O Projeto Wu MIng: possibilidades narrativas e intervenção política

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O Projeto Wu Ming: possibilidades narrativas e intervenção política José Antônio de Oliveira Salomé

O objetivo deste texto é realizar uma apresentação breve das principais questões levantadas pelo coletivo italiano Wu Ming, com foco nas caraterísticas e discussões literárias do projeto, mas sem ignorar o lado político, fundamental para a compreensão do tipo de narrativa que o grupo propõe, desde suas origens no Luther Blissett Project em meados da década de 1990. As reflexões aqui apresentadas terão como base tanto os textos ficcionais, como o best-seller Q, publicado sob o pseudônimo Luther Blissett, o romance 54 e o “objeto narrativo não identificado” New Thing, da autoria de Wu Ming 1 – todos com traduções brasileiras – e ensaios escritos pelos integrantes do grupo.

pós-modernismo, neoliberalismo e projeto luther blissett As últimas décadas do século XX viram florescer o debate em torno do pós-modernismo, que de um modo mais amplo poderia ser relacionado com um período histórico pós-moderno, com características próprias na política, ciências, artes, estudos da mídia, etc. Alfonso Berardinelli identifica nesse período o momento máximo do século americano e uma “alienação” europeia, que transforma a modernidade em “peça de museu” (2007b, pp. 177-178).

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Apesar de divergências entre os críticos a respeito do pósmodernismo, alguns pontos são em geral comumente aceitos: esgotamento e contestação das narrativas mestras surgidas nos séculos XVIII e XIX; a ideia de “morte da arte”; o ato de escrever como jogo meta-narrativo; a ironia e a paródia como elementos constitutivos; a recusa em distinguir arte erudita “superior” e arte popular “inferior”, ou cultura de massas. Entre os críticos que buscam o viés “positivo” do pós-modernismo, Arthur C. Danto relaciona a ideia de “fim da arte” nas artes plásticas com a de morte das grandes narrativas, onde o artista teria liberdade de escolher entre todas as formas do passado, sem precisar se reportar a alguma “narrativa mestra” pré-definida (2006, p. 3-23). Entre os muitos críticos que apontam os aspectos negativos do pós-modernismo, em especial no contraste com o modernismo, o mais citado talvez seja Fredric Jameson, para quem a ideologia pós-modernista dialoga com o momento do capitalismo financeiro internacional (1984, p. 55), além de Terry Eagleton, que vê uma negação pós-moderna a qualquer tentativa de mudança das condições sociais (2006, p. 352-357). No que se refere à questão da prosa, Berardinelli aponta o best-seller pós-moderno como principal característica do período, em que o vínculo com a indústria cultural revelaria os sintomas da mentalidade de uma época, além de dar origem a uma prosa que não “consola, não cria problemas, ensina e diverte” (berardinelli, 2007a, p. 165). Se por um lado é possível identificar que muitos escritores tenham assumido pressupostos pós-modernos em suas obras, seria natural que nem todos compartilhassem das mesmas ideias, de modo que autores com visões das mais díspares acabaram enquadrados pela crítica como pós-modernos. Em 1999, sob o pseudônimo Luther Blissett, foi publicado na Itália o romance Q, um best-seller traduzido em diversas línguas (Q: o caçador de hereges, 2002). A princípio, Q compartilha de características apontadas no pós-modernismo em geral, em especial pelo que Linda Hutcheon chama de “meta-narrativa historiográfica” (1991, pp. 6364), por se tratar de um romance histórico ambientado durante as perseguições religiosas do século XVI, misturando linguagem erudita com a de ficções populares, nos moldes dos romances de Umberto Eco, por exemplo.

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O mistério em torno da identidade do autor por trás do pseudônimo poderia ser facilmente relacionado com escritores como Thomas Pynchon ou J. D. Salinger, que evitaram ao longo dos anos qualquer aparição pública, o que gerou discussões sobre as razões da reclusão ou mesmo sobre a real existência desses autores, que muitas vezes superou o debate em torno da obra. O que diferenciava Luther Blissett era que o pseudônimo não escondia um autor, mas sim um coletivo surgido em Bolonha e que desde meados da década de 1990 divulgava textos de “sabotagem cultural” e praticava verdadeiras ações de guerrilha, pelas quais discutia e contestava o modo como a mídia transforma cotidiano em espetáculo, tudo sob o lema “qualquer um pode ser Luther Blissett” (blissett, 2001, pp. 15-26). Apesar do núcleo italiano, ações atribuídas à Luther Blissett foram realizadas em diversos países. A lista de influências do grupo passa pelas culturas punk e cyberpunk das décadas de 1970 e 1980, pelo romantismo alemão, por Karl Marx, pelo budismo e pelos estudos sobre os mitos, na busca da criação de um herói popular e ao mesmo tempo sem rosto, para que fosse identificado não com um sujeito mas com a comunidade. Colaborou para as ações do grupo o uso da internet como meio de divulgação, vínculo de fundamental importância para o estabelecimento posterior do Wu Ming. As ações da “comunidade aberta Luther Blissett” chegaram ao auge durante os protestos ocorridos durante as reuniões do G8 (grupo das sete nações mais ricas do mundo e a Rússia), entre 1999 e 2000, especialmente durante as chamadas “batalhas de Seattle e Gênova”, quando a crítica teórica transformou-se em prática e milhares de jovens protestaram nas ruas contra os desmandos do capital por meio dos chefes de Estado. Em um primeiro momento poderia ser dito que os protestos ocorridos não teriam conseguido resultados práticos (uma ideia que poderia ser vinculada ao racionalismo de mercado) e teriam tido repercussão limitada. Porém, a crise econômica de 2008 nos EUA e na União Europeia demonstrou as fragilidades da economia neoliberal e trouxe insatisfação popular em diversos países centrais; também a chamada “primavera árabe” que derrubou ou pôs em crise inúmeros governos no norte da África e Oriente Médio, somada aos protestos de 2012 na Turquia e no Brasil, trazem muitos dos procedimentos do Luther Blissett. No caso do Brasil, a confusão - e a distorção de fatos - por parte da grande mídia e de governantes

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durante as manifestações de junho de 2012, teve muito de sua origem no funcionamento descentralizado e anônimo e na mobilização prévia via redes sociais de grupos como os Anonymous, os Black Blocs, e na atuação da “Mídia Ninja” (ver torturra, 2012). surge wu ming Com origem tão identificada às tecnologias de comunicação e à crítica da mídia, surpreende o fato de Q passar longe de qualquer assunto relacionado; porém seu cenário histórico, a Alemanha do século XVII durante a Guerra dos Trinta Anos, permitiu a construção de um personagem que pudesse simbolizar as aspirações do grupo em relação ao “herói sem rosto” e apontou o que seria o melhor caminho para agir dentro da indústria cultural em uma nova fase. Em 2000 ocorre o seppuku, suicídio ritual das fileiras italianas de Luther Blissett, o que não impedia a utilização do nome por qualquer um que assim desejasse (blissett, pp 11-13). Cinco dos ex-integrantes do grupo fundaram o coletivo Wu Ming, “sem nome” em mandarim. Diferente do Projeto Luther Blissett, o Wu Ming é exclusivamente voltado para a escrita, sem a realização de ações no “mundo real”, o que não significa negação em participar do debate político. Ao direcionar seus esforços unicamente para a realização de um projeto literário, os integrantes do Wu Ming passaram a discutir com maior intensidade certos pressupostos da escrita contemporânea, quase sempre dentro das próprias obras. Os cinco integrantes originais receberam um número ao lado do pseudônimo como única identificação individual, o que permite o reconhecimento do estilo de cada um em suas obras individuais, mas mantêm o foco nos textos. Apesar dos nomes dos integrantes originais serem conhecidos, o grupo evita ao máximo relacionar nomes e rostos com as obras, o que será respeitado neste trabalho. A escolha de um nome comum aos integrantes, e a própria opção por um projeto coletivo, são formas de criticar aquilo que Jameson denomina “cultura da imagem e do simulacro” do pósmodernismo (1984, p. 58). No processo de criação e divulgação do Wu Ming o contato com o público é fundamental; como prova, temos as centenas de participações em debates e encontros com leitores para divulgação dos livros, parte do sistema por trás das editoras, o que não pode ser confundido na concepção do grupo com marketing pessoal ou culto à imagem do artista. No processo de recepção da obra, a intermediação é

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feita pelo mundo escrito e pela palavra oral diante do leitor, ao invés da intermediação por imagens, dominada na sociedade contemporânea pela televisão (zekri, 2010, p. 122) O vínculo com a rede mundial de computadores foi reforçado como meio de contato com o público e, em uma atitude ainda incomum, todos os livros do grupo, mesmo se publicados por grandes editoras, e as suas traduções em diversas línguas, estão disponíveis gratuitamente na página do grupo, o que indica uma tomada de posição clara em relação à livre circulação de ideias e informações e bate de frente com iniciativas de restrições, por parte de empresas e artistas, à disponibilização gratuita de músicas, livros e qualquer obra intelectual ou artística.

a obra O primeiro livro publicado pelo Luther Blissett, Q, parece inicialmente seguir a fórmula da meta-narrativa historiográfica comum ao pós-modernismo, representada na Itália pelos livros de Umberto Eco (mas também por alguns escritos de Italo Calvino após a trilogia Os nossos antepassados). Por um lado, a narrativa se vale do uso de tradicionais modelos do romance do século XIX, da literatura de massas e das narrativas pulp norte-americanas do século XX, misturando aventura de capa-e-espada com história de espionagem. Por outro lado, ao leitor mais atento não escapa o uso alegórico de personagens e acontecimentos históricos dos séculos XVI e XVII, que remetem às reflexões sobre o momento da Europa em geral, e da Itália em particular, no final do século XX (União Europeia, integração dos países do antigo bloco comunista, conflitos étnicos e religiosos nos Balcãs, xenofobia em relação aos imigrantes, política econômica neoliberal). É preciso destacar que o desaparecimento de Luther Blissett e o surgimento do Wu Ming não fez estes mesmos integrantes abandonarem o universo ficcional criado em Q, que foi reaproveitado no romance Altai, publicado em 2009 pelo coletivo Wu Ming. O primeiro romance publicado com o nome Wu Ming foi 54, cuja narrativa move-se entre Itália, Iugoslávia, Estados Unidos e União Soviética nos anos pós-Segunda Guerra Mundial, com personagens

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reais ligados ao mundo da televisão e cinema, máfia e veteranos da resistência italiana durante a ocupação alemã na guerra. Enquanto costura uma trama ficcional nos moldes dos romances de espionagem, o texto também dialoga com problemas contemporâneos, em especial as questões de simulacro e do espaço ocupado pelas celebridades midiáticas. Nas últimas páginas, o grupo incluiu algo que passaria a ser comum em seus livros, inclusive nos escritos individuais e projetos paralelos: uma espécie de apêndice com informações sobre fatos e pessoas reais que surgem ao longo do romance. Neste apêndice, explicam referências à cultura pop contemporânea e apresentam fontes de consulta e bibliografia para os leitores. Longe de transformar a ficção em ensaio ou texto acadêmico, o objetivo de tais complementos à história é reforçar posições do grupo sobre o papel da narrativa no mundo contemporâneo, algumas delas que serão discutidas a seguir. O uso da linguagem e de ícones da cultura pop é uma constante nos livros do Wu Ming. Astros da TV e cinema, jazzistas, músicos de rock, todas ocupam algum espaço nas obras cujo tempo de enunciação esteja ligado ao século XX, do mesmo modo que figuras históricas cuja existência só pode ser acessada por poucos documentos sobreviventes, o que indica um cuidado especial do Wu Ming com a pesquisa para a produção de seu material narrativo. Em New Thing, de Wu Ming 1, a agitação da década de 1960, os movimentos pelos direitos civis dos negros e as ações dos Black Panthers são o pano de fundo para uma história que envolve assassinatos de músicos de jazz de vanguarda. Em uma narrativa polifônica, composta por vários narradores, relatórios policiais e reportagens, os últimos dias de vida do saxofonista John Coltrane costuram os capítulos do livro. Wu Ming 1 não somente utiliza o recurso do apêndice com a origem das informações utilizadas, como também explica o processo de criação do livro. Para uma compreensão das posições de Wu Ming sobre as questões que envolvem o trabalho do grupo, o longo ensaio da autoria de Wu Ming 2 “La salvezza di Euridice” (“A salvação de Eurídice”, 2009), tratado como a declaração da poética do grupo. O ensaio pretende deixar claro qual o objetivo do coletivo ao tratar da realidade, não como uma representação exata, mas como parte integrante da obra (portanto justificando o uso da pesquisa histórica), sem fechar a narrativa na representação realista; pois o texto de ficção deve conter elementos visionários, metáforas, símbolos e analogias e, especialmente,

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o uso de imaginação como fundamento para que o texto apresente pontos de vista diferenciados, como forma de criticar as convenções afirmadas ideologicamente. O texto apresenta considerações que envolvem também o papel da língua, da transformação social, e o papel do narrador no mundo contemporâneo: “Não se trata de uma sensibilidade especial, mas da familiaridade no uso de uma ferramenta do ofício. O escritor não é o albatroz de Charles Baudelaire, capaz de grandes voos no céu, mas desajeitado com suas asas no convés do navio. O escritor é um marinheiro que aprendeu a voar com as palavras” (p. 188, tradução nossa). O que o Wu Ming parece sugerir é uma nova relação entre narração e experiência que parece evocar as considerações de Walter Benjamin sobre o ato de narrar e de Theodor W. Adorno sobre a perda da experiência no mundo contemporâneo (benjamin, 1980, pp. 52-53; adorno, 2012, pp. 55-56).

o “new italian epic” Provavelmente um dos mais importantes e debatidos textos do grupo tenha sido o ensaio “New Italian Epic”, (wu ming 1, 2008), onde o autor apresenta sua percepção de que existiria um conjunto de obras italianas, de aparência diversa, mas com raízes comuns, todas escritas a partir de meados da década de 1990. De modo geral seria possível identificar nessas obras diferentes tentativas de superar debates relacionados com a questão do pós-modernismo. Além dos livros publicados pelo próprio Wu Ming, o ensaio enquadra autores como Valerio Evangelisti, Giancarlo de Cataldo, Andrea Camilleri, Carlo Lucarelli, Massimo Carlotto (os três últimos advindos do gênero policial e depois partindo para o que Wu Ming 1 classifica como “romances históricos mutantes”), Pico Cacucci, Giuseppe Genna, além do best-seller Gomorra, de Roberto Savianno, denominado no ensaio como “objeto narrativo não identificado”. Todos os autores citados teriam uma preferência pela forma romance, mas com preocupações ensaísticas e com pesquisa em arquivos para fundamentar seus livros, mas sem o abandono da experiência na “estrada”, o que dificultaria o enquadramento em gêneros. Dentre as

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características citadas, muitas poderiam ser encontradas no trabalho de escritores pós-modernos. A diferença fundamental entre os autores citados no ensaio e a escrita pós-moderna seria a recusa à “fria ironia”, tão caraterística das últimas décadas do século XX. Segundo Hutcheon quem usa de ironia “sai do reino do verdadeiro e do falso e entra no reino do ditoso e do desditoso (...). A ironia remove a certeza de que as palavras signifiquem apenas o que elas dizem. Mentir faz o mesmo, é claro...” ( 2000, p. 32). Para o Wu Ming, o uso da ironia em outros momentos históricos configuraria um abalo moral em certezas, mas diante do relativismo pós-moderno generalizado teria perdido sua força e se tornado incapaz de desvelar a ideologia dominante. O grande marco contemporâneo, segundo Wu Ming 1, foi o ataque terrorista aos Estados Unidos em 11 de Setembro de 2001. Ele marca o fim de um período, cujo auge foi representado pelo mundo após a queda do Muro de Berlim, com o domínio da ideologia ligada à Nova ordem mundial, baseada na democracia americana e no liberalismo vitorioso, que reflete na arte e na literatura do período na forma de atos indulgentes, citações em exagero, paródia, pastiche, remake, revivals irônicos ou nostálgicos, além de várias outras características relacionadas com o pós-modernismo: “os anos noventa não foram somente ‘o decênio mais ávido da história’ (segundo a definição de Joseph Stiglitz), como também o mais iludido, megalomaníaco, autoindulgente e barroco” (wu ming 1, 2008, p. 4, tradução nossa). Portanto, uma junção de consumismo acelerado e visão irônica de mundo não seria um ambiente que favorecesse a narrativa ficcional. O 11 de setembro teve resultados específicos ao ambiente cultural italiano, país com questões históricas do pós-guerra, posição geográfica estratégica durante a Guerra Fria, instabilidade interna causada pela existência de um grande partido comunista, movimento operário forte, crime organizado e corrupção. Tudo isso seguido de crises políticas liberou energias diferentes do que acontecia com o pós-modernismo e a discussão do fim da história no resto do mundo após o fim da Guerra Fria. O sentido do uso do termo “épico” para denominar o conjunto apresentado não teria nenhuma ligação com o teatro de Bertolt Brecht, mas antes com a própria produção das obras, “épicas” por serem grandes e ambiciosas. Os problemas expostos também possuem dimensões épicas, assim como o próprio processo de escrita,

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que pode levar anos. Os romances tratariam de feitos históricos, míticos, heroicos ou aventurosos: guerra, viagens de iniciação, luta pela sobrevivência, contadas de dentro de conflitos maiores e decisivos da história. A narração funde elementos históricos e lendários e até mesmo sobrenaturais. As raízes literárias podem ter as mais variadas origens, mas passam pela própria tradição italiana do romance histórico (como Os Noivos, de Alessandro Manzoni, obra inaugural do romance italiano moderno), além do contato com outras tradições, como o romance latino-americano (realismo mágico), e a obra de James Ellroy somada à linha italiana de narrativas populares, como romances e quadrinhos policiais. Por fim, a recusa do experimentalismo na forma não se repete na linguagem, como forma de causar o “estranhamento” do leitor diante dos problemas apresentados. Em todos os casos o texto é o centro, pois, diferente de cinema e televisão, ele exige do leitor a imaginação e a participação como co-criador da obra. Dentro das narrativas existe a valorização do “olhar oblíquo”, que explora diversos pontos de vista: a multidão se torna o “herói”; o uso de histórias baseadas em “linhas do tempo alternativas”, nos moldes da literatura fantástica, como modo de expandir o potencial narrativo; o conceito de obra aberta, no sentido de contestar o formato das leis de direitos autorais e de tornar possível que outros retrabalhem o que já foi feito – o que aproxima a literatura das técnicas de remix. Por trás de tudo é que deve existir uma posição ética do narrador: ele não pode simplesmente contestar se a verdade é ou não possível, mas justificar suas posições. O que Wu Ming 1 identifica no conjunto de obras do “New Italian Epic” acaba se tornando também uma busca de significado da arte no mundo contemporâneo, significado que teria sido completamente perdido, segundo Giorgio Agamben, entre os séculos XVIII e XIX ( 2012, pp. 98-99). Por trás de tudo o que é apresentado por Wu Ming 1 – e também por Wu Ming 2 em “La salvezza di Euridice” – existiria o projeto de criar um novo estatuto para a “produção” (sic) artística e reintegrá-la ao mundo da vida, à experiência e ação humana, que a estética, segundo Agamben teria separado (2012, pp. 121-122).

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considerações finais Ao tratar, no fim da década de 1980, sobre um possível fim da arte, ou da experiência estética relacionada à arte, Giulio Argan comentou: Nunca o mundo foi tão ávido e pródigo de imagens como hoje. O aparato tecnológicoorganizativo da economia industrial não limita, e sim potencia a função da imagem. Existem grandes indústrias que produzem e vendem apenas imagens: o cinema, a radiotelevisão, a publicidade, etc. Sem a informação por meio da imagem, não existiria cultura de massa, e a cultura de uma sociedade industrial não pode ser senão uma cultura de massa. (p. 509). O maior risco que Argan via na arte contemporânea seria a transformação do artista em um técnico da imagem ou, no caso de poetas, técnicos da língua, na busca de uma reinserção da arte na vida. O que o artista deveria evitar é a “renúncia à autonomia de sua disciplina, colocá-la a serviço de um sistema de poder” (2010, p. 509). O consumo, que guia a sociedade contemporânea de forma destrutiva, não deveria ser aceito passivamente pela arte. De modo simultâneo o crítico questionava as relações entre arte e cultura de massa, ainda no contexto dos anos finais de guerra fria, quando a opção que a União Soviética apresentava à questão estética já havia se revelado como uma ausência de opção, “mera propaganda política” (2010, p. 511). É esse o tipo de pergunta que se coloca o Wu Ming, a recuperação ou manutenção de uma experiência narrativa em plena sociedade de consumo, o trabalho e o uso com as imagens e palavras que essa sociedade disponibiliza ao mesmo tempo em que demonstra a lógica perversa de seu funcionamento. O que podemos ver no Wu Ming não é a negação da possibilidade de escolha, mas uma busca ética, que justifique as escolhas realizadas.

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