O processo de Letramento e seus efeitos sobre meu sistema de convicções

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O processo de Letramento e seus efeitos sobre meu sistema de convicções
Willian Alves dos Santos
Fevereiro de 2002, Escola Municipal Maria Renilda Ferreira; os primeiros dias de aula. Lá estava a professora Silvana, ensinando um monte de rabiscos para a classe, quer dizer, o alfabeto. Não demorou muito tempo para que eu dominasse aquelas letrinhas, e menos tempo ainda para que eu pensasse que fosse um grande escritor. Desde muito cedo, destaquei-me como aquele aluno que a professora gostava de chamar de seu; notas altas, bom comportamento, rápida aprendizagem, enfim, todos aqueles comportamentos clichês de um futuro nerd. Na quarta série já me arriscava a escrever poesia a tal ponto que a professora Ilda ousou pedir-me para lê-las diante de toda a escola. Que vergonha! Em casa, muitos gibis e livros que eu mal entendia faziam parte da minha rotina de brincadeiras desde muito cedo, por consequência, em pouco tempo já estava lendo tão bem que alguns ficavam com raiva na sala, mas não me arrisco a dizer que este hábito esteve presente durante toda a minha vida escolar, a não ser, é claro, quando o assunto era teologia. Neste assunto, e muitos outros, o futuro me reservava algo que mudaria minha visão de mundo: "Os galhos mais carregados de frutos são os que mais abaixam" (GILBERTO, 1986).
Na quinta série, aquele momento assustador no qual você precisa se adaptar a interromper subitamente os cinquenta minutos de raciocínio matemático, e mergulhar na produção de textos, fui terrivelmente impactado. Como costumava me autonomear lá em casa, o melhor aluno da turma, não entendia porque alguns meninos não conseguiam aprender determinados assuntos. Sempre estive pronto para ajudá-los, quando eles queriam, é claro, era uma maneira de eu mostrar que era bom, hoje vejo que não era um motivo tão nobre assim, mas apenas mais tarde parei com isso. Mas um dia, na aula de Língua Estrangeira Moderna (Inglês), o professor Alexander provocou em mim algo que me acompanharia pelo resto de minha vida. Com uma pergunta muito simplória, ele tornou-me um amante fanático do Inglês. Algo muito simples, em uma prova oral, He asked (ele perguntou) "Qual é o passado do verbo CRY? Escreva no quadro", claro que era uma resposta simples, agora eu sei (depois de ter lido algumas gramáticas), mas não fazia ideia na época, não entendia como os do's e dont's da língua inglesa podiam ser importantes na minha vida. Nada melhor pra despertar minha fúria do que uma pergunta que eu não saiba responder. Foi sempre assim, na igreja, na escola, na rua, e não seria diferente no inglês, após o erro na frente da turma, não tinha ego que suportasse, parti imediatamente para os estudos e não admiti nunca mais deixar uma prova de inglês com menos do total de acertos. Tornei-me aquele aluno insuportável que corrigia os erros dos professores nas provas e gritava bem alto - "Professora, essa pergunta não tem alternativa correta nas opções de respostas, por que isso e isso não batem, anula". A minha professora de matemática foi parte fundamental na minha formação, tudo bem que era matemática, mas os valores é que importam, afinal, a ordem dos fatores não altera o resultado. Rosamélia era uma máquina matemática, conseguia ensinar com precisão, em uma aula, tudo que os professores das outras escolas não conseguiam em todo um ensino fundamental, pelo que percebi mais tarde, já em outra escola. Ela nos ensinava a importância de levar os estudos a sério, de nos esforçar para alcançar objetivos, de nos virar para resolver os problemas dentro do tempo, enfim, sou grato a ela por eu não ter que pedir os professores do Ensino Médio pra explicarem tudo de novo.
Mais tarde, fui promovido ao Ensino Médio, promoção é exatamente a palavra que estava escrita no meu documento de transferência. Fui estudar num lugar onde os professores nos tratavam como universitários, os diretores também o faziam, e o fazia também o governo. Tratava-se de um convênio entre a Secretaria Estadual de Educação e a Universidade Federal de Viçosa, que permitia que fizéssemos curso técnico e médio dentro do campus da UFV (Universidade Federal de Viçosa) em Florestal. Havia o Ensino Médio federal e o Estadual, uma mera questão de status, já que o plano de ensino era o mesmo e, igualmente, a cobrança para ambas as nomenclaturas. Lá foi onde eu aprendi a ter uma letra feia, já que se desenhasse demais não anotaria nem a metade do que o professor Herbet Lenner dizia; ele era um mestre, desses que estudam fora e rodam o mundo. Aquele professor de biologia era tão inteligente, que só ele mesmo conseguia entender sua aula sem fazer perguntas. Era assim, ele dava a aula, com um monte de coisas escritas em tópicos e em latim, depois passava uns quarenta exercícios e corrigia sem livro, apenas perguntava e respondia. Durante os três anos que estudei por lá, aprendi que eu não era bom em tudo, aliás, eu só era bom mesmo nas humanas, com exceção de sociologia, não gostava muito. Ocorreu que os alunos do curso de Eletrônica e Eletrotécnica eram muito bons nas exatas, mas eram uma vergonha nas humanas. Daí eu notei que o mesmo acontecia comigo, mas de forma inversa, como eu era de Hospedagem, todos os alunos do meu curso eram medianos nas exatas, mas verdadeiros filósofos nas humanas. Foi neste período que descobri a ideia de instrumentalização do saber, os alunos dos outros cursos eram mais cobrados em determinadas áreas no Ensino Médio, enquanto que nós erámos em outras. Fiquei feliz em saber que eu não seria uma vergonha completa porque não era bom em Química, aliás, não se deve usar o pretérito, ainda sou péssimo.
Pois bem, ocorre que na mudança entre a escola que comecei o segundo grau, que ficava na minha cidade mesmo, Escola Estadual Joaquim Correa, e a escola onde estudei mesmo, notei um enorme abismo entre o que havia estudado na primeira e o ensino da segunda. Permaneci na primeira escola durante quatro meses e, quando passei no vestibular para o técnico, eu não sabia nem qual era o assunto que os professores estavam abordando na nova escola. O professor de matemática fazendo demonstrações de limite no quadro, o professor de física com uma página inteira de fórmulas físicas, a professora de química, bem, nem lembro o que ela ensinava neste momento. As únicas disciplinas em que não encontrei problemas foram as humanas, nessas, eu era ótimo, amava implicar com a professora de inglês, principalmente porque ela corrigia meus passados irregulares, eu sempre escrevia "learnt" ao invés de "learned" (uma tendência dos professores de inglês de pensar que os alunos são obrigados a falarem inglês norte-americano). Sempre estudei mais as disciplinas de exatas, porque eram as mais difíceis, o que eu amava não precisava estudar, eu aprendia com gosto.
Todo o meu processo de letramento, levou-me a guiar meus passos rumo à carreira que completaria meu sentido de existência. Não falo apenas de um trabalho que me traga alegria e sustente minha família, falo de um conhecimento missionário, que me permita ir a lugares que outros não foram, capacitar aqueles que se dispõem a fazer a obra, a ir, a lutar por um mundo melhor. Escolhi letras por amor e por revolta, amor porque amo ensinar, e revolta porque dificilmente encontrei, durante meu processo de letramento, uma aula de inglês que funcionasse nas escolas públicas. Em Letras veio o acabamento final. Tudo que eu pensava que sabia foi simplesmente desconstruído como uma construção de bloquinhos: Somente "eu" e "tu" são pessoas na cena enunciativa e eu preciso do outro pra existir como sujeito (BENVENISTE, 1995). É apenas na cooperação, ou como diria Maturana, nas "coordenações consensuais de coordenações consensuais de ações" que o ser humano se desenvolve (Maturana, 2002). A leitura não é esse deus que as pessoas adoram, ela não é fonte de prazer, não é um portal mágico que leva Alice para o país das maravilhas, não é o que desenvolve o ser humano. A leitura é, essencialmente, uma tecnologia, um instrumento, e constitui um direito do cidadão (BRITTO & BARZOTTO, 1998).
Aliás, gostaria de dar uma importância especial ao texto PROMOÇÃO X MITIFICAÇÃO DA LEITURA, de Luiz Percival Britto e Valdir Heitor Barzotto. É interessante, ou assustador, a forma como a sociedade grafocêntrica implanta, sorrateiramente, nas nossas mentes, a ideia de que a leitura é um deus que deve ser adorado. Essa ideia nos gera um preconceito, faz-nos excluir e perseguir aqueles que não se dobram diante dessa divindade. Tendemos a pensar, ou melhor, achar que os iletrados são menos capazes, menos inteligentes. Desconsideramos as causas das pessoas não lerem. Por isso, quero, a partir da minha graduação, começar a trilhar um caminho pelo qual hei de chegar a uma nova maneira de ensinar, de envolver os alunos, de dar-lhes sentido na aprendizagem. Quero atingir um grau de ensinamento que consiga tirar as escamas dos olhos dos jovens e, finalmente, dos olhos da população no geral. A propósito, sempre iniciarei meus anos letivos com o texto MUDANÇA E CRISE, de Ortega. Acredito que esse texto possa produzir nos alunos uma desconfiança acerca de tudo que lhes possa chegar aos ouvidos.
Com base neste depoimento, acredito que toda a minha experiência com a leitura e escrita (dentro e fora das instituições de ensino) tem sido imensuravelmente importante para a minha formação profissional. Da teologia, principalmente, eu trouxe a desconfiança sobre aquilo que acredito saber. Já dizia Salomão que a humildade precede a honra (Pv 18:12). Não existe este ser que saiba tudo que se é possível saber. Como Paulo afirmou, devemos abandonar as coisas do ser imaturo e amadurecer, sabe-se que conhecemos em parte e apenas em parte podemos falar (I Co 13:11; 13:12b). Da geografia e história veio o conhecimento da desigualdade e dos processos de formação do que hoje conhecemos como mundo. Das LETRAS veio todo o alicerce que me permite olhar o ensino de língua inglesa com um olhar mais crítico. Neste ponto, tenho empenhado desafiadora atenção desde muito cedo. É absurdamente contestável a forma como as aulas são ministradas na grande maioria das escolas públicas no Brasil. O mesmo acontece no processo de seleção dos professores. Este é o caminho que me trouxe até a graduação em Letras e será o caminho que me levará mais adiante. Sou grato por todas as aulas que assisti até aqui. Todas me serviram como base para caminhar sobre este território pantanoso que é a sociedade moderna, ou como Milton Santos diria: "essa contemporaneidade fluida". Ele também dizia que "vivemos em um mundo confuso e confusamente percebido". Pois bem, espero que toda a minha experiência com as práticas de letramento, mais o conhecimento que ainda vou adquirir possam me servir como bússola para trilhar um caminho que me possibilite transformar, para melhor, a educação formal brasileira.



Bibliografia:
BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Campinas, SP: Pontes/Editora da UNICAMP, 4. Ed., 1995, p. 284-290.
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 14-26.
BRITTO, L.L.; BARZOTTO, V.H. Em dia: Leitura & Crítica. Campinas: Associação de Leitura do Brasil, 1998.
PROVÉRBIOS. In: A Bíblia de recursos para o ministério com crianças. São Paulo: Agnos, 2003.
I CORÍNTIOS. In: A Bíblia de recursos para o ministério com crianças. São Paulo: Agnos, 2003.






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