O protestantismo brasileiro contemporâneo na leitura de Maria Lucia Montes

September 30, 2017 | Autor: Jefferson Ramalho | Categoria: História, Ciências da Religião, Protestantismo
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O protestantismo brasileiro contemporâneo na leitura de Maria Lucia Montes Jefferson Ramalho1 Aline Grasiele Araujo Ramalho2

Resumo O presente artigo tem como referencial o texto As figuras do sagrado: entre o público e o privado de Maria Lucia Montes, mas pretendemos entendê-lo em diálogo com parte do artigo de Antonio Gouvêa Mendonça intitulado O protestantismo no Brasil e suas encruzilhadas. Seguiremos o roteiro de Montes, mas servindo-nos de informações importantes a respeito da história do protestantismo brasileiro presentes no texto de Mendonça. Outros referenciais também serão consultados, trazendo contribuições acerca do itinerário das mais diversas tradições protestantes no Brasil. Palavras-chave: Protestantismo, Catolicismo, Religião, Política, Mercado.

O Protestantismo brasileiro contemporâneo na leitura de Maria Lucia Montes O ponto de partida da reflexão de Maria Lucia Montes a respeito do protestantismo no Brasil nas décadas mais recentes é a tensão que ocorreu em 1995 entre a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) fundada por Edir Macedo em 1977 e o catolicismo brasileiro. Na ocasião, dia 12 de outubro, feriado nacional em referência à tradição católica que homenageia a chamada Nossa Senhora Aparecida, em programação ao vivo da Rede Record comprada pela IURD havia quatro anos, o bispo Sérgio von Helde apresentava um programa religioso através do qual atacava intolerantemente à religião católica brasileira. A IURD já era bem conhecida por suas agressões a outras tradições religiosas, especialmente aquelas de matriz afro-brasileira. Naquele dia 12 de outubro de 1995, representando os posicionamentos de fé da IURD, von Helde “se referia com horror aos descaminhos idólatras da fé católica em sua ‘adoração a uma imagem de barro’, e que nesse dia preciso atingia seu ápice nas celebrações em Aparecida do

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Doutorando em História (UNICAMP), mestre em Ciências da Religião (PUC-SP), bacharel em Teologia (Mackenzie) e licenciado em História (UNIFAI). 2 Mestre em Ciências da Religião (UMESP), licenciada em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília (UCB), especialista em Ensino de História e Geografia (Centro Universitário Claretiano), especialista em Ciências da Religião (PUC-Minas), bacharel em Teologia e especialista em Teologia Sistemática (FATE-BH).

2 Norte.”3 Além de lançar palavras de insulto à imagem de Aparecida e, conseqüentemente, a crença a ela dedicada por milhões de brasileiros, von Helde chutava a estátua dizendo as seguintes palavras: [...] nós estamos mostrando às pessoas que isso aqui ó, ó, olha só, olha só, ó, ó, isso aqui não funciona, isso aqui não é santo coisa nenhuma, isso aqui não é Deus coisa nenhuma! Quinhentos Reais, meu amigo, cinco salários mínimos custa no supermercado esta imagem. E tem gente que compra. Agora, se você quiser também um santo, uma santa, mais baratos, você encontra até por cem. Será que Deus, o Criador do Universo, ele pode ser comparado a um boneco deste, tão feio, tão horrível, tão desgraçado?4

Este gesto do bispo da IURD ficou conhecido como “o chute na santa”, e marcou o início de um conflito que não envolvia apenas duas identidades religiosas opostas – a protestante e a católica – mas também duas grandes empresas televisivas: a Rede Record e a Rede Globo, esta, responsável pelas denúncias midiáticas de intolerância religiosa por parte da igreja de Edir Macedo. Como se não bastasse o “chute na santa”, duas outras programações transmitidas pela Rede Globo alavancaram ainda mais a concorrência entre as duas emissoras: a) pouco depois, talvez meses, imagens de Edir Macedo, o líder fundador da IURD, são apresentadas por um de seus pastores dissidentes, Carlos Magno. Nas imagens, transmitidas pela Rede Globo através do Jornal Nacional, Edir Macedo é mostrado em momentos privados com seus liderados – pastores e bispos da IURD – nos quais os ensina como arrecadar dinheiro em suas respectivas congregações. Abaixo, trecho da fala de Edir Macedo nas tais gravações: Você tem que chegar e [dizer]: ó pessoal, você vai ajudar agora na obra de Deus; se você quiser ajudar, amém! Se não quiser ajudar, Deus vai ajudar outra pessoa pra ajudar, amém! Entendeu como é que é? Se quiser bem, se não quiser que se dane! Ou dá ou desce! Entendeu como é que é? É isso aí! É... porque aí o povo vê coragem em você! O povo tem que ter confiança... O povo tem que ter confiança... Se você mostrar aquela, aquela, aquele, o “chocho, né!”, aquela maneira chocha o povo vai... não vai confiar em você! [você tem que ser o super herói do povo] Exatamente! Você tem que ser o super herói, ó pessoal, vamos fazer isso aqui [...] eu fiz isso! Eu peguei a Bíblia, eu peguei a Bíblia, e disse: ou Deus honra essa palavra ou eu jogo isso fora. [é, joga lá mesmo, no chão...]. [...] Então, chame a atenção! [vão 3

MONTES, Maria Lucia. As figuras do sagrado – entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. História da vida privada no Brasil – contrastes da intimidade contemporânea, vol. IV. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 65 e 66. 4 Preservamos parte do discurso do bispo da IURD, inclusive os erros de português. O vídeo encontra-se disponível na internet através do link: http://www.youtube.com/watch?v=VpPwWEsk0OY.

3 pensar] Esse aí briga com Deus, mesmo! Então, tem aqueles que são tradicionais! [desses o povo vai pensar] esse aí é um falso profeta, esse vai ser amaldiçoado! Agora dos outros [o povo vai pensar] Poxa, há quanto tempo eu queria isso! Eu tô cansado de ler a Bíblia, de ler tantas palavras e não acontecer nada na minha vida! Então esse... então esse vai ficar do nosso lado! Esse vai... ah, é isso mesmo, ou tudo ou nada, e põe tudo lá! Então ele vai ser abençoado! [Quem embarcar nessa é abençoado] Quem não embarcar [quem não embarcar fica]... Entendeu como é que é? Então você nunca pode ter vergonha, não pode ter timidez! Peça, peça, peça que... e quem quiser dar dá, quem não quiser não dá! E se tiver alguém que não dê, tem um montão que vai dar! [Tem que ser no peito e na raça] Tem que ser no peito e na raça! Porque o povo, o povo, quer ver o pastor, o seu pastor [com coragem] o povo quer ver o pastor brigando com o demônio! O povo quer ver o pastor [o povo já ta cansado da falsa humildade do padre] É, é, exatamente! [o padre é humilde e não dá nada, não oferece nada] É, o padre é daquela maneira assim e tal... Nós vamos lá, é isso mesmo, e bota pra quebrar e vira cambalhota, e faz e, e o povo fica logo... é isso aí, é isso aí, entendeu como é que é? [...]5

b) outra programação da Rede Globo que marcou esta polêmica de sua concorrência com a Rede Record, do bispo Edir Macedo, foi a transmissão de uma minissérie em doze capítulos intitulada Decadência6, exibida de 5 a 22 de setembro de 1995. Baseado no romance de mesmo título, escrito por Dias Gomes, aquele enredo tratava da história de Mariel, interpretado pelo ator Edson Celulari, representando um jovem que funda uma igreja evangélica, com interesses puramente financeiros, tornando-se um milionário em questão de pouco tempo. Reproduzindo falas idênticas as usadas por bispos da IURD em cultos cuja temática é relacionada à Teologia da Prosperidade, por meio da qual os fieis são persuadidos a fazerem doações gigantescas em troca de riquezas, aquela minissérie geraria pouco depois a revolta da cúpula da IURD e da Rede Record, que transmitiria na primeira semana de transmissão da minissérie global o filme Os meninos de São Francisco, que conta a história de garotos que teriam sido vítimas de padres pedófilos em um orfanato do Canadá. Montes não deixa de mencionar a tensão que tais episódios geraram entre os próprios evangélicos. O pastor Caio Fábio d’Araújo Filho, da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB)7, embora evangélico, não concordava com as perspectivas de Edir Macedo. 5

Este se encontra disponível na internet através do link: http://www.youtube.com/watch?v=V6Mrb7HdTw. Os trechos em colchetes são falas paralelas, de outros, pastores ou bispos, que se encontravam na ocasião e que, vez ou outra, faziam suas intervenções durante a fala de Edir Macedo. 6 Além de informações mais detalhadas a respeito de Decadência em alguns sites, o portal de www.youtube.com disponibiliza todas as partes da minissérie. 7 Aqui, corrigimos Maria Lucia Montes, a qual afirma que o pastor Caio Fábio d’Araújo Filho era membro da Igreja Presbiteriana Independente (IPI). Vemos essa correção como algo importante a ser feito, pois a IPI trata-se de uma igreja originada a partir de uma divisão que ocorreu na IPB, no ano de 1903, por razões mais políticas que doutrinárias. cf. MENDONÇA, Antonio Gouvêa. O protestantismo no

4 Por este motivo, inclusive, foi que Carlos Magno, aquele bispo dissidente da IURD, teve espaço na Revista Vinde, ligada a Caio Fábio, para prosseguir com suas denúncias ao bispo Edir Macedo. Naquele contexto, Caio Fábio era responsável, também, pela Associação Evangélica Brasileira (AEVB), pela Visão Nacional de Evangelização (VINDE) e fundador da Fábrica de Esperança, uma organização social ligada aos seus trabalhos de evangelização desenvolvidos através da própria VINDE. Com programações religiosas em emissoras de TV desde o final dos anos setenta, em Manaus, Caio Fábio tinha muita aproximação a líderes da Rede Globo, na qual teve, inclusive, por muito tempo, um espaço pelas manhãs para apresentar seu programa Pare e Pense. É provável que isso também explique as razões pelas quais Caio Fábio tenha optado por ficar ao lado da Rede Globo e, declaradamente contra Edir Macedo. Além disso, a perspectiva religiosa de Caio Fábio enquanto líder da AEVB e membro de uma igreja protestante de matriz histórica como a IPB, o impedia de concordar com o método da IURD no que tange à arrecadação de dinheiro. Os presbiterianos sempre viram na contribuição de seus fiéis um ato voluntário, espontâneo, como na igreja católica, através do que as pessoas contribuem com a intenção de participarem na manutenção da igreja e não de barganharem com a divindade, conforme ensina a Teologia da Prosperidade tão difundida por Edir Macedo e outros líderes evangélicos contemporâneos, a maioria pertencente a igrejas evangélicas neopentecostais8.

Brasil e suas encruzilhadas, Revista USP, São Paulo, n. 67, Set/Nov 2005, p. 54. “Sob a camuflagem de desencontros com a maçonaria, o nacionalismo também provocou o primeiro cisma entre protestantes no Brasil que deu origem, em 1903, à Igreja Presbiteriana Independente do Brasil sob o signo do antimaçonismo.” Entendemos, portanto, que é de suma importância distinguir IPI de IPB, pois seria o mesmo que confundir Candomblé com Umbanda. Há muitas semelhanças, mas também diferenças, portanto não se tratam da mesma instituição religiosa. 8 Aqui chamamos de Neopentecostais aquelas igrejas nascidas a partir dos Pentecostalismos de primeira e segunda fase. Os de primeira fase, no Brasil, são representados pelas igrejas: Congregação Cristã no Brasil (fundada em 1910 pelo italiano Luigi Francescon) e Assembléia de Deus (fundada em 1911 pelos suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren); os de segunda fase são representados, sobretudo, pelas igrejas: do Evangelho Quadrangular (chega ao Brasil em 1953 através da Cruzada Nacional de Evangelização), O Brasil ara Cristo (fundada em 1956 pelo missionário Manoel de Mello, dissidente tanto da Assembléia de Deus como da Cruzada Nacional de Evangelização) e Pentecostal Deus é Amor (fundada em 1962 por David Miranda). As igrejas chamadas de Neopentecostais são aquelas que além de preservarem em suas convicções crenças relacionadas à cura divina e batismo com o Espírito Santo, próprias do pentecostalismo, difundem à Teologia da Prosperidade e a ênfase na chamada Batalha Espiritual. São elas: Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Renascer em Cristo, Igreja Internacional da Graça de Deus, Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra entre outras. Para aprofundamento na história e nas características desses movimentos sugerimos a leitura de: MENDONÇA, Antônio Gouvêa; VELASQUES FILHO, Prócoro. Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1990; BONINO, José Miguez. Rostos do protestantismo latino-americano. São Leopoldo/RS: Sinodal, 2002. e BITUN, Ricardo. Igreja Mundial do Poder de Deus. Revista Ciberteologia. São Paulo: Paulinas, n. 31, Set/Out 2010, p. 906 a 920.

5 Para Montes, a disputa entre Rede Globo e Rede Record ultrapassara os limites da concorrência empresarial, pois refletira claramente na sociedade, e isso através de outra tensão. Agora, católicos e evangélicos, sobretudo, pentecostais e neopentecostais, entravam em debate religioso. Neste sentido, aquilo que pode ser chamado de intolerância religiosa volta a ganhar notoriedade no cenário religioso brasileiro. Assim, a década de noventa é, curiosamente, a década de maior crescimento do neopentecostalismo. Além da IURD, a Igreja Renascer em Cristo (IRC), fundada pelo casal Estevam Hernandes e Sônia Hernandes, lidera os movimentos de passeata de evangélicos em São Paulo e que rapidamente se estende para outras partes do país. Eles começaram com shows evangélicos, mais conhecidos como shows gospel, com bandas musicais nacionais e internacionais, cantando músicas evangélicas para uma aglomeração predominantemente jovem. Essa fase do gospel liderada pela IRC teve dois momentos: o dos chamados “S.O.S. da Vida”, realizados em estádios e ginásios de esportes, trazendo importantes nomes do neopentecostalismo norte-americano como Benny Hinn, e uma segunda fase que permanece através de um evento chamado “Marcha para Jesus”, realizado anualmente na cidade de São Paulo e em outras grandes cidades brasileiras. Este evento tem reunido milhões de pessoas ao longo dos anos, e tem procurado demonstrar o crescimento numérico das igrejas evangélicas, desconsiderando qualquer possibilidade de trânsito religioso – o que é muito comum nessas igrejas – além de procurar alcançar novos adeptos, os quais, normalmente, quando se tornam evangélicos sem permanecerem praticantes de rituais não evangélicos e sem freqüentarem reuniões de outras religiões, normalmente romperam com o catolicismo, com o espiritismo ou mesmo com alguma das religiões afro-brasileiras. O contexto dessas tensões que servem para demonstrar o quanto a intolerância religiosa se intensifica é marcado também pela expansão do movimento católico de Renovação Carismática, uma espécie de pentecostalismo católico. Fazemos esta analogia devido à semelhança que há com as convicções em torno do batismo com o Espírito Santo evidenciado pela experiência de falar em línguas estranhas – a glossolalia – própria do pentecostalismo. Embora presente no Brasil desde o início da década de setenta, a Renovação Carismática Católica (RCC) só começou a ter uma difusão maior através dos cenáculos organizados pelo padre Alberto Luiz Gambarini, de Itapecerica da Serra, em estádios de futebol como Morumbi e Pacaembu. Posteriormente, com uma visibilidade muito maior, o padre Marcelo Rossi indiretamente faz da RCC a grande reação do catolicismo brasileiro à expansão neopentecostal. Gravando um CD campeão

6 de vendas, tendo o apoio da mídia televisiva, sobretudo da Rede Globo, e reunindo milhares de pessoas em sua paróquia na cidade de São Paulo, padre Marcelo Rossi contribuiu sobremaneira para que o catolicismo brasileiro, especialmente o de matriz carismática, embarcasse nas ondas do mercado religioso, já explorado pelas igrejas evangélicas desde o início da década de noventa. Neste sentido, entramos em outra temática desenvolvida por Montes em seu texto: o chamado “mercado dos bens de salvação”. Agora não são somente as igrejas evangélicas que se mostram como grandes empresas, que vendem produtos religiosos e que contribuem para um consumismo exacerbado destes produtos cuja finalidade, segundo se afirma, é o crescimento espiritual do fiel. A RCC, e o melhor exemplo disso é a Canção Nova, na cidade de Cachoeira Paulista no interior de São Paulo, deixou de ser apenas aquilo que chamamos de face pentecostal do catolicismo brasileiro, passando a ser, sem exageros, a face neopentecostal do catolicismo brasileiro. O fenômeno mais recente deste catolicismo midiático, assim identificado por Brenda Carranza9, é o padre cantor Fábio de Melo. Professor de teologia, escritor e intérprete de músicas católicas há vários anos, chegou ao auge de sua carreira quando descoberto pela mídia secular. Usando roupas comuns – não de sacerdotes, como ainda fazia padre Marcelo Rossi – o padre Fábio de Melo parece representar uma nova geração da RCC e do catolicismo brasileiro em geral, e não

mais

aqueles

movimentos

que

pareciam

reagir

ao

crescimento

do

neopentecostalismo. Enquanto aquela tensão entre católicos e protestantes da segunda metade da década de noventa parecia contribuir muito mais com a intolerância do que para com o diálogo inter-religioso, o discurso do padre Fábio de Melo, conquanto seja essencialmente católico, em seu programa transmitido pela emissora de TV da própria Canção Nova e em outras das suas várias apresentações em diversos canais da televisão brasileira, como também em seus shows pelo país, destaca a importância do respeito por aqueles que professam outra fé, especialmente, os evangélicos. Após ter feito esta leitura do cenário religioso brasileiro nas últimas duas décadas, considerando as observações feitas por Montes, concordamos com ela ao afirmar que “numa palavra, evidenciava-se, por meio desses episódios, que se achava em curso um rearranjo global do campo religioso no Brasil, cujos efeitos, oscilando entre o mundo público e o privado, ainda deveriam ser melhor explorados para”10 serem mais bem 9

CARRANZA, Brenda. Catolicismo midiático. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (org.). As religiões no Brasil – continuidades e rupturas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006, p. 69 a 87. 10 MONTES, Maria Lucia. As figuras do sagrado – entre o público e o privado... p. 68 e 69.

7 avaliados. Ou seja, por mais que ela esteja tratando do início de todo o processo, pois desde então presenciamos novos reflexos dessas tensões, o cenário religioso brasileiro, especialmente aquele ocupado por católicos e protestantes, tem experimentado a cada ano novos desdobramentos. A questão de mercado religioso não é mais única enquanto característica, ou pelo menos não se reduz ao que era no início. Desde o começo do século XXI tem aumentado consideravelmente, por exemplo, o número de escolas interdenominacionais de teologia protestante, e os alunos que as freqüentam não são obrigatoriamente líderes religiosos, mas simples leigos das igrejas. Em contrapartida, esse crescimento das escolas de teologia acaba por oferecer um “produto” que nem sempre compactua com aqueles oferecidos pelo mercado religioso do qual falamos, e que sempre teve à frente as grandes denominações neopentecostais. Historicamente, as religiões no Brasil tiveram seu início desde o contexto colonial, quando além do catolicismo europeu que aqui se instalara, práticas religiosas dos nativos já eram presentes, além daquelas provenientes da África negra. Quando o padroado chega ao fim, a religião se inclina para o campo do privado, e será neste contexto que o protestantismo irá chegar. Estamos comentando sobre isso somente agora porque, apesar daquilo que se estabelecia no campo oficial, político, a religião no Brasil parece nunca ter deixado de se aliar às atuações do Estado. Embora as Constituições Republicanas venham, a cada atualização, enfatizando a identidade laica brasileira, na prática, o que se vê, é uma permanência da ligação entre a religião católica e o Estado, o que está muito evidente por de muitos dos feriados nacionais, a evolução do culto à Nossa Senhora Aparecida, considerada oficialmente pelo Estado – não só pela religião – como padroeira do Brasil, a presença de crucifixos nos estabelecimentos públicos como escolas, fóruns, câmaras municipais, assembléias legislativas, prefeituras etc. Contudo, isso não impediu a penetração, o avanço e a forte atuação das igrejas evangélicas, especialmente, as neopentecostais, as quais ocupam, inclusive, horários nobres de grandes redes de comunicação como a Bandeirantes que, por muito tempo, tem vendido boa parte de seu espaço a líderes como Silas Malafaia e R.R.Soares. Como se não bastasse esse tipo de participação protestante em uma nação laica que preserva os elementos de sua “origem” católica nos espaços públicos e nos feriados, podemos mencionar a grande presença de deputados evangélicos, formando a conhecida “bancada evangélica” na Assembléia Legislativa11. Esta, certamente, a grande 11

“Na verdade, o crescimento dos evangélicos, que lhes deu visibilidade pública, se refletiu também no interior do próprio grupo, que desde a década de 80 procura, e agressivamente, marcar sua presença na

8 responsável pela troca de interesses e favores envolvendo igrejas evangélicas e políticos, intensificados sobremaneira em períodos de eleições municipais, estaduais e federais. A força desta bancada parece tão significativa que, além dos conchavos em si, contribui de maneira determinante na propagação de ideologias anti-aborto e antihomossexualidades, típicas do fundamentalismo religioso12, interferindo diretamente nos processos eleitorais, conforme acontecera na última disputa presidencial. As páginas finais dedicadas por Montes a respeito do protestantismo que nos interessam se detêm nessa temática da “bancada evangélica”, as relações do fiel mais bem sucedido economicamente ou mesmo do líder que é, normalmente, um empreendedor, com os negócios enquanto submetidos ao crivo da religião. O líder, por exemplo, adota uma metodologia de recrutamento de pastores que, além das concepções espirituais e teológicas por detrás do processo, funciona de maneira não muito distante daquela adotada no processo de admissão de funcionários de uma empresa. Há contratos com direitos e deveres bem definidos, havendo, inclusive, espaço para processos trabalhistas, dependendo do modo como uma rescisão contratual for efetivada. No que se refere à política, Montes compara os métodos adotados pela “bancada evangélica” com a presença da Igreja Católica na vida pública brasileira, inclusive nos vinte anos de regime militar. Dadas as devidas proporções, considerando encontros e desencontros entre as duas identidades cristãs presentes no Brasil – a católica e a protestante – esta segunda extremamente fragmentada, Montes conclui que “diferentes religiões comportam diferentes cosmovisões, cosmologias, e de que é também a partir do seu interior que se definem as fronteiras entre o público e o privado.”13

Considerações finais Entendemos que não seja possível encerrar o assunto. A autora Maria Lucia Montes, em sua reflexão histórica, estabeleceu um amplo diálogo com as Ciências Sociais. Como nos preocupamos com a questão do protestantismo e sua diversidade, percebemos que

cena pública, valendo-se da participação política. O grupo que se tornaria conhecido como a ‘bancada evangélica’ do Congresso Nacional, durante os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, representou um primeiro exemplo, inédito, de participação, no interior de um grupo que historicamente se mostrara avesso à política. Desde então, a cada eleição, o acompanhamento dos apoios, adesões, divergências e alianças de candidatos evangélicos, e das próprias igrejas com relação a outros candidatos, se tornaria uma tarefa obrigatória dos analistas da religião e da política no Brasil.” cf. MONTES, Maria Lucia. As figuras do sagrado – entre o público e o privado... p. 88. 12 cf. VASCONCELLOS, Pedro Lima. Fundamentalismos – matrizes, presenças e inquietações. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 64. (Coleção temas do ensino religioso). 13 MONTES, Maria Lucia. As figuras do sagrado – entre o público e o privado... p. 90.

9 as tensões não se deram, apenas, com relação à fé católica ou no âmbito empreendedor como no exemplo da concorrência empresarial entre Rede Globo e Rede Record, mas também na ambiência interna. Protestantes concorrem entre si, quando o assunto não se resume a um adversário comum. Contudo, se os interesses são contrários, chegam a divergir, mesmo quando o adversário é o mesmo. Vimos isso quando o pastor Caio Fábio optou por não ficar ao lado dos neopentecostais, sobretudo da IURD, na ocasião da disputa com a Rede Globo. Como o texto de Montes foi publicado em 2002, muitas ocorrências novas foram registradas, fazendo com que reflexões como esta passem por atualizações. Foi por esta razão que optamos também por consultar outras fontes mais recentes. Além do catolicismo midiático, que apontamos em algum momento, poderíamos considerar que, por exemplo, o cisma relativamente recente ocorrido na IURD dando origem à Igreja Mundial do Poder de Deus, o rompimento do pastor Caio Fábio com o protestantismo do qual fazia parte para dar início a um novo movimento pretensamente não institucionalizado denominado por ele próprio de Caminho da Graça, a expansão do mercado evangélico por meio da Feira do Consumidor Cristão (FICOC) que desde 2004 passou a se chamar ExpoCristã, tendo como paralelo concorrente a ExpoCatólica e os escândalos protagonizados pelos líderes da Igreja Renascer em Cristo, os quais teriam sido presos na alfândega norte-americana em janeiro de 2007, quando tentavam entrar no país com 56 mil dólares em espécie, são exemplos de casos particulares que servem para ampliar ainda mais a reflexão iniciada por Montes e outros autores, acerca do protestantismo brasileiro das últimas duas décadas.

Referências bibliográficas BITUN, Ricardo. Igreja Mundial do Poder de Deus. Revista Ciberteologia. São Paulo: Paulinas, n. 31, Set/Out 2010. BONINO, José Míguez. Rostos do protestantismo latino-americano. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002. CARRANZA, Brenda. Catolicismo midiático. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata. (org.). As religiões no Brasil – continuidades e rupturas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. MENDONÇA, Antônio Gouvêa; VELASQUES FILHO, Prócoro. Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1990. MENDONÇA, Antonio Gouvêa. O protestantismo no Brasil e suas encruzilhadas, Revista USP, São Paulo, n. 67, Set/Nov 2005.

10 MONTES, Maria Lucia. As figuras do sagrado – entre o público e o privado. In: Schwarcz, Lilia Moritz. História da vida privada no Brasil – contrastes da intimidade contemporânea, vol. IV. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. PRIORE, Mary Del. História do cotidiano e da vida privada. In: Cardoso, Ciro Flamarion; Vainfas, Ronaldo. (orgs.). Domínios da História – ensaios de teoria e metodologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997. VASCONCELLOS, Pedro Lima. Fundamentalismos – matrizes, presenças e inquietações. São Paulo: Paulinas, 2008. (Coleção temas do ensino religioso).

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