O que a lusofonia não é

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4 a 17 de fevereiro de 2015 * jornaldeletras.sapo.pt

debate-papo * 31

times & tempos

onésimo teotónio Almeida

O que a lusofonia não é

N

Neste aspecto, parte da culpa recai sobre académicos o mundo de língua inglesa, o termo que politizam excessivamente realidades por vezes bem Lusophone tem vindo a vulgarizarsimples e não raro colaboram na confusão teórica quando se sem grandes problemas. Não o seu papel deveria ser o oposto. Por exemplo, a excelente significa isso que The New York Times revista Portuguese Literary & Cultural Studies publicou, ou Obama o usem, mas os pequenos recentemente, um número especial sobre o tema - Lusofonia círculos académicos, depois de uma and its futures, sinal evidente de que o termo está finalmente certa resistência e de as pessoas se a vingar. No interior, é claro, surgem algumas intervenções aborrecerem de usar a demasiado revelando os habituais deslizes teóricos, uma delas do longa designação de Portuguese and próprio director da revista, João César de Castro Rocha. Brazilian and Afro-Portuguese language (ou outros termos Por três vezes pelo menos refere-se ele a uma suposta equivalentes para este último grupo, que os americanos em Lusophone worldview, o que quer que isso seja. Num caso fala particular acham cumbersome, eles que preferem siglas e, das “forças e dilemas da visão do mundo lusófono” pág. 3); nas palavras, os monossílabos de três letras o máximo), não noutro menciona a “faca de dois gumes (doublebind) que essa têm tido problema em aderir à simplificação que Lusophone visão constitui” (p. 5) e, num terceiro, volta a referir esse constitui. “doublebind que leva a um paroxismo “p. 7). Há décadas o debate era sobre se se devia dizer Luso em Ora estamos aqui na presença de um problema inventado vez de Portuguese, pois os americanos não identificavam sem qualquer necessidade porque não existe nenhuma visão o termo connosco. No nosso caso da Brown, em 1975 lusófona do mundo (há muita acabámos por usar Portuguese gente que tem uma visão para and Brazilian Studies para o mundo lusófono, todavia isso designar o então criado Centro é outro assunto), pela simples (depois Departmento, a partir razão de haver tantas visões do de 1991). E no entanto já existia mundo no universo lusófono (e continua a publicar-se) na quantos os habitantes que ele Universidade de Wisconsin contém. A visão do mundo (ou Madison, a Luso-Brazilian mundividência, se preferirem, Review e, em Harvard, Francis de Dilma Russeff difere da de Rogers organizara na década Pinto da Costa; ambas diferem de 50 os famosos Lusoda de Cristiano Ronaldo, e as Brazilian Colloquia. três não terão muito em comum Com o acrescentamento de com a de D. Manuel Clemente. “África de Língua Portuguesa” Os contrastes podem tornar-se a Portugal e Brasil, passou mais gritantes: um taxista no a tornar-se urgente uma Rio de Janeiro, um empregado outra solução, e nenhuma de hotel em Bragança, uma melhor que Lusophone surgiu advogada em Moçambique, um até agora. Por isso passou a polícia na Guiné, uma estudante ocorrer com mais frequência, em Dili e o multiplicar de embora a princípio com possibilidades ficará ao gosto do renitências, todavia apenas leitor. cingida aos próprios meios Poderia aduzir aqui mais lusófonos. Os americanos exemplos do mesmo teor usam Francophone e colhidos em debates sobre esta Anglophone sem rebuço. Um lusófono é um falante da língua questão, mas o apresentado é (Brian Rothschild, do Museu suficientemente elucidativo, dos Baleeiros em New Bedford, portuguesa; um lusófilo é alguém há tempos dizia-me que a que gosta do que é luso, ou português. sobretudo em virtude do lugar onde está impresso. primeira vez que ouviu falar Um lusófobo, por sua vez, é quem Resumindo: tomemos a em Lusophone pensou que se sugestão de William of Occam e tratava de um novo telefone detesta isso mesmo agarremos da sua navalha. Basta lançado por Steve Jobs no de complicarmos problemas mercado.) gratuitos e sejamos práticos. Não De facto, lusófono e empolemos. Quedemo-nos pelo significado das palavras e lusofonia são termos muito recentes ainda sem grande não criemos complicações onde elas não existem. Se me é carga semântica, como acontece a outros usados ao longo de permitido reproduzir aqui em fecho o que escrevi noutro séculos. Se utilizamos essas palavras como mera referência lado, recordo que um lusófono é um falante da língua a um coletivo, o de falantes da língua portuguesa, não portuguesa; um lusófilo é alguém que gosta do que é luso, descortino razão para que impliquem qualquer conotação ou português. Um lusófobo, por sua vez, é quem detesta negativa, muito menos que possam sugerir uma afiliação isso mesmo. No mundo dos países lusófonos há inúmeros automática a qualquer projeto colonialista (embora a forma substantivada, reconheço, seja mais suscetível de abusos). De lusófilos e não poucos lusófobos (sobretudo se nunca viveram fora do universo lusófono!). No resto do mundo há um qualquer modo, a possibilidade de usos indevidos não deve razoável grupo de lusófilos e uma boa maquia de lusófobos impedir nada de ser criado. que não são lusófonos; mas também fora dos oito países De facto importa desdramatizar o uso do termo (tenho lusófonos não faltam lusófonos e eu sou um deles. Por isso desenvolvido as minhas razões em vários escritos; um dos faz sentido referir a lusofonia como o espaço cultural dos mais acessíveis circula na Net: “Lusofonia - o que a língua falantes de português. Nele, além de lusófilos e lusófobos, há não é”), e não inventar monstros onde eles não existem. brasilianófilos e brasilianófobos. E por aí fora. Custa a crer Sabia-se há muito, mas desde Wittgenstein a fórmula ficou que uma certa lusofobia crie tanta lusofolia. J lapidarmente exarada: o sentido é o uso.



o homem do leme Manuel halpern

iFilme

C

hama-se Tangerine e é o primeiro filme rodado num Iphone a ser apresentado em Sundance, a Meca dos festivais de cinema independente. O seu realizador não é um estreante, Sean Baker já havia realizado meia dúzia de filmes e series de TV, mas um problema de orçamento levou-o a esta opção radical. Não se trata, portanto, de um experimentalismo premeditado, mas sim de simples falta de verba. O resultado, diz quem viu, é surpreendente. Ao contrário do que acontece com as diversas escolas de cinema amador de câmara ao ombro que pretende através da técnica tosca provocar no espectador uma falsa impressão de realismo, aqui a precariedade dos meios é subtilmente disfarçada. Não se nota que foi feito num telemóvel. Tangerine conta uma história de Hollywood, sem glamour, entre prostitutas e vagabundos, e foi considerada uma das mais agradáveis surpresas de Sundance. Tecnicamente o filme foi realizado através de três iphones e, claro está, uma APP. Chama-se Filmic Pro e custa a apenas 7,99 euros. Permite acima de tudo refinar o foco e estabilizar a imagem. Claro que tão importante ou mais do que a recolha das imagens é o seu tratamento em pós produção. Esperamos que isto não sirva de pretexto para que a Secretaria de Estado da Cultura reveja em baixa a política de apoio ao cinema. Mas é sintomático de como uma arte cara, apesar de tudo, se pode democratizar. Tal já era nítido com o advento do digital. Neste caso torna-se flagrante. O peso da película num orçamento, que outrora era muitíssimo, diluiuse nos outros custos de produção que, numa estrutura profissional, continuam a ser elevadíssimos: técnicos, atores, cenários, caracterizações. O essencial, claro está, continua a ser a qualidade e criatividade dos autores, tal como, de resto, acontece em qualquer outra forma artística. Contudo, esta obra exclusivamente filmada com telemóveis levanta algumas questões pertinentes sobre o futuro do cinema. O que pode acontecer com um excesso de oferta fruto de uma democratização massificada na recolha de imagens em movimento? No fundo, os filmes fazem o mesmo percurso da música e de outras artes. Perante o excesso de oferta (que não é negativo por si só) valoriza-se a triagem: cada vez mais é necessário saber escolher o que se vê. J

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