O QUE DEVEMOS ENSINAR ÀS CRIANÇAS DE SEIS ANOS COM O NOME DE HISTÓRIA?

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O QUE DEVEMOS ENSINAR ÀS CRIANÇAS DE SEIS ANOS COM O NOME DE HISTÓRIA? Itamar Freitas [email protected]

A primeira resposta é “nada”. Nada do que pensam a maioria dos pais sobre o seja “conhecimento histórico escolar”. Isto é, nada de lista de acontecimentos que desencadearam mudanças significativas na sociedade brasileira, acompanhados das suas inerentes datas tópica e cronológica, atores, motivações, cenários, causas e consequências e que prepararão as crianças para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Mas responder “nada” implica em retirar a história dos currículos dos anos iniciais e isso é escandaloso! Então vou refazer a resposta: devemos ensinar “tudo”. Tudo aquilo que os especialistas em história da América, África, Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea entendem como processos e acontecimentos, isolados ou integrados por causa-consequência, que são significativos para a compreensão da aventura humana na terra. Mas responder “tudo” implica em transformar o currículo numa enciclopédia. E enciclopédia, sabemos bem, é um instrumento de consulta e não um guia sistemático para a aprendizagem como são os currículos prescritos. De que modo sair desse paradoxo? Qual a posição mais plausível? Qual o sujeito mais autorizado para oferecer alternativas ao “tudo ou nada”, seriam os professores? Mas os professores, em sua grande maioria, pensam como os pais ou responsáveis por alunos. Pensam também como discípulos de tal ou tal especialista nas áreas das quais tratei acima. Nessas condições, dominantemente, reproduzem as posições de seus formadores na universidade ou escutam à sua voz interior, que remete à memória de aluno. Dando voz aos especialistas em ensino de história, entre os quais me incluo, três alternativas de resolução apresentam-se mais produtivas: (1) reconhecer a importância do anúncio das finalidades da história; (2) reconhecer polissemia do termo história; (3) e reconhecer a ignorância que partilhamos (pais, professores da escolarização básica, professores-formadores e pesquisadores em ensino de história) sobre o “ser criança”. A ideia de que as finalidades da história fundamentam (ainda que, sozinhas, não determinem) os conteúdos históricos a ensinar é bem conhecida. Como não há acordo FREITAS, Itamar. O que devemos ensinar às crianças de seis anos com o nome de história? Brasília, 18 dez. 2014. Disponível em: http://didaticadahistoria.com/2014/12/18/o-que-devemos-ensinar-ascriancas-de-seis-anos-com-o-nome-de-historia/comment-page-1/#comment-39.

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universal sobre quais sejam essas finalidades, resta ao interessado ouvir a experiência de outros lugares (aqui não será possível comentá-la) e às demandas locais, onde se insere a escola (e por local estou entendendo também as regras constitucionais do país). Sobre o condicionamento imposto pela polissemia da história, serve o mesmo raciocínio. Como não há acordo universal sobre quais sejam esses conhecimentos, o ideal é que os formuladores de currículos – professores, técnicos das secretarias da educação, gestores federais, editores e autores de livros didáticos – ouçam o que dizem os especialistas e estabeleçam critérios que contemplem minimamente as demandas do entorno da escola, as prescrições do Estado e as verdades publicizadas pelos historiadores sobre a experiência humana, sobretudo a brasileira. O reconhecimento de nossa enciclopédica ignorância acerca da estrutura psicofísica das crianças de 6 anos é uma tarefa de mais difícil solução. A matriz do “não ter ciência” sobre a natureza do corpo e do pensamento da criança está na formação de professores. Leitores das teorias do desenvolvimento se digladiam cegamente. A maioria deles desconhece uma máxima educacional – originária das ciências naturais, desde o seu berço em Bacon e Descartes: nenhuma teoria dá conta do real em sua plenitude. Essa máxima pode ser traduzida sob bases teológicas – “há mistérios inalcançáveis à razão” e, contemporaneamente, sob fundamentos evolucionistas – “as redes neurais não se desenvolveram suficientemente para pensar determinados problemas que elas mesmas formulam” (algo que os computadores vêm auxiliando muito). E vivemos, então, a defender Vigotski contra Piaget, Bruner contra Ausubel ou Peter Lee contra Rüsen, por exemplo. Penso que já diagnosticamos o “problema” do problema (a dificuldade de responder à questão do que ensinar sob o nome de história às crianças de 6 anos). Meio caminho andado, portanto. Resta agora a outra metade: dar uma resposta plausível que inspire alternativas de currículo condicionadas pelas demandas locais e acadêmicas citadas. Para essa tarefa, faço minhas as palavras de Estevão Martins: “a verdade absoluta só existe na trivialidade”. E, neste caso, nada há de trivial. Eduardo Cunha (o deputado) é Eduardo Cunha em si mesmo. Ninguém duvida. Mas sobre o que ele efetivamente planeja com as derrotas impostas à Dilma Rusself – safar-se da “Operação lava-jato”, ser presidente da República em 2018 ou outra intenção mais exotérica –,

FREITAS, Itamar. O que devemos ensinar às crianças de seis anos com o nome de história? Brasília, 18 dez. 2014. Disponível em: http://didaticadahistoria.com/2014/12/18/o-que-devemos-ensinar-ascriancas-de-seis-anos-com-o-nome-de-historia/comment-page-1/#comment-39.

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dificilmente chegaremos a um acordo (penso que nem ele mesmo conhece o absoluto da resposta à questão posta). O mesmo digo dos conteúdos históricos para as crianças de 6 anos: “História é a ciência dos homens no tempo”. Isso é trivial – uma proposição de Marc Bloch empregada de norte a sul do Brasil nos curso de formação. Contudo, nada há de “claro e distinto” na cabeça de um formador de professores quando lhe perguntam quais são os significados dos signos escritos por Bloch: “ciência”, “homem” e “tempo”. Os sentidos de “criança” e de “seis anos de idade” em contexto escolar também não são nada triviais quando pomos em paralelo os textos de Vigotski e Piaget, Bruner e Ausubel, Lee e Rüsen. Que fazer, então? Uma dada epistemologia histórica, que entende a objetividade como intersubjetividade inter pares, fornece possibilidades. Ela pode induzir-nos a comparar e a ponderar os enunciados dos três primeiros parágrafos deste texto. Seguindo-a, não será difícil constatar que a primeira proposição – ensinar os acontecimentos marcantes na história política do país – não é verdadeira. A segunda – ensinar os acontecimentos e processos que promoveram mudanças significativas na esfera social, econômica, política e cultural dos povos americanos, africanos, brasileiros, europeus e dar a conhecer o “espírito do tempo” que delimitou (ou foi delimitado por) períodos como a antiguidade, o medievo, a modernidade e a contemporaneidade – também não é verdadeira. Ambas não são verdadeiras porque tanto os professores da educação básica como os professores-formadores não se sentaram à mesa para conversar sobre o caso. Quando se encontram, sobretudo os segundos, militam na condição de gladiadores famintos, comovidos, armados e vendados. Além disso, desconhecem a não pouco fértil variância dos signos “criança” e “seis anos de idade”, promovida no exterior da teoria da história. Não bastasse esse impasse, há o fato de os historiadores odiarem a especulação sobre o grande coletivo que é a espécie humana. Assim, como as teorias do desenvolvimento são especulativas, as possibilidades de “pensar historicamente” o pensar historicamente e de se chegar a um mínimo denominador comum (dessa e) para essa faixa etária foi quase completamente negligenciada nos últimos 30 anos. No fim do túnel, entretanto, há uma vela. Numa rara iniciativa de intervenção explícita nas políticas públicas educacionais dos entes federados (apesar do costumeiro FREITAS, Itamar. O que devemos ensinar às crianças de seis anos com o nome de história? Brasília, 18 dez. 2014. Disponível em: http://didaticadahistoria.com/2014/12/18/o-que-devemos-ensinar-ascriancas-de-seis-anos-com-o-nome-de-historia/comment-page-1/#comment-39.

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emprego do termo “pacto”), o Estado brasileiro e o Governo Federal produziram dois documentos orientadores a respeito: as “Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de nove anos” (MEC/CNE, Resolução 7, 1, dez, 2010, DOU, 9 dez. 2010) e o “Pacto Nacional para a Alfabetização na Idade Certa” (MEC, Portaria 867, DOU, 8 jul, 2012) – através do “Elementos conceituais e metodológicos para a definição dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento do ciclo de alfabetização (1º, 2º e 3º anos) do ensino fundamental” (MEC/SEB/DICEI/COEF, 2012b)1. Não importa, neste momento, apontar as contradições e as justaposições teóricas pouco explicadas nos documentos (esse é o preço a pagar na produção de políticas públicas em ambientes democráticos). Interessa ressaltar o que (apesar das justaposições pouco explicadas) eles indicam princípios de seleção de conhecimentos históricos escolares para os seis anos de idade (é o caso das Diretrizes) e as fragilidades da nossa área de pesquisa em termos de alfabetização histórica. O Primeiro documento é claríssimo: qualquer conteúdo destinado ao ensino nessa faixa etária deve “recuperar o caráter lúdico da aprendizagem”, “explorar diversas linguagens artísticas”, levar em conta “os conhecimentos que a criança adquiriu”, sobretudo em termos de “alfabetização e letramento” e evitar os soluços avaliativos – a aprovação/reprovação sistemática ao final da cada um dos três anos que compõem o ciclo inicial do ensino fundamental. Em outros termos, a aprendizagem deve ser avaliada de modo a não estabelecer o período de 12 meses como marco obrigatório de avanços (saltos) coletivos do primeiro para o segundo ano e assim por diante. As Diretrizes põem as disciplinas clássicas, inclusa a história, em segundo plano, se entendermos o étimo “também” e a locução “assim como” de modo hierarquizante:

Desde os 6 (seis) anos de idade, os conteúdos dos demais componentes curriculares devem também ser trabalhados. São eles que, ao descortinarem às crianças o conhecimento do mundo por meio de novos olhares, lhes oferecem oportunidades de exercitar a leitura e a escrita de um modo mais significativo […]. a) os três anos iniciais do Ensino Fundamental devem assegurar a alfabetização e o letramento; b) o desenvolvimento das diversas formas de expressão, incluindo o aprendizado da Língua Portuguesa, a Literatura, a Música e demais artes, a Educação Física, assim como o aprendizado da Matemática, de Ciências, de História e de Geografia (BRASIL, 2012a).

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http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/Portals/1/Files/8935.pdf FREITAS, Itamar. O que devemos ensinar às crianças de seis anos com o nome de história? Brasília, 18 dez. 2014. Disponível em: http://didaticadahistoria.com/2014/12/18/o-que-devemos-ensinar-ascriancas-de-seis-anos-com-o-nome-de-historia/comment-page-1/#comment-39.

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Por fim, e em concordância com a opção por ciclos e avaliações do tipo diagnóstica e continuada, as Diretrizes questionam “a concepção linear de aprendizagem que tem levado à fragmentação do currículo e ao estabelecimento de sequências rígidas de conhecimentos, as quais, durante muito tempo, foram evocadas para justificar a reprovação nas diferentes séries” (idem, 2010). O texto é polissêmico, embora não ambíguo. A crítica à concepção linear serve, concomitantemente, para as julgar as estratégias de promoção dos três primeiros anos do ensino fundamental e as formas de organização do conhecimento histórico destinado a essa etapa. De forma direta: cronologia progressiva, fundada na economia ou na política, separando um ano para cada período da história não é aconselhável. O segundo documento, o “Pacto pela Alfabetização, tangencia o conhecimento histórico. Através dos “Elementos conceituais e metodológicos para a definição dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento do ciclo de alfabetização”, construído por técnicos do MEC, secretarias estaduais e consultores da Unesco, a história é considerada em diferentes dimensões, um pouco distantes daquilo que a maioria dos pais de alunos e historiadores entendem como conhecimento histórico. Ela é narrativa que contribui para a ludicidade da aprendizagem, pelo prazer que o narrar concede à criança, o desenvolvimento de capacidades estéticas (o ouvir, o imaginar); é informação sobre afro-brasileiros e indígenas; instrumento de crítica a diferentes situações experimentadas pelo aluno na escola, família, bairro, cidade e no país; é informação que reforça o autoconhecimento e a identidade interior, mediante os exercícios autobiográficos; é instrumento de historicização de outras disciplinas como a matemática Evidentemente que mescla concepções. Tem espaço para o filósofo Rüsen e também para os psicólogos Piaget e Bruner, já que a história é concebida como representação e resultante dessa representação sobre o passado, serve para a construção de identidades e a orientação dos indivíduos da vida prática, enfim, pode ser abordada como apresentação ou descoberta, como pesquisa ou escrita. Esse passo do MEC, à frente (e atrás) das associações profissionais é compreensível. Depois de 200 anos de escolarização para as massas (fora do Brasil) e de uma tradição filosófica que entende o designar e quantificar coisas como base para o desenvolvimento, sobretudo, intelectivo, e, consequentemente, para uma vida digna de humanidade, história, geografia e ciências não poderiam compor, na condição FREITAS, Itamar. O que devemos ensinar às crianças de seis anos com o nome de história? Brasília, 18 dez. 2014. Disponível em: http://didaticadahistoria.com/2014/12/18/o-que-devemos-ensinar-ascriancas-de-seis-anos-com-o-nome-de-historia/comment-page-1/#comment-39.

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privilegiada de disciplinas, o esforço para alfabetizar as crianças até os 8 anos de idade (dentro do Brasil). Mas há outra razão, bem nacional. Como afirma Margarida Oliveira, língua portuguesa, matemática e geografia já definiram o que seriam alfabetização linguística, alfabetização numérica e alfabetização cartográfica. Quanto à alfabetização histórica, ainda continuamos disputando sobre o sujeito que vai trazer a lamparina: Vigotsky, Piaget, Ausubel, Bruner, Rüsen ou Lee (para manter os já citados). Voltando à questão inicial, não podemos chorar pitangas por causa da ênfase na língua portuguesa e na matemática promovida pelo “Pacto”, além do silenciamento dos pesquisadores do ensino de história acerca da “alfabetização histórica”. Podemos tirar proveito, principalmente das “Diretrizes” e dos “Elementos conceituais”, enquanto os colegas não se sentam à mesa para decidir. Assim, com base no que foi sintetizado há pouco, não é difícil chegar a alguns princípios de seleção dos conhecimentos históricos ensináveis às mais de 2.500.000 crianças matriculadas no primeiro ano do ensino fundamental. E por mais nefasta que seja a definição pela negativa, temos que partir dela, por enquanto. Tomando, então, por base as Diretrizes, (1) todo o conhecimento histórico disponibilizado como prescrição deve ser apresentado à criança de 6 anos de forma lúdica e (2) sob os mais diferentes gêneros textuais. Deve (3) considerar (manter ligação com) os conhecimentos ensinados nos anos anteriores, isto é, empregar estratégias de alfabetização linguística e alfabetização numérica. Também deve (4) evitar qualquer espécie de sequência nos conhecimentos históricos que seja utilizada como mecanismo de reprovação. A progressão histórica, repito, não deve reduzir-se à sequência, por exemplo, colônia, monarquia, república, seja no currículo para o primeiro ano, seja no currículo para os dois últimos anos do ciclo inicial. Outra importante orientação fornecida pelas diretrizes está na finalidade sugerida para a história: (5) ela deve ampliar a visão do aluno sobre o mundo de maneira integrada e significativa, ou seja, tempo e espaço, em sua versão cartesiana, devem estar intimamente ligados à observação, comparação e à identificação de regularidades nos fenômenos culturais e da natureza. Isso implica no fato de que não se deve separar história, geografia e ciência em unidades estanques. Além disso, e para finalizar, (6) todo conhecimento histórico deve ser útil à criança, no sentido expresso pela tradição inglesa de H. Spencer e S. Mill (destituído, é FREITAS, Itamar. O que devemos ensinar às crianças de seis anos com o nome de história? Brasília, 18 dez. 2014. Disponível em: http://didaticadahistoria.com/2014/12/18/o-que-devemos-ensinar-ascriancas-de-seis-anos-com-o-nome-de-historia/comment-page-1/#comment-39.

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claro, da segregação da felicidade a alguns grupos burgueses). Esse pressuposto é muito mais amplo e, paradoxalmente, mais preciso que aquela máxima tornada clássica na pedagogia de que todo o ensino deve ser centrado nas necessidades da criança. Sobre os “Elementos conceituais”, algumas expectativas de aprendizagens apresentadas no “Eixo estruturante – organização do tempo e espaço” são bastante úteis: Introduzir o aluno: Nomear acontecimentos ocorridos em diferentes tempos e lugares de importância afetiva e significante para a sua comunidade familiar, local, regional e nacional. Identificar instrumentos e marcadores de tempo (relógios, calendários) elaborados e/ou utilizados por sociedades ou grupos de convívio em diferentes localidades. Introduzir e aprofundar: Compreender a ordenação dos dias da semana, mês e ano na perspectiva da construção do tempo cronológico (MEC, 2012b).

Que pensam sobre essa alternativa provisória de seleção dos conhecimentos históricos para o primeiro ano do ensino fundamental? Será que, em caso de aplicação sistematizada, ela daria início a uma revolta generalizada de pais, responsáveis, professores, gestores, historiadores, técnicos do MEC e editores/autores de livros didáticos?

FREITAS, Itamar. O que devemos ensinar às crianças de seis anos com o nome de história? Brasília, 18 dez. 2014. Disponível em: http://didaticadahistoria.com/2014/12/18/o-que-devemos-ensinar-ascriancas-de-seis-anos-com-o-nome-de-historia/comment-page-1/#comment-39.

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