O problema da responsabilidade civil em Ernest Weinrib

June 24, 2017 | Autor: G. Fernandes | Categoria: Jurisprudence, Filosofia do Direito, Theory of Law, Responsabilidade Civil
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SÃO PAULO LAW SCHOOL OF FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS – FGV DIREITO SP RESEARCH PAPER SERIES n. 131 – LEGAL STUDIES

O problema da responsabilidade civil objetiva em Ernest Weinrib

Gabriel de Carvalho Fernandes1

2015

This paper can be downloaded without charge from FGV DIREITO SP’s website: http://direitogv.fgv.br/publicacoes/working-papers and at the Social Science Research Network (SSRN) electronic library at: http://www.ssrn.com/link/Direito-GV-LEG.html. Please do not quote without author’s permission

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Graduando do 4o ano da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP). Agradeço a Thiago Reis pela orientação e leitura do trabalho final, que foi apresentado a ele na disciplina Direito da Responsabildiade II, e a Catarina Barbieri, que gentilmente discutiu comigo a teoria de Weinrib e escutou minhas ideias.





Resumo: Ernest J. Weinrib explica a responsabilidade civil como uma unidade normativa que integra a realização e o sofrimento do dano que é resolvido em um litígio bipolar entre autor e réu. Sua teoria é baseada em uma visão formalista de mundo, a partir da qual Weinrib busca justificar os fundamentos da responsabilidade civil através de sua inteligibilidade imanente. Este trabalho pretende justamente testar os limites desta concepção formalista da responsabilidade civil. Meu argumento é o de que Weinrib teria relutância em admitir um sistema misto entre responsabilidade civil subjetiva e objetiva, como o brasileiro. Para isto, esta pesquisa buscará expor a empreitada formalista de Weinrib, bem como sua fundamentação da responsabilidade civil. Em seguida, será exposta a crítica dirigida a ele, especificamente a cerca da separação entre o direito e o mundo real que sua teoria engendraria. Na conclusão, busco ressaltar como a teoria weinribiana coloca em destaque o papel da coerência na dogmática, um debate ainda bastante incipiente no Brasil. The problem of the strict liability in Ernest Weinrib Abstract: Ernest J. Weinrib comprehends private law as a normative unity, which encompasses the infliction and the suffering of harm, resolved in a bipolar dispute between defendant and plaintiff. His theory is based in a formalist view of the world, where the foundations of private law are justified on the grounds of its immanent intelligibility. This paper intends to test the limits of such conception of private law. I argue that Weinrib would be reluctant to support a legal system that mixes strict liability and negligence liability, as the Brazilian does. To accomplish that, I first expose Weinrib’s formalist endeavor, and his theory of private law as well. Afterwards, some of the criticism aimed at his views will be considered, specifically those regarding the separation between the law and the real world that his theory would ensue – the so called “detachment issue”. In my final notes, is pointed out how the role of coherence in legal theory is underdeveloped in the Brazilian debate.



Sumário 1. Introdução .................................................................................................................. 3 2. A empreitada weinribiana .......................................................................................... 5 2.1. O formalismo jurídico ......................................................................................... 7 2.2. A fundamentação da responsabilidade civil ..................................................... 10 3. O vão entre a teoria e o mundo real ......................................................................... 13 4. O problema da responsabilidade objetiva ................................................................ 16 5. Conclusão................................................................................................................. 20 6. Bibliografia ..................................................................................................................



Agathon: Allen: Agathon: Allen:

But it was you who proved that death doesn't exist. Hey, listen - I've proved a lot of things. That's how I pay my rent. Theories and little observations. A puckish remark now and then. Occasional maxims. It beats picking olives, but let's not get carried away. But you have proved many times that the soul is immortal. And it is! On paper. See, that's the thing about philosophy - it's not all that functional once you get out of class. Woody Allen2

1. Introdução Ernest J. Weinrib, em sua obra The Idea of Private Law, situou a responsabilidade civil no contexto do direito privado. Enxergando-a a partir de si mesma, nos termos de sua inteligibilidade interna, Weinrib argumenta que o conceito de responsabilidade civil incorpora uma correlação de direitos e deveres que ressalta a centralidade da causalidade do dano e a distinção entre dolo e culpa. Baseando sua perspectiva de responsabilidade na justiça corretiva aristotélica e na filosofia kantiana de direito, ele argumenta que o direito privado deve ser entendido como uma empreitada coerente e auto-compreensível. Ao seu ver, a responsabilidade civil é a busca de justiça entre duas partes ligadas pelo litígio e a relação de dano intrínseca a ele. Desta perspectiva, ele expõe sua teoria da responsabilidade civil como uma unidade normativa que integra a realização e o sofrimento do dano que é resolvido em um litígio bipolar entre autor e réu. De acordo com Weinrib, o que é necessário para compreender a ideia de direito privado é, além deste conceito de justiça corretiva, é uma forma de conhecimento formal – o formalismo. A teoria formalista fornece critérios para qualquer justificação jurídica. Estas devem ser (i) “internas ao direito”, excluindo portanto qualquer objetivo exterior à relação jurídica – a “política”; (ii) “coerentes”, excluindo a pluralidade de princípios justificatórios; e (iii) baseados em um “direito abstrato”. Reduzido a isto, o direito privado seria apenas forma, e não uma substância instrumentalizável para se atingir determinados fins. “O único propósito do direito privado”, ele diz, como mencionado no início do texto, “é ser direito privado”.3 Isto nos trás à este trabalho. O interesse de Weinrib nesta abordagem filosófica e bastante conceitual é o de separar o joio do trigo, o direito da política. O seu modo de fazer isto é através de uma empreitada formalista. Uma das principais críticas desta 2 3



Woody Allen, My Apology. In: Side Effects. London: New English Library, 1981: pp. 40-41. WEINRIB, 2012: p. 5

abordagem é a de que ela criaria um “mundo jurídico próprio” ao explicar o direito a partir de uma perspectiva formal. Nesse sentido, faria uma descrição empobrecida do direito, impondo um afastamento entre o que é jurídico e o que é real. O que busco aqui é analisar esta crítica específica à teoria weinribiana. Isto pois acredito que hoje o formalismo é uma concepção pouco clara e muito corrente no senso comum. Concordo com Dimitri Dimoulis quando ele afirma que “a única certeza é que raramente encontraremos referencias ao formalismo como abordagem consistente e frutífera”4, e ao meu ver uma boa maneira de fazer isso é analisar até que ponto a normatividade da teoria de Weinrib é sustentável. No fundo, todo o caminho será uma preparação teórica para analisar o problema da responsabilidade objetiva em sua teoria formalista, que é caracterizada como um “erro jurídico”. Assim, a primeira seção deste trabalho estará dedicada a expor e compreender a empreitada formalista weinribiana, ainda que de maneira sucinta. Em seguida, será exposta a crítica da separação entre direito e mundo real. Para poder se fazer uma análise rigorosa do argumento e suas implicações para a teoria de Weinrib, serão analisadas em específico dois autores: Peter Cane e Robert Rabin. Ambos autores escreveram resenhas sobre o The Idea of Private Law, e em ambas esta crítica é exposta de modo a ressaltar o que seria uma grande falha da teoria de Weinrib. Rabin, por exemplo, afirma que Weinrib “cria seu próprio universo de direito privado, sensível às sintéticas possibilidades do pensamento filosófico e à matização dentro da doutrina de responsabilidade”.5 Do mesmo modo, Cane expressa o mesmo problema quando reconhece que “meu principal problema com a teoria do direito privado de Weinrib é que ao excluir considerações distributivas, Weinrib termina por fornecer uma exposição incompleta da estrutura do direito privado e, por isso, ele descreve incorretamente a realidade”.6 O mérito destas objeções não é foco deste trabalho. Contra-argumentos já forma apresentados, por exemplo, nos moldes daquele desenvolvido por Catarina Barbieri. Em sua dissertação de mestrado7, Barbieri afirma que 4

DIMOULIS, 2011: p. 213. Ele ressalta a carga negativa do termo. Barbieri compartilha do mesmo diagnóstico. Cf. BARBIERI, 2011. Weinrib tem a mesma percepção ao afirmar que o formalismo “serve principalmente como um termo pejorativo empregado de forma frouxa”. Ver WEINRIB, 2011: p. 800. Aproveito para deixar claro que todas as citações realizadas de textos em inglês foram livremente traduzidas por mim. 5 Ver RABIN, 1996: p. 2279. 6 CANE, 1996: p. 487. 7 BARBIERI, 2008: p. 106.



esses críticos não compreenderam o projeto teórico geral de Weinrib e, portanto, não compreenderam o papel desempenhado pelo formalismo como uma teoria de conhecimento jurídico. Negligenciando os fundamentos da própria teoria que analisam, esses críticos terminam por interpretar as categorias da justiça corretiva e distributiva como se a pretensão de Weinrib fosse efetuar a mera descrição do “mundo jurídico” de direito privado e de responsabilidade civil.

Seu ponto essencialmente é o de que Rabin ou Cane não consideram o método formal de conhecimento de mundo de Weinrib, de forma que suas objeções não seriam suficientes para desmontar o projeto teórico formalista. Enfim. Com esta discordância em vista, se abordará o tratamento teórico dado por Weinrib à responsabilidade civil objetiva. Neste momento, o que se espera fazer ao analisar a visão do autor sobre o sistema de responsabilidade que ele defende em sua obra em contraste com outros modelos – o brasileiro e o neozelandês – é compreender quais são os limites e vantagens da normatividade de sua teoria. A pergunta essencial nesse momento será talvez uma reformulação da inquietação dos críticos da teoria weinribiana: até que ponto é uma vantagem sustentar uma teoria que considera um erro parte de seu objeto?

2. A empreitada weinribiana Esta seção apresentará a teoria weinribiana de modo a que sua explicação da responsabilidade civil fique clara a partir de seu método formalista.8 O formalismo é um ponto de partida necessário para sua compreensão do direito, pois é uma maneira de justificação legal.9 “O aspecto justificatório do direito fornece o ponto de vista a partir do qual é possível tratar essas questões”, diz Weinrib. “subjacente a qualquer elemento numa relação jurídica está alguma razão que, supostamente, o justifica.”10 Assim, serão abordadas as características presentes no empreendimento justificatório do direito: sua natureza, sua estrutura e seu fundamento; aliadas à sua característica, tipo e unidade. Compreender o embasamento formalista da teoria de Weinrib possibilita discernir a diferença que o autor faz entre o direito e a política, como também dá condições para que se entenda sua teoria da responsabilidade civil, pois sua 8

De maneira alguma a exposição feita é exaustiva da obra de Ernest Weinrib. Uma abordagem mais profunda e detalhada pode ser vista, em português, em BARBIERI, op. cit.. 9 WEINRIB, 2011: p. 800. 10 WEINRIB, idem: p. 802.



inteligibilidade imanente possibilita que ela seja compreendida a partir de si mesma. Ao articular sua concepção de direito privado, outros dois conceitos chaves surgem para Weinrib, ainda que de maneira interdependentes do formalismo: a justiça corretiva aristotélica e o direito kantiano. A relação entre essas três ideias fornece a fundamentação da responsabilidade civil. Assim, apresentarei estas ideias em dois momentos distintos, subdividindo esta seção. Primeiro, será abordado o formalismo jurídico da maneira como é formulado por Weinirb. Em seguida, em um segundo momento, será exposta sua decorrente concepção de responsabilidade civil e suas bases normativas.11 O foco desta reconstrução teórica na responsabilidade civil se justifica tanto pelo fato de Weinrib dar atenção quase que exclusiva a este ramo do direito privado, como também por ser uma maneira de preparar o terreno para a discussão da responsabilidade civil objetiva nas seções seguintes. Antes, entretanto, um leitor atento faria uma pergunta que pode ser bastante relevante para se compreender a teoria weinribiana: qual é o objeto deste empreendimento teórico? A todo momento, Weinrib diz estar teorizando acerca do “direito privado”, que seria um gênero que abrangeria a responsabilidade civil. Diz ele que “ao atender à natureza e implicações da justiça corretiva, este livro apresenta uma teoria geral do direito privado ao invés de apenas uma teoria da responsabilidade civil.” 12 Entretanto, direito privado, em suas considerações, não passa do direito contratual, a responsabilidade civil e o direito restitutório. O direito privado de Weinrib, portanto, diz pouco sobre o direito de propriedade, o direito societário ou o direito de família. Isso, entretanto, não faz sua teoria incompleta, no sentido de que não estaria abordando grandes bocados do que se pensa que uma teoria deveria fazer ao buscar explicar “o direito privado” no sentido mais amplo e comum do termo. De fato, sua tese é a de que o melhor entendimento da estrutura do direito privado está na compreensão do conceito de justiça corretiva. Nesse sentido, Cane afirma que “o que Weinrib nos ofereceu, então, não é uma teoria da estrutura do 11

O sentido de “normativo”, neste trabalho, se refere à prescrição de algum valor. Assim, quando se dizer que Weinrib dá à justiça corretiva normatividade a partir do direito kantiano, se quer dizer que a forma de justiça em si é apenas uma maneira de organização de uma relação obrigacional que adquire consequências externas a si mesma a partir do momento em que incorpora a noção de autonomia de Kant. Da mesma maneira, uma teoria é “normativa” no sentido em que prescreve determinadas qualidades ao seu objeto de estudo. Weinrib, por exemplo, pressupõe uma coerência imanentemente inteligível no direito privado. Estes dois exemplos de significado de normatividade ficarão mais claros ao longo do texto. 12 WEINRIB, 2012: p. xiii.



direito privado, mas uma teoria das partes do direito privado que estão preocupadas com a proteção da distribuição existente de recursos de distúrbios. A teoria dele é uma teoria sobre a resolução de disputas de direito privado.”13 Esta forma de leitura não necessariamente implica em um demérito da teoria de Weinrib, e funciona mais como uma clarificação de seu escopo do que uma crítica propriamente dirigida ao autor.14 Ainda que este esclarecimento seja importante para se discutir a responsabilidade objetiva a frente, adiantar esta questão implicaria queimar etapas necessárias para a compreensão do pensamento weinribiano. Afirmei que, para isso, esta seção estaria dividida em dois momentos, de modo que a fundamentação da responsabilidade pudesse ser compreendida a luz do formalismo jurídico. Compreende-lo é dar o primeiro passo no edifício teórico do direito privado construído por Weinrib.

2.1. O formalismo jurídico O formalismo jurídico é essencial para compreender a dimensão interna do direito privado, pois representa sua aspiração de ser “uma prática normativa imanentemente inteligível.”15 De acordo com Weinrib, o formalismo é uma teoria de justificação da interação entre partes que consideram seus interesses como distintos e o papel dos tribunais em resolver a consequente controvérsia. Assim, a expressão essencial da análise formalista é a relação jurídica, pois esta é a materialização da correlatividade entre o autor e o réu. No caso da responsabilidade civil, portanto, o objeto de análise é a correlatividade estabelecida entre o réu-causador da ofensa e o autor-vítima do dano. Correlatividade, nesse sentido, é uma referencia à organização do litígio judicial privado, da relação bilateral entre partes decidida por um juiz. Além desta relação observada em juízo, outras expressões desta correlatividade podem ser vistas nos conceitos essenciais para o direito privado de Weinrib – o nexo de causalidade, por exemplo, que vincula o dano da vítima e o ato do réu. 13

CANE, idem: p. 476. As críticas que ele dirige à teoria weinribiana serão brevemente comentadas na seção seguinte. 14 A tradição a qual Weinrib estaria inserido, nesse sentido, o commom law, tem uma visão de direito privado distinta daquela da tradição continental. Isso de maneira alguma deve atrapalhar a compreensão da teoria formalista, mas apenas evitar críticas rasas do tipo “Weinrib propôs uma teoria do direito privado que ignora a propriedade ou o direito de família”. 15 WEINRIB, 2011: p. 823.



Para o autor, “subjacente a qualquer elemento numa relação jurídica está alguma razão que, supostamente, o justifica. A preocupação formalista com a estrutura de uma relação jurídica é, então, uma preocupação com a conexão entre razões justificadoras.”16 Assim, o primeiro ponto que deve ser esclarecido é o de que, entendendo o formalismo como um empreendimento justificatório, Weinrib discute a justificação da dogmática do direito privado. Ele aponta três características essenciais: sua natureza, sua estrutura e seu fundamento. 17 Por natureza da justificação, referimo-nos às condições mínimas que qualquer razão deve observar para que seja justificatória. Por estrutura de justificação, entende-se o padrão mais abstrato e abrangente de coerência justificatória. Por fundamento, compreendem-se pressupostos sobre a ação que, em ultima instância, esclarecem o caráter normativo de qualquer justificação.

A natureza da justificação é essencial para Weinrib, pois ela dá autoridade normativa para o material por ela suportado a medida em que ela preencha seu próprio espaço conceitual.18 Assim, uma visão baseada na justiça corretiva aristotélica conseguiria preencher de modo único todo o “espaço conceitual” da justificação necessária para a correlatividade em uma relação de obrigação extracontratual. Nesse sentido, visões funcionalistas, que busquem justificar a responsabilidade civil a partir da dissuasão e compensação, não operariam como uma justificativa, pois não seriam capazes de explicar a correlatividade da relação entre partes que o formalista estaria preocupado em demonstrar. Esta “integridade” de razão na justificação é a garantia de coerência na base do sistema.19 Antes de passar à discussão da inteligibilidade imanente 20 , é possível demonstrar como este empreendimento justificatório impacta a fundamentação da responsabilidade civil. Weinrib, ao tomar como este todo conceitual a ser justificado a correlatividade das partes, afirma que a estrutura que a representa de maneira mais abstrata é a justiça corretiva aristotélica. Ao abordar as formas de justiça de Aristóteles, ele diz que 16

WEINRIB, idem: pp. 802-803. Ibidem, idem: pp. 803-804. 18 Ibid., id.: p. 807-811. 19 Em suas palavras, “a incoerência na relação reflete a presença de razões justificatórias mutuamente independentes. A coerência, por outro lado, é a união num todo, é a justificação integrada de todas as razões justificadoras que fazem parte de uma relação jurídica.” Ibid., id.: p. 812. 20 A questão da inteligibilidade é relevante, pois permite distinguir a “forma” do “conteúdo”. Weinrib afirma que a forma de algo é se configura por três aspectos: o caráter, que é a soma das características essenciais da coisa; a unidade, pela qual a coisa é cognoscível de maneira irredutível; e o tipo, pelo qual a coisa pode ser identificada como pertencente a uma categoria classificável. Ver WEINRIB, 1988: pp. 959-960, e WEINRIB, 2012: pp. 26-28. 17



justiça corretiva e justiça distributiva são categoricamente diferentes e mutuamente irredutíveis (…). Esta diferença significa que estas formas de justiça não podem ser dissolvidas uma na outra, tampouco integradas em uma forma mais ampla.21

A estrutura da justificação necessária ao formalismo, nesse sentido, é a maneira pela qual Weinrib evita o sincretismo metodológico de confundir justificações distributivas com justificações corretivas. Do mesmo modo, o fundamento da justificação é explicado por ele a partir da razão prática do indivíduo em particular, cujas ações livres e dotadas de finalidade são reguladas pelo direito.22 A justiça corretiva pressupõe a noção de ação, e o direito natural kantiano é a maneira pela qual esta noção de ação dá sentido para à correlação entre o causar um dano e o sofrer um dano.23 De que maneira, entretanto, essa empreitada justificatória auxilia a compreender o direito de um ponto de vista interno a ele? Weinrib essencialmente apresenta razões. A primeira seria a de que uma análise formal prescinde de elementos que uma análise funcionalista requer, necessitando apenas de pressuposições internas do direito. Assim, por isso o autor quer dizer que “implícita na justificação está a aplicação coerente de uma justificação ao que ela justifica; implícita na coerência está a estrutura unitária daquilo que é coerente; implícita nessas estruturas está a noção abstrata de ação.”24 Em segundo lugar, “o formalismo tenta entender o pensamento jurídico e o discurso em seus próprios termos.”25 Nesse sentido, o que Weinrib pretende ressaltar é que o formalismo, em contraste com outras abordagens funcionalistas, busca compreender o direito a partir de sua linguagem e conceitos próprios, e não traduzilos para outra racionalidade. O jurista que faz a análise econômica de uma relação jurídica, nesse sentido, antes de averiguar a existência de um direito de um autor em resposta ao ilícito sofrido nas mãos de um réu, se concentraria nas causas da ação como um mecanismo de dissuasão de comportamentos ineficientes, por exemplo. Por fim, Weinrib destaca o papel da coerência, que seria por si um conceito interno: a coerência implicaria na presença de uma estrutura unificada que integre as partes que 21 WEINRIB, 2011: p. 814-815. 22 WEINRIB, idem:: p. 820. 23 Ibidem, id.: p. 821. 24 Ibid., id.: p. 824. 25 Ibid., id.

a compõe. Assim, “a coerência justificatória não aponta para o exterior, para um ideal transcendental, mas, sim, para o interior, para uma inter-relação harmoniosa entre os componentes da estrutura de justificação.”26

2.2. A fundamentação da responsabilidade civil Explicitadas as premissas formalistas de Weinrib, é hora de passar pela fundamentação normativa da responsabilidade civil da forma como ele a apresenta. Quanto a esta ordem de prosseguimento, o próprio Weinrib afirma que parte “da premissa que o direito privado é um exercício de coerência justificativa que pode ser entendido de sua própria perspectiva imanente.”27 Esta seção buscará sintetizar como o autor situa a forma das relações privadas na justiça corretiva aristotélica e dá a elas normatividade a partir do direito kantiano. Um último movimento será o de averiguar brevemente de que maneira a responsabilidade civil teorizada por Weinrib reflete a correlatividade entre direitos e deveres extraídos deste arcabouço teórico. Estas três breves tarefas, aliadas à compreensão de seu método formalista, darão base para compreender as críticas dirigidas ao autor de que maneira elas se relacionam com sua concepção de responsabilidade objetiva. Weinrib rastreia à teoria de justiça aristotélica a forma de pensar as relações jurídicas. “Implícita na investigação de Aristóteles é questão básica do direito privado: o que permite um autor específico processar e se reaver de um réu específico?”28 Desta pergunta fica clara a relevância dada a relação jurídica. Isto pois resolver esta questão implica em explicar a conexão direta entre um demandante e um demandado, que aos olhos de Weinrib é uma estrutura justificatória unitária e coerente. Nesse sentido, para ele, “sem uma concepção como a de Aristóteles, a conexão de direito privado entre as partes se torna um mistério.”29 Este talvez seja o momento de retomar ao que Aristóteles diz e de que maneira sua teoria é incorporada por Weinrib. Do mesmo modo que o filósofo grego, Weinrib considera a existência de duas formas de justiça imanentes às relações jurídicas: a justiça corretiva e a justiça distributiva. A primeira é considerada por Weinrib como a forma mais abstrata de coerência explicativa das relações de direito privado, pois 26 Ibid., id.: p. 826. 27

WEINRIB, 2012: p. 114. WEINRIB, idem: pp. 56-57. 29 Ibidem, id.: p. 63. 28



guarda em si a característica central do direito privado – a correlatividade entre as partes. A última dispõe uma maneira de divisão de benefícios ou ônus entre pessoas de um grupo sob determinado critério. Quanto a leitura realizada por Weinrib, deve-se ter em conta que esses tipos de justiça são tomados como padrões conceituais gerais, e não como ideais substantivos.30 Isso implica que a pretensão de coerência interna da justiça corretiva requer a manutenção de uma estrutura bipolar, enquanto a da justiça distributiva exige a manutenção do critério escolhido para se preservar a racionalidade da distribuição.31Para Weinrib, a justiça corretiva e distributiva seriam dotadas de força moral. Elas transporiam para as relações externas ao direito a noção kantiana de obrigatoriedade, pressupondo, nesse sentido, uma normatividade implícita à estas formas de justiça.32 O argumento é o de que a justiça corretiva e a justiça distributiva, por se tratarem de construções irredutíveis e abstratas, tem uma função meramente estruturante, sem, entretanto, prescrever valor às relações organizadas. Este papel é dado ao direito kantiano. “De um lado, a normatividade kantiana é pressuposta nas formas como uma condição de sua existência justificatória”, ele diz, enquanto “do outro, as estruturas das duas formas são elas a expressão jurídica dessa normatividade kantiana pressuposta.” 33 Assim, as características da justiça corretiva estariam relacionadas com a normatividade da forma. As partes são tratadas a partir de uma igualdade formal que foi violada e deve ser restaurada. Weinrib afirma que “de fato, a justiça corretiva pode ser justamente descrita em termos kantianos (…) como o ordenamento de interações imediatas que pessoas morais kantianas iriam reconhecer como expressivas de sua natureza.”34 Com base nesta visão de Weinrib, Barbieri assenta que “em termos kantianos, a justiça corretiva deve ser entendida como a relação entre pessoas que se estabelece a partir da premissa de que cada pessoa moral tem o dever de não interferir de forma moralmente errada ou ilicitamente com a integridade física e com a propriedade das outras personalidades morais e, portanto, cada pessoa moral tem o direito a esta não 30

WEINRIB, 1988: p. 979. WEINRIB, idem: p. 980. 32 Diz WEINRIB: “uma vez que o direito kantiano é implícito nas formas de justiça, elas são baseadas em uma concepção de normatividade – de fato, em uma concepção particularmente estringente de normatividade.” Ibidem, id.: p. 996. 33 Ibid., id.: p. 996. 34 Ibid., id.: p. 997-998. 31



interferência em sua esfera física e em seus bens.”35 Ela nota que que o argumento de Weinrib, ao dar relevância para a forma do livre arbítrio, busca tornar o direito kantiano congruente com a descrição aristotélica de justiça corretiva.36 Dessa maneira, o que Weinrib propõe é que a igualdade da justiça corretiva aristotélica deve ser compreendida em termos kantianos como a igualdade entre vontades livres de pessoas morais. Nesta relação, as partes ocupariam uma mesma posição normativa que poderia traduzir os ganhos e perdas da justiça aristotélica para a correlação normativa entre direito e dever de Kant. Nesse sentido, é a partir desta normatividade intrínseca ao direito privado que são excluídas justificações exteriores à relação jurídica. As condições socioeconômicas, exteriores à relação jurídica criada pelo dano infligido, por serem parte da dimensão da “política” não seriam elementos explicativos desta relação por não serem abrangidos pela autonomia kantiana ou por não expressarem a correlatividade da relação. No caso do direito privado, a medida em que o aspecto essencial da relação é a bipolaridade, sua coerência necessariamente é um problema de ajuste ao formato da justiça corretiva, e não da distributiva.37 O conceito de direito kantiano “preencheria” a forma da justiça corretiva de modo a satisfazer esta correlação: o direito representa a posição moral ocupada pelo autor-vítima e o dever representa a posição do réucausador. A correlatividade se configura do momento em que direito e dever conectam as partes sob uma mesma justificativa, preservando os critérios impostos pela forma de justiça corretiva (bipolaridade e igualdade).38 A conclusão de Weinrib de responsabilidade civil enquanto uma expressão da justiça corretiva demonstra o papel da correlatividade na relação jurídica. Ele afirma que “por causa desta correlatividade, a relação jurídica privada forma uma unidade normativa que integra o fazer e o sofrer do dano que se encaixa no litígio bipolar entre autor e réu.”39 Para ele, a correlatividade entre direitos e deveres tem a extensão conceitual necessária para determinar a responsabilidade. Ainda, somente por vincular tanto autor e réu, a solução do conflito (indenização, etc.) mantem a correlatividade entre direitos e deveres: a justificação da obrigação do réu de pagar é correlata à justificação do autor de ser pago. 35

BARBIERI, 2008: p. 59. BARBIERI, idem: p. 83. 37 WEINRIB, 2012: p. 74. 38 WEINRIB, idem: p. 123. 39 Ibidem, id.: p. 142. 36



Para Weinrib, a dimensão normativa desta forma de justiça seria confirmada na organização do direito positivo. As regras positivadas refletiriam a normatividade imanente às formas de justiça por meio da operação das soluções das controvérsias (judicial remedies).40 Essa concepção de responsabilidade dá ao tribunal uma função adjudicativa muito própria. A função do juiz é a de especificar o que a relação entre causador e vítima requer para que, naquela disputa em particular, possa ser atingida a igualdade formal das partes anterior ao dano. Como esta espécie de decisão judicial envolve uma justificação que pertença somente à relação entre partes enquanto autorvítima e réu-causador, o tribunal não deve se pautar por objetivos políticos. A adjudicação no direito privado, assim entendida, opera entre as partes sem promover qualquer espécie de interesse público.41

3. O vão entre a teoria e o mundo real Como era de se esperar, a teoria de Weinrib foi extensamente criticada, seja por sua proposição e defesa do formalismo, seja por sua rejeição de visões funcionalistas da responsabilidade civil. Diversas objeções foram apresentadas. Martin Stone, por exemplo, questiona até que ponto a leitura de Weinrib de Aristóteles e Kant é fiel à obra destes autores.42 Com o fim de contextualizar e basear as implicações do problema da responsabilidade objetiva na teoria weinribiana, esta seção se concentrará em uma objeção específica: a de que Weinrib faria uma distinção entre a realidade jurídica e o mundo dos fatos, de maneira que ele ou estaria fazendo uma descrição falha do “mundo real”, ou uma construção incompleta do “mundo teórico”. Entender esta crítica é relevante, pois no limite abordam o problema da normatividade na teoria de Weinrib, que ao considerar a responsabilidade objetiva um “erro”, estaria forçando uma teorização da prática jurídica ao invés de descrevê-la. O papel explicativo da correlatividade, tão central para Weinrib, nesse sentido, é colocado em questão ao não dar conta da presunção de culpa de uma das partes. Este ponto, entretanto, só será abordado na seção seguinte. Por enquanto, Robert Rabin e

40

WEINRIB, 1988: p. 999. WEINRIB, 2012: p. 144. 42 STONE, 1996. 41



Peter Cane tem algo a dizer sobre a fundamentação da responsabilidade civil a partir de uma teoria formalista. Peter Cane tem como maior problema a desconsideração da justiça distributiva por Weinrib do espaço justificatório de uma relação jurídica de responsabilidade civil. 43 Para ele, a teoria weinribiana estaria simplificando um objeto de maior complexidade ao explica-lo somente através de um formato corretivo. Assim, Cane acredita que Weinrib faz uma descrição empobrecida da realidade de seu objeto de estudo. Como anteriormente colocado, ele se coloca da seguinte maneira frente à teoria formalista: “meu principal problema (…) é que ao excluir considerações distributivas, Weinrib termina por fornecer uma exposição incompleta da estrutura do direito privado e, por isso, ele descreve incorretamente a realidade”. 44 Cane, ao abordar as questões centrais de Weinrib, atribui duas grandes críticas a sua teoria. A primeira, como apontado, se refere à ênfase exclusiva na forma da justiça corretiva. A segunda se refere a noção weinribiana de que o fim do direito privado é ele mesmo. Para Cane, a conclusão de Weinrib não decorre de sua premissa.45 Uma coisa é dizer que não se pode descrever completa e propriamente um fenômeno por prescrever a ele objetivos. Outra, completamente distinta, na visão dele, seria concluir que por isso o fenômeno não tem objetivos para além de sua existência. Assim, o que Weinrib, em sua opinião, teria demonstrado é que determinadas funções atribuídas ao direito privado são ou completamente erradas ou questionáveis. Entretanto, Weinrib não teria com isso mostrado que o direito privado não tem propósitos além do de ser a si mesmo. Portanto, para Cane, “normativamente, sua teoria [a de Weinrib] é pouco atraente porque requer que nós classifiquemos áreas significantes do direito privado em geral e da responsabilidade civil em particular como erros.”46 Este descolamento entre teorização e realidade jurídica aparece de maneira mais clara na resenha de Robert Rabin.47 Ao seu ver, o empreendimento teórico weinribiano “é debilitado por seu caráter normativo altamente conceitual e por sua indiferença à preocupações funcionais sobre o impacto da responsabilidade civil na

43

CANE, 1996: p. 487. CANE, idem: p. 487. 45 Ibidem, id.: p. 484. 46 Ibid., id.: p. 484. 47 RABIN, 1996. De maneira mais detalhada, ele organiza as críticas ao “credo formalista” em três frentes: o caráter intrínseco do direito privado, a relação do direito kantiano com a correlatividade da relação jurídica e com a análise de riscos. 44



sociedade.” 48 Não somente o estilo teórico de Weinrib é posto sob fogo, mas justamente o distanciamento que sua teoria teria do “vivo debate político”: além de não terem “vitalidade”, os argumentos de Weinrib levariam o direito privado à “insularidade”. Em suas palavras, “Weinrib produziu um trabalho que de fato cria seu próprio universo jurídico, sensível às possibilidades sintéticas do pensamento filosófico e às nuances próprias da doutrina da responsabilidade civil.”49 Ainda que Weinrib não tenha respondido estas objeções diretamente, uma possível réplica formalista foi ensaiada por Barbieri. Em sua visão, “o que os críticos em questão fazem, equivocadamente, é traduzir as considerações estruturais do formalismo weinribiano em considerações substantivas. Tal postura constitui um erro de análise, pois miram um alvo inexistente.”50 Esta posição coincide com a maneira como Weinrib adereça seus críticos. Respondendo a bateria de objeções que Joseph Raz levantou à sua teoria, ele citou a seguinte frase de Hegel: “a refutação genuína deve penetrar na fortaleza do oponente e refutá-lo em seus próprios fundamentos; nenhuma vantagem é ganha ao atacá-lo em outro lugar e derrotá-lo onde ele não está.”51 Isso indica, apenas como intuição, que as críticas e as objeções são dirigidas não à teoria formalista de Weinrib, mas à algum espantalho dela. Deixando de lado o mérito das críticas lançadas e do contra-argumento ensaiado, o detachment issue52 levantado pelos autores coloca em questão um ponto relevante da teoria de Weinrib: sua normatividade. Analisar a objeção de que o formalismo de Weinrib conferiria tal autonomia a ponto de isolar o plano jurídico do plano dos fatos implica na problematização da metodologia weinribiana. Nesse sentido, cabe questionar se sua teoria é normativa ou meramente descritiva. Peter Cane, por exemplo, acredita que ela é ao mesmo tempo descritiva e normativa.53 Penso, entretanto, que há uma prevalência da última sobre a primeira. Weinrib, no prefácio de seu livro, dá uma pista sobre isso ao dizer que “o objetivo central deste livro é o de estabelecer o que significa para um sistema de responsabilidade ser normativamente coerente”54, sendo que a coerência a qual ele se refere é a da razão (corretiva) a partir da qual a responsabilidade é baseada. Assim, se 48

RABIN, idem: p. 2.263 Ibidem, id.: p. 2.279. 50 BARBIERI, 2008: p. 122. Para todos os efeitos, ver o capítulo 3 da dissertação. 51 WEINRIB, 1992: p. 360. 52 Ver BARBIERI, op. cit.: p. 106, nota 105. Ver também Weinrib, 2012: p. 215. 53 CANE, op. cit.: p. 477. 54 WEINRIB, op. cit.: p. xviii. Grifos meus. 49



por um lado ele pode ser lido como um empreendimento descritivo da correlatividade no direito privado, por outro ele realiza uma distinção clara entre a fundamentação da responsabilidade civil e o direito positivado 55 , chegando a afirmar que a responsabilidade objetiva é um erro. Nesse sentido, acredito que seja possível reformular as inquietações de Cane e Rabin de maneira a levantar uma pergunta sobre este aspecto central da teoria weinribiana. Até que ponto é uma vantagem sustentar uma teoria que considera um erro parte de seu objeto? A resposta que Weinrib poderia dar a esta pergunta já foi muito parcialmente indicada – ganha-se em termos de coerência. Ora, se o vão entre a construção teórica e o mundo real levam à problematização da normatividade na teoria de Weinrib, responder a pergunta de por que para ele esta ponte entre os dois planos deve ser normativamente coerente é absolutamente necessário para testar os limites de sua teoria. Este é o valor realmente fundamental por trás do formalismo weinribiano, que o faz ser uma empreitada justificatória e gera tantos efeitos na fundamentação da responsabilidade civil. Para se utilizar da metáfora hegeliana, a responsabilidade objetiva parece ser a torre mais vulnerável da fortaleza de Weinrib. Ao menos, é onde este vinculo está mais exposto.

4. O problema da responsabilidade objetiva Ao estabelecer a fundamentação da responsabilidade civil na forma da justiça corretiva aristotélica e no direito kantiano a partir do método formalista, Weinrib passa a estudar de maneira mais detalhada a doutrina da responsabilidade com culpa (negligence liability) e a responsabilidade objetiva (strict liability). Se na responsabilidade com culpa Weinrib encontra um exemplo de coerência normativa com os pressupostos que ele desenvolve, a história é outra com a responsabilidade objetiva – ver uma como justiça corretiva, de acordo com ele, implica em rejeitar a outra.56 Ao seu ver, a ideia de igualdade presente na justiça corretiva e no conceito de 55

Nesse sentido, é relevante sua afirmação de que “o direito positivo é composto de normas que são legalmente válidas para uma determinada jurisdição. A justiça corretiva, entretanto, não vai para o que faz normas de direito privado válidas, mas para o que as fazem coerentes à luz das razões que as suportam.” Grifei, para ressaltar em que sentido a coerência dá a normatividade alegada. WEINRIB, idem: p. xvi. 56 Ibidem, id.: p. 171.



agência do direito kantiano, que estruturam a responsabilidade com culpa, excluem a responsabilidade objetiva. A diferença entre ambas seria que, enquanto a primeira tem como requisito a apuração de culpa, a segunda prescindiria deste passo dogmático. Na responsabilidade objetiva, a causa, e não a culpa, seria o fundamental: a responsabilidade decorreria da ocorrência do dano nas mãos do réu, independentemente se sua conduta foi culposa. Na visão de Weinrib, há uma “atração superficial” em alinhar a justiça corretiva com a responsabilidade objetiva que deve abandonada, pois ambas são incompatíveis.57 Seu argumento, nesse sentido, é dividido em dois momentos: no primeiro, ele busca demonstrar a responsabilidade objetiva como teoricamente inadequada a partir de uma crítica dirigida a Richard Epstein; e no segundo considera até que ponto a construção doutrinária do commom law configura a responsabilidade objetiva a partir da noção imanente de justiça corretiva. Para Weinrib, a desigualdade na responsabilidade objetiva surge do princípio de que o réu é responsável por “qualquer penetração do espaço do autor.”58 A relação das partes é pautada pela demarcação da fronteira a partir da qual o autor seria imune às ações de outros. “Assim”, diz Weinrib, “o interesse do autor determina unilateralmente os contornos do que supostamente deveria ser uma relação bilateral de iguais.”

59

Por focar exclusivamente em um dos polos da relação, a

responsabilidade objetiva não trata as partes de maneira igual, de modo que é inconsistente com o formato da justiça corretiva. Correspondente à esta desigualdade seria a ausência de um direito e seu dever correspondente.60 Da forma como é organizada, o autor afirma que a responsabilidade objetiva “tem um direito sem um dever”61, pois é ensejada apenas pela ocorrência do dano. Esta longa citação deixa clara sua visão.62 A responsabilidade objetiva reflete uma extrema solicitude para os direitos do autor. Sob a responsabilidade objetiva, a pessoa e a propriedade do autor são um domínio sacrossanto de autonomia, no qual o autor tem o direito de ser livre de interferências de qualquer outra pessoa. Mas a responsabilidade objetiva protege os direitos do autor sem dar espaço para uma concepção inteligível do dever do réu. Um dever deve ser operativo (operative) no momento do ato em que o dever supostamente deveria tutelar. Sob a responsabilidade objetiva, entretanto, o dever do agente de

57

Ibid., id. Ibid., id.: p. 177. 59 Ibid., id. 60 Ibid., id.: p. 178. 61 Ibid., id. 62 Ibid., id.: p. 179. 58



não causar o dano não precisa aparecer até o momento do dano. Apenas retrospectivamente através de um dano fortuito fica claro que a conduta do réu era danosa. Portanto, na responsabilidade objetiva, a vítima tem um direito de ser livre do dano, mas este direito não é correlativo a um dever, operativo no momento da conduta, de se abster de agir de forma a causar o dano.

Esta ausência de correlatividade estaria relacionada com uma concepção incoerente de agência (ação). Como a igualdade da justiça corretiva está baseada na igualdade dos agentes no direito kantiano, a desigualdade assim também representaria uma incoerência na agência de cada indivíduo. Esta incoerência, para Weinrib, é evidente no juízo que os tribunais devem fazer quando em casos de responsabilidade objetiva: “ao julgar ações por seus efeitos, a responsabilidade objetiva trata a conduta do réu como um incoerente fenômeno normativo.” De um lado, para Weinrib, a responsabilidade objetiva considera o efeito como integral às ações do réu; do outro, como o efeito não é o resultado de sua culpa, sua conexão com a ação do réu consiste só em ser seu efeito. Assim, o ato que tenha sido ilícito só o é por causa de seu efeito.63 Ao agente é dada uma capacidade para atingir algum fim (capacity for purposiveness) que, quando o dano ocorre, não pode ser utilizada moralmente, e portanto não é capacidade alguma.64 O ponto de Weinrib é que, sob o ponto de vista da forma da justiça corretiva animada pelo direito kantiano, o direito do causador do dano de agir corresponde a um correlato direto da vítima de se insurgir contra sua conduta. A responsabilidade objetiva, ao prescindir da culpa, não garantiria este mesmo status moral às duas partes, acarretando na violação da igualdade formal pressuposta, e portanto fazendo este modelo de responsabilidade incoerente. Portanto, apesar de não negar os fatos e de reconhecer o seu funcionamento, Weinrib acredita que a responsabilidade objetiva é um erro jurídico, pois sua operacionalização requer mais do especificar o significado da justiça corretiva por parte do julgador. As perguntas que o problema da responsabilidade objetiva traz são: qual é a razão de Weinrib defender este posicionamento? Qual é a vantagem teórica em sustentar parte de seu objeto um erro? Poderia se imaginar, por exemplo, como um legislador neozelandês reagiria após a leitura do The idea of private law. Na Nova Zelândia, não responsabilidade com culpa, nem responsabilidade sem culpa – não há responsabilidade alguma. A indenização é operacionalizada de modo em que se 63 64



Ibid., id.: p. 181. Ibid., id.: p. 181-182.

eliminou tanto a necessidade de se ter um responsável pelo dano, como também a necessidade de se mostrar a causalidade entre a conduta do responsável e o dano gerado. Neste modelo, por exemplo, haverá a compensação dos danos da vítima sem apuração da culpa dela ou de uma outra eventual parte.65 ‘Se a responsabilidade objetiva é um “erro”, imagine então a ausência completa de responsabilidade. O que fizemos com nosso direito privado?’, ele se indagaria. Um legislador weinribiano não necessariamente veria um problema no modelo neozelandês. Como visto, a normatividade da teoria de Weinrib apenas implica que a organização de um sistema de responsabilidade civil deve ser coerente com as razões a partir das quais ele é baseado. Nesse sentido, o modelo de ausência de responsabilidade pode ser justificado a partir de uma forma de justiça distributiva que o torne coerente e inteligível a partir de suas próprias premissas. No limite, Weinrib poderia afirmar que tal sistema é conceitualmente incoerente com a racionalidade interna do direito privado, que é dada pela forma da justiça corretiva, de modo que o modelo de seguridade social neozelandês não é direito privado. Esta questão, entretanto, não parece estar em disputa quando se critica a teoria weinribiana. A situação é completamente diferente caso o legislador brasileiro tivesse contato com Weinrib. Diferentemente do sistema neozelandês, o ordenamento jurídico brasileiro incorpora a responsabilidade civil com culpa e a responsabilidade civil objetiva, sem culpa. Nesse sistema misto, como o método formalista visualizaria as estruturas organizadoras do direito privado brasileiro, e qual é o papel da responsabilidade objetiva nele são questões mais espinhosas. Weinrib afirma que é um erro considerar a responsabilidade objetiva como parte da estrutura da responsabilidade civil, pois incorpora uma racionalidade distributiva incompatível com forma da justiça corretiva justificatória do direito privado. O ganho teórico desta afirmação, de acordo com teoria weinribiana, é garantir coerência justificativa da forma de justiça adotada.66 Um sistema misto privilegiaria uma justificação que envolvesse mais de uma racionalidade, o que a tornaria fraca. Como visto, para ele, a coerência implica na presença de uma estrutura unificada que integre as partes da relação jurídica bipolar de maneira correlata. O problema da responsabilidade objetiva surge da tensão entre esta coerência normativa e o recorte das estruturas formais da relação jurídica entre autor e réu. Do momento em que 65 66



O exemplo está em CANE, 2006: p. 468. WEINRIB, 2012: p. xviii.

Weinrib dá normatividade à coerência justificativa (entendida como um “monismo de razão”) em sua teoria, seu formalismo deixa de ser um empreendimento descritivo do direito e passa a ser um elemento prescritivo, impondo arbitrariamente condições de inteligibilidade ao direito privado. Dessa maneira, há uma contradição interna entre o que Weinrib se propõe a fazer e o que sua teoria realmente faz.

5. Conclusão O objeto deste trabalho foi o de analisar de que maneira a teoria formalista de Weinrib possibilita e fundamenta uma teoria geral do direito privado. Mais especificamente, foi levantada a hipótese a fim de compreender de que maneira a responsabilidade objetiva é configurada neste contexto é uma boa maneira de testar os limites da teoria weinribiana da responsabilidade civil. Para isso, a questão levantada foi até que ponto é uma vantagem sustentar uma teoria que considera um erro parte de seu objeto, a partir da análise de uma das principais críticas lançadas ao formalismo weinribiano, de que ele criaria um “mundo jurídico próprio” ao explicar o direito a partir de uma perspectiva formal. O que se percebeu foi que a teoria de Weinrib é normativa no limite em que tem como pedra de toque a coerência entre a justificação formal e a fundamentação do modelo de responsabilidade positivado. Nesse sentido, é uma teoria extremista, pois não possibilita qualquer espécie de sincretismo justificativo. No modelo weinribiano de responsabilidade com culpa, o formato da justiça corretiva deve ser exclusivo; no formato neozelandês, o formato da justiça distributiva que o deve. Em suma, a medida em que há uma escolha política da sociedade, deve haver uma coerência em mantê-la. O problema surge quando se pensa em um modelo misto – como o brasileiro – em que duas racionalidades distintas, corretiva e distributiva, coexistem. Frente a este sistema de responsabilidade civil, o método formalista de Weinrib passa a ter uma função não apenas descritiva, mas prescritiva, contradizendo seu intuito original. Neste tipo de caso, há de fato uma descontinuidade entre o plano real e o plano jurídico em sua teoria, que passa a não ser tão funcional para sistemas mistos. A despeito desta tensão, a teoria weinribiana dá destaque para algo muitas vezes negligenciado na dogmática brasileira: a relevância e o valor de uma dogmática



cujo monismo justificatório possibilite uma abordagem coerente de diferentes casos.67 De certo modo, esta abordagem está na contramão da tendência cada vez mais mainstream no cenário brasileiro, de se pensar uma decisão judicial a partir de suas consequências no mundo real (“consequencialismo jurídico” 68), ou como uma função de outra ciência (como por exemplo, a ciência econômica, na “análise econômica do direito” 69 ). Pode-se antever aqui um foco de discussão entre o monismo ou o pluralismo de justificações de decisões judiciais como uma agenda de pesquisa ainda largamente inexplorada. Se por um lado modos de raciocínio jurídico que eram antes tidos como periféricos estão se tornando paulatinamente mais relevantes para a operação do direito70, por outro é impossível se pautar por um consequencialismo extremado frente à incerteza radical a respeito do funcionamento da realidade.71 Valorizar coerência também coloca em evidência o que Virgílio Afonso da Silva chama de “sincretismo metodológico”.72 Ainda que o autor se concentre no campo da interpretação constitucional, o monismo justificatório de Weinrib justamente busca evitar a aglutinação de diferentes valores, potencialmente contraditórios entre si, o que é notado por Silva na utilização conjunta da teoria estruturante do direito e do sopesamento de direitos fundamentais.73 Por fim, enfatizar o valor da coerência fala alto ao “ambiente de geleia geral” do direito brasileiro, no qual, para Carlos Ari Sundfeld, se vive “no mundo da arbitrariedade, não do Direito”, uma vez que “princípios vagos podem justificar qualquer decisão.”74 Uma maior atenção a respeito do papel da coerência no momento da decisão judicial pode ser muitas vezes associada à objetivos tidos como nobres, como um Judiciário legítimo e uma jurisprudência uniforme e consolidada. Talvez esta seja a grande razão para se estudar uma teoria formalista sem preconceitos. A obra de Weinrib permite antever e coloca em discussão a 67

Coerência aqui compreendida como distinta da “não contradição”. Este requerimento ulterior se refere à proposição aristotélica na qual duas proposições opostas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, de modo que um argumento não pode abranger simultaneamente premissas opostas. A ideia de coerência, entretanto, impõe um requisito mais específico: duas afirmações são coerentes entre si apenas se compartilharem o mesmo valor ou conjunto de valores. Ver MICHELON, 2011: p. 266-267. 68 Ver PARGENDLER e SALAMA, 2013. 69 Ver LOPES, 2005, para uma discussão acerca da compatibilidade entre o juízo jurídico de legalidade e o juízo econômico de eficiência, e ARIDA, 2005, sobre um possível campo de interação e pesquisa em direito e economia. 70 LOPES, op. cit., p. 191. 71 PARGENDLER e SALAMA, op. cit. 72 SILVA, 2005. 73 SILVA, op. cit., p. 136. 74 SUNDFELD, 2011: p. 287.



fundamentação da dogmática jurídica, bem como seu papel em sede de sentença. Estas questões estão surgindo no debate brasileiro, e ainda carecem de debate mais aprofundado. A teoria weinribiana, neste aspecto, é um modelo a ser estudado.

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