O professor é um acessório ultrapassado

May 23, 2017 | Autor: Katya Braghini | Categoria: Technological Inovation, Education
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O professor é um acessório ultrapassado? Ano 5 nº 150 – 10/03/2017

Katya Braghini Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Tempos atrás, eu ouvi uma palestra do professor Gimeno Sacristán por uma rádio universitária. Sacristán viajou o mundo todo para falar sobre currículo escolar. Durante as viagens, ouviu toda a sorte de reclamações vinda dos professores ou que recaísse sobre eles. Na palestra, condensou as opiniões e queixas de modo que restasse uma ideia geral: Professores dos cinco continentes sentem-se desrespeitados em seu status professoral. Segundo ele, ainda pairam sobre nós as grandes expectativas: somos o corpo profissional responsável pela condução de grandes ideais. Em contrapartida, os salários diminuem; as pressões por rendimento, performance, mérito aumentam; o atendimento à burocracia é extenuante etc. Na ideia geral, um item se destaca: os alunos já não sentem segurança na transmissão de conhecimento dado por um professor. A ideia de que o professor é um “transmissor” de sabedoria, de experiências, é tida como ação pedagógica ultrapassada, porque recaiu sobre a difusão de ideias pela fala de um docente o “malefício da tradição”. Transmitir é uma espécie de desqualificação que nos remete, imediatamente, à “escola tradicional”, outro tipo de desprezo generalizado. As hipóteses que buscam explicar esse fenômeno social são muitas. Entretanto, o professor Gimeno jogou com uma ideia de cunho geracional e político. Geracional, porque não parece haver mais ligação imediata entre a aquisição de conhecimento e a experiência acumulada, vivida. Hoje em dia, os jovens possuem certos conhecimentos que deixam os professores desfalcados, exatamente no sentido do manejo tecnológico de peças, suportes etc.. Sendo assim, o profissional deixa evidente suas limitações ao longo do “contrato” pedagógico, repassando ao aluno uma autoridade de saber. Pensando que há tipos diferentes de conhecimento, coloca-se o professor na administração da aula, como gestor dos dados e informações e suas respectivas fontes de referência. O educador não condenou as contradições entre professor e aluno, vendo neste tipo de discordância, um ponto importante para o processo de aprendizagem. Do mesmo modo, não fez a defesa do ensino dito “tradicional” de maneira imprudente; no entanto, perguntou: não teria havido, por parte do aluno, a assunção de sua dominância como sujeito central da ação pedagógica, tão repetida pelos discursos educacionais? Assumir-se como centro do ensino não teria sido uma conquista política que extrapola as considerações da teoria pedagógica, precisamente porque, no âmbito cultural, nos dias atuais, há uma dominância do tempo da juventude como a etapa mais importante em nossa trajetória de vida?

Naquele momento, soou uma campainha. Pensei: Se assim for, chegaria o dia em que os discursos de inovação educacional defenderão a extinção do professor… Esse dia chegou com a abertura da Universidade “42”. É o tempo do desprendimento em relação ao professor como peça fundamental do processo pedagógico por meio dos discursos de inovação. Essa escola foi lançada na França e tem uma filial no Vale do Silício. Funciona por um modelo único de "educação aberta", totalmente amparada por conhecimentos retirados da internet. A “42” não tem professores, livros, currículo, notas, é livre e gratuita. Atende a qualquer pessoa entre os 18 aos 30 anos, com ou sem registro ou certificação acadêmicos. O tempo de permanência total na instituição varia entre 3 a 5 anos. Essa instituição vai à toada do movimento UnCollege que estimula os jovens a abandonar as instituições universitárias de padrão “residência” nos Estados Unidos, em benefício de um tipo de educação que se diz livre porque todas as informações necessárias para o ensino estão depositadas no Google. O Vale do Silício é aquele espaço icônico onde se pensa a “inovação”, no sentido de criação e desenvolvimento de máquinas e implementos e processos administrativos que passam a ser imprescindíveis em nossa rotina. De certa forma, o termo “inovação” passou a ser sinônimo de funcionalidade prática: inova-se quando algo é inventado para facilitar a nossa vida. Xavier Niel, o fundador da escola, é um empresário francês, conhecido como empreendedor, bilionário, apontado pela Forbes como dono de um patrimônio líquido de US$ 8 bilhões. Para as escolas foram investidos US$ 100 milhões. O jornal El País diz que nome 42 é uma alusão ao The Hitchhiker's Guide to the Galaxy uma série de ficção científica escrita por Douglas Adams. O número 42 é a resposta à última “questão da vida, do universo e de tudo” dada por um supercomputador de nome Deep Thought. O nome da instituição é resultado de uma referência bibliográfica muito famosa no mundo geek, ou no universo de referências culturais que circulam entre fanáticos por computadores e produtos tecnológicos fomentados e abastecidos pela circulação de informações dadas pelos games, indústria do entretenimento, editoras de comic books etc. Parece um chiste, se considerarmos que Xavier Niel, fundador da 42, tenha o mesmo nome do personagem da série X-Men, o professor Xavier, também fundador de uma escola, apontou rindo a professora Andrezza Cameski, uma colega, pesquisadora . A ideia primordial da instituição é a de formar talentos, estando em constante estado de competição. Do processo, resulta os “desenvolvedores” que serão contratados por empresas interessadas em expansão de negócios a partir do empreendedorismo juvenil. A ideia geral prega que o crescimento econômico dos Estados Unidos está relacionado à sua capacidade de inovação e à transformação digital de seus negócios. Portanto, aumenta a discussão sobre a formação de “desenvolvedores” que agilizam o mercado com “negócios inovadores”. Parte de suas ações se ampara nos estudos da futurologia, campo que se desenvolve com rapidez nos Estados Unidos e que apresenta em percentuais supervalorizados, o volume de necessidades de trabalho no mercado de informática. Por isso, cresce a influência da EdTech Class, tendência educacional que por si só é merecedora de um estudo de tese. Atualmente, entende-se a “tecnologia educacional” não mais como uma ferramenta de ensino; diz-se da associação entre o desenvolvimento e uso de hardwares físicos e a teoria educacional. Portanto, a teoria da aprendizagem, a formação baseada em computador, as aulas dadas em rede, o uso de tecnologias móveis, o e-learning são assuntos que, inter-

relacionados, descreveriam o desenvolvimento intelectual e técnico dos alunos, futuros empreendedores. Essa é a metodologia peer-to-peer, ou seja, a adaptação educacional da operação de computadores trabalhando em rede. Cada grupo de trabalho, dividido por projetos, compartilha seus conhecimentos entre os participantes, sem que haja a necessidade de uma coordenação central. No caso da organização da rede, diz-se sem a necessidade de um servidor ou host; no caso da discussão aqui apresentada, sem o professor. Repete-se o discurso de que o “aluno deixa de ser sujeito passivo”, uma vez que alimenta os seus próprios interesses na construção de conhecimento. As avaliações seguem uma escala de mérito com o total de 21 níveis feito à semelhança das fases de jogos de ação. Segue-se a mentalidade da “gamificação” ou o uso de mecânicas e dinâmicas de videogames, com prêmios dados às etapas concluídas. A universalidade de que todo o processo de aprendizagem é “divertido”; desenvolve a persistência; estimula a resiliência; motiva os alunos ao cumprimento das metas e etapas. As situações postas em sala de aula modificam a organização do tempo, porque o processo abandona a ideia de ensino simultâneo. O movimento é dado pelo ritmo de resolução de problemas que podem exigir compassos diferenciados para cada um dos grupos operacionais. O chamariz para este treinamento vale-se de uma realidade apresentada em dois pontos. Primeiro, apela-se ao fato de que há muitos estudantes endividados nos EUA. Uma parcela substancial de alunos egressos de universidades norte-americanas é devedora antes mesmo conquistar o primeiro emprego. São 40 milhões de jovens estadunidenses que usaram algum tipo de empréstimo educativo. A dívida estudantil alcançou US$ 1,3 trilhão em 2016, o que equivale a 70% do PIB brasileiro em 2015. Depois, há um discurso que põe medo no futuro. O United States Bureau of Labour Statistics, por exemplo, prevê que, até 2020, haverá 1,4 milhão de novos postos de trabalho em ciência da computação, mas apenas 400 mil graduados nesta área terão as habilidades exigidas. Há uma crescente demanda por carreiras que nem existem, mas que surgem mediante o uso de tecnologias. Um exemplo disso são os “influenciadores digitais”, pessoas que sugestionam as outras, por suas vontades, por seu estilo, pelo tipo de consumo que geram e mostram absolutamente tudo pelas redes sociais. A reboque, surgem os “especialistas em construção de plataformas para influenciadores” e “cursos para a organização de plataformas de influência” etc.. Vemos uma Pedagogia em constante estado de “preparação”. Portanto, a inovação educacional proposta pela 42 se concentra na associação entre modelos de gestão empresarial de pessoas; organização do conhecimento centrado nos sistemas operacionais das máquinas; extinção do professor, visto como uma “barreira” do conhecimento; competição por “gamificação”; ensino por entretenimento. Sim, há elementos novos nessa discussão sobre educação. Itens muito interessantes, como por exemplo, a modificação do uso do tempo em sala de aula, a possibilidade imediata de ver uma célula, em 3D com suas funções em movimento etc.. Sempre me pareceu tolo ver o clássico ovo, mal desenhado na lousa, para ilustrá-la. Entre perdas e ganhos, existe sim a necessidade de compreendermos por que inventamos coisas para a orientação de nossa humanidade. Mas, podemos questionar se, sendo novo, por si só é bom? Por que sempre há tanta positividade na apresentação deste tipo de inovação educacional? É possível considerar o espaço da 42 como uma Universidade, se não há a relação entre professores e alunos? Se pensarmos a história da escolarização, temos em mãos uma ideia de inovação educacional bastante chocante: uma escola sem professor.

Mas o que assombra mesmo é a passividade com que parte da comunidade educacional absorve esses recentes termos de “inovação”. Cátedras consagradas em Universidades como Harvard, Yale, John Hopkins, torres de marfins formadoras de uma elite, intelectual e financeira, notórios espaços de prestígio acadêmico, ainda que também estejam no círculo da EdTech Class, não abrem mão da clássica forma de aula, com um professor presente e alunos na audiência. Pequenos grupos, bem seletos, de educação bastante cara, vão mantendo essa tradição como uma propriedade, mesmo diante da avalanche de discursos da inovação E-learn. Fica a pergunta: Inovação que diminui o prestígio do professor (extermina, neste caso), é interesse de quem e para quem? Valeria aqui uma discussão mais aprofundada sobre as modificações históricas daquilo que Peter Burke aponta como “a vida de estudos como carreira”. De como acontece a busca, coleta, organização de informações e dados para a construção do conhecimento ao longo do tempo; debruçando-nos atentamente sobre a ideia equivocada de que o conhecimento sempre avança de forma progressiva; discutindo criticamente as perdas, falhas, e desaparecimento de ideias e práticas na história da formação escolarizada. Nesses discursos, a ênfase recairia sobre a articulação política dessas fortunas empresariais que têm a educação por “negócio”; sua força de influência na difusão do que devemos compreender como ensino; na maldição, já prevista há tempos, de fazer desaparecer o trabalhador em sistemas de operações. Com ampla circulação na internet, pelas redes sociais muita gente aplaude. Escolheremos transformar o professor em nada?

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