O problema da autenticidade das verdades literárias

June 29, 2017 | Autor: L. S. Vilalta | Categoria: Philosophy, Literature, Contemporary Literature, Estética
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O problema da autenticidade das verdades literárias - Carta para Caio Sarack1

Caro Caio, vamos continuar nosso papear, isto sim! Considero este convite uma oportunidade de explicitar alguns pressupostos que marcaram minhas reações à crítica que escreveste para meu livro. Acredito que o que fui vivenciando e o que te escrevi anteriormente sobre como fui repensando tua leitura e minha leitura de meu livro, seriam boas respostas para as perguntas que me enviaste. Contudo, uma nova escrita surge e então uma nova aposta em transformar-me enquanto leitor e escritor estão em curso. E tuas perguntas ressoam algumas questões que venho pensando, então bora! Começo, então, pela terceira pergunta. Eu diria que a fronteira entre a crítica e a produção literária está no tipo de problemas que cada um desses fazeres instaura. Como há problemas comuns, esses campos podem às vezes se desdiferenciar. No entanto, tentando diferenciar os campos, podemos dizer que a crítica explana sobre questões e que a produção literária abre um campo de problemas. Ambos tratam o texto como uma máquina de produção de sentido, mas seus fazeres se vivenciam de modos distintos com relação à máquina e ao sentido. Podemos dizer que uma questão já é uma resposta em potência para um problema, não – e isto é muito importante - porque a questão ou o problema só tenham realidade se deduzidos do movimento de uma resposta, mas porque a própria questão é um modo de tensionar o campo problemático, de matizar os pontos invisíveis e visíveis de um problema. Por exemplo, um dos aspectos que julgo centrais do fazer literário e das análises críticas é a 1

O presente texto foi elaborado em resposta às seguintes perguntas:

1) Num mundo onde os recursos são infinitos, o hedonismo formal aparece como saída triunfante para a literatura pós-70. Como você enxerga a produção da crítica frente esta explosão de novidades literárias? 2) Muito se fala sobre a capitulação do grande romance, da literatura profunda, como é produzir neste cenário? 3) Qual a fronteira da crítica literária com a produção literária? 4) Sobre os formatos desta crítica: o suplemento literário, os cadernos ilustrados dos jornalões, as revistas de nicho estão cada vez mais escassos; agora, o vlog, o twitter, facebook, o website (este que lhe pergunta, incluso) escancaram portas que aparentemente não deixam acompanhar o aprofundamento crítico rigoroso que a crítica tradicional tanto gozou. Como pensar a literatura, então?

criação de uma lógica de funcionamento para o texto. O que a crítica costumou chamar de organização formal ou estruturante de um texto literário, parece-me melhor abordado se nos aproximamos deste aspecto como a construção de um campo transcendental que orienta e é orientado pelo funcionamento da máquina e pelas produções de sentidos. Trata-se no fundo do velho e famigerado problema da ideologia. Ricardo Piglia, em um texto crítico, já consagrado ofereceu duas versões desse problema. A primeira - no Teses sobre o conto - ele desenvolve a ideia de que todo conto conta duas estórias. A primeira estória é a própria construção narrativa e os acontecimentos pelos quais passam os personagens, e a segunda, a que resignifica, que nos dá a chave da primeira estória. Isto nada mais é que a velha divisão entre Real e Ideal. Evidentemente Piglia está interessado no entrecruzamento das duas estórias, em sua imbricação, em sua dissolução. Se as duas séries só possuem sentido e se comunicam a partir de um elemento exterior as duas, ou oculto em uma delas, a escolha de Hemingway como núcleo centrífugo das questões com sua teoria do iceberg é fantástica. Tudo se passa como se Hemingway oferecesse a melhor imagem das Teses sobre o conto por ser, ao mesmo tempo, a exacerbação de uma questão e justamente sua dissolução. Ao insistir na busca da lógica de conexão entre a narrativa literária e a estruturação ideológica que a sustenta, o crítico tensiona a tal ponto o campo problemático da produção literária que o modifica. Gosto de pensar que é esta a potencialidade das Novas teses sobre o conto de Piglia. Mas permita-me tentar explicitar de modo mais concreto essa relação. No caso de Hemingway, Piglia enuncia muito bem o nódulo humorístico da coisa. Comentando um conto de Hemingway, diz: “Hemingway põe toda sua perícia na narração hermética da histórica secreta [a segunda estória]. Usa com tal maestria a arte da elipse que logra fazer com que se note a ausência do outro relato.” O escritor não precisa mais escrever a segunda estória, o núcleo ideológico, a lógica transcendental da narrativa, pois pode elidi-la na confiança de que o leitor já a conhece. Esta é a questão central que Piglia coloca para os campos problemáticos das produções literárias que lê: como narrar quando a racionalidade cínica instaurou a paranoia generalizada como modo de leitura ideal para as estórias contemporâneas? Agora, frente ao impasse que atestaria

o falecimento da crítica, Piglia encontra uma alternativa para substituir as metanarrativas estruturantes por uma leitura que pensa questões a partir da circulação de objetos parciais, significantes. A análise primorosa que faz de El frasquito de Luis Gusmán é lapidar nesse aspecto. Entretanto – e aqui está o cerne da diferenciação – podemos duvidar ou questionar as questões que esta leitura coloca para o texto. Gusmán escreve um belíssimo texto, uma máquina de produção de sentidos, que abre todo um campo problemático. Um modo de abordar este campo é colocando a questão de quais significantes, quais objetos parciais, quais séries organizam a lógica de sentido do texto. Nesse sentido, a leitura de Piglia oferece continuidade e inteligibilidade para o texto fragmentário, difuso e intempestivo de Gusmán. Piglia coloca questões para o texto de Gusmán que o enclausuram em uma leitura psicanalítica e sociológica - que fecham o seu sentido. As questões que a crítica literária coloca determinam um modo de funcionamento da máquina literária e circunscrevem as criações de sentido possíveis para o texto. Agora, eu colocaria outras questões para o texto de Gusmán: o modo como o desaparecimento é o fato político central que cria um eu cindido para o qual a lógica da violência de Estado é sempre dupla. A violência é aqui, ao mesmo tempo, o que possibilita as relações sociais e o que aponta para a necessidade de modificação dessas relações. Em meu modo de ler o texto de Gusmán, a leitura de Piglia acaba por impossibilitar o problema da violência social que o corpo textual fragmentário, a descontinuidade narrativa e a não-substancialidade dos personagens colocam. A leitura de Piglia acaba por apaziguar o que há de disruptivo no texto de Gusmán: a violência que não pode ser representada, a não ser pelo paradoxal fracasso da narratividade para tematizar a questão. A leitura de Piglia acaba por tornar a lógica paradoxal da violência uma lógica dialética da família e do Estado. No entanto, estas seriam duas possibilidades de aproximação crítica do texto, dois núcleos de questões que poderiam ser colocadas para o campo problemático que criou Gusmán com sua máquina de produção de sentido. Outro caso: as leituras possíveis do conto O gato preto de Poe. Assim como ocorreu com Dom Casmurro do Machado, as questões que a crítica colocou para estes textos fizeram história e marcaram um posicionamento de leitura já clássico de desconfiança no narrador. Não me interessa aqui dizer se outro tipo

de questões deveriam ser colocadas para o funcionamento do narrador no livro Dom Casmurro, mas com relação ao conto do Poe, parece-me desejável que duvidemos da leitura consolidada. As marcas do fantástico e do misterioso são realmente índices de que devemos duvidar do narrador no conto de Poe? Ou duvidarmos da autenticidade da enunciação do narrador nestes aspectos não diz muito mais sobre o modo de racionalidade, a lógica que desejamos que esteja em funcionamento na escritura de Poe? Restituir as tensões entre racionalidade positiva e racionalidade supersticiosa no campo problemático dos textos de Poe parece-me central para que possamos recuperar outra leitura, outra lógica, outro funcionamento da máquina literária e das possibilidades de sentido dos textos de Poe. Enfim, um escritor e um crítico possuem fazeres diferentes. As questões que um crítico coloca para um texto nunca devem esgotar o campo problemático que um texto abre. Penso que as relações entre os dois fazeres é que ampliam as possibilidades de leituras dos textos. Assim, o crítico pode inventar funcionamentos que não estavam previstos para a máquina literária, mas que já estavam virtualmente em latência no campo problemático que o escritor criou. Também as possibilidades de criação de sentido não estão determinadas na criação da máquina, elas se constituem na relação tensa e intensa das leituras. Uma das partes da constituição de um campo problemático, na produção de um texto, consiste em instituir uma lógica de funcionamento para ele. O mundo criado para o conto O gato preto de Poe possui uma problemática tensa para a determinação dos fatos narrativos dentro de uma lógica de causa e efeito. A lógica que o conto institui de indecidibilidade - se é a causa que determina um efeito ou vice-versa - é que produz a atmosfera do conto e abre um campo de leituras e questionamentos de várias ordens. Todavia, ao perguntar-se pela lógica de funcionamento do texto, o crítico inevitavelmente já estão circunscrevendo um conjunto de questões, já está pressupondo uma lógica. Ao configurar a lógica de funcionamento para um texto, o escritor já está constituindo um campo problemático. Ao falar da lógica de indecidibilidade aqui já estou oferecendo imagens do campo problemático que Poe configura.

Enfim, estabelecer uma fronteira entre crítica e produção literária é menos determinar um funcionamento em si desses viveres e fazeres, do que articular uma

relação que tenta impedir

a

sobreposição que enclausura as

especificidades produtivas de cada fazer. Evidentemente, essa fronteira está em jogo em cada criação. Contudo, acredito que há um gesto ético que, ao final, acaba sendo mais importante que o estabelecimento de qualquer fronteira. Que o crítico invente questões que o forcem a ser um leitor que ainda não é; que o escritor invente um campo problemático que o force a ser um leitor que ainda não é: que a atividade crítica e que a produção literária sejam apostas e entregas para experiências de transformação – isto caracteriza o problema da autenticidade das criações em ambos os campos.

Daqui podemos passar para a primeira e para a segunda pergunta que me colocaste. Ambas estão pressupondo um tipo de lógica e de circulação de valores para a crítica e para o fazer literário. Sobre a capitulação do grande romance, da literatura profunda, e o que significa produzir nesse momento histórico. Bem, a questão na verdade me parece outra: o que ocorreu com a constituição do campo problemático na produção literária que o romance deixou de ser o modelo de criação de máquinas de produção de sentido? Dito de modo muito sumário: parece-me que historicamente os modos de leitura se modificaram; as leituras, as questões e o campo problemático que as obras literárias abrem não são mais as mesmas que as do século XVIII e XIX. Para mim, todas essas mudanças só são motivo de imensa alegria. Não consigo mais ler Dostoievski, Flaubert, Proust, Machado de Assis. Não me interessa a literatura que tem a narrativa e a psicologia dos personagens no centro do seu campo de problemas. Mais que Borges, Macedonio Fernández foi definitivo para mim. O narrador e os personagens são fenômenos linguísticos, são processos de individuação, são efeitos textuais. Dostoievski, Flaubert e Proust, podem e foram lidos também por esse viés; contudo, caber-nos-ia perguntar em que medida a narrativa ainda possui centralidade em suas escrituras e se não é em relação a ela que estão configurados os campos problemáticos desses escritores.

Enfim, aqui a velha ladainha da perda da relação com a realidade histórica e social é normalmente convocada. Para mim – e esta é a ladainha correlata – a literatura não tem que representar a realidade, mas criar modos de sentirpensar que nos permitam transformá-la. Estou interessado na literatura que inventa novos modos de sentir e pensar, na literatura que convoca o leitor a ser um sujeito que ainda não é, para que a realidade possa ser outra. Digo tudo isto, porque o tema da perda da grande literatura tem como pressuposto a imposição de um conjunto de valores e de cânones. Demorei muito tempo para poder enunciar que para mim a literatura pode começar com Diamela Eltit, Hector Libertella e Osvaldo Lamborghini; com Beckett, com Borges, Guimarães Rosa e Hilda Hilst; com Calvino, Macedonio Fernández e Gombrowicz; com Marguerite Duras, Jorge Lescano e Cabrera Infante; com Huidobro, Valéry e Perlongher; com Julián Fuks, Isadora Krieger e Francis Ponge. Não que ela tenha começado nas minhas leituras com estes escritores, mas, se me perguntarem, diria que hoje são eles que me são imprescindíveis, pois me exigem inventar um leitor que ainda não sou para lê-los. Sobre a capitulação do romance especificamente, eu teria duas coisas a dizer. Primeiro, por que não lemos mais os romances como pressupomos que eram lidos antigamente? O que aconteceu com nossas leituras para que um romance grande – e não um grande romance – como 2666 de Bolaño não funcione exatamente como um romance para nossas leituras? Aqui começamos a avançar mais propriamente no trabalho da crítica: formular questões. No caso da produção literária, pensaria ser bastante contraprodutivo tecer um campo problemático a partir de tais inquietações. Conheço um caso em que tal articulação resultou em um livro grandioso: Procura do romance de Julián Fuks. Mas isto só ocorreu – eu leio desta forma – porque a articulação entre as questões da crítica e a constituição de um campo problemático se deu na tentativa do autor de inventar um leitor que ainda não era. Enfim, o primeiro ponto diz respeito a uma possível aposta de o porquê o romance tal como os críticos dizem que era concebido nos séculos XVIII e XIX deixou de ser o paradigma do fazer literário ou da chamada “literatura séria”. Dito de modo breve, acredito que o sentido do que significa narrar, descrever e construir personagens foi se modificando com as novas produções literárias do século

XX. Quando digo que a narrativa e a psicologia dos personagens não me interessa é disso que se trata. Surgiram outros modos de fazer literatura que não são contar a estória e a vida de personagens. Não pretendo reduzir todas as criações que as produções literárias vêm possibilitando, mas diria que podemos pensar esquematicamente que foram duas grandes modificações que ocorreram. Por um lado – um aspecto que já comentei um pouco anteriormente -, a produção literária deixou de constituir-se a partir da pretensa lógica de funcionamento da realidade para constituir, em cada texto, uma lógica de mundo – Ideal e Real não se fundam, nem se separam. Nenhuma metafísica ou teoria do conhecimento esgotará as lógicas dos mundos possíveis. Não há uma unidade lógica autoidentica e universal que regule o funcionamento da realidade. A gênese da realidade e das ideias é plural e exige uma pluralidade de lógicas válidas. O outro aspecto, correlato a este, é que os personagens não precisam mais ser concebidos como unidades físicas e de consciência. Um personagem é mais que um indivíduo constituído, é um processo de individuação, uma multiplicidade. Isto não significa dizer que os personagens não possuam mais unidade textual, mas dizer que suas unidades podem ser lidas de outro modo. Os personagens são fenômenos linguísticos, máscaras textuais, personas ad hoc; não são mais realidades substanciais, suas vidas são expressões da materialidade da linguagem. Poderiam me perguntar se a relevância que a literatura de autoficção ganhou nos últimos anos não testemunha exatamente o contrário disto que estou dizendo. Bem, eu tenderia a dizer que não. A literatura de autoficção vem exatamente corroborar o que estou dizendo – muitas vezes mais em seu pacto ambíguo do que nos procedimentos que inventa. O problema da literatura não é mais que suas criações estejam em uma conformidade com a realidade, ou com certa maneira de conceber a realidade, que chamaríamos de verdadeira. O problema que a literatura coloca é o da autenticidade de uma verdade. Ou este é um nome que eu daria para o campo problemático que tento constituir com minha literatura. Mas, enfim, a segunda coisa que eu teria para dizer, com relação à segunda pergunta, é que talvez a novela tenha se tornado o paradigma da criação literária. Isto porque as novelas possuem uma unidade que não é a da narrativa que contam, mas da máquina de produção de sentido que colocam em

funcionamento. Tudo que vou dizer agora é uma porção de generalidades, mas são de algum modo indícios de questões que venho trabalhando na formulação. Penso que a novela se tornou o gênero predominante na literatura pela qual as correntes críticas tem se interessado – pensem nos nomes do momento Valter Hugo Mãe, Coetzee, Vila-Matas, Cesar Aira e outros. Penso que isto ocorreu pois a novela absorveu do romance, do conto e da poesia algumas das maneiras destas construírem um campo problemático. Por exemplo, a influência de toda uma tradição de contistas, começando com Poe e tendo para a literatura latinoamericana Borges, Cortázar e Rulfo como pontos normalmente comuns das genealogias, pode ser pensada como a absorção de modos de criar próprio aos contistas. Estes consistem em estruturar um funcionamento lógico para os modos de operar dessa máquina que será cada conto. Volto a insistir que explicitar o funcionamento da máquina literária já é investir nela uma leitura; todavia, isto não significa que o escritor não procure estruturar uma lógica singular para cada conto de modo que se garanta sua consistência. Neste ponto, gosto muito de pensar que há um acontecimento, um verdadeiro encontro entre o conto e a poesia. A ideia de Badiou de que o infinito linguístico constitui o problema central da literatura. Há aqui uma tensão que inventa a produtividade das máquinas literárias para a criação de novas sensibilidades.

Dentro

das

resistências

próprias

a

historicidade

da

materialidade da linguagem, a literatura tem que enfrentar o problema de que toda palavra é possível e contingente. A literatura luta por sua consistência no infinito aberto entre as infindáveis possibilidades da linguagem e a constituição de lógicas que fazem que a expressão não se torne espúria. Pense no conto Aí, mas onde, como de Cortázar, no Como é de Beckett, nas novelas de Mario Bellatin, todos estão a um passo de soçobrar na gratuidade da construção com a linguagem. Cada palavra, cada fragmento, cada estilhaço tem que se enfrentar com o infinito linguístico que o tornou possível, infinitude contingente que abisma a arbitrariedade latente. As palavras poderiam ser outras, mas uma lógica fragilíssima nos convoca para a entrega e para a confiança de que devemos apostar em sua consistência. O Ulisses e o Finnegans de Joyce, o Catatau do Leminski, o Galáxias do Haroldo, não nos convidam a vivenciar visceralmente o difícil trabalho da criação de lógicas singulares e consistentes para o infinito linguístico? Cada nova obra nos convida a descobrir uma nova

lógica, uma nova ontologia, uma nova epistemologia para a linguagem e para a leitura? E isto é o que a novela absorveu do romance – sua entrada no mundo como apresentação de uma unidade que sedimenta, criando sua consistência própria, seus problemas históricos, éticos, políticos e sociais na materialidade da linguagem. Podemos dizer que a novela, neste sentido, sempre esteve próxima do romance. Entretanto, ela ocupa esse lugar problemático de apresentação e inserção na vida social próprio à tradição do romance. Contos, crônicas, ensaios e poesias podem ser publicados separadamente, ser compilados; são, em geral, partes que podem ou não compor uma totalidade heurística. Agora, a criação da novela enquanto máquina de produção de sentido está inserida no problema da apresentação de uma unidade consistente como constructo lógico, como totalidade funcional que passa a existir e se organizar de distintos modos a partir de cada leitura. Espero que não seja mal compreendido aqui por invocar conceitos como unidade, totalidade, e outros. Espero que se possa lê-los como idealidades relacionais e não autossuficientes em sua realidade. Isto sem que naufraguemos em puro relativismo. Pensar a criação de modos de consistência para o infinito linguístico me parece convocar esses conceitos e, ao mesmo tempo, constitui uma potência da literatura para transformá-los. Sobre a primeira questão, parece-me que o que eu disse até aqui já marca bastante meu posicionamento frente a essa questão. Acredito que os recursos infinitos da literatura são e não são algo que surgiu apenas em nossa contemporaneidade. Acredito que o problema do infinito linguístico se expressa de uma maneira distinta em nosso momento histórico do que se manifestava, por exemplo, no século XVII. A relação entre a consistência e o infinito como problematização da autenticidade das verdades do discurso literário e das ficções me parece um problema de longa tradição. As maneiras de colocar esse problema e de criar a partir dele é que devemos questionar e pensar historicamente. De todo modo, esses termos “recursos infinitos”, “hedonismo formal” me soam demasiado próximos à tradição crítica de autores como Fredric Jamenson que, se muitas vezes trazem problemas muito pertinentes para o pensamento filosófico e sociológico, tantas outras vezes têm uma incapacidade admirável de abrir suas sensibilidades e seu pensamento para

obras contemporâneas que estão enfrentando e criando exatamente a partir desses problemas. Não sei exatamente ao que se refere o termo “hedonismo formal”, mas frente às questões críticas que tal termo poderia propor, eu te faço duas perguntas:

1. Estas questões não correm o risco inadvertido de serem muitos exteriores aos problemas e às obras que analisam? Não se colocam demasiado a cima das obras mesmas? 2. Não deveríamos ser um tanto mais humildes para conseguirmos arriscar perceber que muitas das experiências radicais de criação literária pós-70 estão tentando inventar outros modos de vida, outros modos de sentir e pensar? Não seria essa uma aposta ética e política de transformação social que se experimenta indivíduo por indivíduo, ao invés de ser uma catequização coletiva para uma universalidade totalitária?

Enfim, acredito que o pensamento crítico deveria abandonar sua verve lamurienta que tem sido tão propalada nos jornais e na academia. Que o crítico comece retomando para si o gesto ético e político de inventar um sujeito que ainda não é. Que o crítico arrisque ler aquela literatura para a qual ainda não tem modelos de compreensão. Que o crítico enfrente a literatura que pode forçá-lo a pensar e a sentir de outras maneiras. Que a entrega a essas experiências de transformação sejam a matéria inquietadora que o forçará a pensar o mundo. Há muitas “novidades literárias” que já possuem uma longa história de negligência por parte da crítica. De todo modo, não acredito no discurso das obras universais da literatura, das obras incontornáveis; não pretendo fazer de Diamela Eltit um clássico. Apenas aposto nos potenciais de certas criações literárias para inquietar gestos éticos que inventem novas formas de sentir. Por fim, a quarta pergunta. Acredito que o que está na base dessa pergunta – ao menos para mim – é a função que a crítica pode desempenhar na sociedade. Isto levando em consideração todas as modificações históricas, culturais e técnicas. Primeiramente, gostaria de dizer que um texto como

Literaturas Pós-autônomas de Josefina Ludmer é uma prova cabal de que uma reflexão publicada numa revista virtual pode ter ampla circulação e influência no pensamento sobre a literatura. Entretanto, uma defesa das possibilidades de circulação e influências que as novas mídias abrem não é o que quero fazer, pois há para mim uma questão anterior. Assim como falava acima da maneira como a crítica se relaciona com seus objetos de análise, penso que devemos problematizar a função da crítica literária com a pergunta: “A quem ela se dirige?” Acredito que devemos nos desvencilhar um pouco da fantasia megalômana de que escreveremos o texto que irá mudar a sociedade. Não que estejamos proibidos da aposta de constituir questões e valores que possam ter certo grau de universalidade e dizer respeito a toda a sociedade enquanto uma rede complexa. O que não podemos é querer nos fazer responsáveis por todas as relações dentro da rede complexa que são as sociedades. Para meu livro confissões de um texto solipsista ou persona ad hoc faço o trabalho de encontrar leitor por leitor, leitura por leitura. Cada leitura pode ser um acontecimento que desencadeie uma experiência de transformação ímpar para o leitor. Não posso controlar esse processo, nem causá-lo. O valor de um texto não está na quantidade de leituras, mas na efetividade do que uma única leitura pode transformar. Isto não significa que a determinação do que será lido não seja um campo de intensas disputas. Que se leia na escola Machado de Assis e não Oswald de Andrade, diz muito dos leitores que estivemos formando, das experiências de leitura que estivemos incentivando. Agora, nenhum crítico pode saber o que pode um texto. Aprendi isto com Jorge Lescano, meu mestre - uma literatura, um mundo fantástico ainda por ser descoberto; mas se sua obra chafurdar no esquecimento, isto será apenas para uma visão muito espúria do que significa uma vida entregue à escrita. Ao menos um leitor, eu, serei fiel ao acontecimento que é sua literatura e ao campo problemático que ela cria. Nesse sentido, em mim mesmo ainda não posso determinar ou ao menos entrever o que a literatura de Lescano realmente produziu e pode produzir para meus modos de vida. Não sei, Caio, quantas pessoas leram tua crítica de meu livro, no entanto, ao menos para mim ela foi fundamental para eu repensar minhas leituras e meu fazer literário. Teu

texto me convidou a me desprender novamente de minha autoimagem e afirmar: devo inventar um leitor e um escritor que ainda não sou para meu próprio livro, mesmo que, em certo sentido, já escrito. A crítica e a literatura jogam uma garrafa ao mar e seguem nadando nesse mar – provocando-lhe ondulações. Elas apostam, palavra por palavra, na invenção de um sujeito que ainda não existe como possibilidade de desencadear transformações sociais e políticas, como movimento ético contínuo de reinvenções.

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