O Problema da Propriedade no Contrato Social de Rousseau

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O Problema da Propriedade no Contrato Social de Rousseau

Alexandre Miedzir Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa – FCSH

Resumo

O intuito desta investigação é perceber a relação que detêm os conceitos de propriedade e liberdade em Rousseau. Uma vez que estes conceitos somente passam a ser possíveis num Estado Civil, a fim de os percebermos também nas suas implicações, torna-se então necessário para uma compreensão adequada dos mesmos, que se aborde para além dos conceitos, o seu processo de concretização. Posto isto, a apresentação seguirá o seguinte percurso: numa primeira parte, através da apresentação do Contrato Social, exporei a estrutura do Estado Civil, no qual perceberemos como se formou e as características do que significa algo ser ‹‹propriedade››. E, numa segunda parte, o funcionamento da estrutura, isto é, as implicações que tem na sociedade a existência da estrutura que permite a propriedade e, por extensão, os efeitos ou implicações deste novo elemento responsável pela reestruturação da condição humana através da noção de soberania (modelo de gestão da propriedade). Começando a investigação indagando pelo significado e extensão do conceito ‹‹Propriedade›› vemo-nos, afinal, numa investigação de uma realidade total, na medida em que este conceito, que somente pode ser percebido juntamente com o conceito de liberdade e igualdade, é o conceito fundador de qualquer Estado Político ou Civil.

Introdução Segundo a hipótese de que partimos, tal como está descrita no “Discurso sobre a origem e fundamento das desigualdades humanas”, o ser humano, e ao contrário do que defendem outros contratualistas, percebeu que os esforços de unificação eram desejáveis não por uma permanência do estado de guerra mas por uma decisão racional. Rousseau é um pensador que concebe a mudança de um Estado de Natureza para um Estado Civil como um acto de pura racionalidade e não animalidade e instinto. Isto leva-nos a implicações profundas sobre como se concebe o humano e em que medida é que, existindo fora das cidades, ultrapassa o mero animalismo inerente à espécie. O autor fá-lo pela apresentação da noção de perfectibilidade, reconhecendo à nossa espécie uma capacidade intrínseca de se perfeccionar. Sem esta capacidade, juntamente com a capacidade de sentir piedade (cf. Discurso, p. 106) seria impensável ultrapassar o puro estado animal ou natural. A passagem vai-se consumando à medida em que o humano se apercebe de que tem capacidade para ou de que as coisas se podem tornar propriedade. Uma vez que algo se torna propriedade, ganha também um possuidor. Contudo, ser-se possuidor num Estado que não esteja regulado, é uma tarefa no mínimo árdua senão mesmo impossível. Foi neste contexto que aqueles que possuíam pretenderam assegurar o que tinham de uma forma que ultrapassasse a mera pretensão. “o rico, sentindo assim a necessidade, por fim concebeu o projeto mais profundo alguma vez concebido pela mente humana: usar em seu favor as forças que o atacavam, fazer aliados dos seus inimigos, inspirá-los com outras máximas, e faze-los adoptar outras instituições favoráveis às suas pretensões, visto que as leis da natureza não o eram.”1. Entramos assim pela primeira vez numa lógica contratual, num preâmbulo histórico das grandes (todas) instituições políticas da espécie humana que, perfectibilizando-se, ou seja, desenvolvendo o uso da razão, conseguiu conceber uma noção abstrata de futuro, contrato e de suas implicações. “‹‹ (…) Numa palavra, em vez de virarmos as nossas forças contra nós mesmos, juntemo-las num poder soberano, que nos governe sob leis 1 Rousseau, Jean-Jacques, The Social Contract and The First and Second Discourses. Edited and with an introduction by Susan Dunn; with essays by Gita May, Robert N. Bellah, David Bromwich and Conor Cruise O’Brien, New York: Yale University Press, 2002, p.124

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sábias, que proteja e defenda todos os membros da associação, repele inimigos e mantenha uma concórdia e harmonia perpétua entre nós.››”2.

Parte I: Contrato Social: Características e Consequências (legalização da propriedade) Entramos assim na formulação do Contrato Social. Na estrutura daquilo que será a única formulação de uma sociedade igualitária sob a única forma legítima de Estado: a República. Este é o tema de estudo nesta primeira parte: as características e consequências do Contrato Social, entendendo-o como um resultado da existência da propriedade e como origem da estrutura que a regulará, uma vez que o direito à propriedade, não é mais do que uma convenção e instituição humana (Discurso, p.130), pautando-se por regras específicas e fictícias. A propriedade, sendo a causa original dos Fundamentos do Direito Civil, materializa-se sob a forma abstrata do Contrato Social e sob a forma concreta de um Estado (República) regido por um Império da Lei. O pacto a que chamamos de Contrato Social, na medida em que é um momento racional encarregado de coincidir dois modelos de vida incoerentes e opostos, apresenta na formulação problemática esta necessidade: por um lado garantir a propriedade sem que com isso se retire do humano a sua liberdade e força. Características intrínsecas da vontade egoísta que nos caracteriza, e que são a condição necessária de sobrevivência da espécie. De agora em diante, o ser humano enquanto pactuante é pensado como proprietário, o que na sua formulação abstracta implica igualdade, sem que, contudo, deixe de ser livre. Esta será a grande dificuldade do estabelecimento de um tal contrato conciliador, na medida em que a exigência da liberdade que o humano até agora conheceu não é compatível com os novos desejos da espécie. Na medida em que este contrato responde historicamente a uma tentativa de satisfação de uma nova necessidade de sobrevivência, a sua legitimidade recai também na capacidade do mesmo de responder a estas necessidades. O que nos interessa perceber é como o humano apenas sendo proprietário pode ser livre, sendo-o na medida em que parte de uma posição de igualdade. É sobre este novo paradigma que se estudará a formulação da sociedade civil ou política. 2 Ibid., p. 125

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Se há uma razão que justifique a formulação deste contrato violador da condição humana (na medida em que restringe a liberdade e a força), é precisamente o assegurar mais perfeito daquilo que é humano e que este parece retirar. Pretende-se com a passagem a um estado civil, tornar as características humanas mais eficientes, modificando-as para que, podendo usufruir dos seus benefícios, não se sofra dos abusos associados ao exercício da liberdade. Tal usufruto não é possível senão por um acordo legal. Somente desta forma, através de uma regulação contratual, se consegue assegurar a satisfação das necessidades limitando os seus efeitos colaterais. O acto de se abdicar dos elementos que garantem a vida não significa que se renunciou à preservação da vida e a estes se, com o estabelecimento de uma legislação, não só os recuperamos como os temos já adaptados às novas necessidades não contempladas na sua formulação original. É precisamente nesta compensação que se verifica a legitimação do contrato estabelecido (Contrato Social). A renúncia, pode ser descrita como um acto de transição de uma segurança ineficiente da vida numa constante ameaça (Estado de Natureza), para uma segurança perpétua ou regulada, garantida pela soberania dos pactuantes e expressada sob um código de leis formulado por um poder legislativo resultante da vontade e soberania popular efectivado pelo estabelecimento de um contrato que dá origem a um Estado Civil que o autor chama de República . É nesta medida em que podemos entender o Contrato Social como sendo o acto ou contendo os Fundamentos do Direito Civil. E é precisamente este problema fundamental que o Contrato Social pretende resolver. O humano, agora inscrito na lógica contratual, dispõe não de uma litentia (liberdade natural) mas de uma lisentas (liberdade civil), tornando-se infinitamente mais livre na medida em que os limites da sua acção não são determinados pela força do outro que se lhe opõe, mas por sua própria decisão enquanto que soberano e súbdito das leis. É desta forma, e sob o substrato de uma associação igualitária e livre, que se pode enunciar a única cláusula do contrato: “Estas cláusulas, devidamente entendidas, podem ser reduzidas a uma só, a saber, a total alienação de todos os direitos de qualquer associado à comunidade; para que, uma vez que esta tenha sido feita por todos e inteiramente, a situação seja igualitária; e, sendo-a, ninguém terá qualquer interesse em torná-la um fardo para os demais.”3. Desta forma, ao abdicar de 3 Ibid., livro I, cap. 6, p.163

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tudo e inclusive dos direitos à liberdade e à força, ou seja, dos direitos que nos mantêm vivos, ganhamos não só aquilo de que abdicámos mas também de uma igualdade que de outra forma não existiria. Igualdade esta agora garantida pelo Estado, permitindo-nos assim ganhar não só um equivalente do que se perdeu como mais ainda mais poder para preservar o que se tornou nosso. O acesso e manutenção da propriedade ao estarem agora sob a regulamentação de um contrato, ficam sujeitos, não como no Estado de Natureza, à força de cada indivíduo, mas sim a uma liberdade civil — liberdade esta que, se derivada da Vontade Geral, não só é perfeitamente capaz de satisfazer as exigências de liberdade como é capaz de assegurar os limites da mesma. “Simplifiquemos todo o esquema em termos fáceis de comparação. O que o ser humano perde devido ao contrato social é a sua liberdade natural e o seu direito ilimitado a tudo o que o tentar e que ele consiga obter; o que ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que ele possui. Assim, de forma a não confundir estes ganhos, devemos distinguir claramente a liberdade natural, que é limitada apenas pelos poderes dos restantes indivíduos, da liberdade civil, que é limitada pela vontade geral; e devemos distinguir também a possessão, que não é senão o resultado da força ou do direito do primeiro ocupante, da propriedade, que apenas pode ser baseada num titulo legal.” 4 Entramos assim numa nova dimensão social que só nos pode ser explicada pela livre e igualitária associação onde, em vez de destruir a igualdade natural, o pacto fundamental, pelo contrário, substitui a desigualdade física imposta pela natureza ao ser humano por um estado de igualdade moral e legal, assim e apesar de desigual em força ou intelecto, todos se tornem iguais por convenção. Contudo, o contrato que se estabelece não é o verdadeiro elemento/ fundamento que nos permite definir uma sociedade política. Este já está dado aquando o estabelecimento do contrato. Qualquer contrato, para ser estabelecido, necessita de uma base concordante, isto é, que os indivíduos que o assinem sem qualquer tipo de 4 Rousseau, c. VIII. Tal como nos diz Rousseau: “Sob maus governos esta igualdade é somente aparente e ilusória; apenas servindo para manter os pobres na sua miséria e os ricos nas suas usurpações. De facto, as leis são usualmente úteis para aqueles que possuem e injuriosas para aqueles que nada têm; de onde se segue que o contrato social é vantajoso para os humanos na medida em que eles tenham alguma coisa, e nenhum deles tem o necessário.” (nota do autor ao capítulo IX)

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coação — posição igualitária —, aceitem os seus termos. Necessita-se de uma vontade que seja geral e que tenha um objectivo que seja comum. Este objectivo é nos apresentado sob a forma de um Bem Comum que é deliberado pela Vontade Popular. A associação somente por intermédio desta se possibilita e somente com a finalidade de alcançar aquele se consegue legitimar (sobretudo quando nos termos de associação estão implicadas consequências tão profundas como as inerentes ao pacto civil)5. Esta noção de Vontade Popular, para além de constituir o centro do poder soberano de qualquer Estado Político legítimo (República), é também o limite da soberania. É pelo seu carácter central e imprescindível em Rousseau que sem a compreensão deste ponto qualquer tentativa de compreensão da sociedade civil/ política fica invalidado. A legitimidade de uma sociedade humana provém necessariamente e inquestionavelmente desta ideia, mais concretamente, da forma como se a exerce. Veremos na continuação deste trabalho, como do exercício correcto da Vontade Geral (Popular) deriva todo e o único corpo moralmente, colectivamente e juridicamente responsável e capaz de efectivar o contrato social até às suas últimas implicações sem que, no decurso da prática, perca o poder soberano a sua legitimidade.

Parte II: Soberania: A vivência do Contrato (vivência da propriedade) Encontrando-se o humano agora sob um pacto político estabelecido sob condições de plena igualdade e liberdade dos seus pactuantes, com o fim de alcançar um ‹‹bem comum›› tal como entendido pela ‹‹vontade popular››. Há que perceber até que ponto, sendo esta vontade a soberana no seio do mundo civil, se exerce e se limita, uma vez que o problema da soberania somente se coloca pelo facto de agora podermos falar, sob uma verdadeira liberdade, da noção de propriedade, percebendose pelo estudo da soberania, as implicações que tem este conceito na sociedade civil. A primeira característica que necessitamos de aprofundar é a relação dupla que cada indivíduo enquanto cidadão, apresenta neste espaço civil. Esta relação surge associada à vinculação (à prática do contrato), e expressa-se por uma necessidade recíproca complexa de dois níveis: Indivíduo – Estado (poder legislativo) e por Estado – Soberano (poder executivo)6. Apenas assim se pode garantir o correcto 5 cf. cap5, livro I 6 cf. cap. 5, livro I

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exercício da soberania. Nesta relação expressa-se a forma como se articulam as vontades privadas e egoístas que constituem a Vontade Geral com o Estado e viceversa, percebendo-se pela análise desta relação particular e própria à sociedade política, qual a forma e o limite para o exercício do poder pelos seus representantes. Relativamente à primeira relação Indivíduo – Estado, a reciprocidade resume-se na definição dos indivíduos pactuantes (cidadãos) simultaneamente como legisladores e súbditos. Legisladores na medida em que formam o corpo da República (as leis), e súbditos enquanto que submetidos às leis promulgadas e executadas por um poder executivo (governo). Nesta relação cada indivíduo deve ser o mais independente possível dos demais de forma a que na sua constituição o Estado tenha por base elementos livres e iguais, associados somente e apenas pelo desejo comum de alcançar o bem comum, livres de qualquer coação ou inclinação que não esta. Somente assim se pode assegurar que o princípio fundacional de qualquer organização (Vontade Popular ou Geral) se mantém livre de restrições sendo o que é: um conjunto de vontades pessoais, e portanto, egoístas. Relativamente à segunda relação Soberano – Estado, cada cidadão deve ser o mais dependente do Estado possível de forma a que o controlo do poder legislativo, isto é da vontade geral, seja absoluto. Esta relação expressa-se nos seguintes términos: ao se actualizar a lei outorgada pela vontade geral, o príncipe (ou os membros que constituem o poder soberano) são responsáveis pelo processo de execução da lei geral aos casos individuais (poder executivo). Contudo, no exercício deste poder, e devido à soberania popular e à separação dos poderes (princípios que Rousseau identifica como os princípios de um Estado Republicano — a única tipologia de Estado legítima), o governo enquanto representante do poder executivo não deixa, por ser ele o executante, de estar submetido também à vontade anteriormente expressa no acto legislativo (relação Indivíduo – Estado). Assim, a relação que aqui se manifesta é a de cidadãos enquanto súbditos e, ao mesmo tempo, reguladores do poder executivo por intermédio do poder legislativo. Por sua vez, o poder legislativo, ao invés de ficar submetido ao executivo (que não era incomum), coexiste com e, se devidamente elaborado o poder executivo, expressa-se neste sem nunca se confundir com ele.7 7 Rousseau ao implicar a separação de poderes na sua formulação de um Estado legítimo, assegura ao poder legislativo (povo soberano) a manutenção da sua soberania. Caso o poder executivo se manifeste abusivo, isto é, caso o poder legislativo não se manifeste naquele, tem mecanismos que lhe permitem a

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É neste sentido que se pode falar de duas relações de reciprocidade social. Uma enquanto acto fundacional do corpo da República e a outra, manifestando a mesma relação, mas agora numa dimensão de actualização (poder executivo) do promulgado pela vontade popular (leis) constituídas por consciências livres e iguais, sob um Império da Lei. Verificamos que tanto num nível abstrato como num nível de realização prática, nada seria possível sem que no fundo estivesse um cidadão racional, livre e igualitário, ganhando com a instituição política (fundada sob um contrato de leis), o poder de usufruir da sua propriedade. Rousseau expressa desta forma o poder legislativo como sendo a essência da República. Nesta organização, o titular do poder, não é senão o povo que designa as leis na forma do sufrágio universal, onde, por muito que mudem as tipologias do governo, a relação do corpo político à propriedade responderá sempre ao mesmo critério de justiça: à vontade popular e à sua noção de Bem Comum. Fá-lo na medida em que é a única real soberana da vida de todos aqueles que pactuam, pois, a legitimidade de tal acordo subsiste na capacidade de este assegurar os privilégios da existência de propriedade com as características intrínsecas do ser humano; a saber: assegurar uma vida livre (lisentas) e proprietária, por intermédio de uma igualdade ficcionada. “O quê, então, constitui um verdadeiro acto de soberania? Não é um acordo entre um superior e um inferior, mas um acordo do corpo colectivo com cada um dos seus membros; um acordo legal, porque tem o contrato social como seu fundamento; equitativo, porque é comum a todos; útil, porque não pode ter outro objecto que o bem comum; e estável, porque tem a força pública e o poder supremo como garantias. Desde que os súbditos se submetam apenas a tal contrato/acordo, eles não obedecem a ninguém senão à sua própria vontade; e, perguntar até que ponto os respectivos direitos do soberano e dos cidadãos se estendem, é perguntar até que ponto estes podem fazer compromissos entre si, cada um com todos e todos com cada um.”8. Percebendo esta dupla relação, falta-nos perceber então quais os limites da soberania e, para isso, há que definir claramente o conceito. No seu exercício, este define-se pela promulgação e execução de leis. Este foi o mecanismo que a Vontade destituição do governo. A partir do momento em que o governo (poder executivo) atue sem ter em conta o povo, as suas ações deixam de se basear em leis para passarem a ser ilegítimas, baseando-se em interesses que não os da vontade geral. 8 Ibid., livro II, cap. 4, p. 175

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Popular, enquanto que (única) soberana desenvolveu para regular a vida civil, onde, não se restringindo/ aplicando a nenhum caso concreto conseguisse sempre, sem deixar nunca de ser legítima, julgar cada caso. Isto é, a constituição de leis serve somente como uma medida que permite julgar se cada acto se encontra ou não de acordo com a noção de bem comum que foi definida e estabelecida pelo povo soberano. É neste ponto que se revela a importância da divisão dos poderes, estabelecendo-se que o poder responsável pela execução das leis não é o mesmo que as define, sem que contudo, aquele que as executa se encontre independente do poder legislativo. O poder executivo (governo) decide assim sobre casos concretos sem que ao fazê-lo (e se for legítimo), viole ou contradiga a noção de ‹‹bem›› inscrita nos variados códigos legais. Sendo independente, está sempre, na sua acção submetido ao poder legislativo que, em caso último, se verificar que a acção do poder executivo não concorda com a necessidade soberana do povo, tem elementos para o declarar ilegítimo e destitui-lo. Posto isto, podemos ver que as características da soberania (expressada na Lei), são um resultado das especificidades do Contrato Social. Este, de forma a ser legítimo tem que derivar de e compreender na sua essência a vontade geral. Somente por intermédio desta se criam leis e, somente pelo conjunto ou pluralidade das vontades pactuantes, contraditórias e egoístas, se garante na formulação destas mesmas leis a independência de todo o interesse particular. É nesta medida que a soberania se concebe como inalienável e indivisível. Sendo como já se indicou variadas vezes, a capacidade de satisfação da vontade popular sob a designação de bem comum a finalidade do Estado, a sua legitimidade reside também na capacidade que este tem de responder às necessidades que a vontade geral, como pluralidade de vontades egoístas levantou. Ora, se o Estado legítimo e soberano é aquele que não só tem por finalidade responder a estas necessidades, como é capaz de as satisfazer, a soberania manifestase precisamente na delimitação do bem comum e das medidas legítimas para alcançalo. Assim sendo, é no próprio acto mesmo de estabelecimento das leis que formulam a República (Estado), que se verifica a presença e limites do poder soberano. O poder soberano é então indivisível e inalienável porque, a partir do momento em que a vontade popular deixa de ser a verdadeira soberana do Estado, é também o momento a partir do qual o poder executivo, que até aqui era parte indivisível do todo, se assume como a totalidade do poder. Isto significa que não havendo mais uma

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divisão entre poderes, já não encontramos como fundamento da acção do poder soberano a vontade geral e as leis que esta promulgou. A direcção do Estado passa assim a depender da vontade individual daquele que executa as leis. Desta forma, promulgação e execução, como já não se encontram divididas, tampouco têm necessidade de responder a algo que não à vontade do Governo (poder executivo). A vontade que antes era geral, passa somente a ser de uns quantos o que claramente não corresponde às necessidades implicadas no acto fundacional do estabelecimento do contrato. A soberania (entenda-se da vontade geral ou do povo soberano), para de facto o ser, tem necessariamente que ser inalienável e indivisível pois, a partir do momento em que se renúncia ou se deixa de ter o direito de exercer a função legislativa, está-se a renunciar/ impossibilitar a participação das diversas vontades que constituem o corpo social na definição do que é ou do que virá a ser a noção de Bem Comum. Esta recusa/impedimento, longe de criar uma situação de equidade, permite que o interesse privado, característico da vontade humana e que nunca desaparece da lógica contratual, ao não ser confrontado com outros interesses, se actualize, passando actos de vontade particular como actos com carácter de lei. Todavia, para que algo seja Lei, e tendo em conta que lei só o é aquilo que deriva da do contrato civil, não se pode ignorar o facto de que as pretensões de outorgar actos de vontades individuais como lei, não satisfazem os requerimentos daquilo que é ser-se uma lei. Um acto independente da pluralidade dos interesses não é, sob circunstância alguma, num Estado legítimo uma lei. A concordância, embora associada ao bem-estar, é vista, na óptica do contrato como apenas sendo possível sem oposição e, não havendo oposição, o acordo ou concílio sobre o que é melhor para a comunidade fica impossibilitado à partida. Bem Comum e Vontade Geral, conceitos fundacionais, não podem, em circunstância alguma, ser definidos fora daquilo que é a sua condição necessária: o encontro da pluralidade universal de vontades egoístas com interesses particulares. É precisamente neste encontro que reside a essência da soberania. Todo o acto que não tenha por origem este momento fundacional, é para Rousseau, ilegítimo e contra o Estado Civil, contra a República, não sendo nunca uma Lei, mas um puro acto de vontade. “a vontade geral, para que o seja realmente, tem que a ser no seu objecto assim como na



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sua essência; tem que proceder de todos a fim de ser aplicada à totalidade”9. Assim, “Eu digo, então, que soberania, não sendo nada senão o exercício da vontade geral, nunca pode ser alienada, e que o poder soberano, que é de facto a pessoa colectiva, pode apenas ser representada por si mesma;”10 Assim, somente nos falta perceber o que é uma Lei exactamente. Esta é um decreto estabelecido pelo todo ao corpo político (República) e aplicado deste a todos os que pactuaram. Pelo facto de se aplicar a todos, não visa nada em concreto mas delimita ou define o que se deve fazer, ou segundo que parâmetros se deve ajuizar cada situação. “Quando digo que o objecto das leis é sempre geral, quero dizer que a lei considera os indivíduos colectivamente, e as acções em abstracto, nunca o cidadão como individual ou uma acção particular. Assim a lei pode inclusive decretar que há privilégios, mas não os pode conferir a uma pessoa em concreto;”11. É devido às características do que é “ser-se” uma lei, que não se pode dizer, sob nenhuma circunstância, que elementos do Estado possam estar acima ou fora destas. Os elementos que constituem o poder executivo, na medida em que são parte integrante da República, estão assim sujeitos às leis formuladas pelo corpo político. Dizer isto significa que também eles, como parte do corpo político delinearam os limites legítimos de tais leis. Assim, tanto estes como todos os outros membros do corpo político, na medida em que actuaram como vontade geral, estão igualmente implicados na Lei. Isto é, na sua criação e na sua execução, não podendo portanto, ninguém e em nenhuma circunstância dizer que a Lei é imoral ou ilegítima. O que se pode dizer sim, é que o poder executivo ou governo, na sua acção de executor de leis, não respeita aquilo que foi previamente acordado como bem comum. No entanto e para todos os efeitos, a Lei formulada, se originada por processos legítimos, não pode ser nunca colocada em questão por muito lesiva que ela seja para os indivíduos. O carácter abstracto e universal da Lei, por muito desiguais que resultem as suas consequências, assegura a sua legitimidade na medida em que reflecte a vontade geral, não sendo portanto, sob nenhuma circunstância um atentado à liberdade do(s) cidadãos implicados. Pelo contrário, a não obediência a esta Lei é que de facto se traduz como sendo um atentado à vontade geral que a promulgou, independentemente de o juízo ter sido bom ou mau. A não obediência implica rejeitar-se a noção bem 9 Ibid., livro II, cap. 4, p.174 10 Ibid., livro II, cap. 1, p.170 11 Ibid., livro II, cap.6, p.179

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comum adoptada pela comunidade. Assim, a Lei, se derivada da vontade popular, e independentemente das suas consequência serem nefastas, é justa e deve ser obedecida enquanto estiver de acordo com a noção de bem comum do povo que a promulgou. Todo aquele que usurpe a lei ou que reclame da sua falta de justiça e de representatividade está na verdade a criticar a sua própria actuação enquanto membro efectivo do Estado e enquanto cidadão legislador. A Lei, se bem derivada, isto significa: se obedecer aos critério de soberania definidos pelo contrato, sendo universal e indivisível na sua formulação e aplicação, não tem espaço para injustiças. Em última instância, é pela análise destas que nos é possível perceber as implicações da noção de propriedade na formulação do corpo político que originou este código legal. O código legal, na medida em que só tem sentido em sociedade, não é mais do que a forma como cada Estado entende e se organiza para regular aquilo que é o seu fundamento: a Propriedade.



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Conclusão A partir do momento em que as acções de um governante, de um poder executivo, ou a partir do momento em que vemos um poder legislativo que não dependa, em última instância da soberania popular, estamos então perante um Estado não democrático que longe de responder aos ideias da República (única forma legítima de Estado), não se pode senão considerar como um estado ilegítimo sob falsas pretensões, e, por tanto, incapaz de responder às necessidades dos indivíduos. Este poder executivo (Governo), ao concentrar em si os poderes, estabelece leis que, ao não terem ou não dependerem da Vontade Geral, não satisfazem as condições necessárias daquilo que significa soberania, representando de forma ilegítima os indivíduos pactuantes, exercendo o seu poder para, contrariamente à sua função legítima, satisfazer a vontade do(s) elemento(s) que constituem o poder, promulgando no lugar de leis, actos de vontade. Torna-se, uma vez exposta, a noção de soberania, claros os limites legítimos de um qualquer poder político/civil, não estando portanto nenhum ser humano vinculado a um Estado que, na sua essência, não responda às exigências da vontade geral e à sua noção de bem comum, e que não se encontre sob uma gestão ou soberania popular, dividida de acordo com a divisão tripartida dos poderes. Somente segundo estes critérios, e independentemente da forma de Governo determinada pelo povo soberano, se pode dizer que existe um Estado legítimo, Estado este que se dá pelo nome de República capaz de satisfazer as necessidades não naturais criadas pela noção de Propriedade. Estas, são as verdadeiras e profundas implicações que se podem derivar da introdução na vida humana desta nova e fundamental noção, a verdadeira responsável pelo surgimento e manutenção da sociedade civil.



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Bibliografia Rousseau, Jean-Jacques, The Social Contract and The First and Second Discourses. Edited and with an introduction by Susan Dunn; with essays by Gita May, Robert N. Bellah, David Bromwich and Conor Cruise O’Brien, New York: Yale University Press, 2002



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