O Processo de Leitura na sala de aula de Língua Estrangeira

May 28, 2017 | Autor: Karen Currie | Categoria: Teaching and Learning
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O Processo de Leitura na sala de aula de Língua Estrangeira De Karen L. Currie, Departamento de Línguas e Letras, UFES Publicado na Revista SABERES Letras, Vol 3, Nº 1, jan. / junho 2005, pp 135-147, Vitória, ES: Saberes Instituto de Ensino Ltda. Ed. Mª da Penha Pereira Lins.

A leitura é uma aventura, deve seduzir o leitor a se arriscar, a explorar terrenos desconhecidos, a construir imagens e idéias nunca imaginadas antes. O leitor deve tomar os primeiros passos de cada nova caminhada repleto de entusiasmo, de curiosidade, consciente do frisson do incógnito, ávido por experiências novas. Cada ser humano é diferente. Possuímos habilidades e capacidades diferentes. Construímos as nossas preferências e gostos de acordo com as nossas oportunidades, nosso contexto político-econômico-social e as nossas tendências genéticas. Por exemplo, quando Gardner pesquisou os fatores envolvidos na construção de capacidades específicas, ele afirmou o seguinte: Tratando-se tanto da inteligência geral (...) quanto de capacidades específicas, como a habilidade espacial ou musical, parece que a metade da variação depende de fatores genéticos. Quer dizer, evidencia-se que aproximadamente metade da variação dentro de uma população específica é uma função da história genética do indivíduo, enquanto próxima da metade restante baseiase nas experiências individuais (tipicamente diferentes) no mundo. (Gardner, 2000:83) 1

A natureza de cada um é singular e, sem dúvida, as nossas opções de leitura contribuem para a formação das nossas idéias e para o desenvolvimento da capacidade de pensar. A leitura é uma ferramenta poderosa para nutrir, sustentar, abastecer, munir, instruir, estimular, alimentar o ser pensante. Infelizmente a leitura nem sempre é utilizada na sala de aula de língua estrangeira para desenvolver a capacidade de pensar. 1

Quando a citação for extraída de textos na lingual inglesa, o trecho original seré apresentado em nota de rodapé. A tradução é da autora. Citação original (Gardner, 1999:83): Whether one is dealing with general (Psychometric) intelligence, or with specific capacities like spatial or musical ability, it seems that half of the variation is due to genetic factors. That is, roughly half of the variability found within a given population proves to be a function of individual genetic history, while the remaining half, roughly, is due to (typically differing) individual experiences in the world.

Com freqüência, é usada apenas para ampliar o conhecimento restrito da língua em estudo. Os textos utilizados na sala de aula são produzidos apenas com o objetivo de ensinar uma língua estrangeira – não para informar, emocionar, provocar reflexão, encantamento ou desafios. Como diz Nuttall (1996:30): Muitos alunos de língua estrangeira (...) precisam ler para compreender o significado de um texto. A linguagem funciona simplesmente como um veículo para transmitir uma mensagem considerada importante, enquanto na sala de aula de língua estrangeira, a mensagem freqüentemente serve para exemplificar a língua.2

Como desenvolver a capacidade de ler na sala de aula de língua estrangeira? Como estimular o gosto pela leitura? Como convencer o aluno das múltiplas possibilidades de um investimento maior na leitura como um processo? Em primeiro lugar, é essencial reconhecer a individualidade de cada aluno. O professor precisa conhecer os alunos, suas preferências, os gêneros prediletos ou rejeitados, os autores favoritos ou nunca lidos, para montar um programa de leitura baseado numa variedade de textos que garanta a motivação dos alunos e atenda aos objetivos do professor. No decorrer da disciplina ‘Leitura I’ do curso de Licenciatura em Letras-Inglês da Universidade Federal de Espírito Santo, trabalhamos com uma diversidade de textos – literatura infantil, artigos científicos e jornalísticos, revistas de diferentes áreas, textos informativos, propaganda e ficção, entre outros. E uma das atividades que estimulou uma troca muito enriquecedora de idéias das mais diversificadas se baseou na análise de um conto contemporâneo da literatura inglesa, e é essa experiência que pretendo relatar agora. O conto é entitulado ”Iphigenia in Hampstead” [‘Ifigênia em Hampstead’], escrito pelo autor Barry Unsworth, nascido em 1930, na região norte da Inglaterra. É autor de

dez livros, dos quais Mooncranker’s Gift [‘Dádiva de Mooncranker’] recebeu o Prêmio Heinemann em 1973; o livro Pascali’s Island [‘Ilha de Pascali’] foi nomeado para o Prêmio Booker em 1980 e Sacred Hunger [‘Fome Sagrada’] ganhou o Prêmio Booker em 1992. O conto é muito curto (apenas três páginas), o que permite a sua leitura e análise em sala de aula. Começamos a nossa primeira aula com a leitura do conto inteiro e uma discussão inicial das primeiras impressões geradas pelo conto. Qual o efeito principal da história? Quais as emoções provocadas? Quais as cenas visualizadas? Por quê uma cena marcou mais que outra? Nota-se que o professor precisa utilizar perguntas abertas com a finalidade de incentivar e problematizar a discussão. Quando utilizamos perguntas que exigem a resposta ‘Sim’ ou ‘Não’, ou quando existe apenas uma resposta ‘certa’ na cabeça do professor, não haverá uma discussão verdadeira na sala de aula, onde os participantes são estimulados a expressarem suas opiniões enquanto ouvem as opiniões dos colegas (Vejam Currie de Carvalho, 1991 e Fisher, 1987). É claro que, na medida em que cada aluno foi se expressando, foram surgindo impressões das mais diversas – e até contraditórias. Neste tipo de situação é essencial que o professor assuma de fato seu papel de ‘facilitador’. Ele não deve emitir as suas opiniões, mas deve ajudar os alunos a investigar, de forma mais aprofundada, as idéias próprias que estão começando a se formar. As perguntas do professor deveriam ser do tipo: Por quê você pensa assim? De onde você tirou essa impressão? Qual seria uma explicação para essas opiniões contraditórias? Dessa forma, o professor convidaria o aluno a analisar suas impressões iniciais, ouvindo idéias diferenciadas propostas pelos colegas num processo de investigação minuciosa do significado do texto. 2

Citação original (Nuttall, 1996:30): Many foreign language learners (...) need to read for meaning.. Language is simply the vehicle conveying the message which is important to them, whereas in language

Os autores do livro No Limits to Learning (‘Aprendizagem sem Limites’), Botkin et al, ao apresentar suas conclusões sobre a necessidade de uma aprendizagem inovadora para garantir a sobrevivência do ser humano no mundo futuro, falam da importância fundamental da participação ativa na construção desta aprendizagem inovadora dizendo o seguinte: Para evitar os perigos de uma compreensão enganada ou limitada, é essencial desenvolver a capacidade de comparar contextos diferentes e de saber reconciliar os conflitos neles contidos. O significado raramente depende de uma construção pessoal. Requer uma ratificação intersujeita. Através da comunicação, os contextos individuais são confrontados, compartilhados, expandidos ou modificados. Assim a interação assume uma importância que nos permite transcender o significado individual para reconhecer interesses compartilhados maiores e de manter a flexibilidade no nosso armazém de contextos. (Botkin et al, 1979:24)3

Quando o professor estimula os alunos a compartilhar os múltiplos significados do texto através da troca de idéias, ele estaria investindo na construção de uma comunidade onde os alunos aprenderão a reconhecer e a respeitar as diferenças. Lembramos a ênfase de Gardner na importância da colaboração como um fator fundamental para construir uma ‘nova escola’. No livro Multiple Intelligences: the theory in practice (‘Inteligências Múltiplas – a teoria na prática’), ele fala o seguinte: Numa comunidade viável, os membros reconhecem as diferenças e se esforçam para adquirir tolerância, enquanto aprendem a conversar um com o outro de forma construtiva na procura permanente de estabelecer concordância geral. (1993:84) 4

classrooms the message is too often the vehicle conveying the language. 3 Citação original Botkin et al 1979:24): To avoid the dangers of misleading or parochial understanding, it is essential to develop the capacity to compare different contexts and to reconcile their conflicts. Meanings are seldom private. They require intersubjective validation. It is through communication that individual contexts are confronted, shared, expanded or changed. Hence the importance of interaction, which permits us to transcend individual meaning, to recognize larger shared interets, and to maintain flexibility in our storehouse of contexts. 4 Citação original Gardner, 1993:84): In a viable community, members recognize their differences and strive to be tolerant, while learning to talk constructively with one another and perennially searching for common ground.

Portanto, precisa haver um investimento permanente por parte do professor em garantir espaços para construir esse tipo de comunidade na sua sala de aula onde todos os membros investem numa aprendizagem mútua. Durante as aulas anteriores, estudávamos a teoria de esquemas (schema theory) onde os alunos procuravam identificar as pressuposições implícitas em textos diferentes. A teoria diz que para garantir a compreensão de um texto, o leitor precisa compartilhar com o autor conhecimentos específicos sobre o mundo, construídos através da experiência. Um ‘esquema’ se refere a uma estruturação mental, portanto abstrata, das experiências vividas, e às relações que existem entre os diversos componentes dessa estrutura. Como afirmam Carrell e Eisterhold (1988): (...) de acordo com a teoria de esquemas, o texto oferece apenas direcionamentos para ouvintes ou leitores que indicam como devem resgatar ou construir significados com base no seu próprio conhecimento previamente adquirido. Este conhecimento previamente adquirido é chamado conhecimento de fundo, e as estruturas que organizam esse conhecimento previamente adquirido são chamadas esquemas. 5

Assim, quando interpretamos um texto, existe um processo interativo entre o conhecimento construído previamente pelo leitor e o texto produzido pelo autor. Entretanto, é importante enfatizar que existem esquemas que organizam diferentes áreas de conhecimento. Por exemplo, é fundamental distinguir entre esquemas de conteúdo e esquemas ‘formais’, que organizam o conhecimento prévio relacionado ao gênero do texto, às estruturas morfossintáticas, à organização do discurso, etc. Assim sendo, quando o leitor possui esquemas ‘formais’ que diferenciam entre a estrutura de uma fábula e a estrutura de um texto acadêmico, ao começar a ler uma fábula, o leitor vai ativar o esquema formal apropriado que, por sua vez, vai criar

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Citação original (Carrell e Eisterhold, 1988:76): (...) according to schema theory, a text only provides directions for listeners or readers as to how they should retrieve or construct meaning from their own, previously acquired knowledge. This previously acquired knowledge is called the reader’s background knowledge, and the previously acquired knowledge structures are called schemata.

expectativas de organização textual que serão confirmadas (ou não) durante a leitura do texto. Os esquemas construídos com referência ao conteúdo previamente organizado vão permitir que o leitor utilize seu conhecimento sóciocultural para interpretar um texto. Assim, se o texto fala da geografia do estado de Espírito Santo e o leitor conhece bem esse assunto, ele vai ativar os esquemas disponíveis e vai conseguir criar sentido a partir das referências explícitas e implícitas do autor. Mas, se o leitor não possui o conhecimento específico necessário, ele não vai conseguir ativar esquemas apropriados para a construção do significado do texto. Devemos lembrar também, que mesmo quando o leitor ative seus esquemas existentes, nem sempre aqueles esquemas ativados pelo leitor são os mesmos do autor. Carrell e Eisterhold explicam o que acontece nessa situação: (A) falha por parte do leitor, quando não consegue ativar um esquema apropriado, pode surgir ou porque o escritor não ofereceu dicas suficientes no seu texto para que o leitor utilizasse efetivamente o modo de processamento ‘de baixo para cima’6 para ativar esquemas já existentes, ou pode surgir porque o leitor não possui o esquema apropriado previsto pelo autor, e por esta razão não consegue compreender o texto. Em ambos os casos, existe uma falha entre o que o autor considera que o leitor é capaz de fazer para extrair significado do texto e o que o leitor consegue fazer de fato. Os esquemas apropriados precisam existir e precisam ser ativados durante o 7 processamento do texto. (1988:80)

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O modo de processamento ‘de baixo para cima’ refere-se à construção do significado do texto a partir das marcas na página. O leitor reconhece as letras, depois as palavras e, juntando as peças, produz o sentido das frases e finalmente o significado do texto como um todo. 7 Citação original (Carrell e Eisterhold, 1988:80): (The) failure to activate an appropriate schema may either be due to the writer’s not having provided sufficient clues in the text for the reader to effectively utilize a bottom-up processing mode to activate schemata the reader may already possess, or it may be due to the fact that the reader does not possess the appropriate schema anticipated by the author and thus fails to comprehend. In both instances there is a mismatch between what the writer anticipates the reader can do to extract meaning from the text and what the reader is actually able to do. The point is that the appropriate schemata must exist and must be activated during the text processing.

Dessa forma, uma interpretação bem sucedida de qualquer texto vai depender da semelhança entre os esquemas do leitor e os do autor. Como trabalhar esse conceito em sala de aula? Voltemos para a análise do curso de Leitura I para tentar situar o problema e suas soluções. Antes de ler o conto em análise, os alunos já tinham trabalhado com a identificação de pressuposições em textos jornalísticos e exemplos de propaganda. Nesses gêneros, a identificação de esquemas é facilitada por meio do contexto da escrita e das ilustrações que acompanham o texto. Mas, quando foi lido o conto ‘Ifigênia em Hampstead’, os alunos se sentiram um tanto confuso, dizendo que não sabiam por onde começar a sua análise. Sugeri que seria interessante começar com o título – que, a final, é o resumo mais sucinto do texto. E, quando começaram a ventilar suas idéias iniciais, é claro, surgiu uma grande variedade de esquemas diferentes e a troca em si provocava o aparecimento de novas associações. Mas, constatamos que nenhum aluno conhecia a história da personagem Ifigênia da Grécia Antiga e ninguém sabia que Hampstead era um bairro muito sofisticado da cidade de Londres. Portanto, faltavam informações fundamentais para a construção dos esquemas básicos necessários para uma interpretação bem sucedida do texto em estudo. Como preencher essas lacunas? Se acreditarmos que o aluno aprende através da construção ativa do conhecimento, o professor não pode simplesmente ‘entregar’ informações que considere essenciais. Ele precisa pensar em como montar situações de aprendizagem que ofereçam as condições necessárias para essa construção individual do conhecimento. Já que cada ser humano possui uma organização singular do conhecimento, sua aprendizagem ocorrerá também de forma singular. Sendo assim, as propostas de aprendizagem precisam garantir espaços para a expressão individual e a troca de idéias diferenciadas.

Levando esses conceitos em consideração, fomos lendo o texto em conjunto, identificando áreas que precisariam de maiores investimentos para começar a compreender melhor a mensagem do autor. Em outras palavras, um dos objetivos principais desta atividade foi de construir o significado do texto da melhor forma possível, de acordo com os esquemas disponíveis aos leitores, investindo na ampliação dos esquemas existentes e na construção de esquemas ausentes. Portanto, essa leitura em conjunto serviu para identificar esquemas que necessitavam de investimento. O conto apresenta uma personagem moderna, chamada Christine Grainger, que mora no bairro de Hampstead, em Londres, e que começa a pintar de novo após uma tentativa de suicídio. Ela está no seu apartamento, ouvindo música clássica e trabalhando numa tela. O texto conta os pensamentos de Christine – explorando seu estado emocional, memórias sensoriais entrelaçadas com descrições de sua pintura, uma viagem à Grécia, etc. Os alunos decidiram que precisavam saber mais sobre a personagem do título (Ifigênia); sobre o bairro de Hampstead e as especificidades da natureza descritas no texto, já que se tratava de uma paisagem desconhecida; sobre as cores descritas no texto por meio de vocábulos desconhecidos; sobre o que leva as pessoas a cometer suicídio e sobre a Grécia, entre outros assuntos. Pesquisaram individualmente, ou em duplas, de acordo com as áreas que mais lhes interessavam, no laboratório de informática, por meio da Internet – a nossa biblioteca global que oferece uma variedade enorme de textos na língua inglesa e informações visuais das mais sofisticadas. Um acervo e tanto! Os alunos procuraram ampliar os ‘esquemas’ à sua disposição para melhor compreender o texto. Por exemplo, vários alunos decidiram procurar maiores

informações sobre a história de Ifigênia na tentativa de entender melhor a relação entre esta referência no título e a personagem principal – Christine. Após a sua pesquisa, a aluna R.A. apresentou as seguintes conclusões8: Quando pesquisamos a tragédia de Ifigênia, descobrimos que seu pai era uma autoridade que exercia muito poder. No conto, o pai de Christine também era muito rico. Sabemos isso porque ela morava num bairro muito rico de Londres e o texto menciona o motorista do pai, demonstrando que seu pai era uma pessoa de posses. (...) Um outro ponto em comum às duas personagens se refere ao processo de transformação implícito na morte. Ifigênia se transformou em deusa e Christine fala do estágio ‘larval’ de sua vida, evocando o ‘esquema’ da transformação de uma lagarta em borboleta. (...) Na tragédia de Ifigênia, ela não tinha escolha, seu sacrifício era inevitável, ela tinha que desempenhar um propósito a fim de garantir o cumprimento de um itinerário [de seu pai]. No conto em estudo, Christine menciona que seu amigo Ronald ‘sempre faz a gente se sentir parte de um itinerário’. Este comentário talvez indique que ela pensava que a sua vontade não tinha importância nem para seus amigos e nem para sua família.

Percebe-se com clareza que a pesquisa na Internet, que visava a ampliação de conhecimentos específicos, permitiu uma compreensão bem aprofundada do texto em estudo. Esta mesma aluna comenta no seu parágrafo final que: A primeira vez que li o conto, não entendi nada sobre as ligações entre o título e a personagem principal. Não conhecia a história de Ifigênia. Somente após a pesquisa comecei a entender as conexões entre Christine e Ifigênia, o conflito de família, a idéia de um ato de abnegação com propósito de garantir ‘ventos favoráveis’ e a falta de escolha. O conto não pode ser entendido como um simples diário de uma mulher depressiva, é uma narração astuta dos sentimentos profundos de uma mulher.

R.A. foi estimulada a investir numa pesquisa autônoma com objetivo de compreender melhor as pressuposições do autor através da ampliação de seus ‘esquemas’ existentes. Ela também buscou informações novas que serviram para construir novos ‘esquemas’, e todo esse trabalho contribuiu efetivamente para uma interpretação bem sucedida do texto. Um outro fator fundamental, que contribui para o desenvolvimento de uma compreensão mais aprofundada de um texto, também foi utilizado como um dos focos

de investimento neste exercício – a socialização da diversidade de interpretações de diferentes leitores. Vários alunos investigaram a história da personagem Ifigênia na tentativa de ampliar os ‘esquemas’ à sua disposição. Mas cada um focalizava fatores diferentes da história. Já apresentamos as conclusões de R.A., mas outros alunos que pesquisaram o mesmo assunto chegaram a conclusões diferentes. F.S., por exemplo, não enfatizou o processo de transformação relacionada à morte das duas personagens. Na sua pesquisa sobre a história de Ifigênia, ela descobriu que, em algumas versões, Ifigênia se preparou para o sacrifício, mas na última hora foi salva pela Deusa Ártemis, e passou a serví-la como sua sacerdotisa. Baseando-se nos dados levantados e na sua análise dos esquemas identificados, F.S. afirma que: (...) as duas personagens se tornaram dependentes. Ifigênia foi obrigada a servir à Deusa Ártemis, enquanto Christine era controlada inicialmente pelos funcionários do hospital e mais tarde pelo amigo, que não procurava saber a opinião dela, convidava Christine para um encontro de acordo com a própria disponibilidade.

A aluna S.O. também pesquisou a história de Ifigênia e se concentrou na leitura de um monólogo, na peça escrita por Eurípides, em que Ifigênia pergunta ao pai porque ela precisa ser sacrificada. S.O. explica que inicialmente não entendia a relação entre uma menina que implorava ao seu pai para não morrer e outra menina que tentava se suicidar. A primeira conexão que ela levantou era de que as duas personagens se aproximavam muito à experiência da morte e que o leitor deveria pensar sobre esse contexto e as diferentes reações possíveis nele contidas. Mas após “estimular a imaginação durante mais tempo” ela chegou à conclusão de que: (...) o sentimento compartilhado pelas duas personagens ao se aproximarem da morte era a apreciação intensificada da vida. O monólogo de Ifigênia e o conto em estudo descrevem muitos detalhes da vida, coisas que normalmente não são percebidas. Ifigênia fala para seu pai que não quer morrer porque ama a vida, enquanto Christine finalmente está deixando para trás o estágio larval de sua vida, se transformando em borboleta, prestes a esticar suas asas 8

Os alunos escreveram em inglês mas os trechos citados serão apresentados em português.

e voar. Assim começa a nova vida de Christine. Ambas estão pedindo uma segunda chance para continuar a viver.

Em vez de pesquisar especificamente a história de Ifigênia, a aluna S.T. decidiu procurar maiores informações sobre o autor – Barry Unsworth. E descobriu que seu livro mais recente, The Songs of the Kings [‘As Canções dos Reis’] trata do dilema do rei Agamêmnon quando se encontra ilhado com seu exército em Aulis. S.T. sugere que o autor já estava pesquisando o material para este livro quando escreveu o conto em estudo e enfatiza o contexto maior do problema enfrentado por Agamêmnon – pai de Ifigênia – dizendo que: Ifigênia foi escolhida para ser sacrificada porque simbolizava a inocência, era a vítima perfeita para o sacrifício. Era virgem, filha do rei, e seu sacrifício comprovaria que Agamêmnon estava de fato comprometido com a guerra. De acordo com a peça de Eurípides, aprendemos que ele [Agamêmnon] não estava interessado em participar na guerra inicialmente e que seus ministros concordaram com o conselho do oráculo, de que o sacrifício de Ifigênia era indispensável, porque se Agamêmnon concordasse em matar sua própria filha, o exército acreditaria na importância da guerra. (...) Portanto, a garganta de Ifigênia não foi cortada para ‘garantir ventos favoráveis’, mas para comprovar a importância da guerra. (...) Apesar de não sacrificarmos mais os seres humanos, hoje em dia criamos bodes expiatórios (...) e essa talvez seja a ligação maior entre as duas personagens.

A partir do seu investimento no contexto maior da história de Agamêmnon, S.T. mostrou a importância do contexto sócio-econômico-político do sacrifício de Ifigênia e provocou uma análise mais aprofundada na sala de aula do contexto político da vida moderna. Um outro aluno que contribuiu para um investimento maior no contexto geral da história de Ifigênia, e conseqüentemente para uma compreensão maior das pressuposições implícitas no conto em estudo, foi F.G., que focalizou sua busca na coleta de informações sobre o ‘vento’, já que, no final do conto, Christine identifica na sua pintura o rosto de Ifigênia que foi sacrificada para garantir um vento favorável. F.G. procurou compreender melhor a relação entre navios e ventos, descobrindo textos que

descreveram novas tecnologias que simulem o efeito de ventos diferentes na estrutura de navios. Ele faz comentários como os que seguem: O vento era o problema principal para a história de Ifigênia. Se existisse um vento favorável, ela não teria sido sacrificada. (...) Se Agamêmnon tivesse acesso às informações tecnológicas modernas não precisaria sacrificar sua filha. (...) Através da minha pesquisa, descobri de que forma o vento contribui para a navegação (...) e como os gregos antigos dependiam do mar, do vento e dos navios para transporte, comunicação e para alcançar seus objetivos. Penso que minha pesquisa me ajudou a compreender o contexto da história de Ifigênia, mas não necessariamente o conto em estudo.

Discordo de F.G.. Acredito que, na medida em que o leitor amplie seus ‘esquemas’, ele automaticamente investe numa interpretação mais aprofundada. Através de sua pesquisa sobre o vento, F.G. compreendeu muito mais sobre a sociedade da Grécia Antiga e do papel fundamental do vento nessa sociedade. Se analisarmos o sacrifício de uma filha para garantir um vento favorável sob a ótica da tecnologia moderna, a reação do leitor é condicionada pelo seu contexto atual. Mas se o ato de sacrifício é contextualizado pelas características da sociedade onde ocorreu, este começa a assumir diferentes proporções, adquire outros significados que contribuem para uma interpretação enriquecida pelo conhecimento de culturas diferentes de épocas diferentes. Outros alunos investigaram as características do bairro de Hampstead, comparando sua opulência moderna às construções magníficas da Grécia Antiga. Descobriram sites na Internet que alugavam apartamentos em Hampstead, e passearam pelas salas, quartos e cozinhas, conhecendo melhor o cenário doméstico da personagem principal. No texto, Christine Grainger está pintando uma paisagem local, e o detalhamento das cores da natureza levou os alunos a investigar diferentes tonalidades e gradações de cor em sites de decoradoras e vendedores de tinta, descobrindo uma verdadeira paleta de vocábulos desconhecidos. Outros pesquisaram as características das árvores que faziam parte da composição da tela. A topologia da região também foi

objeto de estudo – descobriram muitas fotografias de passeios típicos que retratavam a flora e a fauna local de forma cativante. No final do texto, Christine lembra de um passeio pela Grécia, o sol forte e o mar colorido e quente, logo os alunos buscaram comparar estações diferentes nos dois países, as cores e características naturais do outono na Inglaterra e as características bem diferentes do verão na Grécia. O tópico de suicídio também atraiu muitos alunos. Buscaram compreender melhor o que leva a pessoa ao suicídio. Descobriram muitos grupos de ajuda, as causas principais de depressão, os meios utilizados, etc. A aluna D.M., por exemplo, confirmou que a sua pesquisou ajudou a: (...) compreender melhor o estado mental da personagem central. A maioria das pessoas tenta se suicidar acreditando que vão melhorar sua condição humana. E algumas religiões acreditam que o suicídio pode ser visto como uma forma de agradecer aos deuses pela vida boa que tiveram. (...) é notável observar que o suicídio é muito comum entre as pessoas de classe alta na sociedade (...) Ifigênia e Christine estavam enfrentando guerras diferentes: a primeira uma guerra envolvendo seu país, e a segunda uma guerra pessoal. Ambas as guerras levaram as personagens a experimentar a morte.

Durante as sessões de pesquisa no laboratório de informática, os alunos compartilharam as imagens que foram descobrindo. E depois de concluir o trabalho foram duas sessões intensas de apresentação e discussão onde se destacavam: a variedade de tópicos investigados; as diferentes interpretações ventiladas; a multiplicidade das imagens registradas; a troca de informações das mais diversas e a soma de todas as impressões capturadas e gravadas. No final, como coroamento de todo o processo de investimento, o conto foi lido novamente em voz alta pela professora – e todos os alunos, sem exceção, confirmaram que a sua compreensão do texto durante a leitura final foi muito diferente da leitura inicial. Após todo seu processo de investimento, estavam muito mais conscientes da riqueza do texto, da complexidade de sua estruturação e das inúmeras camadas de significado. Surgiram imagens qualitativas, impregnadas de sutilezas e tonalidades, referências específicas e nuanças emocionais

nunca imaginadas durante a leitura inicial. O esforço individual de busca, análise e construção de conclusões, a liberdade de investigar caminhos da própria escolha, a apreciação da busca do outro, a socialização de todas as idéias levantadas, tudo contribuiu para uma compreensão muito mais aprofundada do texto em estudo. O investimento de cada aluno foi enriquecido pelo investimento dos colegas, as aventuras individuais se somaram e todos os caminhos explorados se entrelaçaram numa tecelagem multicolorida. Às vezes, o professor pensa que a montagem de situações de aprendizagem é tarefa muito complexa, que a construção de competências envolve conceitos por demais abstratos, que a flexibilização das estratégias didáticas visando atender à diversidade de sala de aula exige uma quantidade excessiva de trabalho e de criatividade e que é utópico acreditar que é possível garantir um ensino individualizado que vise a autonomia do aprendiz. Entretanto, ficou muito claro para mim, como professora, que a simples estratégia de ‘ouvir’ melhor os alunos, e de estimulá-los a ouvir seus colegas, nos leva, como conseqüência natural, a conhecer melhor a singularidade e a imensa riqueza de cada ser pensante. Contribui também para identificar possíveis pontos de partida para o investimento no processo ensino-aprendizagem e a escolher material didático que possa ser utilizado com maiores chances de alcançar os nossos objetivos. Quando cada membro de um grupo é estimulado a expressar suas idéias durante o processo de construção, organização, análise e reconstrução de esquemas, cria-se um grande reservatório dinâmico de informações e associações – disponível a todos. E a partir desse acúmulo de conhecimento, cada participante constrói, de forma autônoma, o saber próprio que atende às suas necessidades e à sua estruturação de pensamento daquele momento. A troca de idéias diferenciadas não significa que uma pessoa

entregue uma idéia para seu colega e recebe outra idéia diferente em troca. Significa que, durante o processo de troca, cada participante ganha muito mais do que doa, significa uma aprendizagem de qualidade. A soma, de fato, representa muito mais que a mera junção das partes. REFERÊNCIAS BOTKIN, James W., ELMANDJRA, Mahdi & MALITZA Mircea. No Limits to Learning: bridging the human gap (A report to the Club of Rome), Oxford, UK, Pergamon Press, 1979. CARRELL, Patrícia e EISTERHOLD, Joan C. ‘Schema theory and ESL reading pedagogy’. In: CARRELL, Patricia, DEVINE, Joanne e ESKEY, David E. Interactive Approaches to Second Language Reading, Cambridge, UK, CUP, 1988 (p73-92). CURRIE de CARVALHO, Karen. Alfabetização: um processo de aprendizagem permanente. Porto Alegre, RS, Kuarup, 1991. FISHER, Robert (ed). 1987.

Problem Solving in Primary Schools. Oxford, UK, Blackwell,

GARDNER, Howard. The Disciplined Mind: beyond facts and standardized tests, the K-12 education that every child deserves, Harmondsworth, UK, Penguin Books, 2000. _________________ Books, 1993.

Multiple Intelligences: the theory in practice, New York, Basic

NUTTALL, Christine. Teaching Reading Skills in a foreign language, (Edição nova), Oxford, UK, Heinemann, 1996 . UNSWORTH, Barry. ‘Iphigenia in Hampstead’ in New Writing 3, de Andrew Motion e Candice Rodd (eds), Londres, Minerva, 1994.

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