O Quarto. Um ensaio de antropologia teatral.

July 23, 2017 | Autor: Selma Baptista | Categoria: Anthropology of Performance
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O QUARTO Um ensaio de Antropologia Teatral Van Gogh deixou Paris em 1888, em direção a Arles, cansado da vida urbana, ansiando pelo efeito das cores vivas, dos movimentos e sons da vida rural. Nos doze meses subseqüentes lutou com vigor para capturar a visão exterior das coisas, concentrando-se nas paisagens, na natureza, mas foi incapaz de suprimir seus sentimentos mais íntimos, sua subjetividade, sobre o que quer que fosse. O resultado deste embate acabou se expressando visualmente nas pungentes simplificações, nos exageros formais, e nas cores intensas da produção deste período. Como afirmam os críticos, seu trabalho, parcialmente expressionista e parcialmente simbolista mostra-se espontâneo e instintivo, revelando a rapidez e intensidade com que liberava o desejo de capturar um efeito ou humor temporário. Tinha pressa e ansiava por apreender o desabrochar das árvores frutíferas... as pessoas, ele mesmo ( auto-retrato), os interiores e exteriores das casas. Perceber pessoas e coisas pelo lado de fora e de dentro: girassóis e noites estreladas, campos agitados como mares secos, seu próprio quarto. A casa amarela foi um sonho de comunhão: imaginou formar ali em Arles uma nova comunidade impressionista com Gauguin, Toulouse-Lautrec, Bernard e Anquetin... O grupo“Impressionistas do Sul” nunca aconteceu. Paul Gauguin chegou a Arles em Outubro de 1888 e, ao final de dois meses de trabalho conjunto, Van Gogh estressado entrou em crise, cortou um pedaço da orelha e foi internado num hospital. Gauguin voltou a Paris.

2 Depois deste internamento, voltou à casa amarela, pintou o famoso auto-retrato com o curativo na orelha cortada, algumas naturezas mortas, e, entre mais de duzentos quadros, O Quarto. A respeito disso, numa carta ao seu amigo Gauguin, ele escreveu: “Divertiu-me muito fazer esta pequena cena interior, de tão pouca importância em si: com tons discretos, mas pincelados com largueza e pincel cheio: as paredes, lilás pálido; o assoalho, um vermelho diluído e esmaecido; as cadeiras e mesas em amarelo-cromo; o travesseiro e os lençóis em pálido verde-limão; a colcha em vermelho- sangue; o criado-mudo, laranja; a bacia, azul; e a janela, verde. O que desejo exprimir é um sentimento de repouso absoluto mediante todas essas cores diferentes, sem nenhum branco, exceto pequena nota no espelho emoldurado de preto".

Um olhar mais detido sobre o quadro nos leva à reflexão de Jean Baudrillard acerca do “sistema dos objetos”: “os móveis se contemplam, se oprimem, se enredam em uma unidade que é menos espacial que de ordem moral”. (Baudrillard, J. 1973:22) Nada ali remete à ambiência do moderno, claro. Além de ser o quarto de um pintor vivendo no final do século XIX, no ambiente rural, revela o acordo “natural” entre os movimentos da alma e a presença das coisas... expressando os sentimentos do artista. Cores. Os objetos são portadores de cores, esta sua adjetivação mais explícita, como diz o próprio Van Gogh. Mas sem nenhum branco, exceto no espelho, lateral, cuja função explícita é servir o aparador, à toilette. Tudo neste quarto respira a funcionalidade que o artista resolveu encantar com as cores. Nada está demais, nada existe em excesso. Apenas as cores modificam e dão sentido ao arranjo despojado e funcional. Os objetos ali estão como em qualquer quarto numa casa dos arrabaldes, das vilas francesas da época. Aprisionados ao arranjo de uma vida simples, quase ascética. Mas o que dizem as cores do quarto de Van Gogh? Dizem, fundamentalmente, das suas emoções, tornam-se metáforas. Contudo, fogem, nas palavras do próprio Van Gogh, das alusões simplistas, psicologizantes: ele não fala do simbolismo das cores, mas simplesmente as coloca ali, como um deus, tingindo a natureza pela primeira vez: pus esta ali, esta aqui, aquela lá, etc... Não aparece ali, segundo o próprio pintor, nenhuma alusão moral, apenas física: com a profusão de cores, o descanso, o repouso como uma divindade que tivesse acabado sua tarefa de colorir o mundo, mesmo que este fosse apenas um quarto. O repouso da profusão. O repouso da alegria da comunhão das cores. Um coletivo imaginário que saiu dos seus pincéis. O repouso da ação de encantar um lugar sombrio. Daí porque o branco só aparece no espelho, colocado na lateral, adjetivado negativamente: “sem nenhum branco, exceto pequena nota no espelho emoldurado de preto”. Cercado, dominado, contido. O branco, cor coadjuvante. O branco, ausência. Voltou ao hospital. No final de abril de 1889 pediu para ser internado num asilo e não ser deixado só. Sentia que precisava ficar sob controle. Até sua morte, em 1890, foi atormentado pelo medo de perder contato com a realidade: confinado por longos períodos na sua cela, ou perambulando pelos jardins do sanatório. Sem a opção da visão de objetos variados, Van Gogh lutou contra o trabalho feito através da memória. Tinha necessidade da observação direta. O movimento invadiu suas telas: as linhas revolveram os céus da sua pintura, soltas pela imaginação. Nada mais podia escapar a esta “objetivação”. O céu não é vazio, calmo, de cor uniforme: ali tudo é movimento.

3 Mas dentro dele reinava o silêncio de uma imobilidade turbulenta. Van Gogh pôs fim a este isolamento, suicidando-se em julho de 1890. Mas vamos falar de outros quartos. Quartos que guardam a imobilidade, o silêncio, a incomunicabilidade. Quartos e ambientes que expressam uma sociedade em transição, com seus interiores ao avesso da vida lá fora. Solidão, automatismo, olhares perdidos em si mesmo ou no horizonte. Edward Hopper, viveu nos Estados Unidos entre 1882 e 1967, e pintou estas interfaces (interiores/exteriores), com cores fortes, linhas retas, com uma iluminação extremamente ativa: o dentro e o fora se conectam em seu trabalho através da luz, das janelas, das paredes vazias, dos olhares para dentro e para o horizonte como que expressando a vastidão destes dois espaços. 1 Em “The Morning Sun”, de 1952, a passividade, o estado de imobilidade, a sensação de solidão num ambiente absolutamente impessoal, as cores suaves, a cama arrumada e limpa nos colocam num mundo irreal. Um mundo abstraído, feito de pessoas quase intocáveis. Como notou um dos seus críticos, “já as pinturas de janelas do romantismo europeu indicavam uma estagnação no processo de civilização e um afastamento do homem da natureza (...) Esta transformação do olhar exterior num olhar interior, por motivos psicológicos, está a criar, simultaneamente, uma nova iconografia..... 2 Em “Hotel Room”(1931), logo abaixo, assim como em “Hotel Lobby”(1946), ou, “Chair Car”(1965), entre tantos outros, há uma valorização do corpo e da imobilidade, guiados por um olhar fixo no espaço, na distância, no nada, mas nunca no outro. Sentimos como se as pessoas estivessem apenas ocupando o mesmo recinto, mas alheias ao que acontece ao seu redor. Nos exemplos citados, como não se vê o exterior, a sensação que temos é de um total congelamento no tempo e no espaço. Como comentou o crítico citado, “... na sua fase posterior (Hopper) consegue retransformar os fantasmas psíquicos e sexuais em complexos de imagens que interiorizam aquilo que os domina ;/secretamente, apenas no modo da ausência”. Hopper foi um pintor “não apenas intensamente privado, mas que fez da solidão e introspecção importantes 3 temas da pintura”. Abaixo, o corpo seminu, em descanso e sozinho, apoiado numa cama desfeita e colorida revela uma sexualidade quase pueril, imagem talvez do que ficou de um possível 1

Renner, Rolf G. ( 2003) Hopper. Germany, Ed. Taschen., Néret, Gilles (2000) Klimt. Germany, Ed. Taschen: 08. 3 http://www.artchive/hopper.html 2

4 encontro. Mas não o encontro em si. Muito mais o desencontro, a solidão e o abandono. Seus quadros induzem à percepção do movimento, talvez o que passou, talvez o que viria, não fosse a precariedade da vida em si mesma, ou, seus desencontros. Mas não o movimento do presente. Modernista, realista, sua pintura revela qualidades incompatíveis: aparentemente realista, muitas vezes fazendo uso de um simbolismo explícito. Por estas razões, foi comparado a Ibsen, escritor, dramaturgo que ele admirava. Depois dos anos 20 começou a viajar pelo país e seu quadro “The House by the Railroad” reflete outro tema recorrente na sua pintura: a solidão das viagens. Novamente, a precariedade das relações humanas, provocada pela mobilidade exterior, pela civilização, pela modernidade. Pintando hotéis, motéis, estações e autovias, Hopper foi um precursor da arte pop, e mesmo os restaurantes, teatros e cinemas refletem a solidão interior dos espaços públicos semi-iluminados, semi-povoados, semi-abertos, sugerindo a mobilidade de um filme que parou de repente. Seus nus estão sempre em situações paradoxalmente comuns, cotidianas e simultaneamente estranhas, expostos a um olhar inexistente, iluminados por e para um exterior ausente e vazio. Em “Morning in a City” de 1944, o primeiro à esquerda logo abaixo, uma mulher nua olha pela janela, segurando uma roupa, ou toalha. Novamente a luz reflete parcialmente seu corpo e a parede ao seu lado, e, novamente, a cama desfeita. Num outro, A Woman in the Sun, de 1961, ao lado, outra mulher nua olha em direção à janela, da qual só se vê um pedaço de cortina. Mas por ali entra a luz que traça no chão um longo tapete sobre o qual ela está. Agora são duas janelas. Uma que não se vê, e a outra que se abre para uma montanha, vazia. Novamente (a solidão de) um quarto vazio, e a cama desfeita.

Mas vamos fechar as janelas por onde entra a luz e que reproduzem situações reais e mundos naturais, ainda que imaginários... Fechados num lugar sem saída, sem janelas e sem luz natural, o inferno se realiza através da presença do(s) outro(s). O inferno são os outros. Vamos ao Huis Clos, de Jean-Paul Sartre

5 Paradoxal, o título traduzido literalmente diz “entrada proibida”, mas, que ironia, de lá não se pode sair. “Entre quatro paredes” sugere, portanto, um lugar de chegada, de onde é impossível sair. Uma clausura. Escrita em 1944, esta peça nos mostra como a presença do “outro” pode ser infernal por remeter-nos a nós mesmos: recusamos e precisamos desta presença, de forma dramática. Algumas cenas de uma montagem de 2006, pelo Núcleo de Cultura Univates, nos dão uma idéia do ambiente e das emoções.

Não há refúgio, nem vãos, nem sono, nem cama. Há apenas um discurso ininterrupto dos crimes cometidos na terra. Memória, confissão forçada, nenhuma intimidade. Nada escapa ao olhar do outro, que interroga, sem descanso, falando de si. Sem espelhos, os personagens tornam-se inseparáveis, precisam do olhar do “outro”, aprisionados que são pela força dos seus desejos contraditórios. Garcin é o primeiro a perceber esta determinação ao dizer: “Aucun de nous ne peut se sauver seul...”4 Portanto, ainda que o ódio e a recusa se manifestem, pouco a pouco vão tornando-se conscientes de que não há salvação individual: estão perdidos juntos e deverão penitenciar-se juntos para salvarem-se juntos. Será possível? Falando sobre a peça numa entrevista dada em 1965, Sartre refere-se às “causas ocasionais” e às inquietações profundas ao escrever Huis Clos: em relação ao ocasional, remete a três amigos, os quais queria ver na peça, mas que nenhum saísse de cena, para não causar suspeita acerca do melhor papel atribuído a qualquer um deles. Ao final, diz ele, foram outras as pessoas a encenarem Huis Clos pela primeira vez... Com relação às inquietações, a frase “o inferno são os outros” resume seus sentimentos e indagações filosóficas do momento: “(...) “l´enfer, cést les autres” a toujours été mal compris. On a dit que je voulais dire pa là que nos rapports avec les autres étaient toujours empoisonnés, que c´étaient toujours des rapports infernaux. Or, c´est autre chose que je veux dire. Je veux dire que si les rapports avec autrui son tordue, vicies, alors l´autre ne peut être que l´enfer. Pourquoi? Parce que les autres sont au fond ce qu´il y a de plus important en nous-mêmes pour notre propre connaissance de nous mêmes. Quand nous pensons sur nous quand nous essayons de nous connaître, au fond nous usons se connaissances que les autres ont dejà su nous. Nous nos jugeons avec les moyens que les autres ont. (...) Quoique je dise sur moi, toujours le jugement d´autre entre dedans. Ce qui veut dire que, si mes rapports sont mauvais je me mets dans la totale dépendance d´autrui. E alors je suis en enfer (...) Ça marque simplement l´importance capitale de tous les autres pour chacun de nous” ( htpp://www.alalettre.com/sartre-huiclos.htm) 4

“Nenhum de nós pode salvar-se sozinho...”

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“o inferno são os outros” foi sempre uma frase mal compreendida. Falou-se que com ela eu quis dizer que nossas relações com os outros são sempre envenenadas, e portanto, sempre infernais. Mas é outra coisa o que quero dizer. Eu quero dizer que se nossas relações com os outros são tortas, viciadas, então o outro não pode ser senão o inferno.Por que? Porque no fundo os outros são o que há de mais importante em nós mesmos, para nosso próprio conhecimento de nós mesmos. Quando pensamos sobre nós, quando tentamos nos conhecer, no fundo usamos o conhecimento que os outros já possuem sobre nós.. Nós nos julgamos através dos meios que os outros já possuem. O que eu disser sobre mim já contém o pensamento do outro sobre mim. Isso significa que, se minhas relações são más, estou totalmente na dependência de outro alguém. E então, estarei totalmente num inferno. Isso marca simplesmente a importância capital de todos os outros para cada um de nós.” ( tradução livre da autora)

Portanto Sartre nos diz que o inferno é estarmos aprisionados aos julgamentos, aos costumes tradicionais, sem liberdade. Neste sentido, Huis Clos torna-se um exercício para a liberdade. Uma busca através do “outro”, um encontro na solidão, no escuro, na angústia. Mas um encontro. Sartre foi preso durante a II Grande Guerra, quando Hitler invadiu a França e ficou um ano num campo de concentração (Tries), na Alemanha Ocidental, fronteira com Luxemburgo. Já neste período escreveu uma peça natalina, como disse, “para levantar o ânimo” de seus companheiros. Em 1943 publicou outra, “As moscas”, depois “Huis Clos”(1944), “Mortos sem sepultura” e “A prostituta Respeitosa” ( 1946); em 1948, “As mãos sujas”, “O diabo e o bom Deus” ( 1951), “Nekrassov” (1955) e, em 1959, “Os seqüestrados de Altona”. Como diz um comentarista, todos estes trabalhos fazem uma abordagem pessimista do relacionamento humano e enfatizam a hostilidade natural do homem para com seu semelhante. Mas foi em “A Náusea”, romance sob a forma de um diário, que Sartre mais explorou o fundamento do seu pensamento existencialista, negativista. Escrito em 1938, o primeiro romance de Sartre é uma inquietante reflexão sobre o fato de que existir é, afinal, uma condenação. Nada mais resta ao ser humano, que, da mesma maneira, se percebe enquanto alteridade absoluta: estranho para si mesmo, o homem em tudo percebe a contingência e a exterioridade. Para que existir se não nos resta outra opção? O personagem Antoine Roquentin observa seu corpo, suas mãos, tem consciência de si, mas não vê significado nesta consciência. Desta maneira, o outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo, deste desdobramento vazio. É o paradoxo: precisamos do “outro” para nos conhecermos plenamente a nós mesmos, mas esta relação será sempre conflitante, insatisfatória. Neste vazio vão aparecer outros sentimentos, outros sentidos para a vida: o ódio, o amor, a agressividade, a indiferença, o sadismo, o masoquismo, enfim, as variadas manifestações das tentativas inúteis que o homem faz para sentir-se vivo e atribuir significado à vida. A peça “Entre quatro paredes” é, neste sentido, paradigmática: o inferno é a relação com o “outro”, a que estamos condenados. Nauseados por este nada, à beira de um precipício, da vertigem, este dom existencialista explora a estética de um jogo sem vencedores, um jogo interminável cujo objetivo já não se sabe mais. De certa maneira, este ser sartreano viu romperem-se suas tênues ligações com o mundo social ao perder a ilusão da mimese: se perdemos o desejo pela/da representação

7 arbitraria, se percebemos a confusão entre linguagem e realidade natural, se não somos mais definíveis através das ideologias reinantes, o que nos restaria senão, como diz Walter Benjamin, “aprender a chorar novamente pelos filmes”? Perdemos o desejo da semelhança, não queremos mais ser iguais a ninguém e, neste sentido, se não queremos os comportamentos mimetizados, e, por outro lado, não aceitamos as diferenças, o que fazer senão realizar este “jogo” infindável conosco mesmos? Uma terrível imagem, metáfora, talvez, desta condição: milhares de pessoas “jogando” sozinhas, através dos seus computadores... simulando um jogo com um outro inexistente, fantasmagórico, um faz-de-conta como nos filmes de terror nos quais este “outro” pode mesmo ser um demônio, que, cansado de vagar na eternidade procura diversão com os humanos, possíveis habitações... Uma mimese sem sentido, simulação vazia, desarticulada. Mas este “inferno” também pode ser imaginado como ausência interpretativa: por não podermos compreender este “outro”, por não conseguirmos, desta maneira, ultrapassar nossas próprias experiências. Estaríamos, assim, enclausurados em nós mesmos. A problemática existencialista desenvolvida por Sartre apenas recoloca em tempos dramáticos do pós-guerra um tema filosófico fundamental que vem lá da filosofia clássica com Platão, Aristóteles, e depois nos desdobramentos do realismo/idealismo com Locke, Hume, e tantos outros: os artifícios da representação da realidade através da linguagem, do discurso e da retórica. O papel da metáfora (mas também da metonímia, da elipse, da parataxe, entre outros tropos) na cultura é, desta maneira, um tema fundamental para os estudos antropológicos e sociológicos, sem esquecer a filosofia, a história, os estudos da linguagem e da teoria literária. Em termos da teoria social, um grande passo foi dado por Wilhelm Dilthey ao propor o estudo das expressões (representações, performances, objetificações e objetos) como possibilidade de “transcendermos a estreita esfera da experiência pessoal” ( apud Bruner 1986:5). Este é o famoso “círculo hermenêutico” de Dilthey: a experiência estrutura a expressão e a expressão estrutura a experiência. Mas o que é a “experiência”? Segundo Edward Bruner, o que constitui a experiência não é a vida vivida no seu cotidiano, nesta dimensão a que chamamos realidade. A experiência é uma construção à qual chegamos através de inúmeras ligações com os significados acumulados através da memória, das relações com outros seres humanos e acontecimentos aos quais damos valores específicos. É o que acontece quando “contamos” nossas vivências a outras pessoas, seja oralmente ou de forma escrita, ou mesmo através de outras linguagens: a narrativa torna-se, assim, uma expressão, uma metáfora do vivido. Como escreveu Jeanne-Marie Gagnebin acerca da narrativa em Benjamin e citando Proust, “a tarefa do escritor não é, portanto, simplesmente relembrar os acontecimentos, mas ´subtraí-los às contingências do tempo em uma metáfora´”. 5 A este respeito, parece oportuno relembrar a aproximação entre Lévi-Strauss e Marcel Proust, feita por James Boon em “Lévi-Strauss, Literarily”6. Em primeiro lugar, este autor afirma que não há, realmente, nenhuma fonte privilegiada de informação sobre o “self”, ou sobre seu futuro... portanto, assim como a poesia expressa esta forma de conhecimento sugerindo relações sem ter que especificar seu 5

apud Introdução: Magia e Técnica, Arte e Política – Walter Benjamin, Obras Escolhidas, Brasiliense, 1985:16). 6

texto publicado em Symbolic Anthropology, Columbia University Press, 1977.

8 lugar e tempo de forma lógica ou racionalizada, o conteúdo da experiência interpessoal deve ser buscado, ou, representado, num sentido muito amplo de “território”, ou, “locus”, que ultrapassa o uso que dele vieram fazendo muitas correntes intelectuais até hoje. A proposta estruturalista de Lévi-Strauss responde a esta questão tomando as variáveis de tempo e espaço como espaço vivido, representando-o através de uma outra dimensão temporal: a metáfora, como referida por Gagnebin acerca de Benjamin. Como nos mostra Boon neste artigo, Proust oferece uma versão literária da realidade muito próxima da idéia de “mente selvagem” de Lévi-Strauss: o que haveria de comum entre o “literário” Lévi-Strauss e o “antropológico” Proust? “ (...) an hour is not merely an hour. It is a vase filled with perfumes, sounds, plans and climates. What we call reality is a certain relationship between these sensations and the memories which surround us at the same time…the only true relationship, which the writer must recapture so that he may forever link together in his phrase, is two distinct elements. One may list in an interminable description of the objects, the figures in the place described, but truth will begin only when the writer takes two different objects, establishes their relationship… and encloses them in the necessary rings of a beautiful style, or even when, like life itself, compairing similar qualities in two sensations, he makes their essential nature stand out more clearly by joining them in a metaphor, in order to remove them from the contingencies of time, and links them together with the indescribable bond of an alliance of words. From this point of view regarding the true path of art, was not nature herself a beginning of art…(Proust, M. The Past Regained) 7 “(…) uma hora não é apenas uma hora. É um vaso cheio de perfumes, sons, plantas e climas. O que chamamos realidade é uma certa relação entre estas sensações e as memórias que nos envolvem ao mesmo tempo... a única relação verdadeira que o escritor deve recapturar para que possa unir para sempre na sua frase, são dois elementos. Um pode listar, numa interminável descrição dos objetos, as figuras no lugar descrito, mas a verdade apenas aparecerá quando o escritor tomar dois objetos diferentes, estabelecer sua relação... e enclausurá-los na redoma necessária de um belo estilo, ou da mesma maneira, como na vida, comparando qualidades semelhantes de duas sensações, fizer com que sua natureza essencial desponte mais claramente unindo-as numa metáfora, a fim de resgatá-las das contingências do tempo, ligando-as com o elo indescritível de uma aliança de palavras. Deste ponto de vista em relação ao verdadeiro caminho da arte, não foi a natureza em si mesma o começo da arte...” ( Proust, O Tempo Reconquistado)

Segundo Boon, para Lévi-Strauss, é inútil perseguir a verdade como objetivo final por detrás do processo de expressão. A própria realidade é uma forma de expressão sempre em processo, numa dialética contínua de inter-significações, com todas as ordens, simultaneamente. 8Enfim, seguindo os passos do estruturalismo, a cultura seria um conjunto de diferentes sistemas de comunicação que apresentam entre si homologias, de tal maneira que é possível pensar numa meta-estrutura, que os integraria numa espécie de “ordem das ordens”. Claro, esta posição nos leva a um humanismo global unindo, num relance, o mais simples ao mais complexo, as sociedades mais primitivas às contemporâneas considerando o inconsciente como função simbólica. 7

Boon, James A. “Lévi-Strauss, literarily”, in Symbolic Anthropology. A Reader in the Study of Symbols and Meanings. New York, Columbia University Press, 1977:126. 8 Parece oportuno lembrar aqui, também, o poema de Baudelaire, Correspondances, que parece ter inspirado alguns dos nossos mais queridos autores: pelo menos Victor Turner ( forêts de symboles) e Lévi-Strauss ( Les parfums, les couleurs et les sons se répondent). Ver o poema em Baudelaire. Poesies Choisies. Librairie Hachette, Paris, 1956.

9 Na realidade, a metáfora do “bricoleur”, desenvolvida no livro O Pensamento Selvagem é isso, ou seja, uma maneira de compreender a fabricação da realidade dentro de um modo de classificação sensível: os mitos e ritos são modos de observação e reflexão que permite ir juntando resíduos, fragmentos de experiências e com eles montar um inesgotável quebra-cabeças cultural. Portanto, além de ligar o visível ao invisível, de presentificar o ausente e tornar o presente abstraído das materialidades mais óbvias, o processo de metaforização estabelece conexões heteróclitas e arbitrárias construindo uma “memória”, preservando, mas também transformando, os valores culturais. Encurtando o caminho, remito às considerações que Lévi-Strauss faz em relação à arte: a idéia de que toda obra de arte, situada a meio caminho entre a ciência e a bricolage, enquanto um “modelo reduzido”, é um objeto do conhecimento e, ao mesmo tempo, estético, ou seja, condensa o todo nas partes, produzindo uma espécie de “inversão do processo de conhecimento”, aumentando nosso poder sobre o homólogo da coisa, dando ao bricoleur ( ao artista) a possibilidade de “manusear” o real como um sujeito. Enfim como diz o próprio Lévi-Strauss, “...mas o modelo reduzido possui um atributo suplementar: é construído, man made, e, além do mais, feito a mão. Não é, pois, uma simples projeção, um homólogo passivo do objeto: constitui uma verdadeira experiência sobre o objeto”.9 Parece necessário ir um pouco mais adiante e tangenciar as formas narrativas, nos aproximando das considerações de Lévi-Strauss sobre o mito, para depois chegar ao rito e à sua noção de jogo. Como o próprio autor nos diz, na perspectiva estruturalista, a arte estaria situada a meio caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico. O terreno é muitíssimo amplo e escorregadio, mas recortando o que parece interessante para os propósitos deste trabalho, e, usando uma frase de Lévi-Strauss como metáfora, o fato de estar investigando o que se passa dentro de um “quarto”, como possível “modelo reduzido” no campo da arte teatral, remete imediatamente a uma de suas frases de Le Cru et le Cuit, a respeito do mito: “... a partir de l´expérience ethnographique, il s´agit toujours de dresser um inventaire des enceintes mentales, de réduire des donnés apparemment arbitraires à une ordre, de rejoindre un niveau où une nécessité se revele, immanente aux illusions de la liberté”.10 Enfim, a reutilização da metáfora dos “recintos mentais”(enceintes mentales) parece oportuna em alguns aspectos: em primeiro lugar porque, como interpreto o pensamento de Lévi-Strauss, o mito estaria fazendo esta mediação entre “certas exigências da vida social objetivadas nas instituições” e sua determinação/repercussão no plano do espírito, ou seja, sua relação com certas leis estruturais. Ou seja, não se está aí descartando aspectos empíricos, materiais, históricos de cada sociedade, mas, ao mesmo tempo, sugerindo um processo mimético interminável que possui determinações de outra ordem. O autor sugere, portanto, não uma reprodução da realidade pelo espírito ( mito), mas uma relação entre duas instâncias com leis específicas: “... o espírito manifesta a sua natureza de coisa entre as coisas porque as leis que então se distinguem são as mesmas nos dois casos, na relação do espírito com os objetos como na sua relação consigo mesmo”.11 Como diz o autor, “os mitos pensam-se nos homens”. Mas o que isso tudo tem a ver com o “quarto”? Se pensarmos em “O Quarto” como um “modelo reduzido” (uma narrativa mítica), então a experiência teatral ( da mesma maneira todos os exemplos apresentados através 9

Lévi-Strauss, C. ( 1976) O Pensamento Selvagem. São Paulo, Co. Editora Nacional: 45 Lévi-Strauss,C.( 1964) Mythologiques. Le Cru et le Cuit. Paris, Plon: 18. 11 Simonis, I. (1979) Introdução ao estruturalismo. Lévi-Strauss ou a paixão do incesto. Lisboa, Moraes Editores: 205. 10

10 das imagens mostradas até agora) ali construída adquire um novo estatuto, o de mediação, de metáfora, de bricolage. E é assim, através de metáforas, que conseguimos nos comunicar, criar sentido, transpor nossa experiência vivida através destas “pontes” feitas de palavras, imagens, sons, sabores, sensações... Desta maneira, os dramas, as estórias, os quadros, as partituras, os filmes, os jogos, as brincadeiras, as anedotas, os chistes, enfim, tudo isso e muito mais, pode ser pensado como “unidades estruturadas de experiências”, as quais, segundo Bruner, permitem o acesso às unidades de significados socialmente construídas, que realizamos na maioria das vezes sem termos consciência delas. Um dos exemplos mais famosos desta questão interpretativa das expressões culturais na teoria antropológica é a “briga de galos balinesa”, estudada por Clifford Geertz: este jogo é tão absorvente para os balineses porque coloca em ação os valores, significados e sentimentos mais fundamentais da vida social. Mas, segundo Geertz, este é um “jogo profundo”(deep play), performatizado pelos balineses sem que estes tenham consciência de que assim procedendo “atualizam” os conteúdos mais profundos da sua cultura. Os balineses realizam um “metacomentário” social sobre sua própria sociedade.

Toshimitsu Takagi, um criador multimídia japonês, inventou um flash game aterrorizante que atrai milhares de jogadores e pouquíssimos vencedores: o Crimson Room foi o primeiro deles, mas já existe o Blue Chamber, o Viridian Room, o White Room, o Yellow Room... com dificuldades crescentes . Enfim, abre-se a tela e o jogador se encontra num quarto, absolutamente trancado ali, dispondo apenas de alguns objetos, colocados ali de forma bem casual, até mesmo esperada, e que, supõe-se, podem fornecer alguma pista que conduza à liberdade. O jogador, de forma aleatória, vai “clicando” nos lugares prováveis e improváveis, e, descobrindo estes objetos que vai usar seguindo uma certa “lógica” de ação. Uma prisão enigmática. Segundo informações de sites ligados a este jogo, em dezoito milhões de visitantes, apenas 400 conseguiram “fugir” dos quartos mencionados. Realmente desesperador. Seguindo os passos de Roger Caillois, em Man, Play and Games, é possível fazer alguns comentários preliminares a respeito destes flash games : afinal, que tipo de experiência as pessoas podem ter com tal jogo? E mais, o que ele pode revelar acerca da nossa cultura? Enfim, que “quarto” é este? Aparentemente este é um “quarto/jogo”: não se está ali para dormir, nem para relaxar, ou qualquer outra coisa senão para buscar uma saída. Poder-se-ia argumentar que o fato de ser um quarto é meramente casual... poderia, realmente, ser qualquer outro recinto

11 fechado. Claro, mas certamente neste quarto estão objetos que não estariam, por exemplo, num escritório. Isso caracteriza uma situação, um contexto? Neste sentido ressoa “Huis Clos”, mas ali não está ninguém, nem mesmo o jogador, que realiza este jogo de fora do ambiente. O internauta não joga com ninguém a não ser com uma ausência. Há, certamente, um objetivo e todos acreditam que haja uma saída. Mas onde estaria a solução? Vamos a Lévi-Strauss, novamente. Se, como diz Ivan Simonis, o estruturalismo se esclarece quando é encarado como lógica da percepção estética, e, se como diz o próprio Lévi-Strauss, a estética é uma forma de conhecimento, seria possível sugerir que, neste “quarto”, o jogo mostra um sistema de relações abstratas que, ao ser manipulado, torna-se um objeto, um processo estético e uma forma de conhecimento. Novamente, um modelo reduzido que aciona valores, sentimentos, emoções. No entanto, como diz Roger Caillois, “ (...) todas as culturas têm e “jogam” uma série de jogos de tipos diferentes. Sobre tudo, não é possível determinar, sem uma análise pormenorizada, quais jogos estão em concordância com os valores estabelecidos, os quais reafirmam e reforçam, e, ao contrário, quais jogos os contradizem e zombam deles, representando compensações 12 e válvulas de segurança para uma dada sociedade”

Neste sentido é que, partindo dos fundamentos estruturalistas mencionados acima, parece importante rever alguns pontos levantados por alguns teóricos do “jogo”: Huizinga, Caillois, Turner, Geertz e Bourdieu. Antes, porém, é importante ressaltar três pontos deste meu trabalho: o primeiro é a relação entre “O Quarto”e a idéia de que ali, na encenação, valores, relações, estão sendo colocados em jogo. A segunda, é que neste jogo dramático, teatral, o movimento da cama desempenha uma função muito maior do que simplesmente a de ser um valor referencial. Com “lances”, ela des-loca, ou, co-loca em ação valores, sentimentos, pensamentos. Mas não apenas através dos seus movimentos, mas porque corpos, textos, luzes e música, compõem um todo no qual ela está e “é agida”. A terceira, é que, nesta última comparação, ao aproximar o jogo teatral do jogo eletrônico, faço-o por várias razões, que espero explicitar invocando os autores acima citados. Já o trabalho seminal de Johan Huizinga aprofundou algumas qualidades do “jogo” que nos interessam ver mais de perto: sua função significante que recupera sua “irracionalidade”, ou seja, a mobilização de aspectos que escapam aos pressupostos “racionais” de todas as culturas: seu caráter lúdico, estético, mítico, suas ligações profundas com a moral e a arte. Neste sentido, ao mesmo tempo em que podemos falar dos seus aspectos criativos, inovadores, improvisadores, seu potencial para as rupturas, podemos também perceber suas qualidades conservadoras. Tomemos como exemplo a “briga de galos balinesa”, interpretada por Clifford Geertz: neste caso o jogo, pensado pelo antropólogo como uma metáfora da vida social, revela uma inter-relação entre certas normas vigentes e a possibilidade que os balineses possuem de, ao realizarem este jogo de briga de galos, “atuarem” sua cultura, emocionalmente. Enfim, o jogo possui regras e normas, portanto, não se trata de pura criação, mas permite as apostas, ou seja, permite “brincar” com o estabelecido. Até mesmo fugindo da polícia... Ainda que as apostas sejam “rigorosamente” estabelecidas, é exatamente por esta mesma razão que se torna uma “paixão”. O jogo do bicho não é diferente. 12

Caillois, R. ( 2001) Man, Play and Games. Illinois: University of Illinois Press:66.

12 Da mesma maneira, o “jogo” é livre... mas é compulsivo. É proibido, mas jamais abandonado. Além deste aspecto, Huizinga destaca o caráter “associativo” do jogo: a sensação que os jogadores sentem de “estarem separadamente juntos”. Claro, como diz o autor, nem todos os jogos levam à fundação de um clube, mas o fato de os “jogadores” estarem afastados do resto do mundo, “recusando as normas habituais, conserva sua magia para além da duração de cada jogo (...) e o encanto do jogo é reforçado por fazer dele um segredo. Isso é, para nós, e não para os outros”. (Huizinga, 2004:15) Sem dúvida, o teatro pode ser pensado como um “jogo” estético, cognitivo, mítico, com profundas ligações com a moral, com a cultura, enfim, mas com aqueles aspectos insuspeitados até mesmo, muitas vezes, pelos próprios atores e diretores. Seu caráter “associativo” é dado pelo compromisso diante da produção do espetáculo. Neste sentido, o jogo virtual “Crimson Room” ( e seus similares), dadas suas condições de realização, cria um caráter associativo de grandes proporções, até mesmo através dos “blogs” que comentam sua dificuldade, repassam tentativas e sugestões. Estes “blogs” são verdadeiros momentos de socialização em que percebemos o grande valor do jogo em termos da competitividade que encerram, colocando à prova a inteligência, perspicácia, habilidade, persistência dos jogadores. Claro, os casos de vitória narrados, ainda que muito poucos, estimulam os jogadores, criando uma atmosfera de “rito de passagem” no mundo da computação, e dos jogos eletrônicos. O que importa aproximar, neste caso, é a angustiante necessidade de conseguir sair daquele quarto, as inúmeras tentativas ligadas a um certo estilo de prazer, de subjetividade e de simulação. Uma necessidade de ser incluído numa lista interminável de jogadores “anônimos”, listados numa comunidade mundial. Mas existem infinitas formas de jogos virtuais, muitos com caráter educativo, ou, como dizem, os “epistemicgames”. Mas o “Crimson Room” não se inclui neste estilo. É mais um “puzzle” do que um “epistemicgame”. Mas é justamente esta característica que permite aproximar os dois “quartos”: a metáfora do aprisionamento, o nonsense, a angustiante sensação de estar preso sem motivo (até mesmo voluntariamente) e ainda assim, continuar “jogando” ( playing, nos dois sentidos). Em ambos os casos, uma prisão enigmática. Vamos adiante com alguns tipos de “jogos” discutidos por Roger Caillois. Dentre os vários tipos classificados pelo autor saliento a característica principal do ágon, ou seja, a competitividade. O triunfo condensa a dimensão do mérito e do valor, e o jogo estabelece uma dimensão hierárquica. Aqui, vale o esforço, o trabalho, a experiência, a determinação. Os jogos do tipo álea, são aqueles cuja vitória se baseia na sorte, no acaso. Estes, portanto, independem do jogador, do seu preparo, paciência ou inteligência. Aqui, o jogador nem precisa confiar em si mesmo porque está nas mãos do “destino”... Ainda que todos os tipos sejam ficcionais, ou seja, sempre está presente o caráter de “simulação”, nos jogos miméticos , o jogador faz crer a si mesmo ou aos outros, de que é outrem. O jogo é, em si mesmo, uma fuga de si mesmo para tornar-se outro: falamos aqui, essencialmente, no jogo da representação, teatral ou não. A mimese é a invenção, a liberdade, a fuga das convenções, o improviso. Neste jogo o sujeito/jogador, usa de todos os recursos para “fascinar” o espectador, enfim, o outro “jogador”, pois sem ele não há jogo. Diríamos, sem dúvida, que os jogos teatrais são pura mimese, certamente. No entanto a mimese é o fundamento do jogo incessante da construção daquilo que supomos ser a realidade. A vida, a “realidade”, é fruto deste jogo incessante no qual estamos todos envolvidos. A mimese é, portanto, a base das negociações que realizamos

13 para mantermos para os outros e para nós mesmos uma certa “identidade” que é, moeda de troca. Finalmente em ilinx aparece uma das qualidades mais interessantes para pensar os jogos, especialmente o teatral, sugerido pelo trabalho “O Quarto”, que me aventuro a analisar neste texto. Sem dúvida as qualidades referidas a este tipo, quais sejam, a instabilidade da percepção, o pânico, o medo, a exacerbação dos sentidos pela dança, música, sexo, a indução ao espasmo, ao choque, a sensação da perda do controle como em certas espécies de intoxicação pelo uso de drogas, constituem, enfim, elementos da “vertigo”. Mas são, também, alguns dos recursos utilizados pelas técnicas do teatro experimental: a exacerbação dos sentidos através dos exercícios corporais, dos movimentos, da música e da indução criativa por imagens, sons, dança, etc... Enfim, transformam-se em jogos “agônicos”, ritualísticos, miméticos, por excelência. A passagem agônica da construção dos personagens, do texto, da encenação como um todo não deixa de ser um jogo, em cuja composição encontramos elementos “ágon”, “miméticos” e da “vertigo”. A aproximação do jogo virtual serviu, acredito, para mostrar a idéia de uma prisão enigmática, de onde é preciso sair. Os recursos serão outros, obviamente, mas a situação serve, no meu entender, de uma formidável analogia. Não poderia concluir esta Introdução sem referir-me ao Big Brother, enquanto um jogo muito particular que, como o vejo, constitui-se num “complexo de jogos”, uma espécie de metáfora da nossa vida social contemporânea. Nesta “casa” os competidores jogam vários tipos de jogos: o ágon, o alea, o mimético e o ilinx, todos em momentos alternados, até mesmo simultaneamente, com o objetivo de ganhar o prêmio em dinheiro. Estão “enclausurados”, vigiados por milhares de espectadores e pelo Big Brother, metáfora dos olhos que observam sem serem vistos. Valores sociais estão acionados, performatizados através de vários rituais ( para ser o mais forte, o mais macho, a mais sexy, os mais espertos...). A trama toda é tecida a partir do momento em que o “jogo” começa, em função das características de personalidade dos jogadores, portanto: ainda que exista uma regra maior, as “eliminações” se dão em decorrência das características pessoais de cada jogador. Alguma coisa que ressoa à “luta pela sobrevivência entre as espécies”... Há aí um pouco de alea, no sentido da justificativa perante a família, os amigos, etc... enfim, quando alguém sai foi “falta de sorte”... mas é um jogo agonístico do começo ao fim, no qual os participantes procuram, através do autocontrole, das fofocas, das estratégias que envolvem detalhes íntimos ( não apenas sexuais), do autoconhecimento e da observação dos oponentes, eliminar o “outro” da vez e permanecer no jogo. Nesta competição, portanto, há uma simulação constante e um desejo incontido de ser um “outro”, ou, de ser o “outro”, através de comportamentos nitidamente “antropofágicos”, se me permitem usar a metáfora. O jogo mimético, com a construção de “personagens”, como estratégia de sobrevivência, como forma de construir esta história coletiva/individual da “casa”. No entanto, Caillois já havia estabelecido esta relação entre jogos, lazer, mídia e alienação: “Identificação é uma forma degradada e enfraquecida de mimese, a única que pode sobreviver em um mundo dominado pela combinação de mérito e chance. A maioria fracassa ou está inabilitado para competir, sem chance de ser admitido ou ter sucesso. (...) A maioria permanece frustrada. (...) (mas...) quem não sonha, ao menos um pouquinho, com a fantástica possibilidade, que parece tão perto, de alcançar as alturas improváveis da luxúria e glória?” (Caillois:2001: 121)

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Esta situação nos remete ao famoso filme de Woody Allen, A Rosa Púrpura do Cairo, em que a personagem do filme vive, ao mesmo tempo, uma situação real e outra vicaria, a do filme (ao qual ela assiste), dentro do filme (ao qual nós assistimos), transpondo esta fronteira e realizando seus “sonhos”, numa espécie de transe imaginário. No caso do Big Brother, os participantes do “jogo” vivem dentro daquela “casa” um período real e imaginário porque oferecem aos telespectadores uma outra versão daquilo que realmente estão vivendo, que é a dimensão virtual, e que preenche os anseios da população, que se “realiza” através deles. Esta questão nos remete, por sua vez, às considerações de Pierre Bourdieu acerca dos jogos, muito próxima àquela de Clifford Geertz que considera os jogos dentro da categoria de produtores de “metacomentários sociais”, uma espécie de reflexão que a sociedade faz a respeito de si mesma. Diz ele: “ A noção de estratégia é o instrumento de uma ruptura com o ponto de vista objetivista e com a ação sem agente que o estruturalismo supõe ( recorrendo, por exemplo, à noção de insconsciente). Mas pode-se recusar a ver a estratégia como produto de um programa insconsciente, sem fazer dela o produto de um cálculo consciente e racional. Ela é o produto do senso prático, como sentido do jogo, de um jogo social particular, historicamente definido, que se adquire desde a infância, participando das atividades sociais”. 13

Enfim, o jogo, tal como pensa o autor, aproximar-se-ia da sua noção de habitus, na medida em que, através de muitas atividades lúdicas, jogamos um “jogo” muito mais “absorvente” do que a modalidade em questão, no momento em que executamos tais e tais “regras” de um jogo qualquer. E, assim, torna-se um rico objeto de reflexão antropológica/sociológica. E, finalmente, a questão da performance. Aconteceu com este trabalho algo semelhante à inversão metodológica que acontece nas pesquisas na própria sociedade dos antropólogos: foi preciso estranhar a idéia de “performance” artística, para acentuar seu potencial sociológico, ainda que trabalhando no campo da arte. A área dos estudos da performance é, sem dúvida, bem abrangente, mas isso em nada facilita a situação específica de usar um conceito assim tão “fronteiriço”. Dito de outra maneira, diante da performance artística, foi necessário não ceder ao seu fascínio, e ser capaz de, ao analisar a atividade cênica, pensar no comportamento humano. Como bem diz Victor Turner no Prefácio ao livro Between Theater and Anthropology, transitar entre este dois campos pode ser uma atividade muito iluminadora para os antropólogos, que, embora exercitem o cruzamento das várias possíveis fronteiras dentro e fora de sua própria cultura através da etnografia, podem usufruir, nesta relação com a performance teatral, de uma pequena e imensa porta de entrada tanto para a percepção do que Goffman chamou de “as representações do self na vida cotidiana”, quanto do que Schechner denominou “restored behavior”: o significado de toda performance é resultado da “fricção dos duros e macios gravetos do passado (normalmente incorporados nas imagens tradicionais, formas e significados) e o presente da experiência individual” .14

13

Bourdieu, P. (2004) Coisas Ditas. São Paulo, Brasiliense, pg 81. Turner,Victor (1985) Introduction: Between Anthropology and Theater. Philadelphia, University of Pensilvania Press.

14

15 Mas esta experiência envolve, também, entrar em contato com o difícil jogo que acontece nos limites entre a interferência e a discrição... como diz Turner, os antropólogos são “treinados” para observar e não interferir, ao passo que um diretor de teatro como Schechner, levou-o a considerar a possibilidade de inferir a partir da interferência. Ora, isso eu vivi intensamente nesta montagem. E, com isso, posso concordar com Turner de que, hoje, compreendo melhor não apenas o processo de criação teatral experimental, mas alguns aspectos do processo performativo da cultura. No entanto, devo reconhecer as dificuldades inerentes a esta modalidade de observação/participação: ainda citando Turner, circular entre a stasis ( dos textos, instituições, tipos, protocolos, costumes, etc...) e a dynamis ( o lado evanescente, mutante das relações sussurrantes e memoráveis entre os atores,a audiência e o texto/ matéria encenada) e mais, eu diria, conseguir fazer anotações sobre este processo, sobre o how das performances é, realmente, um desafio que não sei se consegui enfrentar de todo. Parafraseando Schechner, eu resolvi “dip my toes in the waters of life”, e não me arrependo. Pois todo o esforço se deu no sentido de “ler” as performances como textos, procurando, como orienta Clifford Geertz, identificar as condições básicas que tornam cada encenação, cada ritual, cada performance, “inquietante”: sua forma dramática imediata, seu conteúdo metafórico e seu contexto social. No entanto, em se tratando de ensaios de uma modalidade, a experimental, a ausência de um texto escrito, ou, de uma dramaturgia mais formal, fazia com que o corpo fosse tomado como este possível “veículo”, e isso, acrescentava outros desafios: não apenas da “notação” etnográfica (mesmo porque a fotografia e a filmagem contornam esta dificuldade...), mas porque há um discurso sobre o corpo que, em si mesmo, já compõe uma outra reflexão. Foi bastante complicado “ler” a montagem através deste discurso. Ultrapassar esta dimensão discursiva sem causar “danos” é praticamente impossível. Se o observador compartilha destas “experimentações”, perde sua voz de alteridade. Se não compartilha, torna-se um estranho desnecessário porque ali, nestas sessões, nada nem ninguém pode ficar alheio... Encontrar este “lugar” é correr o risco de “naufragar” diante do discurso intelectual “orgânico”, ou, nativo. Portanto, resta ao antropólogo, não apenas15, mas para começar, manter-se atento aos pontos de contato entre as duas áreas, apontados por Schechner, no intuito de esclarecer as múltiplas possibilidades de situações de observação e estudo tanto em relação às perfomances da vida social (a partir da “analogia do drama” social), quanto a partir do campo teatral: a) transformação do “ser” e/ou da consciência: tanto nas práticas rituais como na teatral, os anos de treinamento, e os sacrifícios executados, só existem para constituir uma zona liminar na qual tantos os atores quanto os performers de rituais devem “sacrificar a parte mais íntima de si mesmo” (cf. Grotowski, apud Schechner), como possibilidade de vagar “nos limites entre o sonho e a realidade”( idem, ibidem). Ora, estas transformações, permanentes, transitórias, mais ou menos profundas, sugerem mudanças nos estados de consciência. No entanto, se estes estados foram analisados de forma extensa e intensa na antropologia, e, da mesma maneira, pelos especialistas na arte teatral, o mesmo não se pode afirmar de pesquisas feitas por antropólogos no campo teatral, 15

Depois deste trabalho de campo, com o teatro experimental, eu acrescentaria outros pontos: a apaixonada adesão dos “nativos” à uma certa ideologia do corpo, o que acarreta um discurso muito reacionário. Nestas circunstâncias, o fracasso da pesquisa é quase previsível... como diz Lévi-Strauss, o meio-caminho entre a ciência e a arte faz de todos (nós...) tipos contemporâneos de “bricoleurs”.

16 salvo, é claro, os trabalhos citados, que envolveram Turner e Schechner. O que pude perceber neste trabalho, é que não se tratava de “estados alterados de consciência”, como numa dança extática, nos rituais religiosos , nas sessões de cura, de exorcismo, nos casos de ingestão de alucinógenos, e sim, de realização de uma certa consciência do trabalho em si. Isso significa que as possibilidades criativas estavam sempre mediadas por um discurso sobre o corpo, em geral, mas centrado nos aspectos físicos, biológicos, fisiológicos, sem chegar a constituir-se numa filosofia fenomenológica. Em nenhum momento se tratou de êxtases, ou, de estados alterados de consciência: o que se objetivava era trabalhar o corpo de tal maneira que ele pudesse ser o veículo expressivo condizente com as “viagens” feitas pela vida psíquica. Claro, os atores se sentiam “perturbados”, mas com sua consciência em estado praticamente normal. Neste sentido, e voltando ao Geertz da “briga de galos”, a forma dramática imediata , não é tão imediata assim: é fruto de uma larga experimentação, sem um objetivo pré-determinado e uma intensa crença num resultado “incontrolado”, “inesperado”, desta experimentação... b) a intensidade da performance: diferentemente das perfomances teatrais tradicionais, a experimental constrói variadas intensidades em variados momentos que serão tomados como fragmentos, para serem, posteriormente, unidos, pelo olhar da direção, na realização de uma idéia. No caso em questão, O Quarto, chegou-se ao final da peça sem fechar uma idéia, ainda que vários temas da atualidade, “quentes”, estivessem em questão. O trabalho simplesmente estava ali, e até hoje eu acho que as idéias sobre o trabalho foram muito mais minhas do que deles... mas como ligar isso tudo a um conteúdo metafórico e mais, ao contexto social? Olhar para os quadros antes de começar os exercícios seria uma forma de “ingerir” possíveis metáforas, mas elas eram logo abandonadas em favor de algumas outras imagens, que jamais chegaram a ser profundamente discutidas. Portanto, havia uma intenção séria em produzir imagens relacionadas à vida atual, mas nada era conceitual no desenvolvimento. c) Interações entre a audiência-performers: se este critério serve, em geral, para avaliar as inter-relações entre forma dramática imediata, conteúdo metafórico e contexto social, devo admitir que não me pareceu ser este o caso da experiência teatral experimental que acompanhei durante quase seis meses. Dentre todos os exemplos analisados por Schechner neste item, fica claro no meu estudo de caso, que este tipo de teatro não é, realmente, feito para grandes platéias, e nem parece ser este o objetivo do grupo em questão. A começar pela dimensão dos ensaios, muito fechados, com poucos “estranhos”, num ambiente bem descontraído e familiar, mas com pouca troca com o lado de “fora” ( quero dizer, outros comentadores), e, nos casos em que houve, foram “especialistas” do mesmo métier: técnicas corporais, concepções sobre a relação corpo-sentido, percepções, treinamento de voz, exercícios físicos na mais pura acepção do termo. Na primeira e única mostra pública do trabalho, ainda antes de ter sido concluído, no evento “Cena Breve”, no Teatro da Caixa, a repercussão não foi muito favorável: criticou-se o hermetismo do trabalho, a falta de comunicação com o público, e, até mesmo, falou-se da imaturidade do grupo. Como o grupo estreou em Portugal e apenas em breve estará se apresentando aqui na cidade, fico sem poder comentar o resultado final do trabalho, nesta questão específica. d) A seqüência performática como um todo: como diz o autor, em geral, pensa-se apenas no show, no momento da apresentação, esquecendo-se de que os aquecimentos, os treinamentos, os workshops, os ensaios, a apresentação em si,

17 o”cooling down” e as conseqüências da apresentação, fazem parte de um mesmo sistema. Neste sentido, este sistema “inclusivo” torna muito mais aparente as inter-relações com o contexto social, através das possibilidades metafóricas das performances e sua qualidade dramática, ou seja, nas emoções e pensamentos que é capaz de despertar no público. Enfim, de que maneira elas viabilizam a mencionada “inquietude” no público. Como nos alerta o autor, dependendo da cultura e do gênero performático, algumas fases são mais enfatizadas que outras. No caso que analiso, ao que parece, todo o esforço do grupo se concentra nos aquecimentos, nos treinamentos, nos ensaios e nos workshops. Aparentemente a apresentação sugere preocupações menores, mesmo porque o grupo é muito “self-assured”, e muito bem apoiado por leituras e pesquisas, ainda que estas se concentrem fundamentalmente nas questões já mencionadas. Assim, se, por uma razão ou outra a resposta do público não é muito entusiasmada, restará sempre o reduto das atividades performáticas mais ligadas ao live-art, e à dança, como espelho. e) Como são criadas e avaliadas as performances: como o autor sugere, trabalhos nesta área podem ser avaliados de várias maneiras: dentro da própria cultura, por profissionais que atuam na área ( por exemplo: atores, diretores de teatro, treinadores, especialistas em corpo, em movimento, em dança); fora da própria cultura, mas dentro da área ( por outros atores, diretores, etc...); pela opinião pública das audiências; fora da cultura por profissionais que podem interagir a convite, ou, por iniciativa própria ( como no meu caso, por exemplo). De qualquer maneira, fica sempre a questão: quem pode julgar um trabalho artístico? Na minha opinião, esta questão delicada permanece irrespondível. Em nenhum momento pensei produzir qualquer julgamento de valor, pelo menos durante a montagem de “O Quarto”, por várias razões: em primeiro lugar, foi o meu primeiro trabalho de campo nesta área de fronteira e estive durante longo período muito “fascinada” pelo meu objeto de estudo... Por outro lado, em termos teóricos e metodológicos, estava aprendendo muito (como ainda estou!) e sentindo muitas dificuldades em criar um método etnográfico específico, com o uso de fotografias e anotações. Foram meses de deslumbramento em que meu companheiro e eu (ele, o músico que estava preparando a ambientação sonora) discutíamos muito, felizes, pelo que estava começando a surgir nas nossas vidas. Portanto, o envolvimento era mais que profissional, mesmo porque sempre fomos muito amigos e cúmplices. Esta troca, ainda que um pouco tímida de ambas as partes, não deixava espaço para um posicionamento avaliativo no sentido estético, formal, artístico. Mas é possível, sim, desenvolver algumas idéias sobre como o grupo pensava a este respeito, e mais, como estas idéias eram construídas nas orientações da diretora e nas discussões em grupo. Por exemplo: nas minhas anotações de campo não há um indício sequer de uma preocupação com a recepção do trabalho. Todo o esforço foi sempre no sentido de chegar a um lugar, um ponto, um desenho, que apenas o grupo poderia avaliar. Todas as discussões sempre foram muito subjetivas, no que cada um sentia, pensava a respeito do que estava fazendo, desenvolvendo. Praticamente as únicas intervenções para “fora” eram as minhas, e, me lembro de que por ocasião de uma visita, o irmão de uma das atrizes, minha impressão foi de ele foi ouvido com muita atenção, mas de que, aparentemente, nada resultou do que ele falou. Uma exceção merece ser citada, na mesma série em que as duas atrizes performatizam e que aparecem os primeiros nus femininos: os movimentos de tirar os “nós” aparentemente

18 remetiam às dificuldades do viver, e, logo em seguida veio a pergunta: “o que é envelhecer para você ( para o músico, que é mais velho, mas que, em se tratando de corpos femininos, também caberia para elas...) Não estou fazendo qualquer crítica, apenas relatando o que vivi. Neste sentido, tanto as avaliações como a maneira com que este “conhecimento” foi transmitido no grupo, naquela montagem, foram muito interiores, com pouca conexão para fora, a não ser em duas apresentações públicas: uma, de algumas cenas na Casa Hoffman, para alunos, “nativos”, e outra no Evento Cena Breve, já mencionado. Em ambos vi os atores e mesmo a diretora mostrarem-se muito tímidos, falando muito baixo, numa comunicação bem menos expansiva do que eu imaginava que poderia ter sido. De qualquer maneira, os resultados foram comentados de forma um pouco excludente: na realidade teria havido uma incompreensão por parte dos “outros”, que não fazem o mesmo tipo de trabalho. Enfim, esta aproximação está sendo sugerida da mesma maneira como os outros exemplos, de forma bem sucinta, para criar um “ambiente” interpretativo no qual e através do qual apresento e desenvolvo uma reflexão crítica sobre o material etnográfico obtido através do trabalho de campo junto à Companhia Obragem de Teatro, no papel de pesquisadora e “brain stormer” das questões que o trabalho do grupo suscitava, no processo de construção da peça experimental em questão.

O Quarto Ensaio sobre a intimidade dos corpos 16

O trabalho teve início em julho de 2006. Em geral, o grupo, composto por três atrizes e três atores, começava o ensaio com a preparação física, da qual também participavam a diretora, a preparadora, eu, muitas vezes, e o músico que deveria “construir” a trilha a partir da sua experiência “em cena”. 16

Em anexo o roteiro de encenação, bem como o texto-base, de Olga Nenevê, a diretora.

19 Eram exercícios físicos, mas também de sensibilização, de conexão, interativos. Corridas, pegas, brincadeiras de várias formas também foram usuais em toda a fase dos ensaios. A presença do contrabaixista em cena também foi sugerida logo de início, e causou debates intensos acerca da “natureza” desde corpo teatral, ainda que todos concordassem acerca da oportunidade inigualável de ter uma “trilha” sendo composta in presentia... Assim, enquanto a diretora pensava no instrumento musical como presença em si mesma, talvez como “corporeidade”, eu sugeria que o contrabaixo, além de estar ali como um objeto “único” 17, possuía um papel muito particular: o de fazer o jogo de cena com o músico enquanto alteridade. Eu pensava, portanto, em “corporalidade”. Desta maneira, o instrumento foi percutido, tangido com o arco, tocado em pizzicato, rodopiado, deitado e tocado no chão, quieto nos braços do músico, mas também olhado, tocado e partilhado por todos. Voltarei a esta questão quando apresentar a questão musical. Já desde o início os atores começaram a construir experiências corporais, interpretativas, improvisadoras, individuais e em grupos, a partir de imagens escolhidas pela diretora. Foram usadas pinturas de Gustav Klimt, Balthus, Jaroslav Pelikan, Edward Hopper, além das pesquisas que cada ator/atriz fez por conta própria ao longo do desenvolvimento dos exercícios interpretativos. Os atores foram dirigidos em exercícios-solo e em várias duplas: os atores entre si, as atrizes entre si, e, de forma combinada. Um dos exercícios-solo, bem inicial, foi inspirado em duas pinturas de Pelikan, que mostro a seguir.

As Tentações de Satanás

Crime e Castigo

A posição em que Jesus está acima foi longamente trabalhada por todos, e, de certa maneira, faz parte da construção geral da peça. Um registro coletivo. A foto à direita, Crime e Castigo, também de Pelikan, gerou uma das séries mais interessantes, na medida em que o mesmo ator foi desenvolvendo as duas posiçõesimagens em seqüências de movimentos cada vez mais velozes, de forma a integrar as duas numa só, que era puro movimento sobre a cama, e no chão, alternada e sequencialmente. Nesta etapa não havia texto, nem sugestão, apenas in-corporação. Desta seqüência, infelizmente não há registro fotográfico, apenas anotações. Daí, mais tarde, surgiu o “grou”, imagem-representação a partir da experiência sensível dos “movimentos” sugeridos por outra imagem, a do quadro, que relato mais à frente, com 17

O sentido de “único” aqui remete às considerações de Jean Baudrillard, in O Sistema dos Objetos, Ed. Perspectiva, 1973: 99/100.

20 registro fotográfico. Desta imagem ao “grou”18 foi um infatigável percurso, desenvolvido numa série trabalhada a cada dia em si mesma e, ao mesmo tempo, em relação aos outros fragmentos. Lentamente estes fragmentos iam sendo conectados uns aos outros. E, na seqüência, passaram a envolver outros atores, de modo a ir compondo séries, todas sobre, sob, a cama.

Mas voltemos a esta primeira etapa. As primeiras discussões em grupo foram muito intensas. No final de cada sessão de ensaio nos sentávamos todos juntos e conversávamos sobre as sensações, as dúvidas, as dificuldades, os medos, as intuições, sempre mediados pela diretora. Passo, a seguir, a descrever alguns destes primeiros exercícios, baseados nas pinturas de Pelikan, Hopper, Balthus e Klimt, com algumas fotos dos exercícios oriundos destas pinturas, ainda que algumas destas sejam já de fases posteriores. Esta primeira etapa, mais centrada nas posições do que nos movimentos, foram construídas muito mais “por dentro” dos atores/atrizes, do que “por fora”, ou, numa encenação. Cada um dos atores, em solos ou em duplas, combinadas de várias maneiras, executavam as mesmas “tarefas”, como eram chamadas. Desde os primeiros momentos a cama foi um objeto central nos/dos exercícios, e comecei a observá-la atentamente, como mais um “personagem” em cena, quase da mesma maneira com que refleti sobre o contrabaixo em sua relação com o grupo.

Os movimentos iam, aos poucos, se tornando mais e mais “turbinados” ocupando a cama em várias posições e dimensões: sobre, sob, nos pés, na cabeceira, deitados, em pé, sós, em duplas, repetindo à exaustão as várias possibilidades de in-corporação oferecidas pelas imagens. Mas os significados para estar aqui ou ali, fazer isso ou aquilo eram estimulados em função da mecânica dos movimentos, retirando dos gestos, das posições e dos movimentos qualquer intenção de “contar uma história”, ou, “dramatizar” a situação.

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O grou é uma espécie de garça considerada um símbolo da longevidade na mitologia chinesa, especialmente a negra. Desde os tempo mais remotos, o grou tem sido associado à música do alaúde. Assim está escrito no Rui Ying Tu Ji: “... Um grou negro aparecerá quando houver um governante que compreenda música”. In “O alaúde e o grou na tradição chinesa”, Revista O Correio da Unesco, Junho de 1986.

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Muitas vezes, neste começo, os atores comentavam ao final das sessões de ensaio, das dificuldades em “turbinar” e, ao mesmo tempo, não perder o controle dos movimentos, ou, das intenções de movimento que iam ocorrendo internamente, com a velocidade e a intensidade. Havia um texto preliminar que ia sendo articulado, de autoria da diretora, mas este, também, era passível de construções e desconstruções, à medida em que os ensaios prosseguiam.

Nesta fase, comecei a sugerir questões que me ocorriam, para adensar as discussões. Falamos, por exemplo, da in-corporação xamâmica e da alteridade. Estas questões foram usadas para pontuar um significado para a espécie de “fusão” entre as duas imagens dos quadros de Pelikan. Hoje entendo mais meu papel no grupo como aquele de quem, ao longo de todo o tempo, procurou atentar para os significados “invisíveis” das ações, na medida em que os atores, e mesmo a diretora, estavam muito mais atentos aos movimentos e à idéia dos “lugares” criados pelas imagens, memórias e sensações físicas, emocionais. Claro, estas dimensões estão juntas, mas havia uma “crença” do grupo, de que, ao “turbinar” os movimentos, certas imagens iam sendo constituídas na/pela ação. Não estou dizendo que não, mas eu sentia a necessidade de apontar estas noções. Pelo menos como contraponto ao discurso “nativo”. Num outro exercício, a partir de uma pintura de Gustav Klimt, ( The Adversarial Violences- 1902) as três atrizes foram orientadas a compor um outro “quadro”, trabalhando, primeiramente, as mãos.

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Em seguida, começaram a explorar o corpo com as mãos, “investigando” estes espaços e, ao mesmo tempo, procurando permitir que a memória dos movimentos fosse sendo in-corporada. Lentamente, foram sendo instadas a transformar os movimentos em “dança”, ou, como diziam: “dançar uma idéia”. Em seguida, foram orientadas a sentar na cama e continuar os movimentos que, lentamente, foram gerando sequências na cama, com várias duplas, em vários níveis, e, apareceram, também, os nus. Em meados de julho apareceram outras idéias: intimidade, solidão, o urbano, a violência, a sexualidade. Um dos primeiros exercícios, neste sentido, foi a roda, todos sentados, de olhos fechados, iam lentamente abrindo os olhos, se olhando, fechando novamente. A intenção era compor e recompor a imagem, interiormente, com as mudanças. A orientação da diretora seguia: “procurem perceber linhas, formatos, tomando consciência da matéria... como posso entrar em contato com o conteúdo pela forma?” e ela continuava dizendo que era este “espaço entre” isso e entre eles mesmos é que eles deveriam trabalhar. Um dos exercícios bem interessantes foi a experiência do “líquido”, que mostro a seguir. De olhos fechados, os atores mergulhavam as mãos num líquido gelatinoso, e depois trabalhavam memória(s) sensações que provinham do contato físico com a matéria Esta foi, também, uma das maneiras de encontrar certos “lugares” que apenas pelo corpo poderiam resultar em trabalhos posteriores.

Nesta etapa mostrei, novamente, o cartão postal feito por Etienne Samain, com as caixas de abobrinhas, que eu havia comentado no nosso primeiro encontro, sugerindo a questão que o autor re-colocava, a partir de Gregory Bateson: “Qual é a estrutura que une os seres vivos?”

23 Eu acho que esta frase nunca foi, realmente, compreendida pelo grupo... mas continuei sempre insistindo, procurando remeter a ela no sentido de enfatizar a questão da relação, da alteridade, da diferença e da unidade nesta diferença, porque fui compreendendo que “O Quarto” tratava disso tudo. Mas também no sentido de provocar uma reflexão acerca da relação que os unia, ou, poderia uni-los, em termos de representações acerca dos valores, idéias, etc... Uma outra questão levantada nesta etapa foi a da intimidade, e falamos muito a respeito. Mas não apenas na intimidade, mas na sua relação com a solidão, a diferença entre solidão e isolamento, e, com a urbanidade. Estabeleci comparações entre “O Quarto” e o “Big Brother”, o que causou alguma polêmica... O grupo não admitiu, à princípio, qualquer comparação, centrados na comparação “artística”, o que obviamente não procedia. Depois, ficou mais claro que não se tratava disso, e sim de uma comparabilidade baseada muito mais no “olhar” que incidiria tanto sobre um quanto sobre o outro, da relação entre os níveis que passei a apontar, e que haveria nesta trabalho: um exterior ( o olhar do público), um mais interno, dentro do grupo, e o outro, para dentro de si mesmo. Enfim, a situação, como mencionei no início deste ensaio, produz questionamentos instigantes. Eu ainda acho que esta discussão não se completou. Retomei outras vezes a questão do espaço intervalar como o “lugar” de produção dos significados, a partir de um texto de Eni Orlandi, que eu havia utilizado no mestrado, e que até hoje é muito útil para pensar inúmeras questões, não apenas da linguagem.19 Mas não acho que minha sugestão tenha ressoado muito entre eles. Era mais usual falarem do “espaço vivo” entre eles. Certamente os significados não são os mesmos... Esta questão do “olhar” foi uma tentativa de apontar as relações com o contexto social, mas não acho que tenha mobilizado o grupo. Na verdade, neste trabalho, o olhar foi uma marca registrada do “alheamento”, mas não acho que com isso esta ação tenha sido metafórica. Mas, em seguida, esta discussão aparentemente dissolveu-se nos exercícios do “vestirse e desvestir-se”, que começaram na mesma etapa. Nestes exercícios, a presença do contrabaixo foi bem marcante, e, o músico e seu instrumento atuaram de várias formas, interagindo com os atores: não deu mais para não considerar “três” em cena. Num destes momentos a diretora até mesmo exclamou: “Olha, parece que foi criado um outro corpo... interajam com ele também...” As experiências com os nus foram bem marcantes, e acredito que, por várias razões: em primeiro lugar, a exposição do corpo, e, além disso, complementando, a presença incipiente dos textos fragmentados, o trabalho com a aceleração e a intensidade tanto dos movimentos quanto da fala. Mas percebi que a presença do “som” do instrumento musical, bem como da voz do músico, entoando simultaneamente, criava uma nova relação, provocava outras emoções. As cenas das imagens dos pintores mencionados voltaram nesta etapa, especialmente as de Pelikan, de forma bem intensa como mostram algumas fotos. Mas há que destacar, ainda, a crescente presença e mobilidade da cama

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Na realidade, ao fazer este trabalho com eles eu também estava “construindo” meu lugar ali...

24 em cena. Esta, abaixo, por exemplo, ilustra o que estou dizendo, ou seja, todos estes elementos em cena. As ações em vários planos e com vários “conteúdos” simultâneos. O que quero salientar é que, em termos experimentais, muitos elementos se misturam, e, apenas aos poucos, é que alguém, um olhar, de fora, vai tecendo as relações. O meu olhar, o da diretora, serviam, acredito, como contrapontos neste sentido. Mas que iam em direções opostas/complementares. Nesta etapa, também, as cenas fotografadas entre um dos atores e o músico levaram à construção de uma série importante, a do pássaro “grou”, que, apenas lentamente, foi desenhando a idéia da morte ligada à violência e à dissolução de certos laços, relações, afetividades, etc... como na seqüência da atriz e sua “burka imaginária”, na qual era nítido o aspecto feminino da submissão, da dor, da agonia da busca da liberdade, de uma relação que se dava, fundamentalmente, dentro dela mesma, mas que se expandia em direção ao outro. Esta cena tinha um dos finais no qual ela jazia no chão e o pássaro “dançava ao seu redor”, como num ritual de passagem, lembrando que o “grou” é, na mitologia chinesa, a ave que transita entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos... Aliás, de uma certa maneira, os exercícios eram todos de limiar, em que a fusão das imagens propostas e o resultado obtido pela exacerbação dos sentidos pelo movimento iam se fundindo.

Nas cenas abaixo, podemos ver o trabalho do “grou” se desenvolvendo, tanto na cama, quanto a partir das imagens sugeridas pelos quadros de Pelikan. De certa maneira, esta interação acabou gerando um longa cena final, uma espécie de ritualização, um “discurso” sobre a morte, na medida em que todas as informações acerca do “grou” levavam a isso. Além disso, a construção musical, também foi se desenvolvendo nesta direção: em registros graves/agudos, o arco ia tangendo as cordas, como gritos de pássaros. E, quando o grou se aproximava da mulher/burka, o corpo do instrumento ia sendo percutido, sugerindo tambores, profundos e ritmados. Sem dúvida, se olharmos as fotos com atenção, vamos reconhecer cenas do Hopper, também, especialmente a última à direita. Na composição desta “saída” do “grou”, também aparecem, nitidamente, os quadros de Pelikan, “As tentações de Satanás” e “Crime e Castigo”.

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Mas esta série merece um destaque especial, porque a representação teatral, ainda que bastante analógica às imagens dos quadros, vai, aos poucos se“descolando”, tornando-se fragmentos, quase que à espera de uma re-união... que apenas vai acontecer muito lentamente, ao mesmo tempo em que outras estão sendo, também, “desenhadas”...

Esta última seqüência, misturava cenas de “insônia” ( a aceleração do quadro de Pelikan, Crime e Castigo), sobre a cama, sob ela, e através dela, com as do “grou”. Muitas outras séries foram desenvolvidas, sob a forma de fragmentos e de fusão de imagens. Na medida em que a técnica de construção parece ser basicamente “celular”, ou seja, vai crescendo de dentro para fora, a estrutura toda do espetáculo se “expande”, ao mesmo tempo em que as relações entre os fragmentos vão sendo estabelecidas, de forma circular, isto é, todos vão passando pelas mesmas experiências, ou, quase todas. Desta maneira, como uma cebola, ele cresce “por dentro”, e em camadas inclusivas, ao mesmo tempo em que vão se estabelecendo relações entre as pessoas, os objetos, as idéias, as sensações, os sentimentos e ações, através dos movimentos. Por esta razão, fundamentalmente, é que na conclusão deste trabalho, pretendo desenvolver com mais

26 detalhes esta questão dos movimentos da cama, como “costura” das cenas, entre outros aspectos. Mas, por enquanto, continuemos com a etnografia dos ensaios: pretendo demonstrar, ainda que resumidamente, esta idéia da construção “celular”. Ainda nas séries iniciais, aconteceu um momento em que, ao mesmo tempo em que dois dos atores faziam um exercício de se “desgarrar” um do outro, para, na seqüência, juntarem novamente um saltando sobre o outro, que o segurava um pouco e depois largava seu corpo repentinamente deixando-o cair ao chão pesadamente, o músico desenvolvia, simultaneamente, uma relação com o contrabaixo: acariciava-o, tocava as cordas levemente com as mãos, ditando o instrumento ao chão, percutia-o, de maneira crescentemente intensa. Da mesma maneira, a relação entre os dois atores foi num crescendo. Depois, o músico deu início a séries mais musicais ( com o arco e pizzicato), enquanto os atores ocuparam a cama de forma alternada, e em posições que iam da cabeceira aos pés e embaixo também. Em seguida começaram a seqüência de tirar e por a roupa, ambos, sem se comunicarem. Esta série foi repetida por vários pares, com algumas alterações que foram acontecendo por si mesmas. Portanto, ao mesmo tempo em que os exercícios “expandiam” as cenas “virtuais”, não apenas esta que mencionei, pontos mais precisos iam se delineando no interior profundo da “coisa” que estava sendo buscada. Vejamos, por exemplo, algumas delas em que casais fazem um exercício, interagindo com a cama.

27 Em momentos posteriores, algumas destas mesmas cenas já passaram a incorporar fragmentos de textos e maiores níveis de uma “sugestão” de violência, ou, de, pelo menos, de uma relação “conflituosa”, ainda que, nos termos propostos, havia que evitar a “dramatização:

Os exemplos são inúmeros considerando que há uma série fotográfica de, aproximadamente 1200 fotos, talvez mais. Houve uma sessão em que discutirmos mais sobre a inserção da música, do músico e do contrabaixo em que ficou bem nítido o processo de construção a que me refiro: eu perguntei como seria para eles “abrir espaço para que o contrabaixo pudesse “dialogar” com eles”.20 A diretora respondeu que pensava no contrabaixo da mesma maneira que pensava a cama, ou seja, tudo deixa de ser “coisa” para ser “ambiente”... e que havia o mesmo problema em relação aos próprios atores, uns com os outros... era necessário “abrir” espaço. Dizia ela: “se a gente acredita que o corpo por si só já contém informações, posso abrir “camadas” para outras percepções. Normalmente pensamos que precisamos “expressar” exteriormente o que a gente sente... mas, se a coisa está acontecendo, ela já é...” E continuou: “a gente trabalha com duas consciências, uma ligada aos sentimentos e emoções, e a outra que mapeia para que se possa voltar aos “lugares”...” Mas a pergunta voltou: “como o som e o corpo do contrabaixo poderiam se inserir?” Ao que ela respondeu: “pelo próprio experimento... chega o momento em que o trabalho expande...” Neste momento todos passaram a falar sobre como as “imagens” que um produzia interferia no outro, e como este trabalho se dava “dentro” de cada corpo. A diretora então falou uma frase marcante para mim: “ não se preocupem com a imagem... a gente une vocês”.21

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Eu acompanhei bem de perto a “construção” da ambientação musical, com exceção dos momentos finais em que a diretora esteve pessoalmente com meu companheiro músico. Mas até lá, discutíamos muito as idéias musicais, as sonoridades que ele imaginava e ia “construindo” para a montagem. 21 Foi marcante porque, de certa maneira, remetia ao meu papel ali: o de “unir” as imagens, com este olhar de fora. Por tudo isso, me sentia à vontade no trabalho.

28 Um outro tema muito presente foi o da ambigüidade: como os exercícios eram realizados de forma a combinar diferentes sexualidades ( não apenas pela questão biológica, e sim, pela questão de gênero, mais ampla), várias comutações foram aparecendo. Uma das questões era: “ o quanto a intimidade está ligada à sexualidade?” Certamente esta questão não buscava uma resposta: havia um consenso de que se estava procurando um “corpo contemporâneo”. As discussões seguiram em frente com algumas sugestões, minhas inclusive, de que falávamos de um espaço de “cruzamentos”, de movimento. Lembro-me de ter citado as “Passagens” de Walter Benjamin. Neste sentido é que os nus apareceram como alguma coisa de passagem, sem um lugar fixo no trabalho. De fato, poucas cenas restaram das muitas exercitadas.22 Foi nesta circunstância que apareceu o tema do erotismo. Falamos, nesta ocasião sobre o corpo como “mediação”, e expliquei usando a história de Quesalid, do xamanismo como um lugar pelo qual certas coisas “passam”. Em agosto, em função deste tema, sem que isso fosse discutido, re-apareceu a “técnica do encaixe”, muito exercitada no começo. O interessante é que, nesta modalidade, entre dois atores, a diretora foi encaminhando o exercício para níveis mais explícitos de “violência”, o que culminou numa série muito intensa de corpo-a-corpo, no chão. E, ao finalizar, o músico também deitou seu instrumento no chão. Foi exatamente neste ponto dos ensaios que a cama entrou “em cena”, aparentemente colocando-se entre eles... e foi também aquela em que uma das atrizes performatiza mais integralmente a “burka” e o ator, o “grou”. Muitas outras séries poderiam ser exemplificadas, para mostrar como, todos iam passando pelos mesmos exercícios, e, aos poucos, tornando-os diferenciados. Mas gostaria de comentar agora, como a cama passou a fazer parte efetiva da prática teatral. Ainda que já tenha citado sua presença, gostaria agora de comentar isso de maneira sistematizada. Na primeira série fotográfica, de agosto de 2006, aparecerá a única vez em que apenas duas mulheres interagem com ela. Nesta mesma série aparecem, pela primeira vez, os nus femininos. Mas, por outro lado, na seqüência, já aparecerão as primeiras cenas de “casal”, em jogos de “encaixe”, que vão se transformando em “pequenas lutas”.

Mas, também, começou a construção do “grou”, nas fotos já mostradas acima. A série de setembro já traz outras idéias: as cenas de um casal sobre a cama, a violência implícita de uma suposta “posse”, e o nu masculino ao lado. Esta série termina com 22

Embora tenha fotografado estas cenas, certamente elas não foram pensadas para serem inseridas neste trabalho. Este é um material do grupo Obragem, um material que tenho, certamente, permissão para usar, mas, com algumas reservas. Não impostas pelo Grupo, mas pelo próprio trabalho antropológico.

29 todos cobrindo os rostos. Nenhuma intenção, foi o suposto. No entanto a leitura das fotos agora sugerem outras coisas. O que teria um possível espectador suposto? É importante dizer que, se os atores e a diretora tinham idéias mais “dramáticas”, ou, mais metafóricas, não expunham. O que me parecia era que este “bloqueio” poderia ser até mesmo intencional, para dar “oportunidade” corporal e não dirigir as idéias antes que o corpo pudesse se “manifestar”. De fato, esta possibilidade aponta para a mencionada “ideologia do corpo”, se é que podemos dizer assim.

Continuemos o périplo da cama. Neste mesmo dia, este exercício, termina com várias posições sob a cama, e, depois, com a “volta ao começo”: os dois atores de mãos dadas, sem a atriz. Mas esta mesma série já havia sido trabalhada fora da cama.

Diversos níveis e apoios são recursos para trabalhar um o corpo do outro, e, o seu próprio. Ainda na série de agosto, minhas anotações revelam uma preocupação do grupo em estabelecer algumas correlações, mencionando que, no exercício X, apareceu a preocupação com o social. Mas isso não se explicitou de forma clara. Em seguida a orientação da diretora foi que os “nós” (objeto) ficaram mais presentes e que ficar só na mecânica dos movimentos abriu espaço para as “matérias sonoras”, corpóreas, etc... Mas é importante acentuar que, nestes exercícios de nus, vieram questões interessantes como, por exemplo, “a relação entre violência/sexualidade/ambigüidade... o trabalho com a questão da “intimidade”, suas possíveis relações com a sexualidade e de como ela poderia estar num certo “espaço de cruzamento”. 23 Muitas destas vezes, ao longo dos exercícios de agosto e setembro, principalmente, a diretora pedia ao músico que “tocasse” o que via, e/ou sentia.

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Estas idéias começaram indicar, para minha leitura, uma possível conexão entre a “cama”, seus movimentos, e uma certa “moralidade”, no sentido adorniano. Até que ponto a existência da cama, bem como sua “utilização” estaria sendo consciente? Claro, lembrei-me também de Baudrillard e o sistema moral dos objetos. Mas isso fica para ser discutido depois.

30 Vamos agora às séries de outubro, no que tange às relações com a cama e entre os atores, em alguns exercícios. As primeiras vezes em que a cama “entra em cena”, ela serve de apoio a um série de exercícios bem variados, aparentemente apenas como suporte, ou, como demarcadora de planos e recortes no espaço cênico. Pouco a pouco ela vai “servindo” a certas idéias como, por exemplo, àquelas relacionadas a vários tipos de “jogos” entre as duplas, ou, até mesmo, envolvendo todos os atores em cena. Dentre estes, os encaixes de corpos sobre a cama pouco a pouco se tornando mais violentos; as cenas que sugeriam a impossibilidade de “paz”, “sono”, “sossego”, ou, as disputas heterossexuais que sugeriam a impossibilidade da relação sexual, amorosa, de entrega. Eram cenas de “recusa”, em várias séries e com todas as duplas, por assim dizer. Mas também foi suporte de atividades meio lúdicas como vários atores procurarem as bolinhas coloridas sob um lençol...como exercícios de “warming up”. Antes de começar com as referências retiradas das anotações de campo, acho importante delinear minha proposta de leitura: a hipótese básica é que a cama faz a mediação entre tempo/espaço, e que, portanto, seria uma forma “condensada”, de um forte potencial metafórico em função da sua posição dentro de um “sistema moral” referencial. Portanto, acredito que uma leitura desta mediação poderia sugerir a presença dos três elementos propostos por Geertz em sua análise da “briga de galos balinesa”: uma forma dramática imediata, um conteúdo metafórico, e seu contexto social. Parece necessário, também, esclarecer o que estou entendendo por “sistema moral”. A referência “clássica”é, claro, Durkheim. Fazendo um recorte do que mais interessa aos objetivos do aqui e agora, eu diria que a concepção de “moral” em Durkheim é fundamental ao estabelecer que sociedade e consciência coletiva são “entidades morais”, antes mesmo de terem uma existência tangível. Ora, isso significa, além do já consagrado efeito do social sobre o individual, que estas “entidades” são difusas e, que, para efeito da socialização, a norma moral vai se tornando norma jurídica. É este caráter “difuso” que nos interessa em seus desdobramentos até à modernidade e pós-modernidade, especialmente se pensarmos sua manifestação através da corporalidade individual e coletiva. No entanto, a leitura deste caráter “difuso” pode ser problematizada ainda mais. Ainda que não seja aqui o lugar, e nem a intenção, uma aproximação às idéias do filósofo Lévinas, parece muito oportuna, na medida em que a cama, na minha leitura, estabelece relações “virtuais” entre o mesmo e o outro, discutindo os fundamentos da alteridade, num sentido moral concreto, ou, existencial. Certamente, em Lévinas, a moral está colocada na sua relação com a Ética, e este não seria o caso aqui, mas me parece que, se bem entendo suas idéias, esta relação com o outro parte de uma “descoberta”... ou seja: eu não me relaciono com o outro a partir de regras de conduta universalmente estabelecidas, mas sim, a partir do que este “outro”, ao se revelar, fornece como condições para interpretá-lo. Assim é que, para Lévinas, escapar às idéias excessivamente abstratas e apreender o homem a partir da sua vida concreta, significa pensá-lo nas suas relações com o mundo, rejeitando sua apreensão metafísica (a partir de suas concepções fundamentais, ou seja, mundo, finitude, solidão) para dar conta da alteridade concreta do outro. Neste sentido, foi muito interessante pensar este adensamento moral a partir da filosofia moral de Theodor Adorno, especialmente em A Dialética Negativa, e, Mínima Moralia. O fato de, nesta análise do trabalho teatral experimental, estar lidando com a expressividade enquanto prática social, e, de certa maneira, procurando formas de apreender os limites da relação entre razão e sensibilidade, coloca a mesma situação

31 crítica de Adorno: não se trata aqui de uma experiência moral como tentativa de evitar as pulsões, os riscos, a perda da razão, a irracionalidade, enfim, mas pelo contrário, seria a própria vertigem da consciência que possui um significado moral.24 Como aponta Douglas G.A. Júnior, a partir das idéias expostas na Dialética Negativa, tal filosofia moral só poderia mesmo persistir na condicionalidade e na atenção ao fragmentário, ao individual e à dor. (idem, ibidem) . Portanto, estas referências, ainda que não desenvolvidas em profundidade, propiciam o ambiente analítico que pressinto como necessário à tal apreensão por várias razões: o fato de que o experimental está em busca justamente deste fragmentário, desta “vertigem” buscada e produzida, como condição de revelação. Se ele consegue nas condições deste trabalho teatral é outra questão. Enfim, acredito que este “sistema moral”, por razões que pretendo buscar, está acionado, desencadeado pela presença de um objeto em cena, que, por mais concreto que possa ser, ou justamente por isso, está pleno de conotações metafóricas, e estabelece as conexões entre os fragmentos a partir dos seus movimentos. Ela é, na verdade “acionada”, ou melhor dizendo, “co-agida”. Da mesma maneira, pensando nesta natureza objectual em cena, Baudrillard é uma boa referência para mostrar como esta situação suscita questões interessantes. O que se poderia dizer sobre uma cama? Que é um objeto sobre o qual se dorme, se ama, se dá à luz, se morre. Assim, vida e morte se entrelaçam no seu “corpo”, ou, sua materialidade. De qualquer maneira, é um objeto na história: podemos dizer que, mesmo sem uma cama, como a conhecemos nas nossas sociedades, as pessoas, ao redor do mundo todo, praticaram e praticam as mesmas atividades seja num tatami, numa tenda no deserto, num iglu recheado de peles, numa rede, enfim... há uma emancipação do objeto em si, mas não uma libertação da função do objeto. Além disso, como diz Baudrillard, “A dimensão real em que (os objetos) vivem é prisioneira da dimensão moral que têm que significar. Possuem eles tão pouca autonomia neste espaço quanto os diversos membros da família na sociedade. Seres e objetos estão aliás ligados, extraindo os objetos de tal conluio uma densidade, um valor afetivo que se convencionou chamar sua “presença””. (Baudrillard, Jean, 1973:22)

Esta dimensão “moral” aqui sugerida é muito oportuna para esta análise que tento fazer: da mesma maneira com que Baudrillard cria um fantástico “enredo” no qual os móveis, numa casa, “se contemplam, se oprimem, se enredam numa unidade que é menos espacial do que moral”, esta investidura simbólica, circulando ao redor de um eixo (a família), e, encenando a integração das relações pessoais no grupo familiar fechado, nesta peça de teatro, O Quarto, suscita indagações. Em primeiro lugar, a cama como um objeto está colocada numa situação/posição ambígua. Como não existe um “espaço” determinado da mesma maneira como no ambiente de uma “casa”, nem outros objetos com os quais se relacionar, a cama, em princípio, se torna um objeto “fora” das relações, desestruturado. Sem espaço, diríamos, não há relações. Sem relações, não há espaço... Mas, segundo Baudrillard, “como frequentemente os deuses, os móveis também têm às vezes oportunidade a uma existência segunda, passando do uso ingênuo ao barroco 24

Garcia Alves Júnior, Douglas ( 2005) Dialética da vertigem: Adorno e a filosofia moral. São Paulo, Editora Escuta.

32 cultural”, e, assim, supomos, novos espaços são suscitados, ritmados, alargados, por correlações de (novos) objetos e uma superação desses em uma nova estrutura. Assim, neste barroquismo, o “espaço” seria, de certa forma, a liberdade real do objeto, enquanto sua função seria apenas sua liberdade formal. Mas, em termos de uma liberdade “real” de que maneira(s) poderíamos pensar a cama nesta peça teatral? Se pudermos pensar através de uma analogia com as idéias de Baudrillard acerca das transformações ocorridas entre, por exemplo, a sala de jantar “burguesa” e os móveis “funcionais”, modernos, contemporâneos, talvez surjam algumas correlações interessantes. Senão vejamos: a sala de jantar burguesa revela-se “estruturada”, mas fechada, orientada por rituais, etiquetas, ideologia, enfim, revela uma “teatralidade moral”específica. Por sua vez, o ambiente funcional é aberto, livre, mas desestruturado, fragmentado em suas diversas possibilidades “funcionais”: uma cama pode servir, também, como mesa, um criado-mudo como suporte de televisão, etc... enfim, há agora, também, uma libertação da função dos objetos, mas esta liberdade não escamoteia sua necessidade, ou seja, ainda precisamos de um lugar para dormir, para comer, para parir, para fazer sexo. Enfim, o homem é libertado apenas como usuário destes objetos, de suas “teatralidades” estabelecidas, e, simultaneamente, livre para novos “arranjos”espaciais e relacionais. Mas, se pensarmos que os objetos em série também criam um estilo “sem estilo”, teremos, como diz Baudrillard, um espaço “inencontrável”: nem exterioridade ( coerção), nem interioridade ( refúgio, intimidade, identidade). Um estilo “ilegível” para usuários objetificados, robotizados. Desta maneira, uma reflexão sobre a cama “em cena”, é, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre as pessoas em relação umas com as outras e com o(s) objeto(s), o que pode revelar a estrutura desta sociabilidade e indicar percepções da alteridade. Minha sugestão de leitura é que, na medida em que a cena em questão não configura um “espaço”, ficam dúbias as relações interpessoais, os níveis de articulação dentro/fora, exterioridade/interioridade, o público e o privado, a questão da intimidade e da exposição pública, e, ao mesmo tempo, as de gênero, de hierarquia, de tempo. Desde os primeiros ensaios pensei na casa Kabyla, de Pierre Bourdieu. Este trabalho foi, realmente, uma inspiração para mim. Cheguei a construir esquemas visuais da casa berbere, para poder pensar os desenhos que fazia, tentando acompanhar as posições da cama em cena. Mas por mais que se possa imaginar a vida dentro da “casa” de Bourdieu, sentindo as variações de luz incidindo sobre os objetos, as cores, o calor e a umidade, enfim, a vida pulsando em separações, repartições, confrontos e complementaridades, faltava a dinâmica dos movimentos. Pois neste caso específico a cama é mais do que um objeto: é um objeto em movimento, e, exatamente neste sentido, ainda que falte o “espaço”, pode voltar a significar, e a (re)estruturar relações, mas apenas através do seu movimento, do seu deslocamento contínuo. Sua “ilegibilidade” de objeto sem função, sem localização num “espaço”, readquire o poder de significar como se fosse um cometa, a arrastar atrás de si, fragmentos de significados, luzes que iluminam sua (nova) “teatralidade”. É como se estes deslocamentos em cena passassem a produzir “lugares”, distâncias, intervalos, que se “comunicam”, silenciosamente, ou não. A cada “deslocamento” da cama, configurações emergem para logo serem desarticuladas novamente, criando outras e mais outras, num incessante discurso

33 fragmentado acerca das relações humanas, de certa maneira, definidas sexualmente, ou, em termos de gênero. Desta maneira, dois homens, duas mulheres, dois homens e uma mulher, duas mulheres e um homem, às vezes todos em cena, desvelam possibilidades significativas da vida contemporânea. Mas este processo nunca foi tematizado conscientemente. Falávamos todos dos aspectos visuais, plásticos, e, também, dos sentimentos envolvidos, das sensações corpóreas, emocionais. Na realidade, desde os primeiros ensaios, os movimentos da cama e dos atores foi sendo construído conjuntamente, quase como se eles fossem se determinando mutuamente/e simultaneamente.Passei a pensar estes movimentos como versões performáticas da alteridade, realizadas a partir de variadas “negociações”, envolvidas numa ficção da “intimidade”. Mas o que seria esta “intimidade” numa ação pública, numa encenação? No discurso da montagem ela surgiu como a possibilidade de se relacionar com a singularidade do “outro”, que não se pode e não deve determinar de antemão. O “encontro” estava sendo concebido como “acontecimento”, sem jamais se falar acerca do significado que estas idéias poderiam ter para um possível público. E esta possibilidade, este desconhecimento, esta forma de “revelação” do outro era pensada por eles como forma de erotismo. Mostro, a seguir, uma série fotográfica com algumas posições da cama em cena, e, com elas, as variações, as “figurações” sugeridas.

Esta série acima, teve duas características principais em relação à presença da cama: ela pouco foi movida, serviu mais como suporte além de delimitar planos: embaixo, em cima, nos pés, na cabeceira. No entanto, os atores ( um homem e uma mulher) se apropriaram dela performatizando situações de “posse”, ou, “luta”, que se originaram

34 em exercícios de encaixe dos corpos, passando para uma espécie de possibilidades de um suportar, amparar os movimentos criativos do outro. Aparentemente em nenhum momento a cama foi pensada como “cama”, mas, ao mesmo tempo, não poderia deixar de sê-lo. A cama foi deslocada uma única vez, e pouco usada, em função da seqüência de encaixes, mais no solo e aéreos. A série a seguir nos mostra a cama como plataforma para o vôo do grou, ao mesmo tempo em que apóia a cena da criação da mulher/burka, em sua cena de auto-erotismo.

Como observamos, nesta seqüência, a cama não se movimentou. No entanto, os movimentos metafóricos sobre ela foram intensos. Na próxima seqüência, o ator, personificando o grou, dança ao redor da cama, que, agora, recebe os corpos, imóveis, de outros dois atores, em dois planos. Minha sugestão, é de que se tematiza a morte. Neste sentido, a cama revela outra possibilidade de “leitura”, costurando, alinhavando isso tudo. Posicionada num outro “lugar”, oportuniza a construção de outros significados, construídos pelo(s) movimento(s) e, ou, imobilidade do(s) outro(s) ator(es).

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Mas há cenas em que os atores “acionam” a cama de maneira incessante, ou seja, cenas em que o próprio movimento da cama está a produzir significados, juntamente com a ação performáticas dos atores. Estas cenas, em geral, começavam com os exercícios de “pega”, bem como com a visualização de imagens dos pintores citados. No caso mostrado abaixo, foram de Balthus e de Hopper.

Ainda que os “pegas” fossem um tipo de exercício bem recorrente, é interessante notar como, nestes casos, a cama, além de servir de anteparo para as “brincadeiras”, ia, também, sendo acionada, como que “liberando” suas possibilidades através da relação de conhecimento/manipulação que os atores iam desenvolvendo a respeito da sua materialidade. Como que adquirindo uma certa “intimidade” com o objeto, que, desta maneira, através destas “brincadeiras”, parecia ir perdendo sua característica

36 funcional primária. Afinal, ali, nestas circunstâncias, ela fazia parte de um jogo sem assunto, sem tema. Mas, a seguir, surgiam outras séries como a que vou sugerir abaixo, em que ela vai estar contracenando com o grou e uma das atrizes, tematizando a morte e a sexualidade. Nestas cenas, a cama não é apenas um objeto: ela sugere tanto o sexo quanto a morte, pela sua presença e pelo uso que os atores fazem dela. A seqüência começa com o homem/grou/morte no chão, e a mulher/sexo, dominante, em pé.

Lentamente, as posições começam a se inverter. Mas não se chega à uma definição. Não é propriamente a cena que permanece incompleta, ela é, na sua essência, uma incompletude, sem que isso afete em nada a concepção do trabalho como um todo, na medida em que foi feito de fragmentos.

E aparecem as performances sobre a cama, de forma alternada, sinalizando uma busca (?) individualizada. Cada qual numa indizível “viagem”: os personagens se tocam, se cruzam, mas não se comunicam. Nestas cenas a cama praticamente não se movimenta: ele vai servir, novamente, ainda que a tematização não seja a mesma da anterior, como apoio.

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Uma outra seqüência, que na minha leitura tematiza o homoerotismo, estão em cena duas mulheres e um homem, e esta, também, não encontra um final.

O movimento dos atores ao redor da cama vai insinuando uma certa “vertigem”, performatizada pela atriz que se levanta da cama e começa a caminhar ao redor da cama, cambaleante. E o ator sai de cena, deixando as duas atrizes, não sem antes ter sinalizado uma relação homem/mulher, sob uma aura de tédio...

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Ainda que nada tenha sido discutido, ou seja, do que isso poderia estar representando, e mais, que nada do que eu pudesse ter dito viesse a alterar a percepção deles, o meu olhar naquele momento, registrando a seqüência, e hoje, revendo esta série ( que é bem maior do que a que está aqui sendo mostrada) aos olhos de uma necessidade interpretativa, reconheço esta “sombra” significativa do homoerotismo. E ela vai aparecer em outras também. A cena termina sem acabar...

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Outros “triângulos” são montados, sempre inacabados. Vejamos outra seqüência muito instigante. Ela começa com um “warming up”, no chão.

Mas a cena, em si, nada aproveita deste “corpo-a-corpo”, não deixa traços visíveis dele. Na seqüência abaixo, podemos observar que, em geral, os homens é que movimentavam a cama, intencionalmente, ainda que sem um objetivo marcado, explicitado: como vemos, os dois atores/homens estão sentados na cama, sem qualquer comunicação, enquanto a atriz/mulher “desfila”, como se não os visse, um tanto paranóica. Eles aparentemente buscam algo que não encontram, estão sempre em oposição um ao outro, e agem como se não vissem a presença da atriz/mulher.

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Esta série acabou por compor um dos fragmentos inacabados, que, depois, juntou-se ao corpo da peça, como se fosse uma etapa de découpage fílmica, só que sem um roteiro pré-estabelecido, e sem uma finalização. A peça é feita de fragmentos. Neste mesmo dia de ensaio, uma outra série repetiu o mesmo “tema”, mas nada foi mencionado a respeito. Era como se se assistisse a um filme da “Nouvelle Vague”, cheio de elipses, sombras, interditos, silêncios, olhares perdidos. Poucas palavras, e quando apareciam os textos, eram frases entrecortadas, permeadas de mistérios. Nesta próxima seqüência, duas mulheres performatizam o mesmo “desencontro”.

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Enfim, mais uma seqüência que terminaria, sem acabar. Mas, minha intenção ao fazer tal afirmação não é questionar a peça em si, e sim, comentar a forma, a natureza dos fragmentos. No próximo segmento vou comentar a produção musical, ou, a trilha, como é chamada, ainda que, neste caso específico não tenha sido uma “trilha” no sentido comum, usual, em que o músico/direção musical conversa com a produção do espetáculo, assiste a alguns ensaios e “ambienta” a montagem sozinho, com seu trabalho em casa, ou, num estúdio de gravação. Neste caso, foi muito interessante acompanhar este trabalho que, por coincidência, pude observar e participar também em minha casa. Desta maneira, acompanhei o trabalho musical em cena, nos ensaios, anotando etnograficamente a condução da direção, fotografando esta “inserção” do músico em cena, sua relação com os outros atores e mais, a sua relação com o instrumento, um contrabaixo acústico de forma cenográfica, experimental, até mesmo “filosófica”... O que trouxe várias indagações: sobre a natureza desta inserção em se tratando de um objeto, de um instrumento com o qual o músico estabeleceu relações diferenciadas do que quando está tocando com outros músicos, num trabalho especificamente musical. Além disso, a questão da “presença” do contrabaixo em cena, da interação de todos com ele e com o músico. Mas a inserção do músico, enquanto pessoa também merece um destaque porque a filosofia teatral do grupo implicou em trabalhar a pessoa do instrumentista como um

42 outro ator, na medida do possível e do cabível. Ou seja, ele não estava ali apenas para tocar, mas para produzir uma sonoridade específica, única, para o espetáculo. Desta maneira, cabia, segundo ficou claro, solicitar dele, uma participação intensa, superando sua perplexidade de neófito... A questão é: o que significou construir esta “música” a partir do experimentalismo teatral? Como é possível perceber, desde as primeiras fotos dos exercícios, lá na página 23, a presença do contrabaixo em cena foi sempre uma coisa problemática para todos, ainda que não no sentido negativo. Era, realmente, muito estimulante observar de que maneira o próprio músico ia reagindo aos estímulos feitos pela diretora, pelo contato visual e físico com os outros atores, e, acima de tudo, consigo mesmo e com o instrumento, tentando “arrancar” de dentro de si e do instrumento, sonoridades que ele acreditava serem “compatíveis” com o momento e com os estímulos em geral. Mas o músico passou por momentos bem intensos, tentando evitar a tendência natural de produzir “ilustrações” para os movimentos, até mesmo para as idéias que ele próprio ia tendo ao ver as cenas. Foi uma etapa muito difícil para ele. Esta evitação foi ficando tanto mais difícil à medida em que ia tendo mais idéias interiores, oriundas da sua subjetividade, e sentia as limitações impostas pelo próprio instrumento. Desta maneira, todas as séries em que ele explorou o corpo do contrabaixo foram permitindo que, ao contrário do que se poderia pensar, ele fosse se “libertando” do instrumento e se tornando mais livre para outras idéias, que acabaram culminando num trabalho absolutamente experimental com o uso de efeitos que ele próprio produziu no computador, com variados softwares. Ele continuou tocando o contrabaixo, inclusive em cena, mas como o grupo ia estrear em Lisboa, era necessário que até mesmo sua perfomance musical estivesse gravada. Tudo isso resultou num cd que, só depois do processo todo, acabou virando uma “trilha”. As cenas do mês de Agosto mostram um período de intensa experimentação para todos. Musicalmente falando, acho importante destacar que, pelo fato de ter sido sempre um músico ligado ao jazz, este começo foi muito na base dos improvisos escalares, tonais, atonais, com arco, pizzicato etc... sempre buscando extrair do contrabaixo determinadas “falas”, oriundas de certas regiões ( aguda ou grave) dependendo dos caminhos que iam sendo sugeridos pela sua subjetividade, ou mesmo pela própria sonoridade produzida, ou pela indicação da direção. Gostaria de destacar três séries de exercícios que exigiram bastante da relação ator/músico/música: as cenas iniciais do processo de desnudamento, combinado com as cenas mais violentas do casal sobre a cama, e com a “introdução” do contrabaixo em cena mais ampla, inclusive sob o olhar de uma outra presença em cena, quase que sugerindo a percepção de um outro “corpo” cenográfico; as cenas de construção do grou e as da mulher/burka. Mas de uma maneira geral, esta música experimental teve duas características principais: o fato de ter sido “construída” da mesma maneira que as cenas como um todo, ou seja, baseada nas relações experimentadas, vivenciadas nos ensaios, de forma intensa; e de ter passado pelas várias séries, ou, variações sobre o mesmo tema. Olhando as séries fotográficas como um todo, depois da experiência etnográfica in loco, é possível perceber a maneira como as várias “combinações” possíveis de relacionamento sexuais, eróticos, íntimos, foram experimentadas: todos em cena, cada um “explorando” seu próprio corpo; um homem e uma mulher em várias situações ( de desejo, de agressividade, de desencontro...); dois homens; duas mulheres; duas mulheres e um homem; dois homens e uma mulher; três mulheres; duas mulheres...

43 Em todas elas, o contrabaixo esteve presente, experimentando as cenas e buscando uma sonoridade especial em cada momento. O resultado está anexado a este trabalho, num cd, assim como as séries fotográficas depois de uma organização orientada para exibição, com alguns cortes.

CONCLUSÃO: variações sobre o mesmo tema. Na construção desta etnografia me deparei, desde o início, com um grande obstáculo, que permaneceu até o final, sem solução: a impossibilidade de vencer o fato de que o corpo permaneceu como o objeto de um discurso imbatível, que enfatiza a corporeidade, ainda que, na maioria das vezes os próprios participantes tivessem sensibilidade para a questão cultural, social. Ao mesmo tempo em que produziam uma desmaterialização do corpo, tornando-o um objeto do discurso, o reificavam como sede de experiências assumidamente biológicas, neurológicas, cinestésicas, individuais. Um processo ambíguo de psicologizar o corpo. Não resta dúvida de que o campo social veio construindo várias formas de apreensão do corpo na contemporaneidade, oriundas da tendência interdisciplinar dos estudos culturais: a teoria feminista, as seitas religiosas alternativas, a própria medicina alternativa, processos de cura e transformação na perspectiva holista, as teorias críticas em geral, a teoria da performance, as artes em geral. E, em decorrência, podemos perceber uma grande mudança nas formas de interpretação da corporalidade. Como mostra Thomas Csordas no livro por ele organizado, Embodiment and Experience, dos anos 70 para cá, muito se escreveu sobre o assunto, não apenas porque a teoria passou a concebê-lo de forma diferente, mas, sobretudo, porque nossos corpos estão sendo organizados e vividos de forma diferente. ( Emily Martin, apud Csordas: 20011). Seguindo algumas destas idéias, parece coerente considerar que, diante do tremendo impacto da mercantilização, do consumismo em larga escala, e, da semiose crescente das partes do corpo, parece praticamente impossível pensar o corpo como uma totalidade em si mesmo, contido em si mesmo. Vivemos tantos séculos buscando a integração corpo/mente para vê-lo, agora, como algo fluido, inapreensível, fragmentado... Neste sentido, diz ele, no capitalismo avançado, com o alto investimento em uma cultura do consumo, com a proliferação de imagens que acentuam o movimento, as vertiginosas transformações do tempo e espaço, o corpo se tornou, fundamentalmente, “sede” de um self performático, feito de aparências e manipulações impressionistas. Mas, justamente, pensando nestes condicionamentos, parece inadequada esta fixação num discurso biologizante sobre o corpo. Parece uma materialização excessiva, e, da mesma maneira, um discurso colado à ideologia hegemônica. Frequentemente o grupo era levado a imaginar os nervos, as articulações, as conexões cerebrais internas, a “sentir” a pele, os músculos, a coluna dorsal de modo impressionista, ou seja, figurativo: “agora imagine um calor percorrendo sua coluna”, ou, se” instalando na parte frontal do cérebro”, etc... Nestes momentos de preparação havia, realmente, uma intensificação do processo de fragmentação do corpo, um domínio da citação das partes mencionadas, de um léxico adequado, de uma nomenclatura impressionante. Juntamente com esta prática, aparecia, também, uma certa apreensão do corpo como um “lugar” muito subjetivo, pessoal, individualizante, incomunicável.

44 Aquele “self performático” de Csordas recobria-se, nestes exercícios, de um mistério que, de certa maneira, contrariava a pulsão à transparência, à uma certa “assepsia” dos referenciais da morfologia, do metabolismo, ou, até mesmo, de corpos metaforicamente autopsiados. Na realidade, havia a intenção de “preparar” os corpos, como canais “expressivos”: soltar os fluxos imaginativos, ter corpos adequados, fisicamente preparados para as “tarefas”, como eram chamados os exercícios de construção das cenas. Enfim, meu lugar de fala, minha “moeda de troca” ia ficando cada vez mais desconfortável, na medida em que eu percebia a tendência entranhada no grupo em desconhecer a natureza social do corpo, e, neste sentido, as dificuldades representadas ali na incomunicabilidade entre os atores como personagens. Sei que era uma construção deliberada, para mostrar a realidade da vida contemporânea, mas o que ficava “encoberto” era o fato de que eles próprios estavam vivenciando seus próprios corpos de maneira reificada, ou seja, sem fazer disso uma realização consciente, ainda que em termos de experimentalismo pudessem extrair de seus corpos a expressividade buscada. O que quero dizer, e parece bem complicado, é que, quando se assiste às cenas, poder-se-ia pensar que aquilo tudo teria sido discutido, inclusive para fazer dos seus próprios corpos metáforas vivas da condição de vida atual. No entanto, acompanhando a construção do trabalho, vi que tudo aquilo eram expressões “naturalizadas”, pensadas como decorrência natural do processo de exercícios “psico-biológicos”, ou, até mesmo, do próprio “movimento”. Não havia uma discussão do que as atitudes, os resultados dos exercícios poderiam representar para quem viesse a assistir a peça. Desta forma, acho que uma “teoria da performance” pode ser bem adequada para pensar este processo, pelo menos para problematizar o que Richard Schechner chamou de “restored behavior”, ou seja, aquelas ações conscientemente separadas da pessoa que as realiza. Se as performances podem ser assim qualificadas em função do que Richard Bauman chamou de “double consciousness” ( apud Marvin Carlson, 1996:5), ou seja, de que a realização de uma performance implica em que o ator tenha consciência de que está produzindo uma ação sobre a qual tem controle porque ela está “separada” do que ele faria numa outra situação qualquer, neste caso que descrevo, não havia esta possibilidade. A ausência de um texto, de um script ou roteiro, e com a montagem sendo orientada pela diretora de forma “experimental”, ou seja, de acordo com o que os atores iam oferecendo de resultados práticos, eles não possuíam este controle, ou, esta consciência. Suas ações eram como as de um “cavalo” no candomblé: seus corpos eram pensados e agidos como instrumentos. Assim, não se poderia, da mesma forma, classificar esta prática teatral como “perfomances”. No entanto, de alguma maneira, havia o “doubling”. Como diz Marvin Carlson, no teatro convencional o “outro” é o personagem na ação dramática, e o trabalho do ator seria incorporá-lo na sua personificação, no seu trabalho de “construir” o personagem.25 No caso das performances em geral, o “outro” vem com a consciência de que há algo elusivo que a performance não é, mas tenta, em vão, incorporar. De certa maneira, esta luta a que se refere o autor é o constante trabalho das artes em geral, e é o que vale a pena, e o que é inesgotável. No entanto, ainda que estas ações sejam baseadas na experiência dos próprios sujeitos performáticos, suas experiências e seus corpos, para que aconteça a “performance” é necessário que o ator tenha consciência de todo o processo e da maneira como ele está dispondo do seu corpo e mente. Ele precisa, em outras palavras, ter controle sobre sua

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Carlson, M. (1996) Performance. A Critical Introduction. London &New York, Routledge.

45 ação. Neste caso, o “doubling” acontece e é fundamental para que a performance se realize, atinja seu objetivo. No trabalho observado, este “doubling”, se é que existia, acontecia “fora” dos corpos e mentes dos atores: eles eram dirigidos por outra pessoa que não eles próprios. Tanto é que, depois de cada sessão, acontecia uma espécie de “rememoração” das ações, quase como se elas tivessem acontecido à revelia deles próprios e que, portanto, precisavam ser re-ordenadas pelo consenso, ou, dissenso, mas que se chegasse a um termo, um ponto final colocado pela direção, sempre acomodando as situações. 26 Este seria o momento em que o “outro” elusivo (a cultura?) deveria ser in-corporado pela conscientização das ações. Mas, por incrível que possa parecer, este momento era sistematicamente eclipsado, ainda que não de forma explícita. Numa atitude mais participante, eram os momentos em que eu “atuava” como antropóloga, tentando fazer a “ponte” com as questões sociológicas, antropológicas. Mas, nunca pude falar, realmente, o que pensava, temendo que isso impossibilitasse a continuidade do trabalho, que me fascinava.27 Eu tinha consciência da qualidade “retórica” do trabalho deles, e continuei meu esforço na realização desta possível “leitura”, mas, como acontece com praticamente todos os trabalhos etnográficos, o que eu vi, senti, li, escrevi sobre eles, pouco resultou, durante o processo de elaboração. Acabei produzindo alguns textos sobre o trabalho, mas, hoje, revendo a trajetória, percebo que posso ter soado como um “intelectual orgânico” também... Na realidade, neste caso específico, comparado a todos os outros trabalhos de campo que fiz, além desta qualidade retórica, ou seja, do fato de que este trabalho seguia de perto uma linha de reflexão e atuação do mundo das artes cênicas e da dança, havia um complicador: eu não estava dialogando com atores, simplesmente, mas com uma “intelectualidade” nativa ... havia uma posição firme, dogmática, bastante reativa a qualquer opinião em contrário, sentida através de posicionamentos e silêncios. No entanto, o grupo sempre se comportou de maneira muito simpática à minha presença, valorizando mesmo meus comentários. Mas, no fundo, eu sabia que minha presença era um apêndice, e, como tal, desnecessária. 28 Em relação à qualidade “reflexiva” do trabalho, há que observar alguns pontos. Se pensarmos o trabalho na linha proposta por Eugênio Barba, ou seja, não a partir das situações de “cultural enactment”, mas supondo a existência de um nível básico de organização corporal dos performers, alguma coisa de pré-expressivo, então talvez se pudesse interpretar de maneira mais harmônica o trabalho em questão, na medida em que seria este nível de organização corporal que permitiria ao espectador reconhecer e responder ao estímulo das tensões/oposições/energia, em termos de “respostas fisiológicas”, sem representar nada. 29

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Este processo ressoava muito a psicanálise... Infelizmente foi por este motivo, também, que me separei do grupo na montagem seguinte: senti que havia perdido definitivamente meu lugar de “fala”, por várias razões das quais ainda não tenho muita clareza. 28 No momento em que eu passei , a convite deles, a ser um membro mais “de dentro” do grupo, a fazer parte da Companhia, começaram meus problemas de campo. Como eles mesmos brincavam, era o único grupo de teatro que possuía uma “antropóloga de plantão”... No entanto, de alguma maneira, a partir desta montagem do Woyzeck, talvez não se esperasse que eu falasse de forma mais crítica, de “fora”, e sim, que agisse mais como parte do grupo, que incorporasse o discurso “nativo”. Mas, desafortunadamente, fiquei no meio do caminho: não era atriz o suficiente, nem mais tão antropóloga, por ter perdido meu “lugar” de fala. Foi assim minha saída. Uma decisão dolorosa. 29 Estas idéias estão no livro de Marvin Carlson, The Anthropology of Performance, páginas 18,19. 27

46 Talvez possa mesmo existir tal repertório, nos termos do que Barba propõe, ou seja: o estudo transcultural desta “fisiologia”, em busca dos fundamentos desta préexpressividade. Não estou negando esta possibilidade, especialmente nos estudos transculturais. Mas quando se trata das performances dentro de uma só cultura, especialmente da nossa, há que considerar a questão da possibilidade da produção dos metacomentários, da reflexividade, e, neste sentido, coloco em dúvida tal préexpressividade porque a comparatividade é vertical: para dentro da própria cultura. Neste sentido, qual ou quais seriam os parâmetros senão a variedade de possibilidades estéticas/ideológicas numa arena discursiva, a multivocalidade produzida pelos diferentes lugares de enunciação? Se o grupo produz um trabalho em coerência com o que se tem produzido de reflexão sobre o corpo pelos intelectuais “nativos” na contemporaneidade, qual a possibilidade de reflexividade? Se não se questiona a hegemonia interpretativa, ou, o discurso “nativo”, qual a eficácia artística? Se como diz Clifford Geert, toda arte é “local”, é um “sistema cultural”, então talvez a única possibilidade crítica, ou de vir a constituir-se uma crítica teatral seria a mesma que poderia constituir uma “crítica cultural”, ou seja, cotejar os vários “discursos” na arena pública. E, neste sentido, parece muito mais produtivo pensar esta atividade como um recurso identitário, num cenário artístico em que vários grupos disputam as oportunidades de concorrer a verbas de projetos, em geral, escassas. O teatro experimental requer, em geral, recursos bem mais reduzidos. Mas, claro, a questão artística não se reduz a isso. Portanto, se formos pensar numa “etnografia da comunicação” como propôs Dell Hymes, haveria a necessidade de levar em conta vários aspectos além da questão artística em si mesma.30 Há um contexto da comunicação que precisa ser bem mais discutido, levando em consideração, por exemplo, a dinâmica das produções teatrais locais, os festivais, os Editais Públicos de produção cultural e aí, sim, todos os recursos produtivos como pano de fundo para o discurso estético. Mas isso excederia os limites deste trabalho. Portanto, gostaria de fechar este trabalho, ainda que provisoriamente, falando sobre a maneira como pude apreender o processo de criação. 1. As anotações etnográficas. Durante dois meses acompanhei os ensaios fazendo anotações num caderno de “campo”: ali estão registradas, numa primeira parte, as descrições dos movimentos, dos exercícios. Num segundo momento, recortes das conversas que aconteciam nas “rodadas” após o trabalho corporal. 31 Nas sessões de julho e agosto minhas anotações apresentaram alguns aspectos interessantes: 1. em primeiro lugar, as referências de leitura que o próprio grupo trouxe, ou seja, as considerações históricas e da crítica de arte em relação aos pintores utilizados para desencadear os exercícios a partir das imagens sugeridas: Gustav Klimt, Edward Hopper, Jaroslav Pelikan, Balthus, Van Gogh, além de menções a Gombrich, sobre a história da arte. Em termos da crítica teatral e cultural, as referências foram muito sugestivas: textos de Georges Bataille sobre o erotismo, sobre a nudez, sobre o corpo trágico; um livro sobre Artaud (Teatro e Ritual, de Cassiano Sydow Quilici); sobre o corpo (O corpo Impossível, de Eliane Robert Moraes); outro sobre a oralidade teatral ( A

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Falo especificamente dos seguintes aspectos: As séries fotográficas só começaram a partir de agosto, depois que conversamos sobre isso, em grupo. Depois que comecei a usar estes recursos, as anotações diminuíram.

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47 Performance da Oralidade Teatral, de Marlene Fortuna); e O corpo como objeto de arte, de Henri-Pierre Jeudy; O Corpo, de Christine Greiner ( esta autora, inclusive, é bastante prestigiada pelo grupo todo). Neste sentido, todas as discussões dos dois primeiros meses foram muito intensas e criativas: 1.1. em primeiro lugar, como já foi mencionado, pela articulação entre as imagens das pinturas e as imagens re-produzidas pelos corpos em exercício, obviamente mediadas pelas concepções extraídas destas leituras mencionadas acima; nestes primeiros ensaios as discussões giraram em torno dos movimentos, da qualidade deles e, o aparecimento de algumas noções que considero significativas: a idéia de “lugar” ( que os atores procuravam criar a partir de memórias e da exacerbação dos movimentos corporais como buscando uma fusão criativa. Outra palavra muito usada foi a que indica a aceleração do corpo que, como resultado, produziria uma “totalização” de fragmentos: a frase “turbinar a idéia” sugere isso. 1.2. em seguida, aparece uma insistência da direção para que os atores “não dramatizassem” as ações; esta indicação sugeria sempre, para minha leitura, um esvaziamento de pensamentos, dos lugares-comuns... ao mesmo tempo em que enfatizava que eles deviam “dançar “ as idéias. Novamente a insistência no movimento. 1.3. uma outra questão bastante sugestiva destas anotações iniciais, foi a maneira como a diretora definiu tanto a cama como o contrabaixo, igualando-os em cena: “tudo deixa de ser objeto para ser ambiente”. Da mesma maneira, o corpo foi metaforizado como um copo, e os pensamentos como a água, ou seja, é preciso acreditar que o corpo já contém, em si mesmo, a informação: o copo e a água são uma coisa só. 1.4. uma outra questão levantada por um dos atores foi em relação a um possível “doubling”: falando sobre o trabalho com o corpo, e como seria possível expressar, criar situações, ele falou:” a gente trabalha com duas consciências: uma que cria, que experimenta, e outra que mapeia, para que a gente possa depois, voltar a certos “lugares”...” ao que outra atriz complementou: “ como não temos uma configuração de cenas ainda, não devemos tentar “resolver” as cenas...” 1.5. uma outra questão foi sobre o padrão de organização das cenas: segundo a diretora, era importante tentar reconhecer este padrão. Perguntados sobre o lugar da cama e do contrabaixo, a resposta foi que o próprio experimento ia encontrando estes “lugares”, porque o próprio trabalho ia se expandindo. Acredito que este “formato expansivo”, veio se transformando num “lugar de observação” para mim. Na realidade, acho que fui adquirindo uma maneira de observa as imagens, pelo todo. Mas, de qualquer maneira, este todo a que me refiro, era alguma coisa que eu mesma ia “costurando” a partir das minhas inferências conceptuais. Para o grupo, os exercícios criativos partiam da idéia de que as imagens estão no corpo, assim como os movimentos, e que o próprio corpo vai dando conta disso, sem precisar trabalhar isso...” ( trabalhar no sentido de “expressar um pensamento”: a informação já é porque está no corpo, ainda que mesmo de forma inconsciente.) Desta maneira, era dito, também, que os atores deviam “abrir espaço para as imagens”, ou, “deixar-se atravessar por elas”, “trabalhá-las dentro do corpo antes de por para fora”... isso equivalia a dizer que “eram forçados a ir para o físico”( frase de um dos atores).

48 1.6. dentre as frases do contrabaixista, nesta fase, uma foi muito instigante na medida em que, como músico, está acostumado a trabalhar no tempo. Diante das tarefas que a diretora solicitava, especialmente a de trabalhar o movimento, ele se dizia perdido, e que não tinha noção do tamanho do movimento da cena como um todo, e que se sentia solto, sem saber para onde ir, ou, colocar sua presença com o instrumento. Na realidade, se pensarmos que o movimento e a música estão, de forma indubitável, no tempo, ele deveria sentir-se à vontade, pelo menos musicalmente. No entanto, sua inquietação dizia respeito ao espaço. Neste sentido, como já foi comentado, imagino que esta dificuldade se dava, fundamentalmente, pela dificuldade em estabelecer relações (tempo e espaço) com alguma coisa que estava fora da sua compreensão. 1.7. os movimentos, as duplas e tríades de atores, o músico, todos envolvidos nos exercícios que procuravam explorar “lugares” interiores, guiados pela memória de outros “lugares” já experimentados, bem como sua junção com o espaço de agora, o corpo de agora, com ênfase nos “nós” que cada um haveria de desfazer, em gestos e pensamentos, no próprio corpo e nas distâncias entre um e outro, uns e outros. Os “nós” do corpo. E pela minha observação, estes nós tinham mesmo o significado do nó concreto, do embaraçado, ainda que possamos pensar no “nós” pronome pessoal, e aí seria uma metáfora bem adequada: eles não pensavam objetivamente no “nós”, ou, nos outros que nos habitam sob a forma da cultura. Era um percurso muito individual, muito ensimesmado. 1.8. em certos momentos a diretora pedia aos atores que “deixassem escapar” o olhar para incorporar-nos, nós que estávamos observando. Mas foram bem poucas estas vezes. E, mesmo assim, nas rodadas após os exercícios, este não foi nunca o tema da conversa, para que pudéssemos discutir a questão do olhar do “outro”, dos significados que esta situação poderia acarretar. Em uma destas rodadas cheguei a sugerir a questão da alteridade, do desejo do outro, como temas importantes para pensar a questão dos significados que eles procuravam produzir. Estas idéias foram incorporadas, mas acho que mais pela forma estética do que por uma questão do conhecimento. 1.9. outra questão que apareceu nesta primeira fase, relacionada com as leituras e estas com a natureza da encenação, foi a rodada após os exercícios com a nudez, tanto dos atores quanto das atrizes: a questão da nudez foi ligada à da intimidade, o que sugere uma percepção cultural, e não corpórea como seria de se esperar pela tendência discursiva do grupo. Após os exercícios, o músico perguntou: “a idéia de quarto remete à sexualidade?” Um dos atores responde: “por causa da nudez?” O músico responde: “ é que os homens se tocavam mais que as mulheres. Mas talvez seja porque eu olhei menos as mulheres. Nos homens senti uma coisa muito difícil”. Ao que outro ator respondeu: “Quando começou, minha idéia era trabalhar com a ambigüidade da violência, da sexualidade”. Outro ator comenta: “ A gente pensou em quanto a intimidade está ligada à sexualidade?” Uma atriz comenta: “É uma relação com o próprio corpo, acho”. Outro ator complementa: “ Mas isso que fulano comenta ( o músico) é uma questão cultural mesmo”... Finalmente a diretora resume a questão, sob seu ponto de vista: “ Cada vez mais sinto a necessidade de ver o corpo não como um suporte. Se ele não é o suporte, estou querendo pensar que ele é a “coisa” que me move. E estamos em busca do corpo contemporâneo, o corpo como espaço de cruzamento. É

49 aí que podemos pensar o nu. E, nesta condição, onde estaria a intimidade? Não há um lugar fixo, e é aí que podemos pensar o nu. Este viés não é o da sexualidade, e sim, o do erotismo.” Este foi um dos momentos em que interferi, falando sobre o erotismo como uma mediação, no sentido de que através desta experiência outros conteúdos estariam passando. Falo sobre a eficácia simbólica, conto a história do Quesalid, com a intenção de mostrar, sugerir, como, na realidade, assim como o xamanismo, o erotismo é absolutamente cultural. O xamã é “erótico”, neste sentido, porque consegue exacerbar os sentidos, os significados. Mas esta discussão parou ali. 1.10. a última observação instigante desta fase veio através de um dos exercícios repetidos por todos: sem tentar produzir qualquer imagem, os atores e atrizes, em pares, deveriam caminhar, um tocando uma parte do corpo do outro, sem perder esta “ligadura”. Isso fazia com que a cada movimento de um , o outro o seguia, executando o mesmo movimento. Um duplo, uma sombra, uma cópia. Era um deslocamento no tempo e no espaço, sem significados. Desta primeira etapa, o exercício passou para os “encaixes” dos corpos, indo, num crescendo em termos de velocidade e, força. Agarros, uma insinuação de luta, de posse, de disputa, que havia começado a partir de uma imagem de Jarolav, “A vida de São Paulo Eremita”, em que o apóstolo aparece na porta de uma caverna, recebendo alguém, e abraçando-o. Claro, a sugestão é ainda a questão da in-corporação do “outro”, da “visita”, da relação. Mas isso não foi discutido. A diretora dizia: “... mais velocidade, menos desenho solto, mais decisão, não dramatizem, pequenos movimentos, percebam os lugares onde possam colocar pausas...fiquem na mecânica... não tentem mostrar nada”. No entanto, dois dos “exercícios” que mais marcaram toda a encenação, nos quais muito do espetáculo ficou ancorado, foram as duas séries: do grou e da mulher-burka, os quais, revelam nitidamente, idéias muito claras, ou seja, da mulher árabe, submissa, descobrindo sua própria subjetividade, e a relação dela com o grou, pássaro mitológico chinês, ligado à morte, à dimensão do outro mundo. Neste sentido, poder-se-ia afirmar que, ao final, a encenação dá um giro sobre si mesma, permitindo-se trabalhar com imagens bem “culturais”. Mas o que parece importante notar nesta primeira fase é a crescente liberdade que se vai dando ao aparecimento das imagens, substanciadas pelos corpos dos atores, e, à crescente presença da cama, que vai aparecer logo no final das primeiras séries de exercícios, no final de agosto. Comecei a tomar consciência da presença da cama em um dos ensaios em que a diretora sugeriu que o músico fosse até a cama, e começasse a explorá-la, enquanto um dos atores, trocando de lugar, fosse até o contrabaixo e fizesse o mesmo. Desta relação de “troca de lugares” ( físicos e simbólicos) nasceu a série do pássaro grou, uma das mais significativas do trabalho todo, uma das mais comunicativas. Além disso, foi a presença de um cinegrafista convidado para fazer uma filmagem inicial, que funcionou como um dispositivo de disparo para minha imaginação: observando uma das cenas em que a cama foi movimentada, ficando com a cabeceira diante de nós que observávamos, o cinegrafista comentou que ela havia parecido uma banheira, da qual apareciam pernas e braços, partes dos corpos “emergindo”... ele comentou nesta ocasião, também, aspectos da iluminação e isso tudo me remeteu, de chofre, ao ensaio de Bourdieu sobre a casa

50 kabyla.32 Depois disso, tudo começou a mudar para mim. Foi assim que nasceu o meu ponto de vista: passei a fazer desenhos durante as sessões de ensaios, todos centrados nos movimentos da cama, e, em cada uma deles, que atores ou atrizes estariam à sua volta, sobre ela, sob ela, ao seu redor. E mais, quem a movimentava e com que freqüência. Meu objetivo passou a delinear-se cada vez mais claramente, ou seja, tratava-se de capturar a dança da alteridade... algo ligado aos objetivos do grupo, mas com outra perspectiva, outra consciência. Se a diferença constitui a vida social, pensava eu, e, se existo a partir da existência do outro, era possível, como diz Márcio Silva no texto citado, perceber estes movimentos como relações sociológicas que seriam, ao mesmo tempo, da mesma natureza que algumas relações gramaticais. Neste sentido, parti da casa kabyla, imaginando o desenho que a cama fazia numa certa estrutura espacial, fiz vários esquemas em folhas de papel de embrulho, grandes, em metro, cortadas de acordo com minhas necessidades, e fui colorindo os movimentos dos atores em diversas cores, cada um deles com uma delas. Assim, este “balé” foi se desenhando na minha imaginação, explicitando uma instigante dialética do dentro e do fora, tanto em termos das in-corporações dos atores, quanto da relação entre os observados e o observador. E mais, fui percebendo a cama e seus movimentos como um “discurso”: o que se fala, como se fala, de onde se fala, com quem se fala, para quem se fala, etc... o palco como uma arena, e várias formações discursivas em confronto. Quando iniciei as séries fotográficas, distanciei-me um pouco desta consciência de observador, e fui “possuída” por um espírito muito impulsivo, muito brincalhão, muito solto, aparentemente descompromissado... deixei minha intuição funcionar e fui fotografando em disparada... No entanto, lá no fundo, quando transpunha as fotos para o computador, selecionando-as em sessões, em dias de ensaio, fui percebendo que em todas as séries, iam mudando as posições e os arranjos, mas no meu modo de ver, todas versavam sobre uma impossibilidade. Eram variações sobre o mesmo tema. Era, fundamentalmente, uma política cultural da alteridade. De que maneiras estavam sendo representadas as relações com o outro, consigo mesmo? Diante da complexidade desta questão, aproveito para colocá-la a partir de duas perspectivas: em uma delas,a que se refere às representações dos atores, da direção, do todo do trabalho, e outra, que se refere à minha posição. Na perspectiva deles, as relações com o outro e consigo mesmos, estava centrada na idéia do corpo enquanto corporeidade, mais biológico do que cultural. A minha, que buscava o sentido daquilo tudo, na concepção do corpo enquanto corporalidade, mais significante do que significado. De qualquer maneira, em ambos os casos, algo nos aproximava: este corpo, assim ou assado, estava habitado pela libido, pelo desejo, pelo erotismo. Em ambas as situações, percebo a intenção de apreender o corpo como linguagem, na esteira de Freud e Lacan. De alguma maneira, ambos os corpos se tornavam significado: na perspectiva deles, enquanto corpo físico. Na minha, enquanto corpo-metáfora. Desta maneira, através desta idéia de corpo-metáfora, fui desenvolvendo o sentido comunicativo da ação teatral, procurando delinear as ações sintáticas, gramaticais. A hipótese de que a cama seria este elemento de conexão, quase como os conectivos numa frase, foi permitindo, ao mesmo tempo, que eu imaginasse todo o processo como o desenvolvimento de uma “cebola”, crescendo em camadas internas ( todas as séries de exercícios executados por todos), de forma horizontal, ao mesmo tempo em que os fragmentos de cenas iam sendo “costurados” pelos movimentos dela. Mas ela não é, nunca foi, apenas um objeto com rodas. 32

Refiro-me ao ensaio “A casa ou o mundo ao contrário”, in Esboço de Uma Teoria da Prática, e também, “A casa kabyla revisitada: um exercício de antropologia linguística”, de Márcio Silva, que infelizmente, não consegui localizar a referência.

51 Uma cama é uma cama é uma cama. Enfim, ela seria, neste trabalho, uma “root metaphor”, permitindo que se visualizasse o invisível. 33Mas que invisível seria este? Finalizo este trabalho com uma parte de um dos textos que escrevi para o grupo, que é uma tentativa de responder a esta questão e, ao mesmo tempo, de me colocar nesta fronteira entre a Antropologia e o Teatro. “O quarto é uma experiência artística que procura construir um “lugar”, produzir significados. E sua ação criativa revela um paradoxo: ao invés de um lugar de intimidade, de encontro, de descanso e tantas outras possibilidades... este “quarto” parece estar colocado como uma atopia, um não-lugar, um lugar de isolamento e/ou solidão que, permeado por relações que tematizam o erotismo, a violência e a incomunicabilidade, não se resolvem. Mas isolamento não é a mesma coisa que solidão. Enquanto o isolamento se define em relação ao “outro”, ao não estar junto, à exclusão, à negação da presença, a solidão é uma experiência de encontro que já não se mede pelo(s) outro(s), e que não se define pela negatividade porque é uma forma de construir um espaço próprio, é uma ação afirmativa, é um estar consigo mesmo. Neste sentido, “O Quarto” é uma experiência de atopia, um não-lugar, no qual e pelo qual o grupo realiza um processo de construção de significados, colocando em relação o isolamento e a solidão por meio de temas que envolvem as relações humanas. Assim, é possível dizer que o fundamento de “O Quarto” é a relação entre isolamento e solidão, mediados pelo movimento. Um pêndulo entre a recusa e o desejo. E como o corpo participa desta experiência? Basicamente, experimentando fragmentações como corporalidade, corporeidade, texto/fala. Portanto, “O Quarto” se constitui num exercício desta possibilidade: de transformar o isolamento ( a recusa do “outro”, logo, a recusa de si mesmo) em solidão ( a busca do “outro” em si mesmo, a incorporação do desejo do “outro”), pelo movimento, e isso fica muito claro no trabalho, nos deslocamentos que a cama faz, pela ação dos atores. Esta movimentação é, claramente, uma tentativa de colocar as diferenças “em relação”, ou “em jogo”. Mas nada disso significa “abertura” para o “outro”, ou, uma aceitação sem ressalvas... Cria-se, neste sentido, um ambiente de experiências “atópicas”, ou, com significados deslizantes, ambíguos, paradoxais. O trabalho do Grupo Obragem é uma experiência que tematiza este esforço de transformação do “vazio” em “lugar”: a experiência do(s) encontro(s) e a produção de significado(s). Se esta experiência consegue por fim à atopia fica em aberto: é intenção do grupo realizar tal tarefa?Cabe à arte resolver os impasses das relações humanas? Na realidade, “O Quarto” cria um paradoxo, e aí reside sua qualidade artística: este “lugar” da intimidade, do encontro, da solidão, parece mostrar-se muito mais como um lugar de exclusões e desencontros.”

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Termo cunhado por Victor Turner, em Dramas, Fields and Metaphors. Ithaca/London, Cornell University, 1974:16.

52 Bibliografia: Baudelaire, C. Correspondances, in Poesies Choisies. Librairie Hachette, Paris, 1956. Baudrillard, Jean O Sistema dos Objetos, Ed. Perspectiva, 1973: 99/100. Boon, James A. “Lévi-Strauss, literarily”, in Symbolic Anthropology. A Reader in the Study of Symbols and Meanings. New York, Columbia University Press, 1977:126. Bourdieu, P. (2004) Coisas Ditas. São Paulo, Brasiliense, pg 81. Caillois, R. ( 2001) Man, Play and Games. Illinois: University of Illinois Press:66. Carlson, M. (1996) Performance. A Critical Introduction. London &New York, Routledge. Garcia Alves Júnior, Douglas ( 2005) Dialética da vertigem: Adorno e a filosofia moral. São Paulo, Editora Escuta. Lévi-Strauss, C. ( 1976) O Pensamento Selvagem. São Paulo, Co. Editora Nacional: 45 Lévi-Strauss,C.( 1964) Mythologiques. Le Cru et le Cuit. Paris, Plon: 18. Néret, Gilles (2000) Klimt. Germany, Ed. Taschen: 08. Renner, Rolf G. ( 2003) Hopper. Germany, Ed. Taschen., Revista O Correio da Unesco, Junho de 1986. “O alaúde e o grou na tradição chinesa”. Simonis, I. (1979) Introdução ao estruturalismo. Lévi-Strauss ou a paixão do incesto. Lisboa, Moraes Editores: 205. Turner, V. Dramas, Fields and Metaphors. Ithaca/London, Cornell University, 1974:16. Turner,Victor (1985) Introduction: Between Anthropology and Theater. Philadelphia, University of Pensilvania Press. Benjamin, W. Magia e Técnica, Arte e Política –Obras Escolhidas, Brasiliense, 1985:16).

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