O Problema do Clientelismo em Contextos Locais Brasileiros: Reflexões sobre Negociações de Interesses entre Elites Políticas e Eleitores.

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O Problema do Clientelismo em Contextos Locais Brasileiros: Reflexões sobre Negociações de Interesses entre Elites Políticas e Eleitores1. Autor: Murilo Guimarães2

Resumo: O presente artigo busca analisar os processos eleitorais locais brasileiros, a partir de uma etnografia realizada por mim, numa pequena localidade do interior da Bahia, entre os anos de 2008 e 2012. Neste estudo, analiso o modo como os candidatos construíram suas imagens públicas e como elas foram negociadas com as elites locais e também com os eleitores, os quais apresentaram suas próprias demandas e as articularam às plataformas apresentadas pelas facções em disputa. A partir desta descrição, reflicto sobre o peso que os programas sociais assumiram nestes contextos, a ponto de se integrarem aos capitais sociais tradicionalmente envolvidos no sistema clientelar que sempre preponderou nas realidades locais brasileiras em períodos eleitorais. A despeito da flagrante proeminência dos capitais económicos dos candidatos, eu assumo neste ensaio a tese de que a cultura política brasileira vem passando por uma transição, na qual os sistemas políticos, com as instituições que conformam a democracia, parecem esvair-se ante populações cada vez mais imbuídas das defesas dos direitos sociais advindos de gestões eficientes de políticas públicas conduzidas por governos de orientação popular. Palavras-Chave: Antropologia da Política, Clientelismo, Patrimonialismo, Eleições Locais, Políticas Sociais.

Versão revisada de ensaio publicado nos Anais do XII CONLAB, integrado ao Grupo de Trabalho nº 80. Disponível online no endereço: http://www.omeuevento.pt/Ficheiros/ Livros_de_Actas_CONLAB_2015.pdf . Páginas: 8669-8679. (Último Acesso em 30 de Março de 2015). Este texto deriva directamente de minha dissertação de Mestrado, defendida em 2012 (Guimarães, 2012). 1

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Estudante de Doutorado em Antropologia Social e Cultural, do Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa (ICS/UL). Bolsista Capes - Doutorado Pleno no Exterior. Website pessoal: http://arquivomurilo.wordpress.com . E-mail: [email protected]

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Minha etnografia sobre eleições locais brasileiras teve início em 2008, com vistas à elaboração de minha dissertação de mestrado, defendida junto ao Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa, em Janeiro de 2012 (Guimarães, 2012). Atualmente, como bolsista de doutorado no exterior da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), parto para uma nova etapa na pesquisa, desta vez centrada num trabalho de campo localizado na região do Alentejo, em Portugal. No Brasil, entre 2008 e 2012, conduzi uma pesquisa de campo pelo estado da Bahia, seja transitando entre duas microrregiões do estado, ou em estadia de um ano e meio, na capital, Salvador. Centrei minha observação nas relações entre homens e mulheres eleitores e as elites políticas locais, de modo a perceber a influência do poder económico sobre os posicionamentos políticos dos meus intervenientes. Neste artigo, buscarei demonstrar o deslocamento dos principais critérios que, historicamente, conformavam as adesões individuais a diferentes facções políticas, nomeadamente, aqueles relacionados aos capitais económicos e sociais das elites locais, os quais, embora ainda continuem preponderantes, parecem ceder lugar de proeminência a discursos de garantia de Direitos sociais por meio da acção estatal. Dividirei a análise em dois eixos. O primeiro deles será construído em torno daquele meu trabalho de campo realizado numa pequena localidade do interior da Bahia, durante as eleições de 2008, aqui chamada de Estrela do Sul. Por ele, desenharei uma abordagem sobre os interesses em jogo nas eleições observadas, bem como os símbolos de prestígio e de poder agregados à facção vitoriosa. Buscarei antever como os detentores de status social superior cooptavam ou eram cooptados pelos indivíduos, famílias e grupos detentores de menores níveis de capitais económico, social e político. Num segundo momento, procurarei compreender como a disputa eleitoral em foco e seus resultados, ao ajudarem a reificar a estrutura de classes sociais na localidade, acabaram por prejudicar o avanço das forças populares sobre as instâncias de participação e de representação políticas naquele pequeno município brasileiro.

1. As Forças em disputa Estrela do Sul é um município baiano, localizado na microrregião centro-sul, com !2

cerca de catorze mil habitantes e economia baseada na exploração agrícola e no comércio varejista. Sua existência está relacionada a duas cidades-polo, localizadas num raio de até 150 km, das quais a população estrelense consome bens de maior valor e serviços educacionais e de saúde. Como em muitas outras cidades baianas, a implantação de programas de distribuição e de valorização da renda e de acesso à moradia popular promoveram forte impacto nas vidas das famílias mais pobres, criando condições para que o diagrama local representativo das classes sociais fosse alterado e, com isto, que a mobilidade social fizesse surgir novos atores na cena política. Ribeiro (1987) propõe um diagrama representativo da «estratificação social e da estruturação do poder» no Brasil «neocolonial» (ibid.: 88). Para ele, aquela estratificação assumiria a forma de um «losango espichado». Ainda que não se possa admitir uma simples projecção deste diagrama nacional, formulada décadas antes, sobre uma realidade local no ano de 2008, interessa, para este estudo, a sua descrição da camada mais alta desta configuração3. “Seu pico retracta as classes dominantes que permanecem diferenciadas em um patronato de grandes proprietários que exerce directamente a exploração económica e um patriciado de altas hierarquias civis e militares, cujo poder e precedência social emana do exercício de cargos” (ibidem.: 89. Grifos do autor)

Na eleição para prefeito e vereadores em Estrela do Sul, naquele ano de 2008, ficara patente o interesse de ambas as facções de destacar a pertença a grupos de elite local, os quais podem ser analogamente inferidos como o “patronato”, ou o “patriciado”. Passemos a analisar os principais atores em cena, entre os meses de agosto a outubro de 2008, em Estrela do Sul. O primeiro deles chama-se Jacinto Borges. Funcionário público, então com cerca de 65 anos de idade, bancário, passou a amealhar significativo capital político quando venceu a eleição para prefeito de Estrela do Sul, em 1982. Seu primeiro mandato teve, como inegável intuito primordial, a refundação

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O uso das terminologias aplicadas por Darcy Ribeiro, neste trabalho, cumpre o objectivo de oferecer parâmetros de entendimento dos fatos observados. Trata-se de um estudo incipiente. A escolha de um autor brasileiro tem um significado útil aos meus anseios como pesquisador, ao tempo em que a dívida deste autor para com Weber ajuda-me a perceber uma aplicação da teoria do sociólogo alemão ao contexto brasileiro. Obviamente, eu considero certas limitações do pensamento de Ribeiro, tendo em vista seu viés excessivamente estruturalista.

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simbólica do município. Esta intenção fica patente nos aspectos dos principais prédios públicos da cidade, reconstruídos ou remodelados de modo a se aproximarem esteticamente dos edifícios congêneres de sua cidade natal, no estado de Minas Gerais. Depois de períodos intermitentes como prefeito, retomou o cargo em 2004, realizando uma gestão contraditoriamente concebida pelos interlocutores como eficiente e autoritária. Sua sucessão, em 2008, foi facilitada pelo uso, por seus opositores, de um discurso emocional, que se sobrepunha aos argumentos de Borges acerca de suas competências administrativas. O ‘discurso’ que o destituiu do poder neste ano foi o da capacidade económica de João Costa, somado à imagem de um político humanista, generoso, personificada por Moacir Ferreira4, além da garantia de manutenção das políticas sociais do governo central, personificada em Luís Inácio Lula da Silva e representada pelos símbolos do seu Partido dos trabalhadores, o PT. Costa teve sua jornada ao poder facilitada pela repetição de sua capacidade de gerar riqueza e de obter sucesso financeiro pessoal. Foram estes atributos, formadores de sua «pessoa» (Chaves, op. Cit., 1996), alimentados pelas histórias sobre a compra de vastas propriedades rurais e por boatos acerca de sua empresa sediada na capital de um dos estados mais ricos do país, que lhe garantiram a criação de sua imagem de «bom político» (Chaves, 1996)5. Para este caso estrelense, é interessante perceber como João Costa posicionava-se, nos eventos de campanha, sempre ao lado de Moacir Ferreira, que então contava com enorme apelo popular, num caso peculiar de simbiose de imagens públicas e um exemplo interessante de «consagração» (Bourdieu, 2007: 192). Costa sempre fazia questão de exibir seu poder económico. Mesmo nas situações em que predominavam certa horizontalidade entre ele e os seus correligionários de classes mais baixas, buscava demonstrar seu «status» e, por ele, alcançar cada vez 4

Além destes dois protagonistas, os mesmos atributos pessoais de generosidade e humanismo eram compartilhados entre seus apoiantes de primeira linha, como o «empresário» «bom patrão», Licínio Mendes, ex-prefeito de Estrela do Sul, com dois mandatos de prefeito, exercidos entre 1996 e 2002

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Há uma incursão possível em relação ao comportamento de Costa nesta eleição, que implica relacionar sua disposição à compra de propriedades, além da ostentação de sua riqueza por meio de automóveis e de uma grande casa, a um esforço de repetir um certo «habitus de classe» (Bourdieu, 2007b: 97) dominante, o qual foi, ao longo das últimas décadas, delineados pelas famílias tradicionais, depois por Borges e, mais recentemente, por Licínio Mendes. Esta performance de homem rico favorece a uma análise mais apurada de sua personalidade. Para este estudo, fica a constatação de que o habitus de classe pode ser aprendido, bem ao modo explicitado por Goffman (1985), sendo ele «uma forma incorporada da condição de classe e dos condicionamentos que ela impõe» (Bourdieu, id ibid.).

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maior «prestígio» (Weber, 1982), este consubstanciado no seu actual pertencimento ao segmento económico proeminente da localidade6. Esta situação não é diversa das muitas outras apresentadas em trabalhos sobre o tema, em que o político busca, no bojo da campanha, equiparar-se aos eleitores (por ex., Chaves, op. Cit.: 142). Costa, por sua vez, teve que, entre agosto e outubro, legitimar sua pretensão ao poder e o fez pelas vias usuais de afirmação de pertencimento à elite dominante, condição anteriormente exclusiva dos que ostentavam prestígio advindo de descendência. Esse pertencimento de classe passou a lhe garantir, inclusive, proeminência sobre assuntos de natureza privada dos que ocupavam os estratos sociais mais baixos. Por exemplo, em casos de convalescença, Costa oferecia o pagamento das custas de tratamento; para antigos amigos em dificuldades, financiava «do próprio bolso» o pagamento de dívidas. Sem acesso a serviços ou funções burocráticas, e sem uma origem que o justificasse, restava-lhe tão somente a afirmação de seu poder económico para a criação de redes de entreajuda do tipo clientelar. Ainda assim, faltavalhe justificar suas pretensões políticas. A afirmação do capital econômico continua a ser a regra definidora de candidaturas para fins eleitorais no Brasil. O que costura a relação entre candidato e eleitor e, consequentemente, a adesão deste a determinada facção costuma ser, na maior parte dos casos, o viés do favor e da obrigação (Palmeira, 1992). Estas redes, consubstanciadas por obrigações recíprocas, entretanto, são construídas ao longo de muitos anos, de modo à legitimação de uma candidatura levar em conta capitais políticos erigidos durante a vida de determinado indivíduo. No caso em tela, não. Costa utilizou-se do poder económico para, em três anos, comprar, literalmente, o status que passou a apresentar como bandeira política individual à comunidade local, numa interessante transmutação do seu «capital económico» em «capital social» (Bourdieu, 2007). A rápida transformação de Costa efectivou-se ao longo do período eleitoral de 2008. Em palanque, passou de “filho da terra” a “grande empresário”, depois a “coordenador da campanha” e, finalmente, a “liderança política”. Este percurso vem 6

Valho-me da noção de “grupos de status” (Weber, 1982: 218), os quais seriam “gerados pela estima social, do tipo positivo ou negativo, ou honra (grifo do autor), constituindo agregados com estilos de vida distintos” (Sobral, 1999: 121). Max Weber (1982: 211-228).

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sendo percorrido por muitos indivíduos interessados em assumir cargos electivos no Brasil. Trata-se de «gestores» privados, expoentes análogos do «Patriciado» (Ribeiro, 1987), que transferem à sua imagem pública características de racionalidade e competência que os tornam como que predestinados ao poder, por seu próprio mérito. Esta disputa entre indivíduos pertencentes ao mesmo «grupos de status» (Weber, 1982: 218) autoriza-me a novamente utilizar a terminologia de Ribeiro (1987) para inferir que «Patronato» e «Patriciado» vem-se alternando nas instâncias de poder, em especial nas instâncias locais, no Brasil. Este fato pode revelar que, embora tenha sido a pressão popular por «mudança», na Estrela do Sul de 2008, a mola propulsora da candidatura vitoriosa do 13, não foi do ‘povo’ a força determinante da candidatura de Moacir Ferreira, excepto pelas aferições um tanto questionáveis das pesquisas de intenção de voto levadas a cabo no município, entre 2004 e 2006.7 A julgar pela sobreposição entre duas agendas, uma eleitoral e outra judicial, poder-se-ia dizer que o 'aonde ir' ficou a cargo da classe dominante8. Longe de ser uma luta de classes, ou uma «insurreição popular» (Ribeiro, op. Cit.: 84), a alterar a estrutura social da referida localidade, houve uma nova transferência de poder entre um grupo e outro, dentro da mesma classe dominante. A chegada de Costa ao poder municipal demonstra que processo eleitoral ficara a mercê de regras jurídicas que passaram ao largo da vontade popular. Mesmo a partir de uma agenda da classe dominante, o candidato precisa apresentar elementos simbólicos que possam legitimar sua candidatura e o fazer amealhar um resultado eleitoral indiscutível. Diante desta necessidade, Costa optou por, como já foi dito, incorporar simbolicamente valores e comportamentos muito próprios das elites locais. Uma vez que «a honra de status normalmente se expressa pelo fato de,

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É preciso referir desde logo que esta campanha foi marcada pelo uso de uma regra do tribunal Superior eleitoral, que permitiu a Moacir, 72 horas antes do pleito renunciasse em favor de Costa, causando perplexidade entre os petistas que, segundo se ouvia no palanque após a renúncia, havia «emprestado» o partido à coligação. Voltarei a este ponto adiante.

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De certo, é grande a tentação de aplicar a este caso a teoria de Leal (1975). Preferi ser parcimonioso, contudo não posso negar que ela é aplicável em parte ao que tento demonstrar. Goldman e Sant'anna (1996: 15-16), ao fazerem uma retrospectiva das abordagens sociológicas sobre o processo partidário eleitoral brasileiro, atêm-se ao que, segundo eles, seria uma concepção daquele autor sobre o eleitor, quando do predomínio do coronelismo. Dizem os autores que, para ele (Leal), “o eleitor não seleccionaria livremente seus candidatos; ratificaria, apenas, preferências ditas em seu nome.”

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acima de tudo, poder esperar-se um estilo de vida específico por parte de todos os que desejam pertencer ao círculo» (Weber, 1982: 66. Grifos do autor), cumpre agora perceber o conteúdo material e simbólico que ajudou Costa a reapresentar-se a Estrela do Sul como o «filho que retorna» «bem sucedido». Uma bela casa, fazendas adquiridas de famílias tradicionais, rápida reputação de milionário, belos carros e o ar solene com que interagia em público com os antigos conhecidos, foram os principais elementos que o fizeram refazer sua identidade junto aos estrelenses. Contudo, durante a campanha eleitoral seu status passou a compor o imaginário local, devido à sua ocupação de lugar de destaque no palanque do 139. Desde o primeiro evento de campanha, ele permanecia em primeiro plano nos comícios e passeatas, fazia uso do microfone entre os últimos a discursar, era saudado efusivamente por muitos dos outros que o ladeavam nestas circunstâncias e, assim, passava a figurar entre os indivíduos eminentes da localidade. Toda aquela circunstância lhe dizia respeito10. A presença ao seu lado, ao longo da campanha, de Cícero Chaves, do qual comprara uma propriedade em 2006, bem como do seu irmão, José Chaves, deputado federal entre 1978 e 1982, que falava «em nome da tradição» e, especialmente, a presença de Moacir Ferreira, cuja figura não prescindia de algum aval administrativo e mesmo económico, fizeram com que todo o palanque fosse, paulatinamente, passando a depender de Costa e de sua força económica. O «grande coordenador da campanha», novidade na história eleitoral de Estrela do Sul, fora, desde logo, identificado como o seu principal «financiador» e, tendo em vista a

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Nas palavras de Palmeira e Heredia (1995): «Se o lugar do comício, como vimos, é um espaço hierarquizado, onde o palanque representa uma espécie de centro; e se o palanque é percebido, pelos que estão embaixo, como o lugar exclusivo de autoridades, convidados e artistas, o espaço do palanque é, ele próprio, hierarquizado».

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Pode-se até especular se o ritual formalizado no palanque não se prestava, antes, a exaltar as características que Costa fazia questão de imprimir à sua identidade, todas elas ligadas ao sucesso financeiro e ao cuidado para com a sua empresa e seus funcionários. Este distanciamento entre o palanque e o público presente (Palmeira e Heredia, op. Cit., 1995) certamente ajudara Costa a, rapidamente, subir de um espaço a outro, tendo saído de Estrela do Sul povo e retornado, décadas depois, como uma autoridade. A campanha eleitoral serviu-lhe de oportunidade de exibição massiva de sua imagem. No imaginário popular local esta sua apresentação em palanque passou a rapidamente ressignificar sua individualidade para seus conterrâneos.

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«cultura» de reciprocidade que reina nas relações sociais do Brasil11, aos poucos, toda esta dependência estendeu-se também para o espaço de baixo, onde estavam um dos «dois públicos» (Palmeira e Heredia, op. cit.: 56) do comício. As falas de Costa ajudaram-me a antever sua intencionalidade de vir a ocupar o cargo de prefeito, na medida em que elas aludiam à vinda, por meio de sua intervenção, de projetos económicos inovadores ao município. Se, por um lado, Elísio Borges afirmava seu capital político pela presença de lideranças estaduais e nacionais, «amigos seus de longa data», Costa tinha seu próprio poderio económico como principal avalista de suas «propostas» políticas. Ele fora apontado como um futuro «bom político», até o momento em que, dias antes do pleito, assumiu a candidatura de Moacir12 e passou a ser referido como «grande liderança política», pelo apresentador.

2. O partido «emprestado» Uma vez resumida a descrição das características individuais dos atores, devo analisar o papel cumprido pelas instituições judiciais e políticas que definiram os rumos das eleições na Estrela do Sul, em 2008. Não dou como certa a cooptação do diretório municipal do Partido dos Trabalhadores (PT) a partir de combinações baseadas em favorecimento financeiro. Entretanto, para uma facção precisando afirmar-se como alternativa política frente às elites locais e que apresentava amplos índices de aceitação popular em 2008, é de

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Penso ser interessante retomar aqui a ideia de Wolf sobre o trânsito entre amizade emocional e a constituição de uma relação do tipo patrono-cliente (2003, 108-109). No caso de Costa, o que o palanque mostra é que este ciclo se inverteu, de modo a, desde uma relação francamente baseada na troca de favores, vermos nascer um laço de amizade instrumental e, por fim, sem grande lastro de franqueza, percebermos o surgimento – ou a declaração – de amizades de cunho emocional. Contudo, pode-se questionar quais foram os ganhos obtidos pelos seus novos clientes, muitos deles pertencentes a famílias tradicionais e que não vieram posteriormente a afirmarem-se como seus amigos. Esta análise carece de tempo e deverá partir das reflexões de Eisenstadt e Roniger sobre “the social condition generating patron-client relations” (1984: 203-219)

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Não é para menos que o slogan de sua administração seja «O Futuro Começa Agora». Costa foi reeleito em 2012, apesar de sua primeira gestão apresentar resultados muito aquém dos «compromissos» assumidos na campanha em estudo. Seu personalismo e sua auto-referência tornaram Costa, para mim, numa figura de certa obviedade quanto às suas motivações políticas. O sentido de refundação de sua administração, expresso neste slogan, e a sua obsessão em fixar sua imagem junto ao povo, fazem dele, a meu ver, uma espécie de «Tieta do Agreste» que, na obra de Jorge Amado, representa a aventureira que deixa a cidade empobrecida e humilhada e retorna enriquecida e com a capacidade de ter o destino da cidade em suas mãos. Estudos futuros confirmarão esta suspeita, ou acabarão por localizar Costa em uma rede de poder político maior do que a que ele conseguiu apresentar a Estrela do Sul, ao longo da campanha, visto que sua biografia nebulosa mantém-se distante de ser devidamente esmiuçada.

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estranhar o modo como o PT entrou e saiu desta campanha local. A única certeza é a de que a presença dos seus símbolos oficiais, no conjunto da coligação foi fundamental para a vitória da facção do 13. O ponto inicial foi, obviamente, o «carisma» de Moacir. Antigo expoente local do partido Democratas (DEM), antigos Arena, PDS e PFL, Ferreira foi trazido ao PT em 2006. Estava-lhe, a partir de então, garantida a articulação de sua imagem à do então presidente, Luis Inácio Lula da Silva, e seu governo. Lula na ocasião era identificado como o «melhor cabo eleitoral do Brasil» e a condição de usar os símbolos de seu partido e a sua fotografia nos materiais impressos somavam grande prestígio, sem dúvida, ao capital político da facção vermelha, naquela Estrela do Sul. Em seu discurso no último comício da campanha, horas depois de haver sido indicado por Moacir como substituto na chapa que sairia do processo vencedora, Costa homenageou o anterior candidato, repetiu promessas sobre as quais disse serem «propostas» e reafirmou seu compromisso para com o povo «massacrado por este prefeito idiota», Elísio Borges. Ao final, agradeceu ao PT pelo «empréstimo feito à sigla (sic), para que (ele) concorresse com o nº 13». Gabou-se da multidão que o ouvia, pediu «voto de confiança para todos nós» e finalizou agradecendo «pelo momento feliz, de alegria»13. O uso da palavra «empréstimo» qualificava a autorização do partido para, conforme a Resolução 22.717, do TSE, possibilitar a substituição do candidato petista por outro representante de qualquer partido da coligação. Além disto, o fato de a renúncia de Ferreira haver ocorrido em prazo exíguo o suficiente para que permanecessem na urna a sua foto e o número 13, pareceu-me como uma negação explícita da máxima de Weber, segundo a qual, a reacção do partido «é orientada para a aquisição do poder social, ou seja, para a influência sobre a acção comunitária» (op.cit. 1982: 227). O PT optou por abrir mão de mais um território onde pudesse alcançar o fim esperado. Note-se que, na eleição de 2012, o PT não chegou a eleger sequer um vereador. O directório municipal sustenta-se pela aproximação oportunista de deputados 13

Minha impressão pessoal dos discursos de Costa ao longo da campanha é similar à que apresentei sobre as falas de Moacir Ferreira: desarticulados e até incompreensíveis, fosse pela sua flagrante inexperiência em falar a multidões, ou pelo mal uso da linguagem. Ao contrário de Moacir, no entanto, Costa apresentava porte físico firme, sem quaisquer sinais de embriaguez ou entorpecimento. Pelo contrário, seus olhos brilhantes e o sorriso duro a mim passaram a impressão de se tratar de um homem em pleno controlo de suas faculdades.

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estaduais e federais petistas sem, contudo, renovar seus quadros localmente. Em nada o «tapete vermelho» de 2008 parece ter favorecido o PT em Estrela do Sul14. Uma das hipóteses que este trabalho levanta é a de que o PT tenha se incluído na campanha apenas para afirmar-se, frente à população, como fonte de prestígio político15. A disposição de encampar esta luta contra os desmandos da administração de Borges, cujo partido é aliado do governo estadual do PT, pode ser compreendida, todavia, mais como um resultado de combinação de interesses privados do que como uma manifestação de apreço ideológico a um movimento de contornos populares, visto que a inelegibilidade de Moacir Ferreira, confirmada pela Procuradoria Geral do Estado da Bahia ainda em setembro daquele ano, sempre fora um fato a ser considerado. Se se considerar a hipótese de João Costa ter sido, junto com a equipe coordenadora da campanha do 13, desde o início, o arquitecto desta estratégia de conquista do poder local, tem-se que, provavelmente, os acordos que geraram a candidatura e reuniram a facção em torno de Ferreira e do PT, foram resultados de uma movimentação na classe dominante local, deflagrada pelo retorno de Costa a sua terra natal. Este ator, em sua juventude destituído de capitais sociais, retornara em 2006 enriquecido e sua influência económica passara a desequilibrar o jogo de forças e a fazer com que, ao menos naquela ocasião, todos, inclusive o «povo» estrelense, sucumbissem à força do seu poder de compra.

3. «Roubo» ou negociação? Durante uma campanha eleitoral, o grande trabalho de um candidato é o de sustentar atributos que confiram prestígio à sua identidade. Nas palavras de Scotto, «um candidato deve encontrar uma forma de deixar de ser indivíduo e se constituir em pessoa, com história, biografia e relações pessoais» (1996: 171). Esta contraposição indivíduo16-pessoa é um dos cernes da antropologia brasileira, flagrante em situações de

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No primeiro turno das eleições de 2014, Dilma Rousseff conseguiu 49% dos votos em estrela do Sul contra 61% em todo o estado da Bahia, enquanto o candidato a governador petista, Rui Costa, ficou em segundo lugar com 25% dos votos na localidade, contra 54% no estado. 15

Em 2008, em muitos outros municípios baianos, o PT abriu mão de apresentar candidato a prefeito, a fim de compor com candidatos do PP, mesmo partido de Elísio Borges, que faz parte da base de sustentação dos governos estadual e federal.

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Dummont (1985).

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disputa eleitoral17. Em Estrela do Sul não poderia ser diferente. Enquanto a facção do 13 ostentava maior organização e opulência no material de campanha, a facção do 1118, capitaneada por Elísio Borges, apresentava-se sempre muito simples, com material impresso visivelmente mais barato e mal planejado. A capacidade de troca de cada grupo poderia ser medida pela qualidade do material distribuído e pela resposta que cada um recebia dos cidadãos de Estrela do Sul. As expectativas de ganho dos eleitores também variavam de acordo com a capacidade da facção de demonstrar maior organização e qualidade na campanha. «O palanque está bonito!», foi o que me disse um interlocutor, diante do palanque do 13 ainda vazio. Ele logo completou: «parece palco de show». Esse estado de ânimo acompanhava a todos, inclusive candidatos a vereador. Por sua vez, a facção do 11 parecia triste, por não conseguir retribuir o assédio do ávido público. Disse-me um vereador, candidato derrotado à reeleição: «o povo hoje não pede, o povo rouba». Este não parecia assustado com o intenso mercado de favores que se instalou no município durante a campanha, mas com o fato de as pessoas parecerem jogar com as discrepâncias económicas das duas facções, de modo ao pedido de favor tornar-se, segundo ele, «verdadeiras ameaças», vindo a serem colocadas em causa, inclusive, nuanças conhecidas de sua vida privada. Sendo assim, o que para ele parecia um martírio, para candidatos da outra facção parecia a situação ideal. Os carros de som dos candidatos a vereador do 13 ostentavam também a mesma capacidade de «fazer jorrar dinheiro». Houve uma eleitora que me revelou seu voto num determinado candidato a vereador, cuja plataforma sustentava-se na economia rural. Ela me disse, inicialmente, «voto nele, porque vai ser bom para o produtor agrícola». Insisti um pouco mais sobre os critérios de sua escolha e ela acabou por assumir: a fazenda dele fica depois da minha. Como eu sei que Moacir (a conversa se deu a meio período eleitoral) vai ter muito apoio (externo, nomeadamente dos governos estadual e federal) para fazer muitas melhorias, 17

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Lemenhe (2006) busca analisar este fenômeno com a descrição de um político do Ceará. Em seu artigo, ela demonstra como, ao longo da vida, diferentes facetas de sua identidade foram ressaltadas, a depender das circunstâncias eleitorais. Os números das facções correspondem aos seus respectivos partidos. 13 – PT e 11 – Partido Progressista (PP).

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eu acho que ele vai pavimentar estradas rurais e, com certeza, vai pavimentar a estrada que dá na fazenda dele (vereador) e, assim, eu ganho também” (sic).

Esta fala elucidou-me como os sinais de prestígio de João Costa, Moacir Ferreira junto a Lula e a outros políticos do PT, com a aludida facilidade de acesso a fontes de recursos públicos e os consequentes benefícios a advirem desta proximidade, contaminavam a todos os seus seguidores. Outrossim, mostrou-me também a existência de uma mentalidade de locupletação, que se perpetua na forma como os eleitores pensam e exercitam a política, em suas relações com os detentores de cargos electivos, num exemplo cabal de relações patrono-clientes, em sua acepção mais usual (Scott, 1986). Esta atitude pode ser ainda a expressão de um mecanismo de manutenção de uma certa «cultura política» (Kusrschnir e Carneiro, 1999) à brasileira. Por outro lado, esta disposição para a negociação de arranjos mais complexos, que, para o candidato perdedor da facção 11, parecia «roubo» pode, como expressado pela eleitora ruralista, revelar-se como uma genuína negociação que engendra interesses públicos e privados e não mais reveladora da mais cruel submissão dos pobres pelos poderosos locais. Isto, a meu ver, implica a revelação de um amadurecimento, ou mesmo de uma evolução, das relações entre candidatos e eleitores. As eleições locais no Brasil estão a atravessar um período em que mecanismos tradicionais de conquista de votos demonstram desgaste. O primeiro deles pode ser sentido na elaboração de uma campanha vitoriosa, calcada no «desejo de mudança» da população em estudo. Desde Leal (1949), em que factores subjectivos do eleitor foram dados como pouco influentes ou mesmo inexistentes em eleições em pequenos municípios brasileiros, a Antropologia da Política desenvolveu-se no sentido de demonstrar as transformações neste quadro (Goldman e Sant'anna, 1996). As dimensões subjetivas, como, por exemplo, a simpatia por determinado candidato, as demandas individuais e colectivas, para além dos interesses de patrões e grupos hegemónicos locais, passou a assumir o núcleo das pesquisas sobre o tema (Palmeira, 1992 e Goldman e Silva, 1998). Além disso, as análises de cenários eleitorais parecem mostrar que a agenda popular aumentou sua influência sobre o planeamento de campanhas e vem definindo os termos com que os atores políticos passaram a pautar suas intervenções públicas. !12

Em Estrela do Sul evidenciava-se a deliberada decisão, repetida por diferentes membros da comunidade local, de negar o apoio a um candidato e optar pela facção oposta, ainda que, ao final, o indivíduo eleito não correspondesse àquele que fora inicialmente apontado como candidato. Penso que esta relação de parcela considerável da população local para com a campanha eleitoral possa abrir caminho para um novo estudo sobre o fenómeno da «adesão» (Palmeira, 2010). As motivações para a escolha de determinado candidato passaram a recair sobre outros meandros da vida nacional como, por exemplo, o aumento da eficácia de programas estatais de distribuição e de geração de trabalho e renda, agora entendidos pelos eleitores como Direitos e não mais como favores pessoais. Este cenário de disseminação de políticas públicas de correcção de desigualdades sociais parece atuar em detrimento de factores como o carisma e o poder económico de indivíduos e grupos locais, ainda que estes continuem engendrados nas estruturas tradicionais, baseadas no clientelismo, e continuem, como demonstrado neste ensaio, fundamentais para a legitimação de candidaturas a cargos eletivos. Tais programas sociais acabam por se tornar moedas de troca política, somando-se aos demais elementos que compõem o sistema de relações clientelares a que me referi. A observação das eleições seguintes fez-me acreditar que a política brasileira passa por uma transição entre tipos de relações de cunho clientelar, a ponto de se antever o estabelecimento do que Piattoni (2001) ajuda a designar como «clientelismo corporativo». A exploração da imagem do ex-presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, pode ser um indicativo desta nova realidade. No Brasil, a transferência de prestígio de uma personalidade com maior capital político a outra, numa espécie de «consagração» (Bourdieu, 2007)19, ainda é comum e se assenta muitas vezes numa combinação de capitais económicos e sociais. A partir de 2006, com Lula, pode ter ocorrido o mesmo fenómeno, todavia sem que a imagem do ego de maior prestígio compartilhasse o “status de classe” (Weber, 1982) dominante, tendo seu impressionante

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Este fenómeno reflecte-se no que analistas eleitorais comumente chamam de ‘transferência de voto’. Neste endereço, há um exemplo de análise do termo por um cientista político, tendo em vista as eleições em Teresina, capital do Piauí, em 2008: h t t p : / / w w w. p o r t a l a z . c o m . b r / c o l u n a / c l e b e r _ d e _ d e u s / 115867_a_transferencia_de_votos_entre_candidatos.html

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capital social aferido quase exclusivamente pelo bom manejo de capital político, especialmente a partir de sua actuação como Presidente da República. Assim, pode ter havido uma primeira ruptura entre a relação, sempre sentida no Brasil, de preponderância do poder económico sobre o político. Como me disse um eleitor idoso, «depois de Lula um pobre não tem mais medo de votar em outro pobre». Sendo assim, por que Costa precisou afirmar continuadamente seu status de elite, a partir da demonstração de suas riquezas materiais? A resposta levame a crer que a população local manteve a estratégia de mudança, sendo as qualidades dos candidatos secundárias diante da necessidade de se desligarem de um passado de opressão, o qual Borges personificava.

“O Futuro Começa Agora.” Vejamos, a fim de clarear a postura dos eleitores estrelenses, como se desenvolveu o ‘pacto’ entre a população de Estrela do Sul e o seu novo prefeito, João Costa, a partir de 1º de Janeiro de 2009, quando este iniciou o mandato. O desenrolar de sua atuação administrativa mostrou que as garantias de competência e «firmeza» não eram de todo efectivas. Já em 2010 a cidade sinalizava grave crise financeira, percebida e comentada pelos habitantes, mesmo entre aqueles que, no pleito anterior, compuseram o «tapetão vermelho» pelas ruas, durante a campanha eleitoral. Os problemas foram se agravando, a ponto de se tornarem muito comuns os boatos sobre acções da polícia federal e do ministério público, com vistas à sua cassação. Ainda que houvesse processos por malversação a correrem na vara judicial de Estrela do Sul, Costa foi reeleito com ampla maioria em 2012, ironicamente concorrendo contra Moacir Ferreira que, nesta eleição, veio filiado ao Partido Democrático Trabalhista (PDT) e coligado com o Partido Progressista (PP), de Jacinto Borges. Nesta campanha de 2012, Costa optou por acentuar sua afro descendência e por desenvolver um discurso baseado na máxima de que os estrelenses, «apesar de pobres, sabem administrar», num flagrante descompasso em relação à tática de 2008, ancorada na demonstração de sua superioridade económica. Em 2012, outra diferença fez-se notar ao longo do período eleitoral, relatada por muitos intervenientes, qual seja, a ausência !14

de «grandes nomes» no palanque dos ‘coquis’20, ainda que deputados e gestores da esfera estadual petistas tenham concorrido para sedimentar neste período eleitoral sua auto designação como bom gestor. As motivações para o voto em Costa nas eleições de 2012 variaram muito, a julgar pelo que me diziam os diferentes interlocutores. Estranhamente, a campanha de 2008 parecia-me completamente superada em seus comentários. Intrigava-me, especialmente, a mudança de posição de Moacir Palmeira e o modo como ela fora percebida pelos eleitores que, quatro anos antes, choraram pela sua intempestiva renúncia. Muitos destes eleitores justificavam-se, apelando ao fato de Moacir ter sido condenado pelo processo que corria contra ele no pleito de 2008, o que o fazia posicionar-se entre os políticos ‘fichas sujas’, designação decorrente da Lei nº. 135 de 2010, que regulamenta as condições de inelegibilidade de políticos condenados em tribunais de segunda ou terceira instâncias. Outra razão era constantemente indicada: a «certeza» de que Moacir entrara naquela campanha de 2008 «comprado» e que desde então, «pelo alcoolismo e pela falência financeira», tinha perdido todo o dinheiro e prestígio. Novamente, os factores financeiros surgiram como definidores das adesões e das lealdades, ainda que de forma negativa. Contudo, outros compromissos garantem a manutenção do pacto de lealdade personalista perceptível em Estrela do Sul. Ao longo dos anos de sua gestão, Costa conseguira, à custa do endividamento e da desorganização das contas públicas, «encaixar os amigos» no serviço público municipal. Desta forma, o projeto político de 2008 fora mantido até 2012, uma vez que os eleitores que aderiram ao seu projeto de poder conquistaram ou mantiveram o chamado «acesso à prefeitura». Penso ser interessante, a despeito da flagrante faceta económica nas relações de populares com as elites políticas locais, perceber-se a evidente intenção colectiva de influir nos rumos do município, ainda que os interesses atendidos não possam ser incluídos no rol dos interesses públicos. O importante parece ser a impressão cada vez mais forte segundo a qual, seja pela locupletação ou pelo beneficiamento por programas e projetos sociais, «a voz do povo foi ouvida» e de que o voto «vale um pouquinho mais do que valia antigamente». 20 Apelido

da facção liderada por João Costa. Segundo interlocutores, tal apelido deve-se apenas à cor do pássaro, e não por qualquer característica mais específica da personalidade do então candidato.

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Ainda assim, convém buscarmos compreender em que medida e por quais razões os capitais económicos perderam parte de sua relevância, nas escolhas eleitorais. Podese dizer que a identificação de João Costa com o sector económico a que Ribeiro (1987) chama de “patronato” tenha-lhe possibilitado conquistar a confiança da população e lhe facilitado o caminho até a prefeitura. Complementarmente à presença de Lula, do PT e dos seus símbolos partidários, há que se sublinhar a construção da imagem de político «humano» de Moacir Ferreira, com a exacerbação de suas características de docilidade e de cuidado para com o povo, como principal sustentáculo da campanha vitoriosa do 13, em 2008. Costa somava em si as duas características e, por meio de sua performance e dos discursos em torno de sua imagem, desenvolveu-se a teatralização, naqueles meses de campanha, da metamorfose de «boa pessoa» num «bom político» (Chaves, 1996). Costa valeu-se de uma apresentação embotada de seus atributos pessoais para alcançar um lugar entre as elites de Estrela do Sul, todavia, sem haver sido consagrado com os prestígios de Lula e de Moacir Ferreira, ele não teria alcançado seu intento. Como argumentei anteriormente, a interpretação para este fato assenta-se na simbologia imbrincada, em 2008, nas imagens de carisma e de humanidade, destes dois atores. No caso de Lula, os programas sociais criados ou ampliados durante sua passagem pela Presidência, entre 2003 e 2010, já haviam promovido enorme impacto positivo nas vidas das pessoas mais pobres. Estes programas consubstanciavam os discursos nos palanques e, nas ruas, as falas de eleitores e políticos buscavam articular seus posicionamentos em torno da manutenção das políticas públicas, em especial aquelas de transferência e de geração de renda. Pode-se dizer que tais programas tornaram-se as principais moedas de troca, tanto nas eleições de 2008 como de 2012 e, assim, os alegados atributos de «bom empresário» de Costa combinavam-se com a expectativa geral de manutenção e mesmo de ampliação dos programas federais e, por tabela, atribuíam-lhe as características desejadas de humanidade e de cuidado para com os mais fracos economicamente. Em 2012, todavia, sua origem humilde foi o remédio para recriar a sua aproximação com o público, dada a baixa avaliação de sua gestão, atenuada pela distribuição de casas populares e pelo aumento de beneficiários dos programas de !16

distribuição de renda. Em relação ao «humanismo» de Moacir, alardeado pela equipe da campanha em 2008 - e recuperado sem a mesma força em 2012, quando compôs palanque com o antigo rival - pode-se dizer que este seu traço pessoal passara a caracterizar toda a facção. A resposta do eleitorado, como percebi em inúmeras conversas, era fortemente marcada por expressões de cunho sentimental, entretanto, estas não estavam calcadas no que se poderia chamar de altruísmo ou desprendimento, visto que cobriam interesses materiais muito palpáveis, traduzíveis na palavra «acesso» aos programas sociais ou a empregos e contratos públicos. A encenação da consternação e do carinho em 2008 tinha, diferente dos eventos analisados nas etnografias brasileiras sobre política local, o extremo significado de unir os estrelenses associados à facção do 13 em torno da negação do que acreditavam ser uma gestão autocrática de Borges, ajudando-os a abrir, com os sinais de definitiva adesão à campanha petista, os caminhos para que, ao menos simbolicamente, houvesse uma «política nas mãos do povo». Apesar da perseverança dos traços personalistas e financeiros, há que se enxergar neste caso a ocorrência de um passo adiante em termos do controle do Estado pelos cidadãos, além de uma flagrante demonstração de falência de um sistema político que interpõe os interesses financeiros das elites aos populares. A continuidade da observação leva a crer que, cada vez mais, os capitais económicos vão perdendo força diante da necessidade de aprimoramento da gestão do Estado brasileiro e de reformas densas no próprio sistema político. A queda de privilégios e de favores pode demorar, porém são claros os sinais de enfraquecimento daquele sistema. Ao reflectir sobre o que me disse aquele candidato a vereador, segundo o qual, «o povo não pede mais, o povo rouba», pode-se inferir que os habitantes de Estrela do Sul, de modo geral, começaram a se apropriar da política, pelas vias que a trajectória das eleições brasileiras lhes tem permitido fazer. Esta apropriação parece ocorrer com mais força a partir da implementação de políticas públicas que visem cumprir Direitos Sociais e o surgimento de novos atores políticos no estado da Bahia e no Brasil. Atenção ao discurso de Alzira Mendes, vice prefeita eleita junto com Costa em 2008 e em 2012, proferido no último comício da campanha nacional de 2010, na !17

presença do então candidato a governador, Geddel Vieira Lima. Ela, no calor da fala, disse, «o eleitor não é mais o mesmo»21. Devido à noção de «acesso», palavra difusamente utilizada para representar o resultado esperado da luta por empregos públicos ou por outros contractos de prestação de serviços públicos, aferidos por meio de artimanhas por vezes ilegais, não descarto a alternativa de análise pautada na tendência de manutenção, ou mesmo de aprofundamento, daquele padrão clientelar de trocas, fartamente descrito em estudos sobre eleições locais brasileiras22. Todavia, ficoume a suspeição de que os políticos locais já começavam a perceber a cisão entre poder económico e capital político, de modo a abalar o modelo tradicional de relação patronocliente a que me referi anteriormente. Outro ponto que se me afigura como promissor para os passos futuros das pesquisas sobre eleições no Brasil diz respeito à evolução do desenho das campanhas eleitorais, nos municípios brasileiros. Minha etnografia tem demonstrado a implementação de uma estratégia complexa, que combina eficazmente os comícios aos demais eventos de rua e aos programas de rádio, assim como a outros elementos de disseminação de informações, como panfletos e mesmo boatos. Além destes elementos de propaganda, batalhas judiciais ajudam na criação de caminhos alternativos, demonstrando a existência de brechas legislativas que põem em causa a consistência das instituições democráticas brasileiras. Pode-se concluir que o uso eficiente de normas de Direito Eleitoral tem vindo a funcionar como mecanismo eficaz para facilitar ou impedir candidaturas ou exercícios de cargos públicos, deslocando parte da influência das relações entre políticos e eleitores para a esfera judicial. Isto, inclusive, suscita uma atenção muito especial sobre tais instituições democráticas, uma vez que toca outras noções importantes que permeiam os estudos da Antropologia da Política, desde a validade da democracia representativa ao papel

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Na continuidade desta fala, por lapso ou ‘ato-falho’, Alzira, conhecida por suas artimanhas de compra de voto, disse: «ele (o eleitor) não se satisfaz mais com um saco de cimento, um milheiro de blocos, um colchão ou um favor, ele quer qualidade (de gestão) e honestidade».

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Sobral e Almeida (1981: 668-9) descrevem fenómeno semelhante, ocorrido em Portugal, quando da alteração do quadro político deste país, representada pela “emergência e institucionalização de organizações horizontais” que, entretanto, não invalidam o sistema de cooptação eleitoral baseado no clientelismo, configurando o que Mouzelis (apud Sobral e Almeida) chama de “autonomia relativa da esfera política em relação à estrutura de classe”.

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desempenhado pelos partidos políticos na consolidação da vontade popular. Este trabalho deve considerar, obviamente, a profusa “economia de trocas simbólicas” (Bourdieu, 2007), baseada na ostentação e na permuta de capitais políticos entre os concorrentes e entre estes e seus eleitores, no intrincado jogo de honras e favores. A ocorrência de denúncias e a abertura de processos são fatos amplamente divulgados pelos veículos de comunicação locais, em especial os blogues noticiosos e as redes sociais digitais, de modo que as ações políticas tornam-se objetos constantes das análises cotidianas dos cidadãos acerca da vida na localidade. Esta continuidade da vivência dos fatos políticos pelos habitantes de Estrela do Sul, consubstanciadas pelas avaliações da qualidade da gestão ou pela ocorrência de ações judiciais, altera a noção de “tempo da política”, como proposta por Palmeira e Heredia (1995). Estes autores buscam demonstrar que a participação do cidadão em eventos políticos, com as substanciais alterações nas relações sociais locais, restringiriase ao período eleitoral, de modo a acção governamental estar, via de regra, desconectada das reivindicações eleitorais dos grupos representativos da cidadania local. Minha etnografia confirma que este tempo da política é cuidadosamente demarcado no calendário do ano eleitoral, mas que seus marcos iniciais e finais, quando existem, não coincidem com os calendários eleitorais oficiais. Contudo, a percepção das políticas públicas como objectos de promessas e avalistas do prestígio dos candidatos, bem como a ‘judicialização’ das gestões públicas e das candidaturas, fazem-me supor que a atenção do eleitorado esteja migrando de um campo de favorecimento eminentemente privado para outro, ligado à actuação estatal. Portanto, os olhos e os corações dos eleitores parecem estar-se voltando à aferição de eficácia administrativa como critério de escolha eleitoral, de modo a tornar a política numa actividade perene. É deste ponto que acredito estar a democracia brasileira preparando-se para um salto qualitativo no futuro. Ainda que não elimine o clientelismo, este passo pode fazer com ele se transfigure num contorno periférico da vida política nacional, o que ajudará as colectividades a distinguirem as esferas públicas e privadas, nas negociações de interesses individuais ou colectivos e no exercício dos direitos constitucionais de participação política. !19

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