’O Que A Necessidade Applaudia’…: A Pintura Portuguesa no Tempo de Josefa de Óbidos, 1630-1684.

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«O QUE A NECESSIDADE APPLAUDIA»… A PINTUR A PORTUGUESA NO TEMPO DE JOSEFA DE ÓBIDOS, 1630-1684 VITOR SERRÃO à memória de Jorge Estrela (1944-2015)

A CRÍTICA AO «MINGOANTE DA PINTURA» POR FÉLIX DA COSTA MEESEN

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Kubler (introd. e notas), 1967, pp. 271-272. Sobre o tratadista, cf. Flor, 2010, e Gonçalves, 2013, pp. 206-222. 2 Carvalho, 1962, vol. II, p. 214.

Referindo-se às obras de Josefa de Ayala, de José do Avelar Rebelo, de Marcos da Cruz, de Feliciano de Almeida, e à generalidade dos pintores portugueses ativos na segunda metade do século XVII, o crítico de arte Félix da Costa Meesen (1639-1712) apontava-lhes uma série de limitações, vituperando a «falta de Perspectiva», o «amaçado das cores, e o afastamento das figuras», as «acções frivolas», as falhas no «relevo, e força» sem «diminuição das cores», e o mau gosto de «enfarinhar mtº» as superfícies, tornando as «sombras imperceptiveis». Face a tal panorama de modéstia com que avaliava o gosto tenebrista imperante, concluía o seguinte: «contudo, pª o mingoante da Pintura, era o q. a necessidade applaudia»1. Este juízo de Meesen no tratado Antiguidade da Arte da Pintura (1696), espécie de síntese ostracizante sobre o panorama pictural português dos anos de crise que se seguiram à Restauração e envolveram uma guerra sangrenta com Castela (1641-1668), tem de ser forçosamente contextualizado. Num ambiente sociopolítico em que o Reino de novo se abria à internacionalização e em que se privilegiava o gosto pelo classicismo ítalo-francês, as impressões deixadas pela imensidão de telas penumbristas produzidas pelas duas gerações precedentes e que enchiam igrejas e salões de palácio em Lisboa, em todo o Reino

e em muitas partes do Império, só podiam ser consideradas desajustadas face à nova situação política pedrina. Percebe-se o desencanto de quem tanto elogiara a bella maniera da geração quinhentista de Campelo, Venegas e Fernão Gomes, onde encontrava valores que não via em Marcos da Cruz ou em Bento Coelho (este, por sinal, omitido no tratado), pintores «com pouco estudo por falta de Academias, sem agradecimento dos Reys, com miséeia por pouco premio, e com pouco nome pella pouca afeição e limitado conhecimento»… A cultura visual de Félix da Costa Meesen, que além de teórico das artes era também escritor sebastianista e pintor, fortalecera-se pelo facto de ter estadeado em Roma, Madrid, Paris e Londres, cidades onde aperfeiçoara o seu estatuto de crítico — qual Giovanpietro Bellori português — e se tornara ótimo conhecedor das artes que então se praticavam. Apesar de ter visto gorado o seu propósito de fundar em Lisboa uma Academia das Artes (tomando como exemplo a de Paris), gozava de grande autoridade crítica, o que explica que, para si e para os do seu círculo, a pintura portuguesa do segundo terço de Seiscentos só pudesse mesmo ser considerada num tónus muito secundário. O novo monarca D. Pedro II fizera publicar em 1689 (por provável iniciativa do marquês de Fontes) um acórdão de nobilitação das artes2, sinal certo de «O QUE A NECESSIDA DE A PPL AUDI A»…

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que se tornara imperioso revitalizar a pintura e a escultura portuguesas depois de um longo interregno de decadência, já que, com a estabilidade reconquistada e o enriquecimento do Reino, passara o tempo de penúria e isolamento em que os artistas acima mencionados haviam produzido as suas obras. É por isso que as passagens do tratado mostram como, aos olhos dos connoisseurs do fim de Seiscentos, a pintura da geração proto-barroca passara a ser desvalorizada. Apesar dos méritos nas «cousas pelo natural» que Meesen reconheceu existirem em Josefa de Ayala, ou no «dom de Deos com que foy dotado» que se atestou em Diogo Pereira, ou ainda na «mera curiosidade» das telas de um José do Avelar Rebelo, bastava o facto de que «serem de Portugues» lhes «faz o mayor dano»… Essa impressão negativa prevaleceu na historiografia portuguesa até data muito recente, num panorama onde só foram exceção os «géneros» do Retrato3 e da Natureza-morta4, em boa verdade os únicos a ser destacados em termos de qualidades plásticas mais evidenciadas. A própria Josefa de Ayala foi alvo de alguma atenção (e do interesse dos mercados dos séculos XVIII e XIX), mais pelo seu estatuto de mulher-pintora do que pelos seus méritos, num quadro confuso e descontextualizado em que se chegavam a confundir autorias (as obras de seu pai Baltazar eram-lhe grosso modo atribuídas!). E extrapolavam-se, também, o «olhar etnográfico» e as virtudes artísticas da «molher donzela» que pintava «por mera curiosidade» numa espécie de «corte na aldeia» e num repentismo não erudito5... A autoridade de Charles Sterling sintetizou, aliás, esse olhar dominante sobre os seus cobres e telas, ao destacar, com a sua quota de injustiça, a charmante gaucherie provincielle de Josefa6… Que potencialidades plásticas existiram, afinal, neste apregoado tempo de «mingoante da Pintura»? 14

A ROTA DE SEVILHA NA AFIRMAÇÃO DO NATU RALISMO PROTO-BARROCO

No mesmo ano de 1630 em que Josefa de Ayala nascia em Sevilha, filha da andaluza D. Catarina de Ayala Cabrera Romero e do pintor obidense Baltazar Gomes Figueira (1604-1674), estava a trabalhar em Óbidos um pintor «de fama» chamado André Reinoso (act. 1610-1648). Os mesários da Misericórdia obidense mandaram-no vir de Lisboa para que fizesse «ao moderno e com espírito» os quadros da sua igreja. Estante na vila, pintou também duas telas para o Mosteiro de São Miguel das Gaeiras. Em todas estas obras criou um novo gosto luminoso, com base num desenho irrepreensível em composições «ao natural», segundo o que se fazia em Sevilha. Tal como os maneiristas iam aprender a Roma, os pintores da nova geração olhavam para a cidade do Guadalquivir como o centro privilegiado. Por lá passaram então Reinoso, Baltazar, Conrado, talvez Avelar e Pereira… As telas de Óbidos são pinturas excelentes, como se esperaria de um artista de quem o exigente Meesen destacou o estilo «mui naturalista» e as «cousas ademiraveis de eterna viveza», num grau elogiativo que recusaria a todos os pintores pós-Reinoso. De facto, as palavras têm concordância com as qualidades demonstradas pelas obras que chegaram aos nossos dias. Assim, é forçoso considerar André Reinoso, pintor de excelentes recursos, como o primeiro e mais forte intérprete da rutura com os cânones do Maneirismo e de abertura ao gosto naturalista proto-barroco7. Discípulo de Simão Rodrigues, foi todavia com os modelos sevilhanos e castelhanos do Siglo d’Oro que se impôs, adoçando os estilemas com ressonâncias naturalistas de um mundo que quase de certeza conheceu de visu. São muito conhecidas, e elogiadas pelo ótimo desenho, domínio do claro-escuro e detalhes de exotismo oriental, as telas da Vida e Milagres de São Francisco Xavier (c. 1619) na

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Santos (org.), 1942. Santos, 1957. 5 Cf. a crítica a essa visão redutora da historiografia portuguesa sobre Josefa de Óbidos, em Vicente, 2005, pp. 205-242. 6 Sterling, 1985, p. 45. 7 Serrão, 1992. 4

Fig. 1 André Reinoso, Cristo descido da Cruz, 1630. Painel de um dos altares do mosteiro franciscano de São Miguel das Gaeiras. Museu de Óbidos

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Serrão, 1993 (2.ª ed. rev., 2006). Serrera e Valdivieso, 1985; e Serrera, 1999. 10 Estrela, Gorjão e Serrão, 2005. 9

Sacristia da Igreja de São Roque, uma encomenda dos padres jesuítas, coeva da beatificação do Apóstolo das Índias e que contribuiu para preparar a sua canonização em 1622. Parte das vinte telas é de Reinoso e constitui o que de melhor se produziu na arte portuguesa do século XVII8. A inspiração do artista, como já o atento Reinaldo dos Santos observara, aponta para a arte de Juan de Roelas em Sevilha e de Juan Bautista Maino em Toledo e Madrid. Se não se conhece documentação precisa sobre a estada de Reinoso em Sevilha, o estilo pictural (que é bem apreciável numa centena de pinturas) justifica que fosse um dos muitos portugueses a buscar na cidade da Andaluzia inspiração alternativa aos esgotados modelos maneiristas9. As pinturas da Misericórdia de Óbidos e de São Miguel das Gaeiras não desmerecem face às citadas de São Roque, pela elegância da modelação, pelo naturalismo luminoso e pelas acentuadas influências desse mundo andaluz. No Cristo deposto da cruz de São Miguel das Gaeiras (fig. 1), esse pendor por um desenho «ao natural», com uma sábia descortinação dos volumes e relevos, e uma atmosfera claro-escurista de gosto sevilhano, atesta a perícia do pintor na acentuação de um dramático pathos barroco. Reinoso atinge um nível de criação pessoalizada que não desmerece face à generalidade da pintura espanhola do tempo, como se vê nas duas telas da capela do

Menino Jesus na Igreja de São Roque (Adorações dos pastores e dos magos), que acrescentam a estas valências de paleta luminosa e valores naturalistas um nítido acento zurbaranesco. A sua importância para o fortalecimento do naturalismo da geração seguinte foi decisiva, e tanto Baltazar Gomes Figueira como Martim Conrado, e outros, lhe seguiram os passos na «pista sevilhana». O nome mas elogiado da pintura portuguesa a passar por Sevilha (onde esteve pelo menos entre 1626 e 1633) foi Baltazar Gomes Figueira (1604-1674), a quem Meesen chamou «o sevilhano que nos paizes foi celebrado», dada a sua apetência pela natureza-morta, «género» em que foi exímio e atingiu contornos internacionais10. Natural de Óbidos e formado em Sevilha junto a Miguel Guelles e a Francisco de Herrera, o Velho (padrinho de sua filha Josefa), sabemos hoje que foi funcionário de corte, onde serviu como avaliador de arte, especialista em bodegones (naturezas-mortas) e paisagens (chamadas países). As telas de Baltazar (muitas delas, até anos recentes confundidas como sendo de Josefa) são do melhor que a arte portuguesa produziu nestes «géneros», merecendo mesmo, no caso do Bodegón com peixe e caranguejo do Museu do Louvre (assinado e datado de 1645), ser cotejada em sensibilidade plástica com nomes como os valencianos Tomás Hiepes e Miguel March e, em termos de bitola, com Juan van der Van «O QUE A NECESSIDA DE A PPL AUDI A»…

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Fig. 2 Repouso na Fuga para o Egito (pormenor de cat. 2)

der Hamen, Juan Fernández El Labrador ou mesmo Juan Sánchez Cotán. Depois da exposição monográfica que em 2005 foi dedicada ao artista, foram identificadas mais algumas naturezas-mortas da sua autoria. Com as investigações realizadas, caiu por terra a ideia romântica de que Baltazar seria uma espécie de estrangeirado que, após a Restauração de 1640, regressa à pátria e se auto exila na vila natal, onde pratica pintura de modo amadorístico e ensina a sua talentosa filha. A verdade é que se tratou de um erudito artista de corte, que serve como «funcionário do Estado de Bragança» com funções de vistoria e inventariação nos Paços Reais de Lisboa e com produção especializada. A partir desse reconhecimento, também a obra de Josefa de Óbidos (1630-1684), assim liberta de tantas atribuições sem nexo, pôde ser apreciada a outra luz. Essenciais na educação artística de Josefa foram, por exemplo, o Repouso na Fuga para o Egito da Ermida de Dagorda (fig. 2), de 1643, cuja composição segue um modelo conhecido de Barocci, mas onde os segundos planos se espraiam em subtis gradações vaporosas que traem a excelência do paisagista, as seis grandes telas que Baltazar pintou em 1644 para o retábulo do Colégio de Nossa Senhora da Graça em Coimbra, por encomenda dos monges agostinhos, onde o bom desenho de figuras e acessórios «ao natural», as paisagens e as glórias angelicais remetem para a arte de Juan de Roelas e de 16

outros mestres sevilhanos do Siglo d’Oro. Na Anunciação e no Nascimento da Virgem desse conjunto observam-se pormenores desenhados com um lúcido intimismo que, sem a menor dúvida, inspirou a arte de Josefa, por sinal internada nesses mesmos anos no Convento de Sant’Ana, em Coimbra, e a seguir os ensinamentos paternos. Obras importantes de Baltazar Gomes Figueira ao regressar à sua patrícia Óbidos foram o zurbaranesco Calvário (assinado e datado 1636) da Misericórdia de Peniche e as telas do teto da capela-mor da Igreja da Ajuda, nessa vila. Mas, antes dessas, ele já pintara, c. 1635, o retábulo da Capela de São Brás no Bombarral, constituído por oito pinturas sobre madeira, recém-identificado como da sua lavra. Apesar de sempre erradamente considerado uma produção anónima de fins do século XVI, trata-se, na realidade, de trabalho precoce de Baltazar, marcado por influxos do naturalismo sevilhano em que se formou, designadamente os modelos de Pacheco e Juan de Castillo. As tábuas maiores representam martírios do santo e mostram uma versatilidade de fatura (nos soldados presentes na Degolação de São Brás, por exemplo) que trai o lastro sevilhano no desenho e no claro-escuro luminoso. Na cimalha do retábulo, um Repouso na Fuga para o Egito, tem delicadezas de pincel na modelação das figuras e na envolvência exótica, respira o intimismo da pintura

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Serrão, 2009, pp. 315-318. Rodrigues, 2000; Idem, 2013. 13 Este pequeno painel (41 × 69 cm) mereceu ser analisado no recente Colóquio Internacional Teatro de Autores Portugueses do século XVII, organizado por José Camões (Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), com atas que se aguardam. 12

proto-barroca andaluza e anuncia, com inesperada nitidez, a arte de Josefa de Óbidos. O fascínio que a cidade de Sevilha provocou nos artistas portugueses do primeiro terço do século XVII foi, como se conclui, significativo. Entre muitos outros nomes obscuros que por lá passaram, sabemos de um jovem do Funchal, chamado Domingos Nunes Teixeira, pintor ainda sem obra identificada, que foi mandado em 1605 para o atelier sevilhano do grande mestre Juan de Roelas a fim de aprender a sua arte11. E por Sevilha passa também Martim Conrado, um misterioso artista ativo em Lisboa (c. 1637-1654) e com vasta obra para a Ilha da Madeira, que realizou, dentro de um naturalismo aos modos de Francisco Pacheco e Juan del Castillo, uma série de bons retratos domésticos, caso da Imaculada Conceição com doadores da igreja matriz de Caniço (1646)12. Uma das telas mais conhecidas é o Martírio das onze mil virgens do Colégio dos Jesuítas do Funchal, onde seguiu com largueza um modelo maneirista de Pieter Candid. Fez telas devocionais com desenlace vaporoso das cenas sacras, pesem as hesitações de desenho, suficientes embora para conquistar o gosto das clientelas da Ilha da Madeira. Num documento de contas da Sé de Lisboa, em 1647, vemos Conrado a pintar painéis para uma das capelas do claustro, aí aparecendo associado a José do Avelar Rebelo, o pintor régio. Também se lhe conhece atividade para a Índia, pois é certamente sua a Imaculada Conceição da sacristia do Bom Jesus de Goa, uma encomenda dos jesuítas, de novo com ressonâncias da arte de Pacheco, Legot e outros mestres andaluzes. AVELAR E A AFIRMAÇÃO DA PINTURA NACIONALISTA

Quando admiramos a Conquista de Lisboa aos mouros em 1147 que decora, com uma Coroação da Virgem na cimalha, um altar da Igreja de São Luís de Tolosa em

Pias (Ferreira do Zêzere), deparamo-nos com exaltante testemunho de um «género» pictórico aclamado pelos mercados afetos à dinastia de Bragança nos anos da Restauração: «a arte de intuitos parenéticos e apologia anticastelhana». O capitão Manuel Ferreira, encomendante do quadro, era ao que se crê um dos envolvidos na conspiração do 1.º de Dezembro de 1640, e deu-o a fazer ao mais consequente representante dessa temática: é obra de José do Avelar Rebelo (c. 1600-1657), pintor régio de D. João IV, que compôs o tema histórico com ousadia e largueza compositiva e um desenho «realista» onde se integram grupos de figuras e massas de combatentes envoltas por um denso sfumato de mistério e se destacam cavaleiros com não escondidos referenciais velazquenhos (a partir da Rendição de Breda, c. 1634). Pintura excelente, a Conquista de Lisboa conjuga a encomenda religiosa com a deriva político-panfletária própria de uma intervenção imagética afeta ao novo regime. Sendo verdadeiro que a esmagadora maioria das pinturas seiscentistas que nos chegaram é de temário sacro (excluindo-se apenas, além do retratismo, algumas naturezas-mortas, marinhas, bambochatas, «paízes» e trechos de quotidiano, em peças de Diogo Pereira, Filipe Lobo, Baltazar ou Josefa de Ayala), é forçoso destacar a valência excecional do quadro de Pias. E é à luz do seu repertório formal que poderemos admirar outra peça de idêntico espírito, a pequena tábua do Museu da Cidade que representa uma cena teatral (fig. 3) com figuras em atmosfera de claro-escuro bem resolvido, fina execução penumbrista, que atestam as qualidades plásticas atingidas nestes anos pela nossa pintura «de género»13. Trata-se de quadrinho geralmente desapreciado pelos estudiosos, como se o evidenciado interesse iconográfico superasse os méritos artísticos… Datável de meados do século, sustenta proposta autoral, com base estilística, que o dá como atribuível ao mesmo Avelar. «O QUE A NECESSIDA DE A PPL AUDI A»…

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Fig. 3 José do Avelar Rebelo (?), Representação teatral em salão palaciano, c. 1650. Lisboa, Museu da Cidade Fig. 4 José do Avelar Rebelo, O Menino entre os Doutores, c. 1650. Lisboa, Igreja de São Roque – Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

Ao contrário do que se tem dito, esse painel não representa um Pátio de comédias, mas um espetáculo teatral noturno em salão da aristocracia (sendo plausível sustentar que se trata de um salão do Paço da Ribeira), onde se vislumbram, junto ao palco, três ou quatro fiadas de assistentes sentados, incluindo damas de corte (algo que num pátio de comédias não era admissível) à frente de uma série de personagens de pé, entre eles cavaleiros e cortesãos e, ao fundo, um coro masculino. Na parede, veem-se pendurados archotes de iluminação que criam efeitos penumbristas a envolver os grupos de figuras assistentes e os atores mascarados no palco (cena da commedia dell’arte?), tratados em touches personalizadas de pincel seguro. A História da Arte dispõe, assim, de elementos novos para a reavaliação histórico-crítica desta importantíssima pintura datável dos «anos de ferro» da Restauração. Pintor régio e amigo pessoal de D. João IV, Avelar foi elogiado por Meesen pelo «grande talento, discrição, e genio», no quadro dessa corrente barroca tenebrista que imperava em tempos de guerras. É crível, face às influências recebidas e aos assinalados ecos velazquenhos, que haja recebido formação em Madrid (sabemos de outros pintores que aí tiveram ensino, como Domingos da Cunha, o Cabrinha (1598-1644), que foi discípulo de Eugénio Caxès, ou Manuel Franco, que na capital espanhola aprendeu 18

óleo e fresco). De facto, as pesquisas naturalistas e tenebristas seguidas por Caxès, Maino e Vicente Carducho (que eram os mais prestigiados pintores da corte dos Habsburgos até à chegada de Velázquez) têm ressonância em Avelar, entre paleta mais luminosa e desenho «ao natural», como se vê na tela Repouso na Fuga para o Egito (assinada e datada de 1643), oriunda dos acervos do Convento das Chagas de Vila Viçosa (coleção particular) e, em especial, n’O Menino entre os Doutores (c. 1635) da capela da Congregação de Amor e Graça da Igreja de São Roque, e no São Jerónimo num gabinete de trabalho da antiga livraria do Mosteiro dos Jerónimos, que expressam essa sua vertente realista, numa síntese entre o tenebrismo adoçado de Carducho e Caxès, o naturalismo italianizante de Florença (Sorri, Passignano) e a lição naturalista de Reinoso. Face a O Menino entre os Doutores (fig. 4) que pinta c. 1635 em São Roque, o exigente conde Atanasio Raczynski não escondeu o seu entusiasmo: «Un des meilleurs tableaux de cette église est selon moi celui de la première chapelle à gauche en entrant : Jésus parmi les docteurs, attribué par Cyrillo à José d’Avellar Rebello (...). Le tableau ci-dessus m’a donné une idée très favorable de son auteur. On dirait un Brusasorci, ou un Farinatti de Véronne!»14. Por seu turno, o São Jerónimo comprova as virtualidades de um bom «pintor de género»: a vanitas, os cartapácios, a ampulheta, a vela, o cruci-

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Raczynski, 1846, p. 289.

Fig. 5 Diogo Pereira, Troia abrasada, c. 1650. Coleção Miguel Cabral de Moncada

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Sobral, 1998, pp. 410-411.

fixo e outros objetos de evidenciado simbolismo, que revelam sensibilidade de «bodegonista», do mesmo modo que a luz filtrada pela vidraça modula os valores plásticos e mostra uma perícia de claro-escuro de quem conhecia as novidades do pós-caravagismo no estudo das touches de penumbra. O efeito geral é excelente, o naturalismo de definição dos valores poderoso, e só o leão parece banalizado (mas segue em fidelidade a gravura de Dürer). Ao contrário do processo de iluminação comum, com um tenebrismo mais duro, sem relevo (como fazia notar Meesen, e surge em telas do Cabrinha ou de Marcos da Cruz), neste quadro existe estudo de chiaroscuro, sopro de tecidos, gradações de cor, ciência «ao natural». Entre outras peças, um Martírio de São Bartolomeu da Igreja de São Pedro de Palmela, que lhe foi atribuído por Luís de Moura Sobral, mostra desenvoltura de desenho, sentido realista do nu e agitação de segundos planos, com abertura a ressonâncias riberescas15. Pintor de retratos também, Avelar pintou o Retrato de D. João IV (Paço de Vila Viçosa), datado de 1643, que é algo débil, reconheça-se, falhando como pretendida imagem de aparato do rei, e legitimador do novo regime, sendo mais interessante, por exemplo, o seu retrato d’O músico João Soares Rebelo, o Rebelinho, enquanto estudo psicológico do modelo vivo. Mas resta saber-se ainda se o conjunto de retratos cortesãos do Museu de Évora (o da Rai-

nha D. Luísa de Gusmão e os de seus filhos Infante D. Afonso, Infanta D. Catarina, Infante D. Afonso, Infanta D. Joana) de c. 1652-1654, poderá ser de sua autoria… O pintor, que foi personalidade interessante em termos de reabilitação estatutária da sua arte, custeou a edição de um Discurso em louvor da Pintura de Frei Tomás Aranha e mereceu ser eleito juíz da Irmandade de São Lucas em 1644, chegando a ser nobilitado pelo rei com o Hábito de Cavaleiro da Ordem de Avis, em 1654, em reconhecimento dos seus dotes, «por ser homem nobre e de bons parentes, exercitar a arte da pintura e nella se ter adiantado tanto aos mays que neste Reyno a professam», e para «exemplo de outros o imitarem». DIOGO PEREIRA E O «GÉNERO» DA PINTURA DE «CATÁSTROFES»

Documentado entre 1630 e 1658, ano da morte, foi pintor com aura de marginalidade, especialista em Incêndios de Sodoma, Troias abrasadas (fig. 5) e outros temas simbólico-profanos de caprichosa cenografia. Dentro do seu «género», e apesar de mal-amado até à reabilitação recente, foi uma das estrelas da nossa pintura dos anos centrais do século XVII, a quem Meesen, excecionalmente, não regateou elogio: «genio raro, sempre se ocupou em incendios, Diluvios, Tromentas, noites pastoris, vistas varias de paizes «O QUE A NECESSIDA DE A PPL AUDI A»…

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com gados; no que foi tão celebre neste genero, como os mais peritos nas couzas de mayor empenho; e como o seu exercício foi sempre imitar desgraças, nunca chegou a ver fortuna». Mais destaca o «Dom de Deos de que foi dotado» e a «veneração» que merecem suas telas, «porem o serem de Portuguez, lhe faz o mayor dano». Pereira foi famoso como criador de «catástrofes, bambochatas, dilúvios» e temas afins, e pode considerar-se uma espécie de Monsù Desiderio português, dados os paralelos com esse famoso pintor lorenense estabelecido em Nápoles, de nome François de Nommé, estudado por Rosaria Nappi e conhecido por esse epíteto lendário16. Trata-se de caso singularíssimo na arte portuguesa, pelo engenho criativo e força revolucionária das touches, tal como foi finalmente reconhecido com a exposição Rouge et Or. Trésors du baroque portugais, onde pela primeira vez se expuseram dez obras do artista17. Sedutor no modo como adequou a tradição do «capricho architectural» de Roma e Nápoles à tradição nacional, com pessoalizada liberdade de touche, mereceu ver os seus quadros disputados nos mercados de Itália, Espanha, França e Inglaterra, sendo de estimar que, em 1753, o perito Pietro Guarienti (no Abecedario Pittorico de Orlandi) lhe chamasse stimatissimo pittore de fuochi, incendi, Torri abbruciate, Sodome, purgatori, e inferni, destacando quadros, a lume di luna, o di candele e elencando os palácios de Lisboa onde havia obras suas. As nossas investigações atestam que quem possuiu as várias versões do tema Troia abrasada de Pereira eram as novas clientelas da Restauração, entre elas D. Manuel da Cunha, capelão-mor do rei, os Mascarenhas e Sousas, o conde de Tarouca, os Marqueses de Borba, Nisa e Orisol, D. Diogo de Noronha, D. Tomás de Noronha e Nápoles, etc.18. Estas Troias eram vistas como um testemunho de parenética nacionalista anticastelhana com a sua forte carga 20

simbólica, onde a figura de Eneias, salvador de Anquises, idealizava o bom príncipe cristão numa espécie de metáfora às virtudes do restaurador D. João IV. Conhecem-se doze versões de Troias de Pereira (Museus de Lisboa, Coimbra e Évora, Biblioteca Nacional de Portugal, Palácio Real de Nápoles, coleções de Milão, Paris, Oeiras, Caramulo, etc.), todas com atmosferas apocalípticas, efeitos labirínticos, arquiteturas antiquizantes e cenografias idealizadas, em que o sentimento trágico da «catástrofe» está patente, a lembrar a conjuntura de guerras com que o novo regime se defrontava. É sintomático que algumas destas obras (caso da Troia da coleção Franzini, Milão) chegasse a andar atribuída ao próprio Monsù Desiderio! O sucesso do tema não escondia, dentro da retoma do trecho clássico, um surdo sentido de resistência com motivações políticas na opção colecionística. Antes de mais, assumia funções moralizantes ao atestar o amor pio de Eneias (precursor de Jesus nas interpretações da 4.ª écloga do poema de Virgílio) a salvar Anquises e simbolizando a «fraternidade cristã»; depois, justificava a «ideia da resistência dos povos face à tirania», o que servia a retórica cristã-brigantina restauracionista; a seguir, dava imagem à «tese da ancianidade de Portugal» legitimadora da Restauração (através da lenda da fundação de Lisboa e outras cidades lusas por descendentes de Ulisses e Eneias fugidos de Troia, em livros de Gabriel Pereira de Castro e António de Sousa de Macedo); por último, simbolizava as «virtudes do bom rei» tal como a empresa XXVI da Idea do principe cristiano de Saavedra Fajardo (Madrid, 1640), ao ligar o cavalo de Troia à astúcia da boa governação. Estas Troias revelam o modo como o pintor se pauta no panorama do seu tempo, ao alinhar não pelo naturalismo da sua geração (Reinoso, Baltazar, Avelar) mas por um gosto sui generis aberto ao onirismo, à

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Nappi, 1991. Serrão, 2001, pp. 51-77 e 89-171. No inventário de bens de José António da Mata de Sousa Coutinho, Correio-mor do Reino (Palácio da Quinta da Mata, Loures, 1795), constam vários quadros de Diogo Pereira avaliados por Pedro Alexandrino de Carvalho e Cyrillo Volkmar Machado: «Sete paineis de Diogo Pereira de paizes e fogos diversos tamanhos molduras pretas com frizos dourados que forão avaliados em a quanthia de dezanove mil e duzentos reis» (ANTT, Feitos Findos. Inventários Post-mortem, Letra J, Maço 499, n.º 3, fls. 235 e 241 v.º; informação inédita da Doutora Isabel Mayer Godinho Mendonça, a quem agradecemos). 17

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Xavier, Cardim e Bouza Álvares, 1996. Nappi, 1986, pp. 24-37. 21 Sobral (coord.), 2004. 20

ars parabolica, ao capricho das rovine, à irreverência das formas labirínticas, à disfunção de espaços, às arquiteturas imaginosas, à ousadia das touches livres. O tema Troia em chamas foi tratado também nos espetáculos de ars parabolica de festas como as do casamento de D. Afonso VI com Maria Francisca de Saboia (1666) dirigidas por João Nunes Tinoco, onde se incluía «Troya que sobre hum cavallo por ser tão linda vinha incendios motivando», máquina de pirotecnia no Terreiro do Paço citada por Craesbeeck de Melo na Metaforica relaçam das festas19. Em 1758, Francisco Vieira Lusitano, ao inventariar a coleção do Palácio do Marquês de Penalva, assinalou várias obras de Pereira a altíssimo preço, incluindo um notável Inferno (coleção particular), que chegou aos nossos dias e é de apreciável intensidade de contrastes, com suas «citações» clássicas como, por exemplo, o abismo sinistro do lago gelado, tudo ao gosto de uma «pintura de género» fantasista e onírica como à época, ou um pouco antes, faziam Claude Deruet, François de Nommé, Didier Barra, Scipione Compagno, Cornelio Brusco recordando, também, as stregonerie napolitanas de Isaac Schawenbourg e Filippo Napoletano20. O artista mostra-se mais displicente no desenho de figura, fruto certamente de um aprendizado empírico, onde é usual o recurso a gravuras maneiristas ítalo-flamengas, de Cornelis Cort a Agostino Carracci. Ainda pouco se sabe da vida de Diogo Pereira, que serviu de mordomo e escrivão na Irmandade de São Lucas, em Lisboa (servia de escrivão, à data da morte, na mesa presidida pela nobre pintora D. Maria de Guadalupe Lancastre e Cardenas), sendo de estimar que ele tivesse relações com os meios napolitanos na capital portuguesa. Infelizmente, pouco ainda se sabe sobre os contactos culturais entre Lisboa e Nápoles (ao tempo da dominação filipina e depois da revolta de Masaniello em 1647), sendo possível que

tivesse admirado a coleção de quadros napolitanos que existia no Buen Retiro em Madrid, o que explicaria algumas das opções estéticas tomadas no seu original percurso artístico. MARCOS DA CRUZ, BENTO COELHO E OS FOCOS TENEBRISTAS DO «MINGOANTE»

O segundo terço do século XVII, tempo de Josefa de Óbidos, foi uma época de contrastes absolutos: apesar das guerras vividas e da crise generalizada, foi também um tempo de intensa devoção, sob signo da contra-reforma, com crescendo das decorações de novas igrejas, conventos, ermidas, oratórios, e de opulentas festividades públicas... O número de artistas multiplicou-se e são às centenas as peças de «estilo tenebrista proto-barroco» ainda existentes, de norte a sul do País e nos territórios de influência portuguesa (Índia, Brasil). É certo que, associadas aos revestimentos de talha dourada, à azulejaria de padronagem, à escultura estofada e policromada, aos fingimentos marmóreos e aos vistosos têxteis orientais, tais decorações pictóricas não deslustram, escondendo a frequente falta de escolaridade e de talento no efeito convincente do espetáculo cenográfico dessa «arte total» barroca, versão doméstica do bel composto de Bellori… É nesse campo, pobre de recursos e pouco estimulante de ideias, que se situam as obras de dois fa presto com sucesso nos mercados do tempo de D. Afonso VI e de regência do Infante D. Pedro, ambos diretores de laboriosas oficinas e com atividade extensiva aos territórios ultramarinos. O mais idoso, Marcos da Cruz (c. 1610-1683), só em data recente mereceu revalorização, primeiro por Luís de Moura Sobral21 (para quem ele foi «o elo que faltava para explicar a transição entre o naturalismo da primeira metade do século e a plasticidade barroca de Bento Coelho») e, depois, por Susana Varela Flor, que lhe alargou o corpus22. Da primeira fase, «O QUE A NECESSIDA DE A PPL AUDI A»…

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Fig. 6 Marcos da Cruz, Milagre da Hóstia Consagrada, c. 1650. Painel da série das ilhargas da capela-mor, Igreja Matriz de Bucelas Fig. 7 Marcos da Cruz, Visão apocalíptica dos Quatro Cavaleiros, c. 1660. Museu Diocesano de Santarém

conhecem-se as pequenas tábuas da Vida da Virgem no oratório de D. Catarina de Bragança (Paço Ducal de Vila Viçosa), mas é em telas de avantajada composição como as da capela do Hospital da Ordem Terceira de São Francisco da Fraternidade de Jesus, em Lisboa (1673-1674), que os estilemas de Cruz melhor se definem. Pintou também as telas do teto da Igreja da Madre de Deus, algumas delas de duro penumbrismo (ainda que o Anúncio Noturno da Fuga para o Egito mostre um cativante ambiente a la candela em sabor caravagesco). Muitas das suas obras devem-se a regime oficinal, como as da cimalhas da nave central de Santa Maria de Óbidos (1676), a confirmar o que Félix da Costa Meesen pensava, ao dizer que «o genio não era grande… e em parte do debuxo foi acanhado». Recém-restauradas, as telas da capela-mor da Matriz de Bucelas são também suas e revelam um intenso proselitismo católico, próprio destes anos de intolerância e autos de fé: uma delas, o Milagre da Hóstia Consagrada, é muito interessante não só pelo desenho e pose das figuras de judeus que cometem o ato sacrílego (um «milagre eucarístico» sucedido em Paris no ano de 1290), mas também pelos acessórios bem executados e pela atmosfera luminosa que envolve toda a composição (fig. 6). Mais recentemente, identificaram-se numa dependência da Igreja da Azinhaga as telas de uma série dedicada ao Apocalipse de São João, uma delas com a rara representação da 22

Visão apocalíptica dos Quatro Cavaleiros (fig. 7). Estão expostas no Museu Diocesano de Santarém, depois de cuidadoso restauro, e são do melhor obrado de Marcos da Cruz. Quanto ao segundo, o pintor régio Bento Coelho da Silveira (c. 1630-1708), foi o corifeu do gosto tenebrista, que prolongou até à exaustão, através do labor incessante e homogéneo da sua oficina (conhecem-se os nomes de vários colaboradores e epígones), e na longevidade da existência (ainda em 1708, data da morte, assinava quadros em absoluta fidelidade ao mesmo repertório penumbrista!). Uma exposição monotemática concebida por Moura Sobral (IPPAR, 1998) permitiu apreciar-lhe as potencialidades, à margem dos estilemas mais conservadores. Algumas peças de maior individualização, como o Casamento da Virgem da capela do solar da quinta da Subserra (Vila Franca de Xira), encomenda de um homem da corte de D. Pedro II, João Roxas de Azevedo, será um dos seus melhores quadros, sem visíveis colaborações de discipulado (ao contrário do que é comum na maioria das suas telas)23. Recentemente, identificou-se em coleção particular uma série de pinturas de Bento Coelho de temário dominicano que têm a singularidade de ser executadas sobre madeira (caso raro na obra do pintor) e mostram uma inusual perícia unitária de acabamento. Pode tratar-se de uma encomenda régia, dado o cuidado labor de pincel;

JOSEFA DE ÓBIDOS E A INVENÇÃO DO BARROCO PORTUGUÊS

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Flor, 2003. Sobral, 2004, pp. 382-385.

Fig. 8 Bento Coelho da Silveira, Santa Catarina de Siena jogando às cartas com os Anjos, c. 1670. Coleção Particular

24 ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n.º 8293. Referência inédita de Francisco Bilou.

destinar-se-iam ao Convento do Bom Sucesso, para onde, aliás, Bento Coelho pintou outras obras em início de carreira? Uma das tábuas representa Santa Catarina de Siena jogando às cartas com os anjos (fig. 8) e mostra detalhes de um enlevante e encantatório elogio à vida doméstica, que trazem à lembrança outros pormenores das obras de Josefa de Óbidos. Não cabe naturalmente no espaço de uma visão de conjunto como esta é, o elenco de outros pintores portugueses ativos no segundo quartel de Seiscentos e que foram cultores do tenebrismo dominante, o gosto que «a necessidade applaudia» no dizer de Meesen. Mas não destoa referirem-se ainda Domingos Vieira, o Escuro (ativo 1634-1678), notável como retratista de personagens do tempo da Restauração, ou o inglês João Gresbante (ativo 1640-1690), fugido às perseguições religiosas e autor de telas dentro do espírito tridentino dominante, ou ainda Feliciano de Almeida (m. 1695), autor de retratos como o de Edward Montagu, conde de Sandwich (1663, Palácio de Hinchingbrooke, Hundingdon), que mereceu encómio nos círculos diplomáticos ingleses e que justifica estudo especial. Não destoa citarem-se também nesta síntese, entre os artistas regionais do ciclo tenebrista: o portuense Manuel André (ativo1620-1654), ativo no Mosteiro de Jesus em Aveiro com obras de certa convenção compositivas, mas com dotes de abertura paisagística que

merecem referência; um António Vieira (1590-1642), ativo em Lamego, depois da formação em Granada, e ainda fiel à tradição maneirista retardatária tal como André de Morales (1579-1654), ativo em Santarém; Gonçalo Prego (ativo 1630-1660) que trabalha na Sertã e em Proença-a-Nova; um Pedro Figueira (1630-1700) ativo em Moura; um João Rodrigues Andino (c. 1630-1694) ativo em Faro e Tavira; dois espanhóis ativos em Évora, Bartolomeu Sánchez (m. 1646) e Martim Valenciano (m. 1641), autores de telas de duro e seco tenebrismo; ou um Francisco Nunes Varela (1621-1699) muito laborioso a partir da sua oficina de Évora, e cuja Imaculada Conceição da Igreja do Alandroal, muito «ao sevilhano» como tantas outras telas destes anos, é peça de segura qualidade, com acertos de pincel. Quanto ao secundário lisboeta Gregório Antunes, devem-se-lhe dois singulares quadros «de género», João Afonso de Santarém a dar esmola aos pobres, de 1633 (Hospital de Jesus Cristo de Santarém), e a Chegada da embaixada de Bolonha com as relíquias de São Vicente da Sé de Lisboa. Em Setúbal viveu no fim de uma vida atribulada o pintor José Nunes Correia, que andou por Sevilha e Málaga antes de voltar à sua cidade do Sado, onde em 1686 foi preso pelo Santo Ofício24; são interessante testemunho dessa cultura andaluza as grandes telas tenebristas que deixou na Igreja de Santo António de Setúbal. São nomes secundários, por certo, mas ajudam a explicar «O QUE A NECESSIDA DE A PPL AUDI A»…

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Fig. 9 António de Oliveira Bernardes, teto da nave da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, de Beja, c. 1690

a extensão e durabilidade dos repertórios tenebristas na paisagem pictural portuguesa nos anos a seguir à Restauração. DE NOVO O CLASSICISMO ...

No ano em que Josefa de Ayala falece em Óbidos — 1684 — já se haviam produzido profundas convulsões artísticas no Reino. Estabilizada e reconhecida a independência, a prosperidade dava sinais, o novo reinado de D. Pedro II assumia força no plano internacional. Um virar de página cobria, com o triunfo do Barroco proselitista, o período de isolamento a que Félix da Costa Meesen chamou do «mingoante». E se muitos mercados resistiam às novidades, em imperturbável fidelidade à tradição tenebrista (como atestam inúmeras encomendas ao idoso Bento Coelho, como as gigantescas telas de 1706 para o Convento das Agostinhas de Chelas…), o declinar da centúria de Seiscentos trazia a abertura a fórmulas do classicismo francês, muito estimado na corte de D. Maria Francisca Isabel de Saboia. Surge então um pintor de qualidade acima da mediania, tão talentoso na pintura de cavalete como no azulejo de figura: António de Oliveira Bernardes (1662-1732), por sinal mais conhecido como praticante de azulejo, embora também o fosse de cavalete e nessa modalidade manifeste recursos igualmente no-

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táveis. Com ele se abre um novo capítulo da História da Arte portuguesa. A este respeito, que é usual tributar-se ao reinado de D. João V (1706-1750) a fase de adequação da nossa produção artística ao Barroco internacional; todavia, foi no tempo de seu pai D. Pedro II (1683-1706) que se delinearam as bases de maturação da «modernidade barroca» e se assumiu a viragem para modelos consentâneos com o clima de estabilidade política e afirmação cultural do Reino. A obra de Bernardes desde cedo afirma a vanguarda dessa via internacionalizada. Apesar de discípulo do referido Marcos da Cruz, e dos pintores de brutesco, Ferreira de Araújo, é no ambiente afrancesado da corte que o seu estilo se abriu à influência dos modelos parisienses. Obra absolutamente pioneira é o teto que pintou em 1690 para o corpo da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres em Beja (fig. 9), primeiro testemunho conservado em Portugal de uma abóbada com sentido do rasgamento perspético, sfondati articulados (uma rubensiana Assunção central) e «citações» precisas de obras francesas (Simon Vouet, Nicolas Chaperon, Laurent de la Hyre, Michel Dorigny, Charles Le Brun)25. Mas essa é uma outra história, que diz respeito já à da pintura de perspetiva desenvolvida no início do século seguinte com a chegada do florentino Baccherelli.

JOSEFA DE ÓBIDOS E A INVENÇÃO DO BARROCO PORTUGUÊS

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Cf. Serrão, Lameira e Falcão, 2007.

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