O problema dos bens da Igreja Uma historia do roubo na Idade Media

June 5, 2017 | Autor: M. Cândido da Silva | Categoria: Early Medieval History, Middle Ages, Histoire et archéologie du haut Moyen-âge
Share Embed


Descrição do Produto

Uma história do roubo na Idade Média Bens, normas e construção social no mundo franco

Marcelo Cândido da Silva

5. O problema dos bens da Igreja

As dúvidas sobre a utilização das vidas de santos como instrumentos para a compreensão da história das sociedades não são atuais. Pelo menos desde a consolidação da História como disciplina científica, os textos hagiográficos são considerados materiais inapropriados para os historiadores, na medida em que estariam repletos de “lendas piedosas” e de superstições. O veredito de B. Krusch é bastante duro nesse sentido, e ele resume a opinião dos eruditos alemães do final do século XIX: os hagiógrafos eram falsários que fabricavam relatos com objetivos precisos, e a produção hagiográfica seria uma espécie de Kirchliche Schwindelliteratur1. Os historiadores de língua francesa também seguiam essa corrente de opinião. Para R. Aigran, por exemplo, quanto mais milagres continha uma vita, menos ela seria digna de crédito2. W. Levison, aluno de B. Krusch, foi o primeiro historiador, em 1921, a afirmar que a crença nos milagres era mais importante que sua realidade, mas foi preciso esperar o advento da “ideengeschichte” e da “histoire des mentalités” para que fosse superado o debate entre “história piedosa” e “história científica”, entre “verdadeiro” e “falso”, salientando o papel dos textos hagiográficos na compreensão das concepções religiosas que existiam no momento de sua redação. Entretanto, a ascensão da “Nouvelle Histoire” e o interesse pelas mentalidades também contribuiu para reforçar a ideia de que, a partir das vidas de santo, poder-se-ia compreender as representações de uma sociedade muito mais do que suas práticas sociais. Nos últimos anos, alguns historiadores sustentaram que a utilização da hagiografia pode ir muito além do campo das representações, e atingir aquilo que M. Van Uytfanghe designa como “noyau historique” do texto hagiográfico3. 1 Krusch, B. Zur Florianus- und Lupus-Legende. Eine Entgegnung. Neues Archiv der Gesellschaft für ältere deutsche Geschichtskunde n.24,1899: 559. 2 Aigran, R. L’hagiographie. Ses sources, ses méthodes, son histoire, Paris, 1953: 204. 3 Van Uytfanghe, M. Les avatars contemporains de l’hagiologie. A propos d’un ouvrage récent sur Séverin du Norique. Francia 5, 1977: 639-671; ver também, Heizelmann, M. Introduction: la querelle historiographique. In: Heizelmann, M. Poulin, J.-C. Les viens anciennes de sainte Geneviève de Paris. Etudes critiques, Paris, 1996: 3-10, especialmente: 9. Um exemplo clássico dessa perspectiva já se encontra no final dos anos 1960, com a edição seguida de uma introdução e um comentário da Vita Martini, de Sulpício Severo, escritos por Jacques Fontaine (Fontaine, J. Vie de Saint Martin, I-III, Paris, 1967-1969 (Sources Chrétiennes 133-135). Podemos citar também Lotter, F. Severinus von Noricum. Legende und historische Wirklichkeit. Untersuchungen zur Phase des Übergangs von spätantiken zu mittelalterlichen Denk – und Lebensformen, Sttutgart, 1976. O autor crê que é possível, a partir das camadas compactas da “hagiologie Umdeutung”, alcançar a verdadeira personalidade histórica de Severinus. Não se pode esquecer, também, da

109

P. Fouracre, em artigo de 1990, defendia o “traditional historical approach” das vidas de santos, isto é, a tentativa de reduzir os textos hagiográficos a um conjunto de dados utilizáveis pelos historiadores4. Diversos argumentos são invocados para sustentar esse ponto de vista, a começar pelo estatuto social dos personagens principais das hagiografias. De fato, os santos da Alta Idade Média eram, em sua maioria, personagens que desempenhavam um papel político proeminente, seja como funcionários da administração real, seja como interlocutores dos príncipes. Cerca de metade dos santos do período franco era oriunda de famílias aristocráticas. Educados nas cortes dos reis, muitos deles exerciam funções na administração civil antes de obterem a função episcopal5. As hagiografias seriam um suporte para os milagres, um dos meios mais eficazes para reforçar e promover a autoridade dos santos6. Além dos relatos exaustivos de suas proezas, as hagiografias seriam repletas de alusões às relações entre o rei e os clérigos, à administração franca, ou ainda a questões de rito e doutrina, material útil à história das práticas sociais7. obra clássica de F. Graus, Volk, Herrscher und Heiliger im Reich der Merowinger, Praga, 1965. Graus vê as vidas de santos merovíngios (diferentes das vidas de santas merovíngias) como testemunhos diretos da “estrutura social” e da “consciência” da sociedade merovíngia.   4 Fouracre, P. Merovingian History and Merovingian Hagiography. Past and Present 127 (1), 1990: 3-38, especialmente: 1. 5 J. Chélini usa a expressão “hagiocracia” para definir essa situação (Histoire religieuse de l’Occident medieval, Paris, 1968: 71. 6 Sobre a hagiografia, ver F. Graus (Volk, Herrscher und Heiliger im Reich der Merowinger. Studien zur Hagiographie der Merowingerzeit), L.W. Montford (Civilisation in seventh Century Gaul as reflected in saints’ “Vitae” composed in the period), e também F. Dolbeau, M. Heinzelmann e J.-C. Poulin (Manuscrits hagiographiques et travail des hagiographes) e P. Fouracre e R. A. Gerberding (Late Merovingian France: history and hagiography, 640-720), entre outros. 7 As polêmicas em torno da Vita sanctae Genovefae constituem um bom exemplo da utilização das hagiografias pelos historiadores. B. Krusch, em seu último grande artigo, publicado em 1916, deplora que a história da fundação do Reino dos Francos não seja escrita a partir da seriedade de Gregório de Tours, mas segundo as “loucas fantasias do monge de Sainte-Geneviève” [KRUSCH, B. Die neueste Wendung im Genovefa-Streit, NA 40 (1916): 131-181 e :265-327, especialmente: 136: “...Wenn ich am Ende meiner hagiographischen Studien noch einmal an der Anfang zurückkehre, der ein neues System der Legendenkritik begründet hat, so wird dies einmal die Bedeutung des Gegenstander für die fränkische Urgeschichte rechtfertigen, denn es ist natürlich nicht gleichgütlig, ob diese nach Gregor von Tours oder nach den närrischen Phantasien des Mönsches von St. Geneviève dargestellt wird...”]. Em seus estudos sobre a Vita sanctae Genovefae, Martin Heinzelmann e Jean-Claude Poulin identificam no texto hagiográfico elementos que esclarecem a ação da santa como membro da administração pública, bem como suas relações com o rei Childerico († 481). Outro bom exemplo é a Vita Columbani, escrita por volta de 640 por Jonas de Bobbio. A Vida de São Columbano mostra as relações estreitas entre o santo e os príncipes francos, e oferece um amplo material para a compreensão do papel da monarquia franca no processo de afirmação do monaquismo columbaniano (Cf. Clarke, H.B., Brennan, M. (ed.), Columbanus and Merovingian monasticism; Wood, I. The Vita Columbani and Merovingian hagiography: 63-80; Riché, P. Columbanus, his followers and the Merovingian Church.: 59-72; Wood, I. Jonas, the merovingians, and pope Honorius: Diplomata

110

O ponto de vista adotado neste trabalho é distinto. Não busca pôr em dúvida a utilidade das hagiografias para os historiadores, mas apontar alguns limites de sua utilização para uma história das práticas sociais, ou para uma história do cotidiano. A partir dos diferentes relatos sobre o roubo nas hagiografias francas, não é possível estabelecer uma tipologia social dos ladrões ou definir uma tabela estatística que aponte as origens sociais dos criminosos, ou as diferentes incidências dos crimes por eles praticados. No entanto, isso não significa que as vidas de santo sejam apenas obras literárias. Procurar-se-á mostrar, ao longo deste capítulo, que as diversas descrições sobre o roubo nelas contidas reportam-se, em sua maioria, ao problema dos bens da Igreja. Mais do que simplesmente difundir uma visão moralizante acerca das apropriações ilícitas dos bens eclesiásticos, as hagiografias veiculam os qualificativos jurídicos do roubo elaborados pelas leges e, sobretudo, pelos textos conciliares. Os sujeitos e as coisas que aparecem nos relatos hagiográficos sobre o roubo não são “pessoas” e “coisas”, mas categorias que, como se afirmou no primeiro capítulo, aplicam-se a certo número de casos individuais. Nesse sentido, questionar os textos hagiográficos, os conciliares, ou mesmo a legislação real, sobre as identidades e as origens sociais dos ladrões ou sobre os objetos roubados, não produziria um repertório útil à compreensão das práticas sociais. A própria recorrência de luvas, cavalos e calçados entre os objetos roubados aos santos nas hagiografias francas mostra que, o que está em causa são as “propriedades dos santos”, muito mais do que luvas, cavalos ou calçados. Da mesma forma, ao se mostrar a incidência geográfica e temporal das vitae que mencionam casos de roubo, não se estaria construindo uma “geografia do roubo” no mundo franco8. Mas apenas, um mapa da repartição geográfica das hagiografias que abordam o tema, o que é bem diferente. and the Vita Columbani.: 99-120). Pode-se mencionar, também, a utilização feita por Bruno Dumézil da Vita Columbani e de outras hagiografias em seu estudo sobre a conversão dos “warasques”. Dumézil sustenta que a campanha de evangelização levada a cabo no Jura por monges oriundos do monastério de Luxueil resultava menos da presença de pagãos e de heréticos nesta região do que de uma estratégia de controle da Burgúndia por parte de Clotário II, após a reunificação do Reino dos Francos [Dumézil, B. A conversão dos warasques do Jura no século VII: missão ou cristianização? In: Cândido da Silva, M., Barros Almeida, N. (Orgs.), Poder e construção social na Idade Média: história e historiografia, Goiânia, 2011: 109-126]. 8 T. Hauschild, especialista das sociedades mediterrânicas, tenta mostrar em seu livro, Ritual und Gewalt, o papel desempenhado pelo espaço na estrutura da violência: a análise das formas culturais da violência deve apoiar-se sistematicamente em um conhecimento preciso da geografia e da topografia dos locais onde elas apareceram. O autor defende o conhecimento das realidades locais, mas também dos detalhes aparentemente microscópicos, por exemplo, as relações dos terroristas do 11 de setembro com os seus corpos, especialmente as experiências corporais feitas pelos combatentes de Bin Laden nos campos de treinamento no Afeganistão. O futebol e o caratê praticados sob um sol escaldante, o canto e a dança, os exercícios de respiração e as orações noturnas visariam produzir experiências limites que a etnografia há muito estuda

111

As vitae francas constituem a maior fonte de descrição do roubo. Sua análise será circunscrita ao mesmo intervalo cronológico adotado para o estudo da legislação real e dos textos conciliares, do início do século VI ao final do século VIII. No que se refere ao século VI, o mais prolífico hagiógrafo é Gregório de Tours. E, em suas obras, é encontrada a maioria absoluta das descrições de roubo de bens. Há, no total, 19 referências ao roubo nas obras escritas pelo bispo de Tours: Histórias IV, 36; IV, 43; V, 18; VI, 8; VI, 10; VII,44 e X, 1; Liber in gloria martyrum, 18, 58, 65, 72, 96; Liber in gloria confessorum, 17, 81, 86; Liber de virtutibus S. Martini, 17 e 36; Liber de passione S. Iuliani 16 e 18. Metade dessas referências encontra-se em textos pouco conhecidos do bispo de Tours, especialmente o Liber in gloria martyrum (composto muito provavelmente entre 585 e 594) e o Liber in gloria confessorum. O primeiro contém relatos sobre mártires da Gália, seus milagres e os milagres realizados por suas relíquias, e o segundo é um conjunto de pequenas biografias de personagens importantes da Igreja, a maior parte tendo vivido no século VI9. Com relação aos textos hagiográficos dos séculos VII e VIII, o primeiro problema é a datação, especialmente por causa das reescrituras, interpolações ou modificações de que foram objeto no período carolíngio, e ao longo dos séculos seguintes. As edições das vidas de santos nos MGH não dirimiram as dúvidas sobre a data de produção de muitos desses textos. A tipologia estabelecida para a Gália, por M. Van Uytfanghe, é bastante útil nesse sentido: inicialmente, são apresentados 19 relatos hagiográficos, que o consenso de historiadores e filólogos situa entre 600 e 750 – e que ele qualifica de “corpus A”10. Nesse corpus, há menções ao roubo apenas na Paixão de Leudegário. Van no Mediterrâneo e no Oriente Médio (Hauschild, T. Ritual und Gewalt, Frankfurt, 2008). Seria infrutífero tentar definir a geografia do roubo, bem como as relações dos ladrões com seus corpos durante os primeiros séculos da Idade Média. Não dispomos de materiais que nos permitam essa abordagem. 9 Segundo M. Heinzelmann, o Liber in gloria martyrum e o Liber in gloria confessorum mostram a situação-tipo de um santo ou mártir, morto há muito e operando milagres “novos” com a ajuda do Cristo, de modo a colocar em evidência a obra do Cristo vivo em favor de sua Igreja, mesmo nos tempos atuais: “Ce sont donc moins les saints que leurs miracles contemporains qui sont au centre de l’intérêt de Grégoire, et à travers ces miracles, c’est la réalité eschatologique du Christ et de son Église qui est définitivement visée”, Heinzelmann, M. Grégoire de Tours et l’hagiographie mérovingienne. In: Degl’innocenti, A. De Prisco, A., Paoli, E. (org.), Gregorio Magno e l’agiografia fra IV e VII secolo, Florença, 2007: 175. 10 No século VII, as vidas (ou paixões) do bispo Arnoul de Metz († c. 640), da rainha Batilda († 680/681), do bispo Géry de Cambrai († c. 623/626), do abade Germano de Grandval († 675), da abadessa Gertrude de Nivelles († 659), do abade Jean de Réomé († c. 544), de Justo, mártir em Beauvais, do bispo Leudegarius de Autun († 679), do bispo Prix de Clermont († 676), da rainha Radegonda († 587), da abadessa Rustícula de Arles († 632/633), do bispo Sulpício de Bourges († 646/647), do bispo Vaast de Arras († 540); por volta de 700, a Vida de São Wandrille, abade de Fontebelle († c. 668); na primeira metade do século VIII, a Vida (bastante fragmentada) de Santo èvre, bispo de Toul (e que viveu no século VI), as Vidas de São Ouen, bispo de Rouen († 684)

112

Uytfanghe cataloga ainda algumas vitae, cuja datação é objeto de polêmica, ou que não se beneficiaram de uma edição suficientemente crítica. Elas teriam sido escritas entre o período merovíngio e o período carolíngio. Essas vitae ou paixões constituiriam o “corpus B”11. Nesse corpus, as referências ao roubo de bens estão na Vida de Santo Elói e na Vida de São Filiberto. A Vida de São Elói é o texto hagiográfico mais prolífico, no que se refere às descrições do roubo de bens: há 7 capítulos dedicados ao problema. Composta de dois livros, o primeiro, de 80 capítulos, descreve a carreira laica do santo; o segundo, também com 80 capítulos, narra sua carreira eclesiástica e seus milagres post mortem. Graças aos trabalhos de jovens pesquisadores franceses do HagHis (Hagiographie et Histoire: atelier français de recherches sur l’hagiographie médiévale), é hoje atestado que a Vida de São Éloi foi redigida por Santo Ouen, bispo de Rouen, entre 673 e 67512. A Vida de São Filiberto foi escrita pouco tempo após a morte do santo, mas foi rapidamente reescrita, aparentemente para corrigir a primeira versão. O texto foi conservado em uma série de manuscritos modificados no início do século IX13. Escrita por Ursinus, abade do monastério de São Martinho, em Ligugé (ao sul da cidade de Poitiers), na metade do século VIII, a versão original da Vita sancti Leodegarii não sobreviveu, mas foi reconstituída por B. Krusch no final do século XIX, a partir de algumas versões da época carolíngia14. Van Uytfanghe situa a Vida e Bonet, bispo de Clermont († c. 705), e a Vida de São Mémoire, padre de Troyes no século V; finalmente, uma pequena coletânea de milagres post mortem, as Virtutes sanctae Geretrudis, composta por volta de 700. 11 No corpus B, o autor discrimina as vitae escritas no século VII: Afra, mártir em Augsbourg († 304), Aile, abade de Rebais († v. 650), Arey, bispo de Gap († 604), Caprais, abade de Lérins († après 434), Didier, bispo-mártir de Langres († 407), Didier, bispo de Vienne († 606/607), Eustadiole, abadessa de Bourges († final do século VI), Èvre, eremita em Grenoble no século VII, Fursy, abade de Lagny († v. 645), Médard, bispo de Noyon († v. 560), os abades do Monte Habend e de Saint-Maurice d’Agaune, Riquier, abade de Centule († 645), Salagerbe, abadessa em Laon († 664), Sigolène, abadessa de Troclar, os mártires trigêmios da Capadócia († c.155); em seguida, a Vida e os milagres de Santo Austrille, bispo de Bourges († 624), escritas em algum momento entre os séculos VII e VIII; e também as vidas e as paixões da primeira metade do século VIII: Amand, bispo de Maastrich († 679), Austroberte, abadessa de Parilly († 704), Elói, bispo de Noyon-Tournai († 660), Eucher, bispo de Orléans († c. 738/743), Goar, padre e eremita da Renânia no século VI, Hubert, bispo de Liège († 727), Lambert, bispo de Maëstricht († 705), a versão carolíngia da Paixão de Leudegário, bispo de Autun († c. 679), Pardoux, abade de Guéret († 737), Filiberto, abade de Jumièges e de Noirmoutier († c. 685), Ramber, mártir de Bugey († 680), Servais, bispo de Tongres († 384), Sigismundo, roi martirizado dos burgúndios († 524). M. Van Uytfanghe, “Pertinence et statut du miracle dans l’hagiographie mérovingienne (600-750)”, In: AIGLE, D. (dir.), Miracle et Karama. Hagiographies médiévales comparées 2, Turnholt, 2000: 67-144 (“Bibliothèque de l’École des Hautes Études Section des Sciences Religieuses”, 109). 12 http://haghis.blogspot.com.br/2009/11/du-nouveau-sur-saint-eloi.html. 13 Monuments de l’histoire des Abbayes de Saint-Philibert (Noirmoutier, Grandlieu, Turnus), Poupardin, R. (publicado segundo as notas de A. Giry), Paris, 1905: IX-XVI. 14 Inicialmente reticente quanto à validade dessa reconstituição, P. Fouracre acabou aceitando-a

113

de São Columbano e de seus discípulos fora do corpus A e do corpus B, pelo fato de esse texto dizer também respeito à Irlanda e à Itália. No entanto, pelo fato de sua redação ter sido concluída na Gália, e pelos episódios de roubo que menciona, essa vita também será abordada neste trabalho. Esses textos serão analisados, não necessariamente em ordem cronológica, buscando relacionar os casos de ataques aos bens eclesiásticos neles descritos, com a qualificação jurídica do roubo, produzida pelas leges e pelos editos reais. Primeiramente, Gregório de Tours. A maioria dos casos mencionados por esse autor dizem respeito ao roubo de bens da Igreja. Em menor número, estão os relatos de libertação de prisioneiros acusados de roubo. Será focalizada, portanto, a primeira categoria. A segunda metade do século VI marca o aparecimento nas hagiografias francas de episódios nos quais os ladrões atacam as igrejas, e não apenas os próprios santos. Os ladrões, na Vida de Santa Genoveva e na Vida de São Germano de Auxerre, são pauperes, e se contentam com os bens dos santos. Com Gregório de Tours, os potentes fazem sua aparição como ladrões que penetram no interior do edifício eclesial. É possível que essa mudança na trama e no elenco das hagiografias francas tenha uma relação com o acirramento das disputas em torno dos bens eclesiásticos, testemunhado, nos cânones conciliares, pelo emprego cada vez mais frequente da expressão necatores pauperum, e pela denúncia em termos sem precedentes da atuação dos reis e dos potentes. Um bom exemplo dessa mudança é o relato gregoriano do roubo do oratório de Ysaac-la-Tourette, mencionado no segundo capítulo: Gregório começa o relato denunciando, claramente, a atuação dos homens do séquito de Chramn (filho do rei Chilperico) na região da Auvérnia. Cinco desses homens teriam entrado furtivamente no santo oratório no domínio de Ysaac-laTourette, que continha as relíquias de São Saturnino. Após a infração, roubaram as vestes e os vasos para a celebração litúrgica, e partiram durante a noite. Um padre se deu conta do roubo e procurou entre os habitantes da região, mas não encontrou nenhum traço daquilo que fora roubado. Os ladrões teriam, então, retornado ao território de Orléans, de onde vieram. Após terem dividido seu saque, cada um apoderou-se de uma parte. A vingança divina (ultio divina) os perseguiu e, rapidamente, quatro dentre eles foram mortos em rixas. Único sobrevivente, o quinto ladrão recebeu o conjunto dos bens roubados. Mas assim que os trouxe para casa, imediatamente seus olhos se incrustaram de sangue e ele ficou cego. Forçado pelas suas dores e pela inspiração divina, fez um voto e prometeu que, se Deus restabelecesse sua visão, ele devolveria o como válida em seu estudo sobre a hagiografia merovíngia (Fourecre, P., Gerbeding, A. Late Merovingian France: History and Hagiography, 640-720, Manchester, Nova Iorque, 1996: 206 e ss.).

114

que havia roubado ao local santo (Si respexerit Deus miseriam meam et mihi visum reddiderit, referam loco illi sancto quae abstuli). Após ter recuperado a visão, o ladrão viajou até Orléans e encontrou, pela graça de Deus, um diácono de Clermont, a quem entregou os bens roubados, pedindo que os devolvesse ao oratório (ut easdem oratorio restitueret), o que o diácono piedosamente cumpriu15. A ênfase do relato está no direito de propriedade do oratório de Ysaac-la-Tourette: a promessa do ladrão sobrevivente é devolver os bens roubados ao oratório, o que ele reitera ao diácono encontrado em Orléans. Além disso, os bens são devolvidos, não por ação de qualquer santo, como é recorrente nas hagiografias francas, mas através da ultio divina, que pune os ladrões e faz com que o direito de propriedade seja restabelecido. Ainda no Liber in gloria martyrum, Gregório apresenta outro relato no qual o julgamento divino atua diretamente na punição do ladrão. Mais uma vez, trata-se do roubo de um edifício eclesial, uma igreja localizada no vicus de Yseurs, na região de Tours. Essa igreja ter-se-ia distinguido, segundo o bispo de Tours, por vários milagres santos, e por possuir janelas cobertas por vitrais, em moldura de madeira. Um ladrão audacioso entrou na igreja durante a noite e, ao perceber que tudo estava guardado em depositários, resolveu roubar os vitrais. Após ter quebrado e roubado o vidro das janelas, retornou ao seu vilarejo no território de Bourges, onde colocou o vidro em um forno aceso durante três dias, sem que nada ocorresse. Gregório afirma que o ladrão persistiu em seu crime, mesmo tendo se dado conta de que um julgamento divino fora lançado sobre ele, (victusque crimine, divinum super se iudicium intuens, nequaquam motus perdurat in malis). Mesmo não tendo conseguido fundir os vitrais, ele os vendeu em pedaços a alguns comerciantes e, tal como um novo Gehazi, assim que recebeu o dinheiro, foi atingido por uma lepra incurável [II Reis 5: 19-27]. Quando se aproximava o primeiro aniversário do roubo, um tumor cresceu em sua cabeça e sobre seus olhos, tornando-se tão grande que parecia que seus olhos tinham sido arrancados 15 Liber in gloria martyrum, 65: “In ipso quoque territurio tempore, quo Chramnus Arvernum abiit, cum diversa scelera ab eius gererentur ministris, quinque viri sacrosanctum oratorium domus Iciacensis furtim appetunt - habentur autem in eum sancti Saturnini reliquiae -, inruptumque, ablatis palleolis vel reliqua ministerii ornamenta, nocte tegente discedunt. Sed presbiter recognoscens furtum ac inter vicinos scrutans, nullum potuit ex his quae ablata fuerant indicium repperire. Protinus vero latrones, qui haec admiserant, in Aurilianensi se territurio transtulerunt; divisisque rebus, accepit unusquisque partem suam. Sed mox, insequente ultione divina, quattuor in seditionibus interfecti sunt. Quintus vero totam sibi furti huius hereditatem superstis remanens vindicavit. Sed ubi haec in domo sua contulit, statimque obtectis sanguine oculis, excaecatus est. Tunc conpunctus tam doloribus quam inspiratione divina, vovit, dicens: “Si respexerit Deus miseriam meam et mihi visum reddiderit, referam loco illi sancto quae abstuli”. Et haec cum lacrimis orans, visum recepit. Accedens vero ad oppidum Aurilianensem, providente Deo, diaconem Arvernum invenit. Cui traditis rebus, suppliciter exoravit, ut easdem oratorio restitueret; quod diaconus devotus implevit”.

115

de suas órbitas. A cada ano, a mesma coisa acontecia ao ladrão no dia em que executou seu roubo16. A igreja de Yseurs é reputada, segundo Gregório, pelos milagres de santos; mas é o julgamento divino que atua na punição do ladrão. Ambos os relatos afirmam o princípio da propriedade divina. É provável que a ausência de um patrono de prestígio explique a atuação direta do juízo divino, pois, como se verá, no exemplo seguinte, quando as igrejas possuem patronos de reputada virtude, esses agem no combate ao roubo. A excepcionalidade do relato da igreja de Yseurs está no fato de que, nele, os bens não retornam à igreja, ainda que o ladrão seja punido. Dentre todos os casos de roubo de bens eclesiásticos analisados neste trabalho, esse é o único em que isso ocorre, e no qual o castigo imposto ao ladrão é mais importante do que a recuperação dos bens roubados. O terceiro e último caso de invasão e roubo em um edifício eclesial nas obras gregorianas encontra-se no sexto livro das Histórias. O edifício em questão é a construção eclesiástica mais prestigiosa da Gália merovíngia: a Basílica de São Martinho de Tours. E é o próprio São Martinho quem age para punir os ladrões e recuperar os bens de sua basílica. Os ladrões penetram nesta última, roubam o ouro, prataria, tecidos de seda e, em seguida, fogem, depois de caminharem sobre o túmulo do santo. De acordo com Gregório, em seu poder miraculoso, São Martinho fez desses homens temerários, um terrível exemplo. Depois de terem cometido o crime, fugiram para a cidade de Bordeaux, onde brigaram, e um deles foi morto por um camarada. A indignação chegou ao conhecimento do público, e os bens roubados foram descobertos e recuperados, embora a prataria estivesse danificada. O rei Chilperico ordenou, então, que os malfeitores fossem acorrentados e trazidos à sua presença. No entanto, diante do pedido de Gregório para que o rei não os executasse, foram poupados. Os bens roubados estavam dispersados, mas foram recolhidos com grande cuidado pelo rei, que os devolveu ao local santo17. A existência de um 16 Liber in gloria martyrum, 58: “Eclesia est vici Iciodorensis sub termino Turonicae urbis, quae plerumque sacris miraculis inlustratur, fenestras ex more habens, quae vitro lignis incluso cluduntur, quo praeclarius aedi sacratae lumen, quod mundus meruerit, subministrent. Quam eclesiam fur inportunus adgreditur, ingressusque nocte, cum omnia cerneret custodum cura tueri et nihil de sacris ministeriis quod auferret adverteret, ait intra se: “Si aliud”, inquid, “invenire non possum, vel has ipsas quas cerno vitreas auferam”; fusoque metallo, aliquid auri conquiri sibi. Ablatis igitur dissipatisque vitreis, metallum abstulit et in pago Biturigi territurii contulit. Missumque vitrum in fornace per triduum decoquens, nullum exinde opus potuit expedire; victusque crimine, divinum super se iudicium intuens, nequaquam motus perdurat in malis. Ablatum autem a cacavo vitrum, quod in pilulis nescio quibus conversum fuerat, advenientibus negotiatoribus venundedit, ut scilicet, accepta pecunia, novus Giezi lepram perpetuam conpararet. Nam adveniente die post anni curriculum, quod hoc furtum fecerat, caput eius tumori datur; oculi quoque inflantur, ut erui a suis locis autumentur. Haec autem ei singulis annis eveniunt in die illa, qua furtum admisit. Plangitque miser vitrum, quod ex itinere, quo transmisit, non potuit revocare”. 17 Gregório de Tours, Histórias VI, 10: “His diebus basilica sancti Martini a furibus effracta fuit.

116

patrono de grande reputação é um meio eficaz, não apenas na punição dos ladrões, mas também na recuperação da propriedade eclesiástica. A reputação dos santos se constrói na defesa de seus próprios bens e dos bens das igrejas às quais estão associados. No capítulo 17 do Liber in gloria confessorum, Gregório fala de um túmulo localizado entre arbustos e espinhos no pagus de Tours, que pertenceria a um bispo, cujo nome não era conhecido por ninguém. Esse nome é revelado graças ao roubo, narrado nesse capítulo. Após a morte de seu filho, um pauper não pôde encontrar uma cobertura para o sarcófago, por isso, foi até o túmulo do bispo e tirou a tampa, que, de tão grande, necessitou da força de três bois para ser puxada. E, em seguida, cobriu a sepultura do seu filho. Mas, ao fazer isso, ficou surdo, mudo, cego e paralisado durante quase um ano. O bispo apareceu-lhe em um sonho, revelando seu nome e ordenando que devolvesse a tampa ao seu túmulo, se quisesse ser curado; do contrário, morreria: [...] Qual é o mal que eu fiz a você e à sua família para você me descobrir removendo a cobertura de meu túmulo? Vai agora se quiser ser curado e ordene que a tampa seja rapidamente restabelecida. Se não o fizer, você morrerá imediatamente. Pois sou o Bispo Benignus, que veio como um estrangeiro a esta cidade[...].

O ladrão, com um movimento da cabeça, teria ordenado aos seus servos que devolvessem a tampa do túmulo do bispo 18. Os prodígios do bispo, que Qui ponentes ad fenestram absidae cancellum, quod super tumulum cuiusdam defuncti erat, ascendentes per eum, effracta vitrea, sunt ingressi; auferentesque multum auri argentique vel palleorum olosericorum, abierunt, non metuentes super sanctum sepulchrum pedem ponere, ubi vix vel os applicare praesumimus. Sed virtus sancti voluit hanc temeritatem etiam cum iudicio manifestare terribili. Nam hi, perpetrato scelere, ad Burdegalensim civitatem venientes, orto scandalo, unus alterum interemit; sicque patefacto opere, furtum repertum est, ac de hospitale eorum argentum comminutum vel pallea sunt extracta. Quod cum regi Chilperico nuntiatum fuisset, iussit eos alligari vinculis et suo conspectui praesentari. Tunc ego metuens, ne ob illius causam homines morerentur, qui vivens in corpore pro perditorum vita saepius deprecatus est, epistolam regi precationis transmisi, ne, nostris non accusantibus, ad quos persecutio pertinebat, hi interficerentur. Quod ille benigne suscipiens, vitae restituit. Species vero, quae dissipatae fuerant, studiosissime componens, loco sancto reddi praecepit”. 18 Liber in gloria confessorum, 17: “In alio loco pago Turonico erat inter vepres et rubos sepulchrum positum, in quo ferebatur episcopum quendam fuisse sepultum; nomen ignari erant [incolae, et licet pauci, tamen officium inpendebant]. Contigit vero, ut cuiusdam pauperis filius moriretur. Quo sepulto, cum operturium sarcofagi non inveniret, ad hunc locum accessit, ablatumque de hoc sepulchro cooperculum, qui tam inmanis erat, ut trium duceretur paria boum, texit corpusculum fili furto alterius de sepulchri. Quod cum fecisset, surdus, mutus, caecus ac debilis est effectus; mansitque in hoc supplicio integrum fere annum. Dehinc apparuit ei quidam sacerdos per visum, dicens: “Quid”, inquid, “tibi tuisque vim intuli, o vir, quia detexisti me, auferendo operturium tumuli mei? Vade nunc, si vis sanus fieri, iube eum velociter revocari. Quod si nolueris, protinus morieris. Ego enim sum Benignus episcopus, qui in hac urbe peregrinus adveni. At ille suis innuens, accessit ad monumentum filii sui, elevatumque lapidem plaustro inposuit, reportatumque

117

pune o ladrão, e recupera a tampa de seu túmulo, estão diretamente associados à sua fama. Na narrativa gregoriana, o roubo de bens dos santos e das igrejas é mais do que um evento, cuja função é promover a faculdade dos santos de perdoar; ele serve para assentar a reputação desses personagens, e, também, promover a doação de bens às igrejas e aos monastérios. É o que se pode observar na descrição feita por Gregório de Tours, no Liber in gloria martyrum, dos prodígios de Sergius, mártir no início do século IV. Esse teria realizado numerosos milagres entre o povo, curando as doenças e as fraquezas daqueles que oravam por ele. Em consequência, diz Gregório, os habitantes fizeram votos e levaram presentes à sua grande igreja. Uma vez que não era permitido a ninguém tirar ou levar esses presentes sem, imediatamente, sofrer a pena da vergonha ou da morte, várias pessoas teriam consagrado suas possessões ao santo, de modo que pudessem ser protegidas pelo seu poder, e não ser roubadas pelos ladrões. Com o relato da história de uma velha mulher que, mesmo pobre, teria confiado duas galinhas à igreja do santo-mártir, Gregório quer demonstrar a eficácia do santo na proteção dos bens que eram confiados à sua propriedade, isto é, à sua autoridade: quando os habitantes se reuniram para a festa do santo dois homens, que tinham visto uma vez essas galinhas, concluíram um acordo secreto e roubaram uma delas. Apesar de seus esforços, a carne roubada não pôde ser cozida. De acordo com o bispo de Tours, o jantar que eles preparavam teria sido transformado em pedra, os anfitriões ficaram consternados, os convidados embaraçados, e todos abandonaram a refeição, envergonhados19.

ut sarcofago reddidit, ilico sanus effectus est. Nam ad redeundo ita lapis levis erat, ut, quem tria paria boum evexerant, boves deinceps duo revocarent”. 19 Liber in gloria martyrum, 96: “Sergius quoque martyr multa signa in populis facit, curans infirmitates sanansque languores fideliter deprecantium. Unde agitur, ut ex hoc ingentia basilicae vel promittantur vota vel munera deferantur, ex quibus nihil omnino licet subtrahi aut auferri. Quod si quis fecerit, mox iudicium aut nothae aut mortis incurrit. Ob hanc vero defensionem multi res suas sancto devovent, scilicet ut eius virtute munitae non diripiantur a malis. Denique anus erat exigua et, credo, euangelicae illi pauperculae similis, quae quondam duo minuta, cum nihil aliud haberet, in gazophilatium devotae iactavit. Ergo haec pauculos gallinarum pullos habebat, quos ex voto basilicari ditioni subdiderat, datura in domo ipsius, cum necessitas flagitasset. Igitur cum ad festivitatem sancti multi populi advenissent, duo, conventione facta, qui hos pullos olim viderant, unum furto subtrahunt, incisoque capite, detractis plumis truncatisque pedibus, positum in vase cum aqua super ignem levant instanterque succendunt. Fervet autem latex validissime, sed caro furtiva non coquitur. Etiam fervendo aqua consumitur, nec prorsus pullus ille mollitur. Temptant crebro manibus et unguem conantur infigere, sed duriorem sentiunt, quam misissent. Interim adsunt convivae evocati ad aepulum, nullatenus sumpturi de apparatu. Extat mensa niveis velata mantilibus, opere plumario exornata. Conversis cibis in nova duritia, catinus limphis saepe diluitur, sed nihil coctum, quod in eo exhibeant, invenitur; sicque novo miraculo aepulis redactis in saxo, confusis invitatoribus, verecundantibus invitatis, a caena cum pudore discessum est”.

118

Nesse capítulo, Gregório associa, claramente, o volume das doações recebidas pela igreja à capacidade do santo em proteger esses dons da ação dos ladrões. O santo age, inclusive, como a própria autoridade civil teria agido, aplicando a pena de morte (Quod si quis fecerit, mox iudicium aut nothae aut mortis incurrit). Não há contradição formal entre o tema do perdão e da libertação dos prisioneiros (ladrões, sobretudo), desenvolvido por Gregório em várias pequenas vitae, e o da punição dos ladrões dos bens eclesiásticos. O primeiro tema serve para reforçar a associação com o Cristo, ao passo que o segundo compõe a estratégia de defesa dos bens da Igreja. A comparação dos temas permite, inclusive, mostrar que os bens eclesiásticos são tratados de maneira distinta dos bens que não pertencem à Igreja: a punição pelo roubo desses é maior, e os casos de perdão, bem mais raros. Esse tratamento diferenciado, que não é o resultado de nenhuma diferenciação atávica dos bens, produz, de fato, duas categorias de bens. E, como na legislação civil e na legislação eclesiástica, o ponto de partida de tal diferenciação são os diferentes estatutos de seus proprietários. No capítulo 81 do Liber in gloria confessorum, Gregório descreve os atos de Eusicius, eremita que vivia recluso na região de Bourges. Ele se afastou da intimidade dos homens no meio dos arbustos selvagens, rejeitando o ouro e as riquezas deste mundo. Seus colegas monges tinham duas colmeias de abelhas. Quando um homem dos arredores foi acometido de febre, procurou Eusicius, recebeu desse os cuidados habituais, e sua saúde foi restaurada. No caminho de volta para sua casa, ele viu essas colmeias em uma árvore. Imediatamente, segundo Gregório, sua cupidez foi despertada e ele decidiu roubar as colmeias. Durante a noite, o homem retornou com um cúmplice e subiu na árvore para apanhar as colmeias e entregá-las a seu comparsa, que esperava embaixo da árvore. Quando Eusicius se aproximou, o comparsa fugiu, mas não preveniu o seu companheiro. O eremita estava sob a árvore e pegou uma colmeia que o ladrão tinha lançado ao chão. Segundo Gregório, quando quis roubar as outras também, Eusicius disse: ‘Filho, esta é suficiente por enquanto, deixe as outras para os homens que nelas trabalharam’. O ladrão caiu no chão, o eremita o apanhou e o conduziu a sua célula, dizendo: ‘Meu filho, por que tu seguiste o diabo como teu guia? Não vieste ontem e recebeste a benção do Senhor? Se o mel te agradou, tu deverias ter vindo até mim e eu teria o bastante para te oferecer, sem crítica e sem nenhum aborrecimento’. Depois de tê-lo admoestado, Eusicius deu-lhe um ninho de abelhas e deixou que ele partisse são e salvo, pedindo que ele não roubasse mais” 20. 20 Liber in gloria confessorum, c. 81 : “Fuit in hoc territurio et Eusicius vir virtutum, qui tamquam heremita inter spinarum condensitatem ab hominum se familiaritate removerat, qui aurum vel divitias mundi huius tamquam stercora exhorrebat… Habebant clerici eius dua vasa apium.

119

O perdão, acordado nesse relato, é acompanhado da concessão de uma parte dos bens que o ladrão pretendia roubar. Não se trata, obviamente, de uma promoção do roubo, mas da prerrogativa soberana do santo de colocar em circulação seus próprios bens. Mas ele não o faz sem contrapartida: mais do que o perdão ou o desprendimento em relação aos bens, ou o auxílio aos mais necessitados – os potentes não se beneficiam desse desprendimento –, o santo reafirma seu direito à propriedade. O que se vê nesse relato é a capacidade do santo em dispor do bem de acordo com sua preferência (como um proprietário) e em reativar, de forma legítima, o circuito da circulação de bens. O santo anula o roubo, contrapondo a essa prática ilegítima a doação do bem pretendido pelo ladrão. A doação é uma forma legítima de circulação, e também, um instrumento de combate ao roubo, ao mesmo título que a punição pura e simples do ladrão. E seu exemplo na hagiografia serve para promover doações que tenham como destinatária a Igreja. Os relatos gregorianos sobre o roubo de bens eclesiásticos são os primeiros no século VI a mencionar roubos no interior do edifício eclesial, ao passo que seus predecessores, se contentavam em descrever o roubo de objetos dos santos (luvas, calçados e cavalos). As referências a esses objetos não desaparecerão das hagiografias francas: a Vida de São Filiberto é um bom exemplo da segunda metade do século VIII. Pode-se citar, também, o roubo do cavalo na Vida de São Corbiniano, o que mostra a permanência desse tema, mesmo fora da Gália (mais precisamente na Baviera), durante a mesma época. Porém, o recurso, notadamente a partir do final do século VI, aos relatos que colocam em cena a invasão e o roubo de oratórios, monastérios, igrejas e basílicas, parece ser uma resposta aos ataques dos bens eclesiásticos, e aproxima, decisivamente, a hagiografia franca das disputas em torno desse problema. Esses relatos também assumem uma conotação jurídica mais pronunciada: vê-se a multiplicação de qualificativos jurídicos e um recurso crescente a elementos do procedimento judiciário. O santo-proprietário é um desses qualificativos que se consolida Cumque unus ex vicinis eius quartani tipi vexaretur ardore, ad eum veniens, solitam ab eodem accipiens medicinam, sanus est redditus; et redire domum cupiens, vasa illa eminus cernit in arbore. Inflammante protinus cupiditate, quae radix omnium malorum esse describitur, cogitat ea furtim auferre. Inventum similem sibi satellitem, nocte ad arborem illam petit. Cumque in ea ascendisset, ut socio porregens vasa deponeret, ecce ab alia parte senex advenit! Quo viso, ille qui ad terram erat fugam petiit nec socio quid caveret exposuit. Senex vero sub arbore stetit et vas unum, quod fur porrexit, mutuo accepit. Cumque et alterum velit auferre, ait sacerdos: “Sufficiat nunc, fili, iste; alterum vero ei qui eum laboravit reserva”. Qua ille voce perterritus, se deorsum iactat. At ille adprehensum eum ad cellulam deducens, ait: “Cur”, inquid, “fili, diabolo praecedente tu sequeris? Nonne hesterno die ad me veniens benedictionem Domini accepisti? Si”, inquid, “ex melle delectabaris, ad me petisses, et ego sine ullo inproperio et tuo inpedimento, ut tibi fuerat copia, tribuissem”. Tunc et aliis multis verbis arguens eum, favum ei mellis largitus est et inlaesum abire permisit, dicens: “Cave, ne ultra repetas, quia furtum satanae pecunia est”.

120

nas vidas de santos em meados do século VI; ao longo das próximas páginas, outros serão examinados. Já o procedimento judiciário está presente no papel da vingança divina (ultio divina) na punição ao roubo e, por vezes, na recuperação dos bens roubados. A ultio divina é recorrente na obra de Gregório, e funciona como um complemento à justiça real, na punição dos crimes e dos atos que promovem o mal e a discórdia21. E no Liber in gloria martyrum, 58, que trata do roubo da igreja de Yseurs, o bispo de Tours menciona o iudicium divino. A relação entre o relato hagiográfico e o procedimento judiciário não se restringe ao empréstimo de fórmulas. Ursinus, em sua Passio Leudegarii, relata o roubo dos bens de um padre encarregado do serviço do oratório do santo. Esse padre teria visto, durante a noite, uma luz brilhar no local sem nenhuma intervenção humana. De acordo com o relato da Passio, ele jurou que ouviu os anjos cantarem um cântico, e que fugiu, tremendo, para não assistir de maneira insolente ao que ocorria. O rumor, então, se espalhou em todos os arredores, contribuindo para aumentar o prestígio do mártir que lá estava sepultado. Multidões de doentes atingidos por diversas enfermidades vinham invocar suas santas orações. Ele fez os coxos andarem, os cegos enxergarem, libertando os demônios daqueles que estavam possuídos e realizando muitos prodígios no local onde estava o seu corpo. Uma noite, um clérigo, guardião da igreja e servidor do padre que cuidava do oratório, teve todos os seus bens roubados, inclusive a sandália do bem-aventurado mártir que guardava com respeito, e que o ladrão levou sem saber. Ele foi rapidamente ao sepulcro do santo, suplicou que o ajudasse a reaver o que havia perdido, e passou todo o dia e toda a noite em orações e jejum no túmulo do santo, sempre continuando a cantar salmos. Assim que terminou sua oração, retornou à sua célula e encontrou, sem que nada faltasse, tudo o que havia perdido, inclusive a sandália do mártir. O senhor do ladrão, que jurou que o seu escravo não havia cometido o crime, morreu ao retornar para casa. O autor termina afirmando, de maneira vaga, que o crime do escravo também não terminou bem para ele22. 21 Sobre a ultio divina na Gália merovíngia, ver Cândido da Silva, M. Autoridade pública e violência no périodo merovíngio: Gregório de Tours e as ‘Bella Civilia’. In: Friguetto, R. Lopes Guimarães, M. (org.), Instituições, Poderes e Jurisdições, Curitiba, 2007: 181-195. 22 Ursinus, Passio Leudegarii II, 21: “His itaque diebus sacerdus quidam, qui huius oraturii fungebat offitium, lumen splendidum absque ministerio humano in eodem cognovit noctibus fulsisse locum. Unde rumor magnus aemanavit in circuitu loci huius. Qui venientes ad eius beati martyris venerandae orationis, multa turba languentium, diversis infirmitatibus detentus sanavit, clodis scilicet gressum dedit, caecis lumen tribuit, obsessus a demonibus mundavit multisque virtutibus in huius loci venerando habitaculum aemicuit. Hoc itaque eiusdem ecclesiae adtestatur sacerdus. Nam et huius sacerdoti minister clericus, ipsius ecclesiae custus, quadam nocte latrocinium passus, ita ut ab latronibus omnem substantiam suam fuisset ablatam: inter quam caligolam, inquiunt, beati martyres, quam pro reverentia sibi reservaverat, habebat absconditam. Quam latro nesciens secum portavit. Qui mature ab oraturio consurgens, ad domicilium suum pergens, invenit omnia sua furata. Festinus pergit ad huius viri Dei sepulchrum, deprecans, ut ei redderet,

121

A presença das sandálias do santo entre os pertences do padre é fundamental para a recuperação desses bens. A associação dos seus próprios bens aos do santo funciona como um “alarme”, que desencadeia a reação desse. Uma das leituras que pode ser feita desse relato é o fato de que os bens pessoais do clérigo não recebem a mesma proteção que os bens dos santos. Eis aqui outra forma de distinção entre os bens da Igreja, e os bens que não lha pertencem. Mas há algo ainda mais eloquente: a punição do senhor do escravo. Retomando-se os títulos XI e XII do Pactus legis Salicae: um homem livre que é julgado culpado do roubo de um objeto, no valor de 40 denários, do exterior de uma casa, deve pagar 1400 denários de multa, além da restituição do objeto roubado, ou seu valor, mais o pagamento pelo tempo durante o qual o uso do bem foi perdido por aquele que o possui de direito (XI, 2). Se um escravo rouba um objeto do mesmo valor e nas mesmas condições, deve ser castrado ou pagar 240 denários de multa. O senhor do escravo que cometeu o roubo deve devolver o objeto roubado (ou seu valor) ao seu proprietário legítimo, além do pagamento pelo tempo em que o uso do objeto foi perdido (XII, 2). Observa-se, no relato de Ursinus, a mesma extensão da responsabilidade do ladrão (quando esse é um escravo) para o seu senhor, tal como é prevista pela lei civil. O final do período merovíngio e o início do período carolíngio marcam, nas vitae francas, a especialização dos santos no combate ao roubo, e a integração nos relatos hagiográficos de técnicas do procedimento judiciário. A Vita Sancti Eligii, a mais prolífica sobre o roubo de bens, mostra, no capítulo 12 do livro II, o santo conseguindo recuperar as correias com as quais o servo de um de seus amigos conduzia um camelo de carga. Essa é uma consequência direta da multiplicação das intervenções dos santos na defesa dos bens. No entanto, o autor da vita afirma tratar-se de um milagre menor; desde o início do capítulo, previne o leitor: “Não devo omitir este fato, ainda que ele seja pouco importante, que o homem bem-aventurado conheceu por experiência durante a mesma viagem” (“Neque illud praeterendum puto, quamvis sit ignobile, quod eodem itinere vir beatus experimento cognoverat”). No relato, a hierarquia entre os bens permanece: a defesa dos bens da Igreja é um milagre mais importante do que a defesa dos bens dos laicos”23. quod furtim perdiderat. Nam tota illa die et sequenti nocte in oratione ad eius tumulum ieiunans et psalmodia insistens adstetit. Cum vero, expleta oratione, ad suam cellolam remeasset, omnia que perdiderat, nihil ex eis deminuto, cum caligola beati martyris salvam invenit. Domnus vero latronis pro servo iure iuraverat, nequaquam hoc malo egisset; reversus domo protinus finivit vitam. Servus vero scelus quod fecerat male consummavit”. 23 Vita Sancti Eligii II, 12: “Neque illud praeterendum puto, quamvis sit ignobile, quod eodem itinere vir beatus experimento cognoverat. Itaque cum sufficienter cuncta pro quibus advenerat experisset, omnibus sibi amicis et episcopis in Provintiae partibus visitatis necnon et domo Aspasii sobolis Iuvini christianissimi viri lustrata, parat iam Eligius cum suis omnibus remeare ad propria.

122

A Vita também descreve um episódio de roubo na basílica da virgem Santa Colomba. Um dia, pela manhã, o guarda dessa basílica procurou o santo e lançou-se aos seus pés, anunciando que, durante a noite, enquanto dormia, a basílica fora despojada de seus ornamentos. Ao ouvir isso, Elói reconfortou o guarda e, em seguida, dirigindo-se ao mesmo oratório após ter feito sua oração, dirigiu-se à santa: [...] Escute o que digo, Santa Columba. Meu Redentor sabe que se não fizeres tudo para trazer rapidamente de volta os ornamentos deste santuário que foram roubados, certamente mandarei barrar esta porta com espinhos de tal forma que a partir de hoje nunca mais lhe será feita homenagem neste local.

A ameaça de humiliatio surtiu efeito, pois no dia seguinte, ao se levantar pela manhã, o guarda encontrou na igreja todos os bens que haviam sido roubados recolocados em seus devidos lugares. Ao saber do ocorrido, Elói louvou a mártir e glorificou o nome do Senhor24. A ameaça dirigida à santa é um indício de que a recuperação dos bens roubados, além de um dos atributos dos santos, torna-se uma de suas obrigações para com as igrejas às quais estão associados. Os dois relatos da Vita Sancti Eligii sobre o roubo de bens no interior do edifício eclesial trazem milagres post-mortem do santo. O primeiro acontece no dia da morte de Elói, quando um diácono apropriou-se de uma pele de cabra de grande valor que havia sido colocada sobre a mobília que sustentou Postremo igitur omnium cum, apud Aurelianum Uzecensem episcopaum convívio peracto, eidem vale dicere pararet, contigit, ut inter satagentium utrorumque frequentiam ministrorum, unus ex famulis eius canuam, cum quo camelum onerarium secum semper ducere consueverat, subito perderet, ob quod in diversa discurrens, prolixius arcebat iter. Tunc Eligius, accito ad se secretius famulo, indicat ei hominem sui conscium furti; iubet insuper dicens: “Vade’, inquid, ‘in illam quae cetimum sita est rupem. Illic inter vepres repperies legatum funda et absconsum quod quaeris; solutoque eo, accipe, quod tuum est et absque ulla iniuria, absque verbo etiam gravi redde homini tibi designato ex quo ligatus tenetur fundibalum’. Quod cum ille fecisset, nímio fur pudore atque stupore perculsus, veniam facti sui praecabatur, offerens insuper homini redemptionem piaculi”. 24 Vita Sancti Eligii I, 30: “Alio rursus tempore dum apud Parisius commoraret, quandam die mane confugiit ad eum tremebundus custos basilicae sanctae Columbae virginis, provolutusque pedibus eius, nuntiavit eadem se quiescente nocte vastatam omni ornatu fuisse basilicam. Quod Eligius audiens, tristis adodum effectus, cito tamen ad solita spei praesidia recurrens, clementer refovit custodem, deinde ad eundem oratorium pergens, oratione praemissa, haec loquebatur verba: ‘Audi’, inquit, ‘sancta Columba, quae dico. Novit meus redemptor, nisi cito ornamenta tabernaculi huius furata reduxeris, equidem spinis adlatis faciam hanc ianuam ita obserari, ut numquam tibi in hoc loco veneratio praebeatur ab hodie. Dixit haec et discessit. Et ecce! sequenti die custos maturius surgens, invenit omnia vel usque ad minimam pallam, sicut prius fuerant, restituta. Tunc concito cursu, quantum pridie truculentior, tanto nunc laetior nuntiavit Eligio, atque ille accedens omniaque, sicut dudum fuerant, suis in locis conposita carnens, martyram quidem laudavit, sed Christi nomen, sicut et semper, uberius cum hilaritate magnificavit”.

123

o caixão do santo. A identificação do ladrão e a recuperação da pele de cabra foram essenciais para que, nas palavras do autor, todos começassem “[...] a temer muito o santo bispo e a apresentar a ele cada vez mais a veneração que lhe era devida”25. No segundo caso, o ladrão é um leigo que tenta roubar os pingentes e uma corrente de ouro que ornamentavam o túmulo do santo26. Em ambos os casos, os ladrões são perdoados. É provável que, na Vita Sancti Eligii, o perdão acordado pelo santo aos ladrões fosse mais que um topos de imitatio Christi. No caso do roubo praticado pelo diácono, o santo não apenas indica quem é o ladrão e onde está o objeto roubado, mas também define a natureza e a extensão da punição: Elói ordena aos monges que repreendam o ladrão, mas que não o castiguem com varas (“Mox autem, accersito diacono, durissimis eum verbis increpaverunt, non tamen acerviter verberibus vindicarunt, quia et hoc idem a sancto Eligio in mandatis acceperunt”). Ao concluir, afirmando que, desde esse dia, todos começaram a temer o santo, o hagiógrafo descreve a ação de Elói em termos que lembram o temor inspirado pelos juízes. Nenhuma outra vita franca descreve a ação dos santos de uma forma tão próxima da ação dos juízes. O melhor exemplo, nesse sentido, é o capítulo 62 do livro II, que relata um roubo cometido na região de Noyon. Enquanto eram feitas buscas ao autor do crime, um indício conduziu à acusação, diante da justiça de um jovem. Esse jovem estava em disputa com seu pai e, por isso, segundo a vita, “ele se esforçava para preparar-lhe armadilhas”. Diante da ocasião que se apresentava, e tendo refutado a acusação que era feita, pretendeu lançá-la contra seu pai. Por causa dessa querela, ambos foram conduzidos diante do povo; uma grande multidão se reuniu, e eles compareceram diante do bispo e do conde. Disputando-se, então, violentamente, o filho esforçou-se em lançar o erro sobre seu pai, e, ao contrário, o pai se defendia, dizendo que era inocente do crime do qual o acusavam, prolongando a disputa diante do conde e do bispo. Entre os assistentes, alguns aderiram ao partido do filho, mas outros, com razão, julgavam que não era justo crer no filho contra o pai. Como o debate já durava muito tempo e seria difícil tomar uma decisão qualquer, o bispo, tendo entrado em acordo com o duque, colocou o julgamento nas mãos do santo, já que não seria possível conhecer a verdade: “Uma vez 25 Vita Sancti Eligii II, 39: “Ex quo facto coeperunt omnes sanctum antistitem ex ipso die obitus eius magnopere pertimescere ac venerationem ei debitam de die in diem iugiter exhibere”. 26 Vita Sancti Eligii II, 65: “Quadam itaque die, vergente iam in vesperam sole, cum clerici consuetas explessent praeces vespertinas, contigit, ingruente negligentia, ut omnes egrederentur basilicam, cunctisque in diversa occupatis, nullus ad horam ex custodibus superesset introrsus: cum subito vir quidam conscientia saucis, cupiditate accensus, captato ut fur amico vesaniae suae secreto, velociter accurrit ad sepulchrum, et inpellente nefanda cupiditate sollicite huc illucque circumspiens, cum nullum adesse cerneret, non timiut miser ex pendentiis aureis, quae illuc pro ornatu sepulchri innumerae dependebant, quaedam clancule praesumere”.

124

que não sabemos em qual dos dois devemos crer, é a ti Santo Elói, que, com a opinião de Deus, remetemos humildemente este julgamento”. Eles colocaram os dois homens diante do túmulo do santo e esperaram o julgamento que Deus daria sobre seus julgamentos. Então, quando começou a pronunciar seu juramento, o rapaz, tomado pelo demônio, foi violentamente lançado ao chão e rasgando-se com violência, tremendo, espumando e empalidecendo. Diante disso, todos os assistentes, surpresos e aterrorizados, proclamaram o julgamento que Deus todo-poderoso havia feito. Assim, o abuso tendo sido “publicamente e manifestadamente descoberto”, todos saíram da Igreja. Depois que o rapaz foi punido, muitas pessoas foram tomadas de piedade e procuraram o padre para que rezassem juntos por ele. Tendo se ajoelhado, junto com todos os padres da igreja, eles pediram com insistência a Santo Elói para que, da mesma forma que ele os escutou no julgamento, que os escutasse novamente e tivesse piedade. Como perseverou muito tempo na oração, enfim, “pela graça misericordiosa do Cristo”, o rapaz recuperou a saúde27. Os termos empregados nesse texto são idênticos àqueles utilizados no procedimento judiciário da Alta Idade Média para descrever a atuação dos juízes. O santo participa de uma das etapas do procedimento judiciário; é chamado a interferir diretamente no decorrer do processo, e revela o oculto 27 Vita Sancti Eligii II, 62: “Post hos autem dies fuerat quoddam furtum in rure Noviomagense admissum, cumque persona admissi facinoris quaereretur, iuvenis quidam per indicium eidem culpae conscius conpellabatur. Habebat autem idem iuvenis eo tempore cum genitore suo quandam contentionem, ob quam videlicet et insidias ei moliebatur intentare. Tum ergo, occasione reperta, et satis accurate repellens a se huiusce opinionem, coepit eadem super patrem velle deflectere. Ducuntur igitur in huiusmodi iurgium uterque in oublicum, et conglobatis undique multis, sistuntur in examine episcopi et comitis. Ubi multa vicissim altercantes, satagebat filius magnopere in patrem calumniam reflectere; e contra pater, ut res erat, innoxium se huius facinoris esse defendebat, atque in hunc modum contendebant coram duce atque episcopo. Tunc itaque vidimus impleri, quod Dominus in euangelio olim praedixit: Exsurgent, inquit, filii in parentes et odio eos efficient. Quidam ergo circumstantium partibus filii favebant, alii vero rectius quid promulgantes, non esse rectum credi filium super patrem iudicabant. Cumque diu huiuscemodi altercatio inter eos verteretur nec facile aut temere a quoquam defineretur, tandem episcopus cum duce, accepto consilio, cum nullatenus possent rei veritatem cognoscere, iudicio eos comittunt beatissimo confessori: ‘Quia’, inquiunt, ‘nescimus, cui ex his potius credi decernamus, tibi, sanctae Eligi, cum Dei sententia hoc supplices iudicium commitimus’. Tunc statuentes utrumque coram sancti sepulchro, expectabant per sacramentum Dei fore iudicium. Et ecce! repente dum iuramentum coepisset promere, arreptus iuvenis a daemone, conlisus in terram est graviter, sicque se vehementer decerpens, volutabatur miser, tremens et spumans atque pallescens. Ex quo facto cuncti adstantes adtoniti nimioque timore perterriti, Dei omnipotentis magnificabant iudicium fieri. Sic ergo in publicum facinus manifestatae prolatum, ab ecclesia est discessum. Post haec autem acerrime diuque iuvene castigato, condolentes multi pro eodem misero conveniunt patrem, ut pro eo simul facerent orationem, et ita prostrati omnes ecclesiae ministri beato confessori rogabant innixe, ut quemadmodum eos audierat ad iudicandum, sic iterum exaudiret ad miserandum. Cumque diutissime in praece persisterent, tandem miserante gratia Christi, effugata maligni infestatione, iuvenis restitutus est sanitati”.

125

e o segredo da ação criminal. A revelação do segredo e do oculto associados à actio criminalis não é um monopólio da divindade na Alta Idade Média. Os juízes da Alta Idade Média também tornavam público o segredo e o oculto ao longo do processo judicial. No Pactus legis Salicae, por exemplo, o regime de prova, a partir do qual os valores da composição pecuniária são definidos, é usado para auscultar e revelar a intenção oculta da actio criminalis28. No caso do relato acima, a revelação do oculto se dá por meio de um ordálio, ou iudicium Dei. Essa prática, excepcional, consistia em provas físicas cerimonialmente administradas, às quais se submetiam as partes ou testemunhas, e nas quais Deus era chamado a revelar o verídico, o inocente, naquele que resiste à prova, ou revelar o culpado, o mentiroso, naquele que sucumbe a ela 29. Através dos “ordálios” unilaterais, aquele que pretendia provar sua inocência, era submetido ao rito de uma prova física, cujo resultado, acreditava-se, era dirigido pela vontade de Deus: se o acusado saísse incólume, era considerado inocente, e se sucumbisse, sua culpabilidade estava demonstrada. Entre os ordálios unilaterais, havia, por exemplo, a prova da água quente: o acusado devia colocar sua mão em um recipiente repleto de água fervente, e ao retirá-la, imediatamente ela era enfaixada e selada. Após três dias, a faixa era removida e se a mão estivesse intacta, ele era considerado inocente, caso contrário, proclamava-se sua culpa. O resultado do ordálio unilateral dependia muito menos dos sinais físicos que o rito deixava, do que de uma leitura desses mesmos sinais, à luz de uma crença pré-existente e socialmente legitimada daqueles que participam do julgamento quanto à inocência ou culpabilidade do acusado. O recurso ao iudicium Dei supõe uma ampliação extraordinária do alcance da justiça dos homens. Todas as verdades ocultas, a dos sujeitos, e mesmo a verdade divina, podiam ser reveladas aos juízes. A verdade do acusado, bem como aquela da soberania divina, eram colocadas em um mesmo plano: ambas podiam ser reveladas pelo procedimento judiciário. No relato da Vita Sancti Eligii, o próprio santo é chamado a revelar a verdade. Nas hagiografias francas, os ladrões ou seu estatuto social importam tão pouco diante do estatuto social do proprietário que animais, pauperes, potentes e representantes do poder real são punidos com rigor semelhante quando desobedecem as exortações dos santos, ou se recusam a devolver os bens roubados. A Vita Columbani descreve dois casos de roubo praticado por animais: no primeiro, um monge, chamado Leobardo, discípulo de São Bertrulfo, guardava um vinhedo, quando encontrou um filhote de raposa 28 Pactus legis Salicae, XVII, 1: “Si quis alterum uoluerit occidere et colpus praeterfallierit et ei fuerit adprobatum, mallobergo seolandouefa hoc est, MMD denarios qui faciunt solidos LXII semis culpabilis iudicetur”. 29 Barthélemy, D. Ordalies. In: Gauvard, C. et alii (org.), Dictionaire du Moyen Âge, Paris, 2002: 1020-1022.

126

que comia uvas. Ele o admoestou com ameaças e o proibiu de voltar a tocar nelas. Quando saiu, o animal voltou, pois, segundo o hagiógrafo, “estava habituado a viver de alimentos roubados”. Mas assim que colocou o alimento proibido em sua boca, o filhote de raposa morreu. Logo depois, Leobardo, ao fazer a ronda do vinhedo, encontrou o animal morto, tendo em sua boca o alimento proibido30. A punição sofrida pelo filhote de raposa relaciona-se, sem dúvida, à capacidade, tantas vezes enunciada nos textos hagiográficos, dos santos em comandar os animais. A Vida de São Cuteberto, de Beda, o Venerável,31 traz vários exemplos da capacidade dos santos em influenciar o comportamento dos animais e mesmo da natureza: uma águia alimenta o santo e seu companheiro quando estes sentem falta de alimento32, o santo expulsa os pássaros que devoravam as plantações33, e mesmo o mar obedece às suas ordens34. Mas o que encontramos no relato da Vita Columbani vai além da simples demonstração do poder do santo sobre os animais: há um paralelismo com a legislação na descrição daquilo que ocorre com o animal que depreda o vinhedo. O que é importante notar não é tanto a dimensão exemplar da punição sofrida (e que valia seguramente para outros ladrões), mas a operação pela qual o filhote de raposa transforma-se em algo distinto de um animal. Tem-se aqui, um exemplo das fronteiras móveis entre sujeitos e coisas na hagiografia da Alta Idade Média. Nesse texto, o animal é um qualificativo jurídico, e possui o mesmo estatuto dos ladrões que, em outras vitae francas, não devolvem os bens roubados aos seus legítimos proprietários – os santos. 30 Vita Columbani II, 25, 21: “Alius rursum monachus nomine Leubardus, cum ad vineae custodiam alio tempore depotatus fuisset, invenit vulpiculam uvas vorantem; quam comminando corripuit, ac ne amplius adtingerit, imperando prohibuit. Cumque ille abisset, adsueta furtivis vivere fera advenit advenit cibis, cumque gustasset, prohibitos in ora cibos gerens, spiravit. Moxque Leubardus de studio vineam circumiens, repperit vulpem mortuam, in ore prohibitos tenentem cibos”. 31 Escrita por Beda em verso (716) e depois em prosa (c. 721), a partir da versão de um monge anônimo de Lindsfarne (c. 700), esta versão da Vita Cutberth é a mais difundida durante a Idade Média: dela sobreviveram 37 manuscritos, contra 7 da versão anônima. 32 Vita S. Cutberth, c. 12. 33 Vita S. Cutberth, c. 19 (trata-se de um acréscimo de Beda em relação à versão anônima). 34 Vita S. Cutberth, c. 21. De um modo geral, os relatos de ataques aos bens têm uma importância maior nas hagiografias francas do que nas hagiografias do Reino dos Visigodos e das Ilhas Britânicas. Isso não significa de modo algum que os ataques aos bens fossem mais frequentes no mundo franco do que em outros lugares, mas apenas que os hagiógrafos das Ilhas Britânicas, por exemplo, estavam mais preocupados com as relações com Roma, com a navegação até o continente (daí a frequência de milagres envolvendo o mar). Não se deve dar um tratamento quantitativo às diversas narrativas sobre o roubo, mas tentar compreender o significado da importância que esses relatos assumem nos textos francos. Pode-se questionar, nesse sentido, se as disputas em torno da propriedade eclesiástica não possuíam uma importância maior entre os francos do que na Irlanda ou na Espanha.

127

E sua punição é a mesma que atinge o ladrão das luvas de São Filiberto. É possível observar, na hagiografia, uma operação semelhante àquela que nas leges e nos textos conciliares transforma as pessoas, bem como o próprio Deus, em qualificativos jurídicos. O Liber Constitutionum, em seu título LXXXIX, prevê o assassinato de animais que invadem os vinhedos: [...]1. Na medida em que estamos preocupados com o prosseguimento e utilidade da agricultura, uma queixa geral foi trazida até nós não só em relação às nossas terras, mas também em relação às terras de outros proprietários, salientando que os vinhedos são guardadas em muitos locais com negligência tal que são arruinadas constantemente pelo gado e outros animais. Como resultado, ou as vinhas são despedaçadas e cortadas por animais ou, pisadas e arrancadas do próprio solo, são puxadas para cima pela raízes; daí o edito do nosso pai de gloriosa memória que foi emitido nos tempos antigos no que se refere ao abate de todos e cada um desses animais ou o pagamento de compensação. No entanto, reconhecemos que isto não tem sido observado, devido à negligência de todos. 2. Por isso, ordenamos que quaisquer que sejam os pequenos animais, ou seja, caprinos, ovinos ou suínos, que forem encontrados em um vinhedo, como muitas vezes é o caso, alguns podem ser escolhidos entre eles e, em seguida, mortos e mantidos pelo senhor da vinha. 3. Se, então, após uma terceira advertência, uma vaca é encontrada em uma vinhedo, ele pode ser morta e mantida pelo senhor do vinhedo. 4. Com efeito, no caso de bois, cavalos de carga, asnos, ou cavalos de montaria, se os referidos animais forem encontrados, o senhor ou aquele que cuida da vinha pode mantê-los consigo; e que seu proprietário pague um único tremissis para aqueles que os detém em custódia35.

No entanto, os animais discriminados no Liber Constitutionum não roubam; a preocupação do legislador é com a destruição dos vinhedos causada pela pastagem de caprinos, ovinos, suínos, vacas, bois e cavalos. No Cântico dos Cânticos, o versículo 15 do capítulo 2 convida a capturar as pequenas raposas que destroem as vinhas: Capite nobis vulpes parvulas quae demoliuntur 35 Liber Constitutionum, LXXXIX: “1. Cum de cultura studio et utilitate tractamus, generalis ad nos tam de nostris quam de possessorum agris querela pervenit, diversis locis tali negligentia vineas custodiri, ut omni tempore ab animalibus et pecoribus evertantur, dum aut evertuntur ipsae vites, pascendo truncantur aut conculcatae et fractae a solo ipso radicibus evellantur. Unde iam gloriosae memoriae patris nostri edictum processerat, in quo de singulis quibusque animalibus aut occidendi aut solvendi ordinem dicitur statuisse; quod praetermissum omnium abutione cognovimus. 2. Proinde iubemus, ut quolibet tempore minora animalia, id est: capra, vervices aut porci in vinea inventa fuerint, unum de ipsis, quotiens inventa fuerint, iubemus occidi a vineae domino praesumendum. 3. Vacca vero post tertiam conventionem si in vinea inventa fuerit, occidatur a vineae domino similiter praesumenda. 4. De bubus vero et caballis, asinis aut equis animalibus iubemus, ut dominus aut custos vineae inventa supradicta animalia includat, et per singula animalia singulos tremisses inferat, cuius sunt, ei a quo tenentur”.

128

vineas. Todavia, em momento algum, o Liber ou o Cântico utilizam a palavra “furto” para caracterizar o ato dos animais ou “latro” para designá-los No exemplo da Vita Columbani, o filhote de raposa estava acostumado a “viver de alimentos roubados”. E, no caso analisado a seguir, ainda na Vita Columbani, um corvo é claramente designado como um “ladrão”. O caso do “corvo-ladrão” envolve diretamente São Columbano. Durante a pausa para o almoço no monastério de Luxueil, o santo depositou sobre uma pedra na porta do refeitório um par de luvas, que costumava portar quando trabalhava. Assim que a calmaria retornou, um corvo, que o hagiógrafo chama de corvo-ladrão, pousou no local, tomou uma das luvas com seu bico e a levou embora. Terminada a refeição, Columbano procurou e não encontrou suas luvas, e declarou que, aquele que ousou tocar em alguma coisa sem permissão, nada mais é que o pássaro que foi solto por Noé e não voltou à arca. Ele jamais poderá alimentar seus filhotes, acrescentou Columbano, se não trouxer rapidamente o objeto roubado. Sob os olhares dos irmãos, o corvo pousou no meio da assembleia, trazendo, em seu bico, o objeto roubado. Em vez de tentar voar e fugir, ele permaneceu tranquilamente diante de todos, esperando seu castigo, até que o santo ordenou que ele partisse36. O objeto roubado pelo pássaro é o mesmo que, em outros textos hagiográficos, é apropriado pelos ladrões. O animal escapa da morte ao trazer de volta ao santo o objeto roubado, da mesma forma que, em outras vitae, os ladrões recebem o perdão e escapam da morte ao devolverem os bens dos santos ou das igrejas. Os casos dos animais acusados de roubo e, em seguida, condenados ou perdoados pelos santos, são o melhor exemplo de que as hagiografias nem sempre descrevem “sujeitos” redutíveis a pessoas ou a individualidades. Nesses textos, o imperativo da descrição dos fatos, no caso dos animais-ladrões, não é outro, senão aquele criado pelas normas conciliares, cujo objetivo era proteger os bens das igrejas contra todos aqueles que tentassem se apropriar deles. Mais do que uma metáfora que servia para condenar quem se apropriava 36 Vita Columbani I 15, 25: “Aliaque vice cum ad cibum capiendum veniret (beatus igitur Columbanus) in sepefacto caenubio Luxovio, tegumenta manuum, quos Galli wantos vocant, quos ad operis labore solitus erat habere, supra lapidem qui ante fores refecturii erat deposuit; moxque,quiete reddita, corvus alis rapax advolavit, unumque ex eis rostro ferens, abstulit. Peracta refectionis hora, foris vir Dei rediens, tegumenta manuum requirit. Cumque omnes inter se conquererunt, qui abstulissent, vir sanctus ait, nullum alium esse, qui sine comeatu aliquid adtingere presumpsisset, nisi alitem, qui a Noe dimissus, ad arcam non remeavisset, addiditque nullo modo suos pullos aliturum, si rapacem furtum celeri volatu non referret. Expectantibus fratribus, in medio omnium corvus advolat, male sublatum furtum rostro reportat nec se pennigera conatur eripere fuga, sed mitis ante omnium conspectum, oblitus ferocitatus, ultionem expectat, quem vir sanctus abire imperat. O mira aeterni iudicis virtus! qui tanta suis famulis prestat, ut non solum hominum honoribus, sed etiam avium oboedientia clarescant”.

129

dos bens dos santos e das igrejas, o exemplo do animal-ladrão consistia em uma qualificação jurídica que equiparava o animal dos textos hagiográficos ao ladrão das leges e dos textos conciliares. Claro, as normas não previam a condenação de animais por roubo, mas isso mostra a capacidade dos textos hagiográficos de modificar coisas, relações e significações. Os relatos de roubos praticados por animais têm um desfecho semelhante aos dos roubos praticados pelos ladrões dos textos legislativos. Isso não elimina o caráter exemplar desses relatos, e o fato de que são destinados a coibir o roubo de bens eclesiásticos, além de mostrar que todos os que roubam bens da Igreja são punidos – qualquer que seja sua condição ou estatuto. É exatamente isso que prevê, por exemplo, o cânone 18 do Concílio de Clichy. Ao exemplificar esse princípio, o texto hagiográfico também abre mão de formas jurídicas que não se reduzem a sujeitos ou individualidades. O “animal-ladrão” das vitae francas é um qualificativo jurídico, da mesma forma que o “escravoladrão” da Passio Leudegarii. As normas conciliares não previam a condenação de animais por roubo, mas essa variação mostra a força dos qualificativos jurídicos, sua presença nas vidas de santos. Essa ampliação da personificação do ladrão abrangendo animais, por exemplo, testemunha o deslocamento da norma para um campo documental que, a princípio, considerar-se-ia livre de influência normativa. O Direito transforma o mundo social em uma linguagem que o distingue, pois o transporta em um registro normativo que realiza o que há nesse mundo de obrigatório, como a moeda realiza o valor no momento da troca37. Inicialmente, há apenas as coisas: sujeitos inumeráveis, de uma infinita variedade, que nada ainda determina, senão os limites que circunscrevem as atividades da política e do tribunal. A partir da controvérsia, a res torna-se uma “causa”. A causa é essa coisa transformada em “locus” da controvérsia. Essa é a primeira etapa de uma formalização verbal, por meio do contrato, de todas as violências, que se resolvem em processo. A segunda etapa marca a passagem da causa à questio. Tal como está, a causa ainda é demasiadamente concreta. É necessário, então, depurar todas as determinações - circunstâncias diversas, pessoas - que impeçam de ver o que ela contém de essencial: um puro problema. Essa abstração conduz a um “gênero”, ao qual toda causa se reduz. Assim, a “res” é definitivamente ultrapassada. Sua redução analítica consiste em uma extração, pelo sujeito, da substância do objeto; uma eliminação de uma parte da controvérsia em proveito de uma parte irredutível e central: a “natura” e o “genus causae” manifestam a presença de uma “questio universa”, que permite que se descole uma causa específica. Esse método projeta sobre o objeto uma estrutura artificial, reconhecida como uma estrutura real. Esse 37 Maille, M. Une introduction critique au droit, Paris, 1976: 100.

130

procedimento, fundado, inicialmente, em uma visão distinta das coisas e das palavras, “res” e “verba”, acaba produzindo um mundo de palavras que são coisas, de nomes que não são mais instrumentos intelectuais, mas essências. Das palavras às coisas, o Direito não se contenta em estabelecer equivalências, mas opera uma espécie de mediação, que produz, entre os dois, um mundo específico de realia38. Ao longo deste trabalho, buscou-se mostrar como as “palavras”, tornadas “coisas”, ultrapassam o campo da retórica do procedimento judiciário, para se instalarem na documentação hagiográfica. O estudo dos casos de roubo nas hagiografias francas permite observar essa passagem, e tentar compreender de que forma essas “essências” impactam a configuração narrativa das relações entre pessoas e coisas, transformando-os em sujeitos e bens. As operações jurídicas não se contentam em qualificar as pessoas, as coisas e suas relações; elas as transformam. Não há uma fronteira rígida, definida aprioristicamente, entre, de um lado, o mundo da “ficção” e, de outro, o mundo “real”, mas uma linha flexível cujo deslocamento se faz em função da necessidade de construção da sociedade. As coisas, por exemplo, as relíquias, podem se tornar pessoas: P. Geary, em seu estudo sobre o roubo de relíquias, mostra como essas podem escolher permanecer onde estão, ou partir com os ladrões. É o que acontece com o corpo de Santo Elói: o local de seu sepultamento provocou uma querela entre a rainha Batilda, que pretendia enterrá-lo em Chelles, onde ela se encontrava exilada, e os habitantes de Noyon, que pretendiam conservá-lo em sua cidade; outros ainda queriam levá-lo para Paris. O corpo do santo teria se recusado a se mexer, indicando sua escolha por Chelles. Também a Vita Vedasti, de Alcuíno, relata que, quando ia ser enterrado fora da cidade, no oratório que o próprio santo havia preparado para isso, seu caixão teria sido levantado pelo povo e pelo clero com a maior facilidade, o que indicaria o consentimento do santo39. Mesmo os animais podem se tornar sujeitos, como o filhote de raposa ou o corvo, culpados de roubo na Vita Columbani. Os relatos de roubo nas vidas de santos mobilizam coisas e pessoas, transformando-os em formas jurídicas próximas daquelas encontradas nas leges e nos textos conciliares. Essa projeção atende aos imperativos de defesa dos 38 Thomas, Y. Le droit entre les mots et les choses. Rhétorique et jurisprudence à Rome. Archives de Philosophie du Droit, 1978: 93-114. 39 “Qui mox facillime leuentes feretrum portabant sanctum corpus cum luminibus, laudibus et hymnis ad locum sibi placitum, sepelientes eum cum magno honore iuxta altare eiusdem oratorii, nobile terrae condentes thesaurum” (Veyrard-Cosme, C. L’œuvre hagiographique en prose d’Alcuin. Vitae Willibrordi, Vedasti, Richarii. Édition, traduction, études narratologiques. Firenze: Edizioni del Galluzzo, 2003: 104-106). A versão da Vita Vedasti, escrita por Jonas de Bobbio no século VII, relata o mesmo fato, em seu capítulo 9 (SRM III, 1896, ed. Krusch, B.: 406-413).

131

bens eclesiásticos. É possível pensar a punição do ladrão nos textos hagiográficos como uma forma de preservação da propriedade ou como um instrumento de construção do proprietário? A leitura dos relatos de roubo nas vitae francas mostra que nelas o proprietário é mais importante que o direito à propriedade: as hagiografias não refletem sobre os direitos de propriedade, mas sobre os direitos do proprietário. A propriedade é um princípio absoluto, no sentido de que não pode, ela própria, anular-se, romper-se. É necessário, para tanto, a intervenção de um princípio, ou de uma prática, oriunda do exterior, o roubo, a doação, a venda. Nos textos estudados anteriormente, os santos, muitas vezes, abrem mão desse direito: os direitos do proprietário incluem a prerrogativa de abrir mão de seus bens. É assim que se constrói sua “soberania”, ou seja, o próprio direito de propriedade. O direito de dispor livremente dos bens é elemento capital na construção da noção de propriedade. A soberania do proprietário e sua autonomia em face dos diversos tipos e estatutos de ladrões participarão da construção da ideia de propriedade. Nas hagiografias, o proprietário se impõe a todos os tipos de ladrões, a todos os tipos de bens roubados, exatamente como previa o Concílio de Clichy. Há outro indício de que as vidas de santos se preocupam com os proprietários, e não com a propriedade. O roubo é descrito como uma iniuria cometida contra o proprietário, muito mais que um atentado à relação entre o proprietário e seus bens. A punição serve para restabelecer o honor da vítima, ou seja, do proprietário. O retorno do bem roubado, nesse caso, não é essencial. O perdão acordado por Eusicius no relato de Gregório Magno reforça o estatuto do proprietário, e também promove a circulação de bens. Há dois mecanismos para a promoção das doações: o primeiro, e mais evidente e recorrente, é aquele que propaga a capacidade dos santos em proteger os bens que lhes são doados. O segundo, mais sutil, e também mais raro na hagiografia franca, expõe a propensão dos santos em distribuir bens, mesmo àqueles que tentam roubá-los. Há cerca de 30 anos, P. Geary, em seu estudo sobre o roubo de relíquias, afirmava que as relíquias em si, restos físicos de santos, são essencialmente passivas e neutras, e, portanto, não são de primordial importância para historiadores. São os indivíduos que entraram em contato com esses objetos, dando-lhes valor e assimilando-os à sua história, quem são os sujeitos da pesquisa histórica40. O valor atribuído pelos sujeitos às relíquias cumpre um papel semelhante àquele identificado por M. Godelier: ele modifica a natureza das coisas. Todavia, o que se procurou estudar aqui é o papel das normas, não de indivíduos singulares, nesse processo de reconfiguração dos limites entre coisas e pessoas. Não é possível subestimar a capacidade dos qualificativos jurídicos em 40 Geary, P. Furta Sacra: 3.

132

fabricar pessoas e coisas no mundo franco da Alta Idade Média. Uma questão que ainda não foi suficientemente explorada e que talvez o seja num futuro próximo é a seguinte: em que medida essas construções jurídicas tornaram-se sujeitos da história social, até tornarem-se quase imperceptíveis aos historiadores como aquilo que eram inicialmente, isto é, qualificativos jurídicos.

133

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.