O que é a fé em Deus? Uma defesa da perspetiva tradicional

May 23, 2017 | Autor: Domingos Faria | Categoria: Faith, Bounded Rationality, Beliefs, Philosphy of Religion
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Dossiê Espiritualidade no Mundo Moderno II

O QUE É FÉ EM DEUS? UMA DEFESA DA PERSPECTIVA TIVA TRADICIONAL DOMINGOS FARIA (*)

Resumo O meu objetivo neste artigo é analisar a natureza da fé religiosa e oferecer uma caraterização razoável razoáv do que é a fé no Deus teísta. Para alcançar esse propósito, na primeira secção deste artigo, apresento esento uma introdução para este problema; na segunda secção, defendo a perspectiva tradicional da fé, segundo a qual a fé é composta por uma componente doxástica (i.e. acreditar-que Deus existe) e por uma componente não-doxástica (i.e. acreditar-em acreditar Deus). Na última secção, apresento e tento lidar com algumas das principais objeções para esta noção tradicional da fé. Palavras-Chave:: Natureza da Fé, Crença, Racionalidade. Abstract (*)

Doutorando em Filosofia, na especialidade de Epistemologia e Filosofia da Religião, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com o projecto da FCT «Fé: uma virtude ou um vício epistémico?».Universidade Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade, 1600--214, Lisboa, Portugal. e-mail: [email protected]

My aim in this paper is to survey the nature of religious faith and offer a reasonable characterization of what is faith in theistic God. In order to accomplish this goal, in the first section of this paper, I present an introduction to this problem; in the second section, I uphold the tradition view of faith, according to which faith is composed by a doxastic component (i.e. believing-that there is a God) and by a nonnon doxastic component (i.e. believing-in God). In the last section, I present and try to deal with some major objection to this traditional notion of faith. Keywords:: Nature of Faith, Belief, Rationality.

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1. INTRODUÇÃO A fé é tipicamente considerada como uma atitude central nas práticas religiosas. Mas em que consiste a fé em Deus? Quando se questiona se a fé em Deus é racional ou irracional a que é que nos estamos a referir? Esta é uma questão pertinente, pois para determinarmos se é epistemicamente apropriado ou virtuoso ter fé, ou se a fé em Deus tem algum estatuto epistémico positivo ou algum outro tipo de relevância, precisamos primeiro de saber o que é a fé. Pois, suponha-se p.e. que fé em Deus não envolve a crença na existência de Deus. Aqui o termo "crença" é utilizado, não na sua aceção comum (p.e. como confiança profunda), mas sim como um termo técnico de epistemologia que se refere à atitude que o sujeito tem sempre que ele toma alguma proposição p como sendo o caso ou considera p como verdadeira1. Ora, se a fé não envolve a crença, mas antes atitudes de confiança ou de grande esperança em Deus, tal como alguns defendem2, então mesmo que se conclua que a crença na existência de Deus é inapropriada daí não se segue de forma alguma que a fé em Deus é inapropriada. Todavia, essa conclusão será diferente se for mais plausível entender a fé em Deus como sendo equivalente ou, talvez melhor, implicando a crença que Deus existe. Por isso, é relevante analisar a natureza da fé antes de se avançar para o problema da racionalidade ou não da fé. 2. A PERSPECTIVA TRADICIONAL DA FÉ A noção de fé que queremos defender, e que é apropriada utilizar nos problemas da relação entre fé e razão, é uma caracterização tradicional que pode ser expressa da seguinte forma3: (F) Um sujeito S tem fé em Deus sse (i) S acredita-em Deus e (ii) S acredita-que Deus existe. 1

Por outras palavras, a crença é uma atitude proposicional de um sujeito que faz uma representação, verdadeira ou falsa, de alguma coisa. Assim, S acreditar p envolve S ter no seu cérebro ou mente uma representação com o conteúdo p. Todavia, há uma outra forma de entender crença não como uma representação, mas sim como uma disposição. Dessa forma, S acreditar p envolve S ter um estado mental disposicional com respeito a p. Para uma análise das diferenças entre representacionistas e disposicionistas, bem como de outras formas de entender a natureza da crença, veja-se Schwitzgebel (2011). 2 Essa perspectiva é defendida, entre outros, por Audi (1991), Alston (1996), Pojman (2003), McKaughan (2013), ou Howard-Snyder (2016). 3 A perspectiva tradicional é defendida desde Agostinho, Tomás de Aquino, Locke, e mais recentemente é advogada por Plantinga (2000), Swinburne (2005), Dougherty (2014), Mugg (2016), ou Malcolm & Scott (2016), entre outros. A perspectiva anti-tradicional é defendida pelos autores presentes na nota de rodapé anterior. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO / BRASÍLIA / V. 3 N.2 /P. 150-159 /DEZ. 2016 / ISSN 2352-8284

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Nesta perspectiva a fé em Deus consiste em ter um estado doxástico de crença que Deus existe, bem como em ter outras atitudes não-doxásticas, tal como a confiança em Deus ou comprometimento com Deus. Assim, embora reconheçamos que a fé teísta envolve mais do que a mera crença, também queremos sublinhar que a fé teísta inclui a crença com um conteúdo proposicional específico de que há um Deus com os atributos teístas. Por um lado, começando pela condição (ii) de (F), o acreditar-que ou ter a crença-que Deus existe consiste em ter uma atitude proposicional, em ter uma opinião ou afirmar-se uma proposição sobre o que existe, nomeadamente que há uma tal pessoa como Deus4. Por outro lado, na nossa caracterização de fé também acrescentamos a condição (i), pois a fé em Deus não é apenas uma crença que uma dada entidade existe, mas envolve igualmente uma atitude de acreditar-em Deus. Esse acreditar-em é usado para designar atitudes não-doxásticas que incluem, entre outras, as atitudes de confiança, comprometimento, esperança, afeição para com Deus. Nesse âmbito nãodoxástico da fé pode-se incluir para além de um aspecto afetivo, i.e. amar ou louvar a Deus, também uma função executiva ou ativa da vontade na medida em que as pessoas de fé procuram conformar as suas vidas à vontade de Deus (p.e. seguindo os seus mandamentos ou princípios), bem como um aspecto interpessoal ou de relação pessoal com Deus através de atitudes religiosas como a oração, ou ainda um aspecto social ou eclesial que a fé pode ter através de ritos na comunidade de crentes5. Assim, nesta caracterização, a fé envolve tanto a crença num determinado conteúdo proposicional como um compromisso de viver à luz disso6. Apesar de considerarmos que o acreditar-que Deus existe é uma condição necessária para a fé teísta, não pensamos que essa condição seja suficiente. Isto porque podemos acreditar que alguma coisa é o caso, mas não ter fé nela. Por exemplo, podemos ter a crença que no parlamento foram aprovadas determinadas políticas, mas ainda assim não acreditarmos nessas políticas, i.e. não temos confiança ou esperança 4

Swinburne (2005) nota que fé como envolvendo o acreditar-que ou ter uma crença nas proposições relevantes de fé remonta pelo menos aos Padres do Concílio de Trento. Do mesmo modo, Tomás de Aquino concebe a fé religiosa como incluindo, entre outros aspectos, a crença de que Deus existe. Para uma defesa dessa ideia veja-se Stump (2003: 439–440). 5 Veja-se o caso da fé cristã que está intimamente relacionada com um compromisso religioso de tipo comunitário, em que a pertença à Igreja e a celebração comunitária através de ritos e liturgia, como p.e. o batismo ou a eucaristia, é um elemento fundamental da fé cristã. Algo similar tipicamente sucede nas diversas manifestações de fé noutras religiões em que as noções de pertença e comunidade são centrais. 6 Esta noção de fé é compatível com as várias formas de formação e fundação da fé, tal como a fé ser formada ou fundada através da teologia natural (cf. Swinburne (2005)), através do testemunho (cf. Anscombe (1979), Zagzebski (2012), Dougherty (2014)), através de alguma faculdade inata (cf. Plantinga (1983, 2000)), entre outros. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO / BRASÍLIA / V. 3 N.2 /P. 150-159 /DEZ. 2016 / ISSN 2352-8284

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nelas, ou até as desaprovamos. Ou seja, mesmo que tenhamos a crença que uma dada política existe, podemos não ter fé nessa política. Do mesmo modo, o comprometimento teísta que está incluído na fé em Deus não consiste apenas num assentimento proposicional, pois, dada a mundividência teísta, apesar dos demónios também acreditarem que Deus existe, eles não tinham fé em Deus (cf. Tiago 2, 19). Ou seja, nessa mundividência, embora os demónios tenham a crença de que há um Deus teísta, eles recusam-se a ter atitudes como confiar em Deus, amar a Deus, dedicar-se e dar-se a si próprio a Deus, comprometendo-se fielmente para com ele, submeter-se à vontade de Deus e fazer dos propósitos de Deus os seus próprios7. Assim, para haver fé em Deus é igualmente necessário haver essas atitudes não-doxásticas de comprometimento existencial ou moral com Deus que constitui uma guia de ação para as pessoas com fé. Além disso, o acreditar-em Deus, apesar de ser uma condição necessária, não é por si só uma condição suficiente para a fé. Por outras palavras, não se pode pensar a fé em Deus

como

envolvendo

apenas

atitudes

não-doxásticas

de

confiança

ou

comprometimento sem incluir qualquer estado doxástico de crença que Deus existe. Isto porque, por exemplo, parece inconcebível eu ter confiança no meu médico se não tiver também a crença (ainda que implícita ou disposicional) de que há uma pessoa como tal; ou como salienta Dummett (2010: 39-40) "para acreditar numa pessoa no sentido de confiar nessa pessoa, deve-se primeiro acreditar que essa pessoa existe, e segundo que essa pessoa pode ser de confiança para agir de determinadas formas". Na mesma linha de raciocínio, Plantinga (1983: 18) observa que "não se pode acreditar sensatamente em Deus e louvá-lo pelas montanhas sem acreditar que há uma tal pessoa para ser louvada e que ele é de alguma forma responsável pelas montanhas. Nem se pode confiar em Deus e comprometer-se a si próprio com ele sem acreditar que ele existe". Ou, mais formalmente, o argumento é o seguinte: Um sujeito S não pode ter fé em Deus a não ser que S acredite-em Deus, i.e. S é grato com Deus, cofia em Deus, e compromete-se com Deus. Todavia, S não pode agradecer, confiar, ou comprometer-se com Deus a não ser que também acredite-que Deus existe. Logo, não parece possível S ter fé em Deus sem acreditar ou ter a crença que Deus existe. Deste modo, as atitudes de agradecimento, 7

A este propósito Plantinga (2000: 244, 291) sustenta que a diferença entre uma pessoa de fé e um demónio reside na orientação da vontade, nomeadamente na função afetiva da vontade (i.e. no amar e odiar, no aprovar ou desaprovar). Plantinga argumenta que embora os demónios acreditem, eles odeiam a Deus. Pelo contrário, a pessoa que tem fé, não acredita apenas, mas encontra aquilo que acredita como atrativo, agradecendo e amando a Deus. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO / BRASÍLIA / V. 3 N.2 /P. 150-159 /DEZ. 2016 / ISSN 2352-8284

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confiança, ou comprometimento em algo ou em alguém requerem a crença de que certas afirmações sobre isso são o caso; ou seja, na natureza da fé não se pode pensar o acreditar-em sem o acreditar-que8. À luz desta caracterização (F), quando questionamos se a fé em Deus é racional o que estamos a questionar é se o aspecto doxástico da fé, o acreditar-que ou a crença que Deus existe, pode ter um tal estatuto positivo. Com isso estamos apenas a tratar de uma questão de epistemologia, e não estamos a avaliar as potenciais virtudes ou vícios pragmáticos ou morais dos aspectos não-doxásticos da fé que constitui o acreditar-em Deus. Por isso, quando se procura determinar se a fé é um vício ou uma virtude epistémica é apenas essa componente doxástica que se está a avaliar; além disso, a resposta positiva ou negativa a essa questão não deve ser confundida com uma resposta à questão sobre se a atitude não-doxástica de acreditar-em Deus é uma virtude ou um vício moral ou pragmático, embora possa haver algum tipo de relação9. 3. OBJEÇÕES E RESPOSTAS Apesar da caracterização de fé que apresentamos em (F) ser para nós intuitivamente plausível, vale a pena analisar algumas objeções principais e procurarlhes dar uma resposta. O que as duas primeiras objeções têm em comum é o objetivo de se tentar mostrar que a condição (ii) de (F) não é uma condição necessária para haver fé em Deus. Na primeira objeção, desenvolvida por McKaughan (2013), procura-se argumentar que uma caracterização sobre a natureza da fé baseada na crença ou no acreditar-que é inadequada uma vez que não consegue lidar com o fenómeno de que a dúvida religiosa pode coexistir com o compromisso religioso. A ideia é que para muitos a fé coexiste com a dúvida, mesmo com dúvidas profundas e, por vezes, ao longo de grandes períodos da vida. Aliás, em muitos relatos teístas, a fé é aparentemente descrita como compatível com os períodos dolorosos de "noite escura da alma" em que as pessoas se sentem completamente abandonadas e inseguras sobre a existência de 8

Esta ideia é igualmente reforçada ao observamos que a fé patente nas principais religiões não é constituída apenas por atitudes de comprometimento ou confiança, mas inclui do mesmo modo um conjunto de proposições, como um credo ou dogma explicitamente formulado, que é acreditado e proferido pelos membros dessa religião. 9 Pode haver alguma relação no sentido em que, se algum argumento moral ou pragmático do tipo de Pascal ou de William James, ou de alguma formulação mais recente como a de Buchak (2012), for bem-sucedido, então as possíveis vantagens do elemento da fé de acreditar-em podem compensar uma eventual carência de razões para o elemento de acreditar-que Deus existe. Ou, ao invés, se tivermos boas razões para o elemento de acreditar-que Deus existe pode de alguma forma motivar a ter também razões para o elemento de acreditar-em Deus. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO / BRASÍLIA / V. 3 N.2 /P. 150-159 /DEZ. 2016 / ISSN 2352-8284

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Deus10. Assim, nessas circunstâncias de dúvida profunda, apesar de parecer que continua a haver fé, aparentemente não há a crença ou um acreditar-que. No entanto, essa objeção não parece muito procedente por duas razões: por um lado, pode-se partir da suposição de que a fé não pode acomodar uma dúvida profunda, e se pensarmos que a dúvida profunda e fé são incompatíveis, então pode-se alegar que aquelas pessoas que estão a experimentar uma dúvida significativa estão simplesmente a experienciar um lapso de fé11. Por outro lado, pode-se partir da suposição de que a fé é compatível com a dúvida (ou pelo menos com um certo grau de dúvida), e daí argumentar que não há nada na nossa caracterização (F) sobre a natureza da fé que exija que ter fé em Deus implica a certeza ou um grau máximo de crença de que Deus existe. Aliás, é totalmente coerente com a nossa caracterização de fé a possibilidade de haver vários graus de crença em que S pode acreditar que Deus existe com mais ou menos firmeza. Por isso, de uma forma ou de outra, a nossa caracterização (F) permite acomodar o fenómeno comum da dúvida. Uma segunda objeção interessante, desenvolvida sobretudo por Alston (1996) e mais recentemente por Howard-Snyder (2016), parte da ideia de que a fé é um ato voluntário12. Todavia, a crença ou o acreditar-que é uma atitude diretamente involuntária. Por isso, a fé em Deus, se é voluntária, não pode ser ou envolver a crença ou o acreditar-que Deus existe. A esse propósito, alguns filósofos, tal como Pojman (1986), alegam que a atitude de acreditar-em é suficiente para a fé. No entanto, Alston sugere que é necessário algo mais do que o acreditar-em Deus. Então, se a crença não é necessária, o que é necessário para a fé? Alston propõe substituir a crença pela aceitação. Aqui a ideia, inspirada por Cohen (1992), é que a crença é uma representação ou disposição que não está sob o nosso controlo voluntário direto; mas a aceitação é um ato mental que está sob o nosso controlo voluntário direto. Assim, para acomodar o aspecto voluntário da fé, Alston (1996: 14) alega que "posso acreditar em 10

Em várias passagens bíblicas, como no livro dos Salmos (13, 22, 44, e 88), e na biografia de vários santos, como de São João da Cruz ou de Santa Teresa de Lisieux, são descritos casos de pessoas com fé que enfrentam e tentam lidar com esses períodos de ocultação divina. 11 A ideia que a fé é de alguma forma incompatível com a dúvida profunda é pressuposta por Plantinga (2000: 244252) quando apresenta um modelo epistemicamente possível em que a fé, sendo um dom do Espírito Santo, é um conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para connosco. Todavia, mais recentemente Plantinga (2015: 67) admite que essa noção de fé é meramente ideal ou paradigmática e que nos casos típicos de fé o grau de crença é bem menor do que firmeza e certeza. 12 Essa ideia pode ser suportada pela observação de que a fé por vezes envolve que o sujeito delibere e arrisque comprometer-se e confiar em Deus. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO / BRASÍLIA / V. 3 N.2 /P. 150-159 /DEZ. 2016 / ISSN 2352-8284

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Deus (confiar na sua providência) enquanto aceito que ele existe, em vez de acreditar firmemente nisso". Porém, esta segunda objeção também não parece ser bem-sucedida para se rejeitar a condição (ii) de (F). Isto porque, primeiro e tal como salientamos na resposta à objeção anterior, a fé em Deus não implica um "acreditar firmemente" que Deus existe; pois, pode haver graus de crença. Segundo, pode-se admitir com Alston que a crença é formada involuntariamente em resposta à evidência. Porém, ainda assim, e seguindo Swinburne (2005: 264-268), pode-se sustentar que o aspecto pragmático ou nãodoxástico da fé é voluntário, ou seja, o comprometer-se a si mesmo em seguir os ideais religiosos pode envolver uma decisão voluntária. Deste modo, pelo facto da fé incluir um elemento de crença (sob o qual não temos controlo voluntário direto) daí não se segue que a própria fé em Deus é involuntária, pois há ainda um elemento da fé que é voluntário. Portanto, a objeção que apela à voluntariedade da fé para negar a necessidade da crença não é uma estratégia procedente. Além disso, mesmo que seja verdade que a fé deve ser entendida como aceitação confiante, seguindo a sugestão de Alston, tal não implica que a fé não envolve crença, pois os casos de aceitação na fé podem ser casos de crença13. Por fim, a objeção de Alston prende-se apenas com o facto de não termos controlo voluntário direto sobre as nossas crenças; todavia, podemos ter de certa forma controlo voluntário indireto sobre algumas das nossas crenças14 e, talvez, isso basta para assegurar o aspecto voluntário da fé. Uma outra objeção a (F), ao contrário das anteriores, aceita que a condição (ii) é necessária. Todavia, alega que as condições (i) e (ii) não conjuntamente são suficientes para caracterizar a natureza da fé. Então, o que é preciso acrescentar em (F)? A proposta é adicionar uma outra condição, nomeadamente a condição da (iii) ausência de evidência ou de boas razões para acreditar que Deus existe. Por exemplo, Rosenberg (2013) afirma que "por definição, a fé é a crença na ausência de evidência" e, por isso, é impossível a fé em Deus ser racional. Do mesmo modo, Pinker (2006) sugere que a fé é "acreditar em algo sem boas razões para fazê-lo". Na mesma linha, Dawkins (2006: 13

De acordo com Vahid (2009), a aceitação de Alston equivale de alguma forma à crença ou implica-a, e assim não é uma alternativa adequada à crença para a natureza da fé. 14 A ideia é que podemos de forma voluntária influenciar indiretamente as nossas crenças a longo prazo, tal como uma pessoa pode exercer uma influência voluntária indireta sobre a condição do seu coração ao fazer regularmente exercício ou uma dieta saudável. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO / BRASÍLIA / V. 3 N.2 /P. 150-159 /DEZ. 2016 / ISSN 2352-8284

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347) alega que "a fé é um mal precisamente porque exige que não haja justificação". Algo similar é partilhado por outros "novos ateus" (tal como Hitchens, Harris, ou Dennett). Em suma, o que se está a alegar é que, por definição, a fé é um vício epistémico15. Contudo, esta objeção não é plausível uma vez que está simplesmente a cometer petição de princípio. Isto porque parte logo do pressuposto que necessariamente a fé é epistemicamente defeituosa, apenas por definição. Todavia, essa não é uma caracterização de fé que possa ser neutra e transversal entre os vários teístas, agnósticos, e ateus de forma a haver, entre outros, um debate fecundo sobre questões relacionadas com a fé. Além disso, essa é uma noção de fé que encerra de imediato o problema de determinar se a fé ou crença teísta tem ou pode ter de alguma forma estatuto epistémico positivo, avaliando-se as várias vias argumentativas de resposta a favor e contra tal estatuto epistémico. Mas como o problema de saber se a fé ou a crença teísta é epistemicamente virtuosa ou viciosa surge ainda como um problema supostamente em aberto, não parece adequado partir de uma definição de fé enviesada e parcial em relação a esse problema que não contribui em nada para uma resposta fundamentada. Assim, parece implausível acrescentar a condição (iii) numa definição preliminar da fé. Além disso, a condição (iii) tem a consequência estranha de que não poderá haver fé naquelas circunstâncias possíveis em que alguém tem p.e. uma boa razão ou evidência a favor da existência de Deus. Mas um sujeito com uma tal evidência pode ainda assim confiar, comprometer-se, ou ter outras atitudes não-doxásticas para com Deus e, dessa forma, pode ter fé em Deus. Ora, para acomodar essas possíveis situações, numa caracterização razoável da fé a condição (iii) não é plausível. Dado que estas três objeções principais não parecem procedentes, não temos razões decisivas para abandonar a perspectiva tradicional (F) sobre a natureza da fé. REFERÊNCIAS ALSTON, William (1996) "Belief, acceptance, and religious faith". In: Faith, Freedom, and Rationality: Philosophy of Religion Today, ed. Jordan & Howard-Snyder. Rowman & 15

Esta linha de raciocínio é avançada sobretudo pelos chamados "novos ateus". Do lado teísta, embora de forma minoritária e criticada pela tradição católica, por vezes também se defendeu uma tese bastante similar pelos fideístas extremos, tal como Tertuliano ou Kierkegaard, que parecem alegar que a fé é epistemicamente irracional, mas ainda assim tem outro tipo valor (prudencial, moral, etc). Contudo, tipicamente os "novos ateus" alegam que a fé não tem qualquer valor, sendo um mero vírus que deve ser extinto. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO / BRASÍLIA / V. 3 N.2 /P. 150-159 /DEZ. 2016 / ISSN 2352-8284

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