiva, (b) ele é sugerido pela própria linguagem utilizada pelo filósofo para falar do conflito existente na alma do indivíduo, e (c) ele responde a uma objeção que, sem ele, tal teoria não poderia enfrentar. Para Santas, caso Aristóteles não aceitasse o “princípio valor-força” sua explicação para o comportamento do homem continente ficaria exposta a uma “objeção crucial”, a saber, que o desejo de tal indivíduo pelo prazer da ação que ele rejeita pode ser mais forte do que seu desejo de evitar tal ação. No que diz respeito a (c), bastará ressaltar que tal objeção só faz sentido se já tivermos admitido que um indivíduo faz as suas escolhas de acordo com a intensidade relativa de seus desejos no momento da ação. No que diz respeito à (b), parece digno de nota que ainda no início do livro VII Aristóteles afirme que o enkrates é aquele que se mantém fiel a seu raciocínio (emmenetikos to logismo) e o akrates é aquele que abandona o próprio raciocínio, e que o akrates faz aquilo que ele sabe ser mau sob a influência da paixão, enquanto que o enkrates, sabendo

253 que seus desejos são maus (eidos hoti phaulai hai epithymiai), não os segue (ouk akolouthein) dia ton logon (1145b10-15). Eis como Santas caraceriza tal oposição: (...) para Aristóteles o homem continente age de acordo com sua razão prática (logismos), e aquele que age de acordo com a razão prática age de acordo com o desejo racional (boulesis). (...) Mas o homem controlado, novamente de acordo com Aristóteles, age também contra o apetite (epithymia), e é isso inclusive o que o distingue do homem temperante; o último não possui nenhum desejo mau ou excessivo que deve vencer, ao contrário do primeiro. (SANTAS, 1969, P. 178)

A estratégia de Santas é opor a boulesis, isto é, o desejo racional pelo bem, à epithymia, o desejo apetitivo, e explicar a ação que daí resulta como o resultado da correlação de forças determinada pela intensidade de tais desejos. Embora tal

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afirmação pareça razoável à primeira vista, ela na verdade implica numa dificuldade considerável. Com efeito, se o que foi dito no parágrafo anterior for verdade, então os desejos racionais do enkrates deverão ser fortíssimos, pois Aristóteles afirma claramente que o enkrates, ao contrário do homem temperante, possui fortes desejos apetitivos que são nocivos. Como vimos anteriormente, para o filósofo o simples fato de que a enkrateia seja louvada nos mostra que o desejo que é sobrepujado é forte. Ora, dado que quanto mais forte for o desejo sobrepujado mais forte deverá ser o desejo que sai vitorioso, então se aceitarmos o “princípio valor-força” seremos obrigados a afirmar que o desejo racional que direciona o enkrates é mais forte do que o desejo racional que direciona o homem temperante. E, no entanto, é no homem temperante que a razão tem verdadeiramente a mestria da alma, na medida em que tal homem nem sequer deseja os prazeres cujo desfrute a razão proíbe. Mais importante do que isso, no entanto, é perceber que o que explica o curso de ação escolhido numa deliberação não é a intensidade relativa dos desejos experimentados pelo indivíduo num dado momento, mas sim o fim perseguido pelo indivíduo e os meios disponíveis a este mesmo indivíduo para alcançar o dito fim. Que todos os homens escolham sempre satisfazer os seus desejos mais intensos é algo que Aristóteles não diz em lugar nenhum. O fato de que o homem controlado aja de acordo com a sua deliberação não nos dá nenhum motivo para afirmar que ele age de acordo com o desejo que era, no momento da ação, o mais intenso. Além disso, o fato de que Aristóteles afirme claramente que tal indivíduo age da maneira

254 que age, a despeito de fortes desejos nocivos, e não diga nada sobre a intensidade de seu desejo pelo curso de ação tomado, parece indicar que sua decisão é tomada a despeito da intensidade de seus desejos no momento da ação. Sendo assim, não creio ser correto afirmar que a linguagem utilizada por Aristóteles para descrever o conflito interno do enkrates sugira que o resultado deste conflito é devido à intensidade relativa dos desejos que nele residem. Com efeito, se a intensidade do desejo experimentada estivesse diretamente relacionada com a ação escolhida, então seria difícil entender por que Aristóteles nos diz que o enkrates possui fortes desejos nocivos sem dizer nenhuma palavra a respeito de seu desejo racional, se limitando a afirmar que tal indivíduo age de acordo com seu raciocínio. Que um dado raciocínio seja capaz de produzir um desejo que sobrepuje

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em intensidade qualquer desejo apetitivo é algo que não parece razoável afirmar. O grande ponto de apoio do argumento de Santas, no entanto, não é tanto a linguagem empregada por Aristóteles quanto a assimetria entre o silogismo racional e o silogismo apetitivo apresentados pelo filósofo. De fato, poder-se-ia argumentar que enquanto tal fato não for explicado a semelhança entre as duas teorias da incontinência que encontramos em Platão e Aristóteles será muito maior do que quaisquer eventuais diferenças que sejam encontradas através do exame das minúcias dos textos. Com efeito, parece seguro afirmar que, segundo Aristóteles, não existe nenhum caso de incontinência onde o conhecimento esteja presente em sua inteira força no momento da ação. Sendo assim, não haverá, portanto, nenhum caso de incontinência onde o sujeito estará plenamente convencido, tendo por base o conhecimento certo e seguro, de que não deveria fazer aquilo que faz. No entanto, por mais verdadeiras que sejam tais afirmações, é importante ressaltar que Aristóteles faz questão de afirmar em 1147b9-19, isto é, no mesmo momento em que reconhece que sua própria investigação o levou à conclusão que Sócrates tentou estabelecer, que existe um tipo de conhecimento que pode ser arrastado pela paixão. Com efeito, dado que a última protasis, que é o que falta ou está impedido de funcionar no akrates, é uma opinião sobre um objeto dos sentidos (doxa te aisthetou), então, nos diz Aristóteles, o conhecimento que está presente quando a akrasia ocorre não é o verdadeiro conhecimento (kurios epistemes), e portanto não é verdade que seja este conhecimento que possa ser arrastado pela paixão (dia

255 to pathos), mas sim o conhecimento sensível (tes aisthetikes). Mas o que significa exatamente dizer que a paixão ‘arrasta’ o conhecimento sensível? Segundo Santas, Aristóteles estaria afirmando aqui que a paixão pode nos fazer perder temporariamente o conhecimento dos particulares, mas não o conhecimento das regras58. Dado que a premissa universal do lado irracional permanece intacta, nos diz o autor, a regra que recomenda a razão também permanece. No entanto, como vimos anteriormente, e como defende o próprio Santas, a premissa particular também permanece intacta, pois é a conclusão que pode estar ou bem ausente ou bem ineficaz. Sendo assim, só nos resta afirmar que o conhecimento que pode estar presente e inativo, isto é, que pode ser arrastado pela paixão, é o conhecimento de que tal coisa deva ser evitada.

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Se o que foi dito acima está correto, o conhecimento que pode ser arrastado pela paixão não é o conhecimento acerca de um dado tipo de objetos, como pode ser o caso da premissa menor, mas o conhecimento acerca do que deve ou não ser feito num determinado momento. Com efeito, para que um indivíduo saiba que um determinado alimento é doce, basta que ele esteja familiarizado com este tipo de alimento (p. ex. os bolos), mas para que ele saiba se ele deve se abster ou não do consumo de tal alimento numa determinada situação ele deve ser capaz de relacionar uma série de outras informações que são pertinentes para tal decisão. É isto que ele não é capaz de fazer. Embora tais informações possam não ter sido esquecidas,

tal

indivíduo

pode

encontrar-se

incapaz

de

relacioná-las

adequadamente, isto é, de exercitar o conhecimento. Sendo assim, não creio ser um exagero afirmar que no trecho onde Aristóteles parece estar fazendo uma enorme concessão à investigação socrática ele está, na verdade e ao mesmo tempo, apresentando uma teoria absolutamente nova a respeito do lugar do conhecimento no erro do incontinente. Com efeito, por mais que Aristóteles afirme que o conhecimento que é vencido pela paixão é um conhecimento de um tipo específico, isto é, o conhecimento a respeito do que deve ou não deve ser feito num determinado momento, é forçoso reconhecer que este é o único tipo de conhecimento que é pertinente no caso da akrasia. Pouco importa, para a explicação da incontinência, que o conhecimento matemático, 58

(SANTAS, 1969, P. 185). Nas últimas páginas de seu artigo, Santas acaba cometendo uma incoerência: o autor parece esquecer-se de toda a argumentação que ele próprio desenvolveu ao longo do artigo e admitir que o que falta ao incontinente é a premissa menor do silogismo. Este erro, no entanto, é facilmente corrigível sem que se percam totalmente as suas observações.

256 geométrico ou científico em geral não possa ser vencido pela força da paixão. O que interessa realmente é saber se o conhecimento a respeito do que deve ser feito, isto é, o conhecimento ético ou moral, pode ser vencido pelas paixões. Se

nossa interpretação

está

correta,

então Aristóteles responde

afirmativamente a esta pergunta. Mas essa resposta inclui a afirmação de que a paixão torna o conhecimento ético inoperante, isto é, que ela sai vencedora porque impede o conhecimento de atuar, fazendo com que o indivíduo entre num estado onde ignora temporariamente o que lhe é mais vantajoso. Sendo assim, o desejo apetitivo não vence o desejo racional enfrentando-o num combate direto que tem lugar no momento da ação. O desejo, nos diz Aristóteles, é ardiloso (epiboulos, 1149b15). Ele vence impedindo que o conhecimento funcione no momento da

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ação, e de nada adianta ter adquirido um determinado conhecimento prático se o indivíduo for incapaz de assegurar sua capacidade de se servir deste conhecimento quando o momento oportuno se apresentar.

7 Conclusão A investigação aqui empreendida tinha por objetivo esclarecer a maneira como Platão e Aristóteles pensaram a akrasia. Em nosso percurso, abordamos diversos textos dos dois autores e tocamos em outros tantos temas tratados pelos filósofos que podem ser considerados adjacentes ao problema da akrasia. Sendo assim, as considerações que se seguem não podem ter o objetivo de esgotar todas as semelhanças e diferenças que apareceram ao longo do percurso. Longe disso, elas pretendem apenas fornecer um resumo das principais diferenças, e das semelhanças mais importates, que pudemos constatar ao longo de nossa pesquisa. O leitor sem dúvida ficará surpreso ao saber que, a despeito de todas as PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912801/CA

diferenças que vimos entre as maneiras como Platão e Aristóteles pensam o ato voluntário, ainda existem aqueles que afirmam que as posições dos filósofos no que diz respeito a esse conceito não diferem de forma importante. É isso, por exemplo, o que sustenta Roberts (ROBERTS, 1999). Segundo o autor, as diferenças, por inegáveis que sejam, são secundárias se comparadas às semelhanças. Roberts sublinha duas. Em primeiro lugar, e a despeito do que pode parecer à primeira vista, essas diferenças não trazem consigo uma nova concepção da responsabilidade moral. De fato, embora Aristóteles tenha aumentado muito o âmbito do voluntário, é forçoso reconhecer que as ações voluntárias não são, para Platão, as únicas pelas quais um agente é responsável no sentido de ser passível de sanções morais ou legais; ou ainda do dever de reparação. Com efeito, para Platão ambos os tipos de sanções destinam-se primeiramente a corrigir o indivíduo infrator e, portanto, são prontamente recomendadas para todos. Além disso, segundo Platão, mesmo no caso de prejuízos involuntários, que podem ser cometidos por aqueles que não necessitam de nenhuma correção ou punição, o agente tem o dever de compensar a vítima 59 . Sendo assim, se tomarmos ser responsável como significando ser passível de punição ou ter o dever de reparação, devemos reconhecer que não há nenhuma ligação, para Platão, entre o ser voluntário de qualquer ação e a responsabilidade do agente. Seria um erro, portanto, dizer que a expansão do

59

cf. p. ex. Leis 865b-d, onde é dito que o homem que mata um escravo involuntariamente deve ressarcir o seu dono.

258 âmbito do voluntário que encontramos na filosofia de Aristóteles implica numa expansão do âmbito da responsabilidade humana. O que nós podemos dizer, mas Roberts não diz, é que Aristóteles foi o primeiro a afirmar que agir voluntariamente implica em ser responsável pela ação que se executa, e que, de início e na maior parte das vezes, nós agimos voluntariamente e portanto somos responsáveis pelo que fazemos. Em outras palavras, Aristóteles estabelece que a responsabilidade só não pertence ao agente se determinadas condições forem satisfeitas. Condições essas que implicam que o princípio da ação em questão, em certo sentido, não resida no agente. Nós podemos afirmar também, portanto, que Aristóteles foi o primeiro a definir as condições necessárias que devem ser satisfeitas para que um indivíduo esteja isento de

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responsabilidade pelas ações que sofre ou executa, isto é, a definir os limites da responsabilidade dos homens no que diz respeito às ações que sofrem ou executam. Em segundo lugar, para o autor os dois filósofos também se assemelham muito na maneira como explicam o vício. Afinal, argumenta Roberts, quando Platão disse que ninguém faz o mal, ou é injusto, voluntariamente, ele quis dizer apenas que não se pode querer fazer essas coisas uma vez que se compreenda que o mal e a injustiça são ruins por si mesmos. É por isso que, para Platão, a única explicação possível para a ação injusta é a ignorância a respeito do bem e do mal. O que ele está dizendo é que somente a ação virtuosa, e nunca a ação viciosa, pode ser desejada como tal, e que só o que pode ser desejado como tal pode ser feito voluntariamente. Ora, embora Platão e Aristóteles descrevam o ser voluntário e involuntário diferentemente, está claro que tudo o que faz com que Platão afirme que a injustiça é involuntária permanece verdadeiro para Aristóteles. Como vimos acima, o filósofo estagirita sustenta que os homens são responsáveis por seu caráter porque somente um perfeito idiota ignora que o caráter dos homens é uma consequência de suas ações. Sendo assim, tudo indica realmente que Aristóteles sustenta que os homens que agem injustamente sabem que se tornarão injustos, isto é, sabem que suas ações injustas contribuirão para formar um caráter injusto. O caráter é voluntário porque ele é o resultado concomitante, e conhecido previamente, das ações injustas cometidas pelo indivíduo. Mas será que, de acordo com Aristóteles, esse homem sabe também no que implica o caráter injusto? Isto é, ele sabe que ao se tornar injusto ele está se afastando do tipo de caráter que o fará feliz?

259 Como sabemos, dado que para Aristóteles a felicidade é consequência da vida que é levada de acordo com a função própria do homem (EN I 1097b22-28), que por sua vez consiste no exercício ativo da alma em conformidade com o princípio racional (1098a7-9), e que o exercício adequado de tal função não é outra coisa senão a virtude, deve-se reconhecer que é a virtude, e não o vício, que leva um homem à felicidade. Parece pouco provável, no entanto, que o filósofo sustente que os homens que agem de forma injusta têm perfeito conhecimento de todas estas coisas. Mais provável é que Aristóteles afirme apenas que eles sabem que o ato que cometem é injusto no momento em que o cometem, e que a reincidência no ato injusto os tornará injustos. É a conexão da injustiça com a infelicidade que, segundo tanto Aristóteles quanto Sócrates, lhes falta.

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As observações de Roberts são sem dúvida pertinentes. A meu ver, no entanto, ao se posicionar dessa maneira, Roberts perde de vista um avanço decisivo levado a cabo por Aristóteles no que diz respeito à teoria da ação. As diferenças entre o conceito socrático e o conceito aristotélico do ato voluntário aparecem de forma particularmente clara se nos perguntarmos até que ponto um agente pode permanecer inconsciente de que agiu involuntariamente. De início e na maior parte das vezes, quando fazemos uma ação voluntariamente estamos conscientes

de

que

fizemos

tal

ação.

Quando

fazemos

uma

ação

involuntariamente, no entanto, muitas vezes acontece que permaneçamos inconscientes de que tal ação foi por nós realizada e, portanto, inconscientes de que agimos involuntariamente. Platão e Aristóteles, no entanto, parecem discordar sensivelmente no que diz respeito aos limites de uma tal inconsciência. Comecemos por Aristóteles. Embora o filósofo afirme que todo ato involuntário é acompanhado de aflição ou arrependimento, se tivermos em mente a definição do ato voluntário dada pelo filósofo somos forçados a admitir que é totalmente possível, por exemplo, que um médico erre ao administrar uma droga a um de seus pacientes, e isso não por negligência mas por acidente, mas que ele não chegue a se arrepender por jamais vir a descobrir que cometeu tal erro. Nesse caso, creio que Aristóteles não teria problemas em admitir que tal indivíduo agiu involuntariamente, embora ele não tenha tido jamais a oportunidade de se arrepender do que fez. Para que isso aconteça, no entanto, é necessário que tal indivíduo não tenha jamais conhecimento do fato de que ele errou ao administrar a droga. O que torna tal homem inconsciente de que agiu involuntariamente,

260 portanto, é o fato de permanecer sem saber o que fez. Esse não é o caso se adotarmos a descrição socrática do ato voluntário. De fato, segundo Sócrates o tirano que mata um inimigo terá agido voluntariamente se o resultado de sua ação lhe for benéfica e involuntariamente se o resultado for maléfico. Ora, dado que segundo o Sócrates de Platão uma ação injusta é sempre maléfica, todo homem que age de forma injusta desconhece a natureza do ato injusto. Mas isso só quer dizer que o tirano não acha que sua ação injusta lhe é prejudicial por ser injusta, e não que ele não saiba que a ação é injusta. Sendo assim, um tirano que adotasse o conceito socrático do voluntário muito provavelmente diria que agiu voluntariamente ao matar injustamente um inimigo, e apontaria para todos os benefícios materiais que obteve de uma tal execução.

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Sócrates, no entanto, seria forçado a afirmar que tal indivíduo não sabe que agiu involuntariamente, da mesma maneira que não sabe que sua ação lhe foi na verdade prejudicial, por desconhecer as consequências que essa ação traz para a sua alma. Sendo assim, é forçoso reconhecer que caso adotemos o conceito socrático do ato voluntário, deveremos admitir a possibilidade de que um homem não saiba que fez algo involuntariamente por tanto tempo quanto ele desconheça a totalidade dos resultados causados por sua ação, e não somente o resultado de seu ato ele mesmo. Que isso não represente um problema para a teoria socrática só é compreensível porque na dita teoria o que determina o ser ou não voluntário de uma ação é a correspondência ou a ausência de correspondência entre o resultado da ação e o fim perseguido pelo homem ao longo de sua vida. Daí que Sócrates tenha que aceitar, ao contrário de Aristóteles, que o agente possa estar enganado a respeito do ser ou não voluntário de uma determinada ação empreendida mesmo sabendo que executou a ação. Aristóteles, por outro lado, ao negar que a ignorância do que seja mais vantajoso seja pertinente para a determinação do ser voluntário de uma ação, afirma que as ações são ditas voluntárias, não-voluntárias ou involuntárias a partir da correspondência ou da ausência de correspondência entre o resultado da ação e o fim visado pelo agente, ou pelo paciente, enquanto agente, ou paciente, da ação. Nesse momento, no entanto, um simpatizante da teoria socrática poderia talvez dizer que o que está em questão é justamente se um tal homem tem ou não conhecimento do que ele fez, dado que o que torna uma ação involuntária, segundo Sócrates, é um certo desconhecimento dos resultados necessários acarretados pela própria ação. Dado que a teoria aristotélica inclui o resultado da ação entre as

261 circunstâncias particulares relevantes para a determinação do ato voluntário, não deveria ela estar aberta a considerar todas as suas consequências necessárias? Tal objeção, é claro, acaba por apagar a diferença traçada por Aristóteles entre o fim objetivado pelo agente enquanto agente daquela ação específica, isto é, enquanto está executando a dita ação, e o resultado total gerado pela ação. Ao manter essa diferença, o conceito aristotélico permanece mais próximo tanto do uso corrente da palavra quanto do que nós entendemos como o ato voluntário. Será mesmo razoável sustentar que a injustiça é involuntária mesmo quando o homem que age injustamente (a) sabe que seu ato foi injusto, pois (b) agiu injustamente de acordo com sua deliberação e (c) alcançou com sua ação injusta aquilo que tinha por objetivo no momento da ação? Por outro lado, o que

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diria Sócrates da possibilidade de uma ação ser classificada como um acidente voluntário? Não é possível que uma ação tenha um desfecho que seja ao mesmo tempo acidental e o melhor possível dadas as circunstâncias específicas? O problema acerca dos limites aceitáveis da inconsciência de um determinado agente desemboca, assim, na pergunta acerca de que informações seriam pertinentes para que se determine o ser voluntário ou não de uma ação. Com efeito, se aceitarmos que o ser benéfico de uma ação é pertinente para sua caracterização como voluntária ou involuntária, estaremos aceitando um número virtualmente infinito de circunstâncias e informações pertinentes para tal determinação. Tal traço, embora não seja propriamente algo que inviabiliza a dita teoria, traz consigo uma desvantagem considerável no que diz respeito à classificação de certas ações. Com efeito, o conceito socrático do ato voluntário, embora não seja contraditório, não é um conceito dos mais aptos a gerar consenso em torno dos objetos que é feito para classificar. Em outras palavras, embora ele seja destinado a classificar ações, tal conceito tenderá a gerar muito mais dissenso do que consenso em torno de seu uso. Pessoas de persuasão religiosa diferente, por exemplo, discordariam quase constantemente a respeito da classificação de certas ações como voluntárias ou involuntárias. Me parece claro que nós podemos nos colocar de acordo a respeito do ser involuntário ou não de uma ação muito mais facilmente do que sobre a natureza da alma humana e as consequências que para ela acarretam as nossas ações. Que nós possamos acreditar em tais consequências sem no entanto adotar o conceito socrático do ato voluntário é o que nos mostra Aristóteles. Além disso, ao colapsar a diferença entre o fim da vida dos homens e o fim da

262 ação propriamente dito, isto é, o objetivo que o indivíduo almeja com a ação e que é alcançado quando ele a executa, Sócrates acaba classificando no mesmo grupo o homicídio premeditado cometido pelo mais frio dos tiranos e o ato do homem que, por exemplo, bebe um copo de água sem saber que estava envenenado. A classificação aristotélica, ao contrário, consegue manter a diferença entre estes dois casos sem, no entanto, precisar negar que em ambos algum tipo de ignorância contribuiu para o comportamento do agente. Ao fazê-lo, o filósofo estagirita isola o tipo de ignorância específico que pode interferir na relação do agente com o resultado da ação, e nos dá, ao mesmo tempo, a primeira definição formal das ações que acontecem por sorte, seja ela boa ou má. Mesmo a boa sorte, no entando, é não voluntária. Pois, segundo Aristóteles, não basta que o fim alcançado corresponda a

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um desejo qualquer do agente para que a ação seja voluntária. Ele deve corresponder ao desejo cuja satisfação era objetivada pela ação que se trata de classificar. Afinal, quem cava um poço e descobre um tesouro o faz involuntariamente, mesmo que isso tenha sido a melhor coisa que lhe poderia ter acontecido. Embora seja possível constatar nos comentários mais recentes uma tendência dos especialistas a valorizar o lado socrático da explicação aristotélica da akrasia, creio que o estudo aqui empreendido mostra que essa explicação difere da que encontramos no Protágoras em diversos pontos dignos de nota. Aqui, citarei apenas os que julgo serem os mais importantes. Em primeiro lugar, os autores divergem a respeito da natureza do fenômeno em questão. Com efeito, é forçoso reconhecer que a descrição que Sócrates nos fornece da incontinência a descreve como um fenômeno isolado, que pode ocorrer a qualquer indivíduo que possua a opinião correta – mas não o saber – a respeito de um determinado rumo de ação, e sobre o qual incida qualquer uma das paixões listadas no Protágoras (o prazer, o medo, etc). Aristóteles, por sua vez, não só fornece uma maior precisão em sua definição do objeto da akrasia mas também a admite como um estado de caráter, isto é, como uma condição psíquica duradoura possuída por determinados indivíduos, mas não por outros, e que implica numa determinada forma de comportamento. O esforço de sua investigação consiste justamente numa tentativa de caracterizar no que consistiria um tal estado de caráter, de modo a explicar as opiniões divergentes que ele suscita. Em segundo lugar, os filósofos discordam também a respeito da causa do fenômeno. Para Sócrates, a ação do indivíduo incontinente é devida a uma oscilação no que diz respeito à sua crença acerca dos valores relativos das opções que ele tinha

263 diante de si. Tal compreensão liga de forma inseparável o agir por ignorância – ignorância que é, em certo sentido, causada por uma phantasia – e a incontinência. Aristóteles, ao contrário, se utiliza de dois silogismos práticos para explicar a dinâmica volitiva do akrates. Se é verdade que o silogismo que tem a satisfação do desejo racional por objetivo pressupõe uma valoração comparativa, isso não é verdadeiro do silogismo apetitivo. Esse fato é importante porque nos permite afirmar que o indivíduo incontinente não agiu por estar enganado a respeito do valor relativo da ação executada. Ele agiu visando simplesmente a satisfação de seu apetite. Sendo assim, creio ser possível afirmar que enquanto para Sócrates a causa da ação incontinente é a ignorância, para Aristóteles a causa que explica verdadeiramente a ação incontinente é o desejo apetitivo, pois é dali que provém o

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fim prático perseguido e alcançado na ação. A phantasia pode, sem dúvida, desempenhar aqui um papel, na medida em que a premissa menor do silogismo – apetitivo ou racional – pode perfeitamente ser uma phantasia. Mas isso ocorre não por seu poder de enganar, dado que a premissa em questão é verdadeira. Se é verdade que Aristóteles concede a Sócrates que o incontinente é, em certo sentido, ignorante, é forçoso reconhecer que o filósofo estagirita eliminou o que havia de ignorância nas proposições que guiam o comportamento incontinente. Isso, é claro, traz certas implicações para a descrição do ato incontinente. Com efeito, parece seguro afirmar que o incontinente descrito por Sócrates acaba experimentando não só arrependimento mas também decepção com a opção por ele escolhida, pois, ainda que por um breve momento, ele chegou a acreditar que tratavase da melhor opção. Isso, é claro, não é verdadeiro do incontinente tal como ele é descrito por Aristóteles. É importante notar a inovação teórica que essa diferença aponta. Aristóteles, ao contrário de Sócrates, não precisa descrever o incontinente como tendo agido da maneira que lhe pareceu a melhor possível. Embora o filósofo estagirita possa até concordar que nós sempre agimos tendo em vista algum bem aparente, seu sistema teleológico de explicação das ações humanas as encaixa junto com os demais casos de locomoção animal. Segundo tal explicação, o fim objetivado pela ação pode ser qualquer bem aparente disponível. Que não é necessário que esse bem aparente seja determinado a partir de uma avaliação comparativa é justamente o que os exemplos de silogismo apetitivo nos mostram. O que move o homem, segundo Aristóteles, são os desejos – intelectual ou apetitivo – acompanhados do intelecto prático. Os fins

264 práticos, portanto, são os objetos de desejo, sejam eles quais forem. Se tivesse que resumir o máximo possível qual a vantagem teórica da teleologia aristotélica, eu diria que ela nos permite explicar melhor porque é tão comum que os homens se comportem de acordo com seus interesses de curto prazo. Pois dizer que todo homen age tendo em vista realizar aquilo que é melhor ao todo implica pressupor que todo indivíduo se comporta tendo em vista o que ele pensa serem as melhores consequências de longo prazo de suas ações. Será isso realmente razoável? Ou será, ao contrário, que para ter em vista o que é melhor ao todo seria necessário ao indivíduo em questão assumir uma postura reflexiva e deliberativa que nem sempre os indivíduos assumem? A opção teórica de Aristóteles, no entanto, ainda faz uso da ignorância para

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explicar a akrasia quando postula que o incontinente encontra-se num estado de ignorância causado pela presença de um apetite. De início, poderia parecer um pouco excessivo conceder aos apetites em questão um tal poder. No entanto, quando afirma que a akrasia consiste num ser mais fraco do que a maioria dos homens no que diz respeito a certas tentações, Aristóteles busca justamente abrir espaço para uma certa latitude em sua descrição. Com efeito, Aristóteles sugere não só que não é qualquer apetite que é capaz de instaurar em qualquer homem um estado de ignorância como também que certos homens não sofrem jamais de akrasia. Ainda no que diz respeito ao apetite, não podemos deixar de notar como sua força cresce na teoria aristotélica. Se é verdade que o Sócrates da República já falava dos prazeres como possuindo um poder ativo, sendo capazes de enfeitiçar os homens, é forçoso reconhecer que sua linguagem ainda permanecia metafórica, e que o que ele afirmava na verdade era que o desejo de certos prazeres é capaz de alterar algumas de nossas convicções, mas não todas. Ele não é capaz de alterar aquelas convicções que são fundadas no conhecimento. Ora, na descrição aristotélica não se trata mais de alterar uma determinada convicção mas de tornar a razão, esteja ela baseada no conhecimento ou na opinião, ineficaz. Segundo a explicação aristotélica, a falta de convicção no que diz a razão não é consequência de nossa descrença em uma proposição particular afirmada por ela, mas sim do fato do indivíduo se encontrar impedido de fazer uso de sua razão. Que o indivíduo ainda assim consiga agir só nos mostra, como indicamos antes, que há comportamento teleológico – e também comportamento voluntário – mesmo onde a razão está inativa. Tendo dito isso, dado que Aristóteles teve que lançar mão de um estado de

265 ignorância para explicar uma tal ação, pode parecer razoável afirmar que, segundo o filósofo, na ausência de um tal estado a akrasia não ocorre. Tal afirmação, no entanto, é enganosa. Se é verdade que parece seguro afirmar que, segundo Aristóteles, um homem que esteja utilizando seu conhecimento do que lhe é mais vantajoso não age de forma incontinente, também parece razoável admitir que um homem possa se comportar de forma semelhante ao homem incontinente se ele não utilizar o conhecimento que possui por pura negligência, e não por conta de um desejo que tenha lhe retirado tal capacidade. Em suma, o que é importante perceber é que, segundo Aristóteles, a akrasia é só uma das falhas, das quais são passíveis os seres humanos, capazes de tornar o conhecimento ineficaz. A distância que separa os autores no que diz respeito ao confronto entre a

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razão e o apetite, portanto, não é pequena. Com efeito, o argumento socrático que encontramos no Protágoras aposta que o conhecimento seguro a respeito dos prazeres e das dores envolvidas em uma ação tornará a força das aparências ineficiente e, portanto, evitará a incontinência. Ainda na República, como vimos, toda a preocupação do filósofo em educar os guardiões no que diz respeito à temperança e às demais virtudes, procura lhes transmitir a opinião correta e os meios de resistir ao enfeitiçamento de que são capazes os prazeres. Isso nos levou a supor que nesse diálogo a aquisição do conhecimento pertinente seria suficiente para que o homem fosse capaz de resistir aos prazeres, e, portanto, de resistir também a se deixar comandar pelo epithymetikon, na medida em que, como vimos no Mênon, o acréscimo do encadeamento causal tornaria a opinião verdadeira estável. Ora, na investigação aristotélica acerca da incontinência, tal possibilidade não é nem sequer considerada. Embora o filósofo reconheça que o saber não pode estar ativo para que a incontinência ocorra, o que ele se preocupa em ressaltar é que o conhecimento pode estar num estado de inatividade que é devido ao próprio apetite. Como é fácil perceber, a investigação aristotélica não está preocupada em separar os que possuem o conhecimento dos que não o possuem, mas sim os que são capazes de se utilizar de tal conhecimento em ato e aqueles que não são e que, no momento da ação, possuem tal conhecimento somente em potência. Segundo Aristóteles, portanto, se é verdade que o conhecimento, quando está em ato, é capaz de tornar o apetite ineficaz, é igualmente verdade que o apetite pode tornar o conhecimento ineficaz, e não é absolutamente verdade que a aquisição de um determinado tipo de conhecimento possa tornar um indivíduo imune, por assim dizer, à akrasia.

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