O público, o coletivo e o privado: diálogos contemporâneos

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O público, o coletivo e o privado: diálogos contemporâneos Adriana Sansão Fontes (1) Sergio Moraes Rego Fagerlande (2) (1) Dep. de Projeto de Arquitetura / DPA da FAU, UFRJ, Brasil. Professora do PROURB FAU UFRJ. E-mail: [email protected] (2) Dep. de Urbanismo e Meio Ambiente / DPUR da FAU, UFRJ, Brasil. Pesquisador do PROURB FAU UFRJ. E-mail: [email protected]

Resumo: Este trabalho pretende discutir as interfaces entre os domínios público, coletivo e privado, postos em relação por meio do programa de projeto proposto pelo Atelier Integrado 1 (FAU/UFRJ), entendendo o público como os espaços abertos de livre acesso; o coletivo como os espaços semiabertos ou fechados de acesso público; e o privado como os espaços de acesso restrito; e refletir sobre a importância dessas noções no ensino de arquitetura e urbanismo na contemporaneidade. Para fundamentar as reflexões, estabeleceremos um diálogo entre autores buscando conciliar algumas ideias de arquitetura e urbanismo do século XX, aproximando lições da arquitetura moderna com ensinamentos do período posterior de crítica do mesmo, e, ao mesmo tempo, inserindo alguns conceitos emergentes sobre o tema em questão. Palavras-chave: espaço público; espaço privado; espaço coletivo.

Abstract: This paper discusses the interfaces between the public, collective and private domains, brought into relation through the project program proposed by Integrated Atelier 1 (FAU / UFRJ), understanding the public as the open spaces of free access; the collective as the half open or closed spaces of free access; and the private as the spaces with restricted access; and reflect on the importance of these notions in teaching architecture and urbanism in contemporary times. In support of the reflections, we will establish a dialogue between authors seeking to reconcile some ideas of architecture and urbanism of the twentieth century, bringing lessons of modern architecture and ideas from the period of its criticism, and at the same time, inserting some emerging concepts on the subject in question. Key-words: public space; private space; collective space.

INTRODUÇÃO O presente trabalho discute as interfaces entre os domínios público, coletivo e privado, utilizando como caso de estudo a experiência de ensino do Atelier Integrado 1 da FAU/UFRJ. O Atelier Integrado 1 é um atelier de projeto composto por sete disciplinasi que trabalham de forma integrada no processo de projeto, configurando um produto final único, e é responsável pelo fechamento do ciclo de fundamentação do curso, que acontece no final do segundo ano (4º. Período). Ao longo do texto articularemos as questões relativas à habitação e sua relação com a cidade, a interrelação entre os espaços livres e edificados, as gradações entre o público e o privado, o espaço intermediário e o espaço coletivo, trazendo à discussão autores como Hertzberger (1999), Gehl 1 | 10

(2013), Cullen (2008), Ashihara (1982), Alex (2008), Alexander (1977), Gomes (2002), Solà Morales (1992), Gausa (2001), Wall (1999) e Corner (1999), e assim apresentando possibilidades de entendimento sobre o tema. Através de autores de diversos períodos, desde o Movimento Moderno até o momento atual, o trabalho constrói uma discussão que aproxima a teoria do projeto. 1. HABITAÇÃO COLETIVA E CIDADE OU A CASA É A CIDADE: COMO O ATELIER INTEGRADO 1 ENTENDE O TEMA DA HABITAÇÃO COLETIVA O Atelier Integrado 1 parte do entendimento de que a habitação é muito mais do que a casa. Habitamos não somente o espaço construído da moradia, mas também a extensão entre o construído e o não construído, o que contempla equipamentos, comércio, serviços, espaço público, espaços estes que interagem e se complementam para a satisfação plena das necessidades e desejos humanos. As práticas realizadas nessa disciplina, portanto, pressupõem o projeto integrado dos espaços da moradia e da cidade, onde a primeira não é abordada como um objeto independente, mas como uma peça dentro de um sistema maior de vias, praças e bairros. Dessa maneira, o domínio público tem igual importância em relação ao privado, e a moradia e a rua estabelecem domínios complementares. Essa noção é muito importante ao se iniciar o projeto, quando a implantação do edifício deve ser abordada de forma a garantir essa complementaridade. Quando consideramos que a habitação em questão é a moradia coletiva, e não a individual, essa complementaridade ganha ainda mais relevância, dada a população envolvida e o potencial de geração de intercâmbios que o novo projeto assume estando na escala multifamiliar. Nesse âmbito complementar, o domínio privado - uma vez multifamiliar - tem a oportunidade de incorporar funções públicas, da mesma forma que o domínio público também pode acomodar o doméstico. A rua como extensão da casa, pelo uso que se pode fazer desse espaço contíguo, tanto fisicamente como visualmente, é parte considerável da relação do elemento construído com a cidade. A casa, nesse sentido, passa a ser a própria cidade.

FIGURA 1 – Público e privado em canal de Veneza. Fonte: Foto do autor (1986). 2 | 10

2. OS CHEIOS COMO ESTRUTURADORES DOS VAZIOS: COMO O ATELIER INTEGRADO 1 ABORDA A RELAÇÃO ENTRE O EDIFÍCIO E O ESPAÇO LIVRE? Para dar início à discussão sobre essa abordagem, é importante contextualizar que acreditamos no projeto contemporâneo enquanto síntese de diferentes camadas de história. Assim, estamos em sintonia com as ideias de Portzamparc (1992), que defende a conciliação entre as duas principais eras da cidade, tidas como antagônicas: a cidade da primeira era, caracterizada pela rua-corredor da cidade tradicional, e a cidade da segunda era, caracterizada pelos edifícios autônomos da cidade moderna. Essa conciliação, que ele denomina como a terceira era da cidade, seria a reunião das qualidades de ambas: a manutenção da rua como tipo urbano, porém mais permeável e aberta, e a valorização da autonomia dos edifícios, porém respeitando certas regras de alinhamentos e vazios. Trabalhamos, igualmente, dentro dessa lógica não excludente, lançando mão de um arcabouço de arquitetos e projetos do Movimento Moderno que ensinam sobre o edifício, seus dispositivos espaciais e possibilidades de relação com a cidade, e, simultaneamente, debruçando sobre autores pós-modernos que discutem a rua, a importância do espaço público e da pequena escala.

FIGURA 2 – Pilotis de edifício modernista (projeto de Sergio Bernardes) em Ipanema, Rio de Janeiro. Fonte: Foto do autor (2014).

A dinâmica da implantação do edifício no contexto urbano consolidado é um dos temas de maior interesse no Atelier Integrado 1. Operando na busca da complementaridade entre o público e o privado, debruçamos nas variadas possibilidades de relação entre a situação do edifício e a área livre que o envolve. Dentro dessas alternativas, tendemos a pensar que os espaços públicos podem ser organizados pelos espaços privados, ou ainda, que o construído pode definir o espaço aberto, estabelecendo a costura do novo edifício com o entorno. Para fundamentar essa ideia, levantamos a questão da escala humana, recorrendo a Hertzberger, que diz que

espaços grandes demais não conseguem ser preenchidos, não há diversões suficientes para tal (Hertzberger, 199, p. 62). (...) Se a área da rua é grande demais, pouca coisa acontece em poucos lugares (1999, p. 63). (...) As 3 | 10

dimensões excessivas criam imediatamente distância e separação, e, ao insistirem em projetar numa escala demasiado ampla, grandiosa e vazia, os arquitetos se tornaram produtores em grande escala de distância e alienação (1999, p. 194). A implantação deve ser pensada não como o ato de localizar o objeto arquitetônico em um espaço livre, mas como o de dar forma a esse espaço. Dessa maneira, o projeto do construído passa a ser também o projeto do não construído, tanto na forma quando no programa, auxiliando na tal complementaridade dos domínios anteriormente defendida. Gehl (2013, p. 40) mostra como a relação espacial construído-livre pode influenciar na maneira como usamos os espaços. Segundo ele, as pessoas buscam apropriar-se de espaços livres que estejam diretamente relacionados ao construído, seja com o que está próximo - no térreo dos edifícios - seja com os pavimentos superiores com os quais é possível estabelecer contato visual. Essa relação direta entre as edificações e as ruas é importante para a vitalidade dos espaços públicos, o que irá contribuir para uma cidade mais saudável. Assim, o campo visual e a relação com as dimensões excessivas não devem ser pensadas somente na horizontal, mas também na vertical. Retornando a conceitos mais antigos, a ideia de se pensar os vazios estruturados pelos cheios é o que Cullen (2008, p. 108) denomina como delimitação, conceito que explica como esses vazios, sejam eles ruas, praças ou espaços coletivos privados, são gerados em uma relação direta com o construído. Ashihara (1982, p. 16) também toca no tema, quando defende que as cidades podem ser pensadas através da formação do que ele chama de espaço inverso, outra forma de definir o espaço livre que é formado verdadeiramente pelo construído. Tomando como referência o mapa de Roma de Giambatista Nolli, de 1748, Ashihara nos mostra que, ao desenhar os cheios, estamos simultaneamente desenhando os vazios. Nesse contexto, atenção especial deve ser dada à escala do objeto, que varia do domínio do privado para o público. Enquanto a habitação está na escala arquitetônica, na qual espaços fechados mantém certas relações, o espaço público está na escala urbana, o que gera outras relações espaciais. Atento a essa questão, Alex (2008, p. 19) aponta que é fundamental pensar as transições de escala do privado para o público: ao mesmo tempo em que o espaço livre não pode ser “vazio” demais, existe uma proporção entre os espaços abertos (maiores) e edificados (menores). No Atelier Integrado 1, faz parte do exercício de implantação a exploração das relações de escala e de uso entre o espaço edificado e o espaço livre, equilibrando densidades e porosidades, como parte da busca pela qualidade espacial. Os resultados dessa exploração se refletem nas distâncias a serem percorridas na cidade, em como os espaços livres estão ligados aos usos e atividades dos espaços construídos, e em como o morador irá se apropriar dos espaços, sejam eles construídos. 3. O PÚBLICO, O PRIVADO E O ESPAÇO INTERMEDIÁRIO: O PÚBLICO E O PRIVADO NA ATUALIDADE E COMO A ARQUITETURA CONTEMPORÂNEA PODE ESTABELECER DIÁLOGOS ENTRE AMBOS A problematização da relação entre o espaço público e o espaço privado é o ponto central desse trabalho. Para construí-la, julgamos conveniente apresentar a abordagem do atelier sobre o programa do projeto em um primeiro momento, para, em seguida, discutir a relação entre o edifício e o espaço livre. De forma a avançar na construção de um diálogo entre o público e o privado, nos centraremos, nesse momento, na discussão sobre um dos desafios do Atelier Integrado 1, que é, precisamente, a concepção de espaços e dispositivos arquitetônicos com caráter de transição. Para abordar a questão, partimos da afirmação de Hertzberger (1999, p. 12) de que

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a oposição extrema entre o público e privado - como a oposição entre o coletivo e o individual - resultou num clichê, e é tão sem matizes e falsa como a suposta oposição entre o geral e o específico, o objetivo e o subjetivo. Tais oposições são sintomas da desintegração das relações humanas básicas. Assim, apoiamo-nos nas possibilidades de diluição das fronteiras rígidas que separam esses dois domínios, vislumbrando como procedimento possível a gradação de “publicismo”, já apontada por Alexander (1977, p. 192) no pattern n° 36 da Linguagem dos Padrões. Esse conceito trata dos diferentes graus de privacidade que são desejáveis em um conjunto de residências ou em uma vizinhança, mas que pode ser facilmente transposto para a transição dos espaços públicos da cidade em si, e para a passagem do espaço público até o interior do edifício, introduzindo nuances nas demarcações territoriais.

  FIGURA 3 – Praça das Artes, São Paulo. Fonte: Foto do autor (2014).

Essas variações são sutilezas que devem ser levadas em conta na definição dos espaços abertos e fechados, e não se trata de nenhuma novidade na história da arquitetura. Um exemplo comum são as galerias, tipo urbano presente desde o século XIX, que cria espaços internos abertos de uso público, configurando, simultaneamente, um dentro e fora. Esse tipo de espaço vem perdendo força na atualidade, particularmente no Rio de Janeiro, afetado pelo valor da terra, que muitas vezes leva a arquitetura a adotar soluções de maior viabilidade econômica, como as grandes lojas nos térreos dos edifícios, ou mesmo a concentração comercial dentro de shopping centers. No século XX, o Movimento Moderno também se aprofundou no tema do dentro-fora através de inúmeras realizações. Embora, como já mencionado, a lógica desse movimento esteja baseada na autonomia do objeto, esta era sistematicamente rompida através de uma série de recursos arquitetônicos, como rampas, desníveis, plataformas elevadas, marquises, portas-dispositivo, e, principalmente, os pilotis. Esses últimos, que se converteram em cânone, ofereceram à cidade um novo tipo de espaço público, responsável por colocar os domínios público e privado em relação, sem

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contar o fato de que são eles os que revelam o edifício moderno em sua melhor atuação: inserido e em confronto com a cidade tradicional, e não enquanto critério urbanístico universal. Alguns conceitos da segunda metade do século XX também procuraram dar conta da importância de qualificar essas transições, como chave para eliminar a divisão rígida entre áreas com diferentes demarcações territoriais. Entre eles podemos destacar o “espaço intermediário” de Aldo Van Eych, lugar onde surge uma fusão do público com o privado, e o “intervalo”, de seu discípulo Hertzberger. Centrando-se na dimensão humana do habitar a cidade, diz este último que

a concretização da soleira como intervalo significa, em primeiro lugar e acima de tudo, criar um espaço para as boas vindas e as despedidas, e, portanto, é a tradução em termos arquitetônicos da hospitalidade. (Hertzberger, 1999, p. 35) Mais recentemente, Gehl (2013) tem se debruçado sobre o estudo dos “espaços de transição suave”. Segundo ele, os espaços de transição são os lugares onde a cidade encontra as edificações, e que devem ser pensados de forma a definir o espaço, funcionar como zonas de troca, permanência, mas também de experiência. Nesse sentido, as transições suaves seriam as capazes de criar cidades mais vivas, e alguns atributos estariam envolvidos na suavização dessas zonas, como, por exemplo, a escala e ritmo, a transparência, o apelo aos sentidos, a textura e os detalhes, a diversidade de funções e o ritmo de fachadas (Gehl, 2013, p. 78). O público dentro do privado Partimos, portanto, da ideia dos edifícios como expansão do mundo público, da possibilidade de trazer o mundo exterior para dentro do que costuma ser o âmbito privado, abolindo parcialmente as rígidas fronteiras entre os dois domínios. Já diria, mais uma vez, Hertzberger (1999, p. 77), que dessa forma “o espaço interior se torna mais acessível, enquanto o tecido das ruas se torna mais unido. A cidade é virada pelo avesso”. E isso vale tanto para os espaços de propriedade privada (caso das galerias) que, enquanto estão abertos, permitem que a rua se expanda, quanto para os edifícios públicos, como bem ilustra o já mencionado mapa Nolli, quando incorpora esses espaços coletivos fechados ao sistema de espaços públicosii. Isso porque o conceito de espaço público é muito maior do que somente pensarmos em praças e ruas. Alex (2008, p. 19) afirma que

o espaço público na cidade assume inúmeras formas e tamanhos, compreendendo desde uma calçada até a paisagem vista da janela. A palavra “público” indica que os locais que concretizam esse espaço são abertos e acessíveis, sem exceção, a todas as pessoas. Mas essa determinação geral, embora diminuída ou prejudicada em muitos casos, é insuficiente: atualmente, o espaço plurifuncional – praças, cafés, pontos de encontro – constitui uma opção em uma vasta rede de possibilidades de lugares, tornando-se difícil prever com exatidão seu uso urbano. Espaços adaptáveis redesenham-se dentro da própria transformação da cidade.

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Alex (2008, p. 23) sustenta que o espaço público, em especial a praça, deve ser entendido não mais como um modelo trazido principalmente do estudo paisagístico europeu, mas na forma como esses espaços se relacionam com a vida urbana contemporânea. A maneira como ele caracteriza o espaço público através do uso, e não da propriedade, encontra respaldo em Gomes (2002, p. 162), que chama a atenção para a importância desses lugares serem caracterizados pela maneira como as pessoas se apropriam dos espaços, ou seja, pelo uso e não somente pela propriedade. Recentemente Lassance, em seu guia metropolitano do Rio de Janeiro, dá relevo uma qualidade comum a diversos edifícios de expressão metropolitana, que é a conectividade de fluxos. Essa característica é possível graças às “organizações espaciais muito entrosadas com o contexto em que se implantam” (2012, p. 40), que atraem e aproveitam os diferentes fluxos externos, permitindo o atravessamento de pedestres por dentro dos edifícios ou através de áreas livres de propriedade privada, estabelecendo relações de continuidade entre estes e a cidade. Seriam exemplos de espaços privados que “contém espaço público dentro deles”, no sentido do uso e acessibilidade. Em nossas abordagens dentro do Atelier Integrado 1, procuramos explorar essas transições da tessitura urbana através da associação entre o programa público/coletivo (no sentido do uso) com um parâmetro de projeto “inventado” capaz de permitir essa expansão do público dentro do privado, que chamamos de taxa de ocupação do térreo. Essa taxa difere da taxa de ocupação do edifício que figura na legislação, sendo fixada, no nosso exercício, em um limite máximo inferior a esta, sugerindo que o térreo possa operar de forma mais autônoma em relação ao corpo do edifício, respondendo diretamente às questões relativas ao chão da cidade e suas possibilidades de conexão e permeabilidade, ou seja, adquirindo mais porosidade. Dessa maneira, estamos, mais uma vez, estimulando a conciliação entre o térreo construído da cidade tradicional e o pilotis moderno, fundindo-os de forma equilibrada. 4. O PÚBLICO, O PRIVADO E O COLETIVO: COMO O ATELIER INTEGRADO 1 ABORDA O PROJETO DE ESPAÇO COLETIVO? A importância do espaço público é independente de se este é mais ou menos extenso, quantitativamente dominante ou protagonista simbólico; ao contrário, é o resultado de referir entre si os espaços privados fazendo também deles patrimônio coletivo (Solà-Morales, 2008, p. 187). De forma a ampliar as possibilidades de experimentação do espaço intermediário na transição entre a cidade e o edifício, apostamos no hibridismo programático e no fortalecimento da dimensão coletiva do programa de projeto como um todo. O Atelier Integrado 1, portanto, procura abordar o programa nas relações e interfaces entre as naturezas pública, privada e coletiva, abordagem na qual o próprio aluno deve ser capaz de organizar as partes de forma a delimitar os diferentes domínios. Como já explicitado ao princípio deste trabalho, podemos entender o público como os espaços abertos de livre acesso, como praças, largos e calçadas; o privado como os espaços de acesso restrito, como as unidades residenciais, áreas comuns e áreas de serviço do edifício; e o coletivo como os espaços semiabertos ou fechados de acesso público, de caráter cultural ou comercial, como, por exemplo, uma biblioteca, uma sala de exposições, um auditório ou mesmo um restaurante ou cafeteria. Nesse contexto, os usos coletivos passam a operar como mediadores entre o edifício (privado) e a cidade (público). Nesse caso, chamamos a atenção para a não relevância do estatuto da função coletiva, já que, no nosso âmbito de atuação, o que importa é o uso, e não a propriedade dos espaços de transição.

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Para fundamentar essa abordagem, recorremos a Solà Morales (1992), que defende que os espaços coletivos são “todos os lugares onde a vida coletiva se desenvolve, representa e recorda”, e que podem ser públicos e privados ao mesmo tempo (1992, p. 104). Segundo ele, precisamos estar atentos aos espaços coletivos, fazendo desses lugares intermediários espaços não estéreis, e convertendo-os em partes estimulantes do tecido urbano multiforme, uma vez que a cidade se dá onde público e privado se mesclam (2008:105). Por representarem a estrutura principal da cidade futura, devem ser o foco das nossas atuações na cidade, visando coletivizar esses espaços ambíguos, fazendo-os cada vez mais públicos, porque a boa cidade é a que consegue dar valor público ao privado (1992, p. 106). Na mesma linha de raciocínio, Gausa (2001, p. 204) ainda deriva o conceito de espaço coletivo para espaço relacional, o espaço não mais composto de modelos cívicos, mas de situações mestiças, aberto à transformação e gerador de ação e mistura, não destinado somente ao passeio, mas também ao estímulo pessoal e compartilhado:

Um espaço autenticamente coletivo aberto ao uso, ao desfrute, ao estímulo, à surpresa: à atividade. À indeterminação do dinâmico, do intercâmbio entre cenários ativos e passantes-usuários-atores-ativadores (Gausa, 2001, p. 204). A abordagem do Atelier Integrado 1, que associa o projeto dos espaços públicos ao projeto da edificação, permite que a própria implantação defina os limites entre os domínios, e determine a localização dos espaços coletivos de forma a construir as transições e coletivizar o térreo da cidade. Durante esse processo, ainda tomamos como influência o Movimento Moderno e a proposta do térreo livre (pilotis), procurando incentivar a associação desses espaços de transição permeáveis com o “rodapé” da cidade, que equivale ao térreo edificado. O tratamento do chão da cidade, que é o território do pedestre e o que Gehl (2013) denomina como a “cidade ao nível dos olhos”, é de vital importância para a sobrevivência dos espaços abertos, já que os usos do térreo são os responsáveis por garantir a animação das ruas.

  FIGURA 4 – Centro de São Paulo. Fonte: Foto do autor (2014).

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Nesse contexto, vale a pena considerar a compacidade dos edifícios e a acessibilidade aos usos que compõem esse rodapé (acessos às edificações). Segundo Gehl (2004), “quando os edifícios são estreitos, a distância da rua se encurta, os deslocamentos a pé se reduzem e a vida na rua se intensifica”. Em paralelo, se os acessos às edificações são próximos, melhora a vitalidade, já que é nesses espaços que acontece maior parte da movimentação da rua (Gehl, 2013, p. 75). Outro procedimento que adotamos para agregar maior complexidade a essas relações espaciais é a duplicação da superfície do térreo. Incentivamos os alunos a observarem a potência da topografia como delimitadora dos espaços públicos, coletivos e privados. Para desenvolver essa reflexão encontramos respaldo em Wall (1999, p. 233), que entende a paisagem como superfície ativa, que estrutura as condições para novas relações e interações entre os elementos que suporta. Segundo ele, o plano térreo deve ser o espaço de conexão dos fragmentos e programas díspares, e, baseado nessa hipótese, propõe algumas estratégias para ativar a superfície, como o “engrossamento”, que consiste na multiplicação dos níveis, conectando-os por elevadores ou escadas rolantes, de forma a alcançar a continuidade, multiplicidade e dinâmica do espaço; e a “dobradura”, que significa mexer com a geologia, unindo interior e exterior em superfícies contínuas, estabelecendo a fluidez entre as zonas. Essas ideias têm consonância com Corner (1999:16), que defende que na contemporaneidade os projetos de edifícios devem ser concebidos menos em termos de objetos isolados e mais como construções sitespecific, que estejam intimamente colados em contextos e processos maiores. Para isso, é necessário atentar para temas como topografia, sítio, ecologia e geografia, e pensar a arquitetura como o próprio território experimentado. Em nossa dinâmica diária, procuramos chamar a atenção para esses e outros aspectos a partir de referências teóricas e projetuais, de forma a consolidar um ponto de vista relacionado à conformação da fachada urbana de determinado trecho da cidade. Atentos à nossa escala de atuação, restrita a segmentos de ruas ou à quadra, acreditamos na potência do pequeno na contaminação positiva de contextos mais ambiciosos. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo deste trabalho buscamos explicitar a importância do projeto integrado dos âmbitos público e privado, e pontuar uma série de conceitos e dispositivos com potencial de mediação entre eles. Construímos a argumentação partindo da relação entre a habitação e a cidade e sua interdependência; ressaltamos a importância da abordagem conjunta do edificado e do vazio, e de como se relacionam e se afetam; abordamos o espaço intermediário e sua importância na costura desses domínios; para chegar à discussão do programa coletivo como possibilidade de transição; sempre buscando respaldo em autores/pensamentos consagrados no nosso campo, sejam eles de perspectiva contemporânea, pósmoderna ou do Movimento Moderno. Acreditamos que uma grande fragilidade do ensino é muitas vezes não considerar cidade e arquitetura como um mesmo projeto. Com a experiência do Atelier Integrado 1 foi possível fortalecer um ponto de vista acadêmico tanto da relação entre o construído “habitação” e o construído “cidade”, quanto entre o construído e o não construído, compreendendo suas transições, permeabilidades e complementaridades, uma vez que morar é algo que transcende a edificação e se completa na cidade. Esse olhar integrado é fundamental para se encarar os desafios de projeto no contexto carioca, onde são poucos os exemplos de espaços contemporâneos em que essa relação esteja presente de forma positiva. Por que isso ocorre? Acreditamos que a fragilidade do ensino “desintegrado” pode estar diretamente ligada à fraca qualidade dos espaços de vida cariocas. Isso nos faz recorrer sistematicamente ao Movimento Moderno, que mesmo já distante no tempo ainda oferece exemplos de qualidade para o estudo aplicado, ou mesmo a exemplos estrangeiros, nos quais se observam essas reflexões de forma concreta. 9 | 10

Aproveitamos o espaço para enfatizar a importância de um ensino voltado a instrumentalizar os futuros arquitetos para o projeto e para a reflexão sobre o projeto (de qualquer natureza), e não o ensino “de um programa” focando “um resultado”. Nesse sentido, enxergamos na relação públicocoletivo-privado uma matéria de grande relevância para a construção de uma cidade mais viva, saudável e estimulante para o convívio compartilhado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEX, Sun. Projeto da praça: convívio e exclusão no espaço público. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008. ALEXANDER, Christopher. A Pattern Language: Towns, Buildings, Construction. New York: Oxford University Press, 1977. CORNER, James. Recovering landscape as a critical cultural practice. In CORNER, James (ed.). Recovering landscape: essays in contemporary landscape architecture. New York: Princeton Architectural Press, 1999. CULLEN, Gordon. Paisagem Urbana. Lisboa: Edições 70, 2008. GAUSA, Manuel et alli. Diccionario metápolis de arquitectura avanzada: Ciudad y tecnología en la sociedad de la información. Barcelona: Actar, 2001. GEHL, Jan. Cidades para pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2013. ________ La humanización del espacio urbano. La vida social entre los edificios. Barcelona: Editorial Reverté, 2006. GOMES, Paulo Cesar da Costa. A condição urbana: ensaios da geopolítica da cidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. HERTZBERGER, Herman. Lições de Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1999. LASSANCE, Guilherme et alli. Rio Metropolitano: Guia para uma arquitetura. Rio de Janeiro: Rio Book’s, 2012. PORTZAMPARC, Christian. A terceira era da cidade. In: Revista Óculum 9. Campinas: Fau Puccamp, 1992. SOLÀ-MORALES, Manuel. Espacios públicos/espacioscolectivos. In: De cosas urbanas. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 2008. WALL, Alex. Programming the urban surface. In CORNER, James. (ed.). Recovering landscape: essays in contemporary landscape architecture. New York: Princeton Architectural Press, 1999.

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  As sete disciplinas - Projeto de Arquitetura, Projeto Paisagístico, Teoria da Arquitetura, Gráfica Digital, Concepção Estrutural, Saneamento Predial e Processos Construtivos - contemplam os quatro eixos ao redor dos quais o Curso de Arquitetura e Urbanismo da FAU/UFRJ está estruturado.  ii Mapa elaborado pelo arquiteto Giambattista Nolli, em 1784, que apresenta em figura-fundo o espaço construído da cidade de Roma, representando como espaços cívicos abertos os espaços públicos fechados, como as colunatas da Praça de São Pedro e do Panteão.

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