O que é Jornalismo de Guerrilha? (O jornalismo de Guerrilha e o Mídia Ninja)

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1. Teorias e práticas discursivas:

estudos em Análise do Discurso (1998) 2. Fundamentos e dimensões da

Análise do Discurso (1999) 3. Categorias e práticas de Análise do Discurso (2000) 4. Análise do Discurso: fundamentos e práticas (2001) 5. Ensaios em análise do discurso (2002) 6. Análise do discurso em perspectivas (2003) 7. Gênero: reflexões em análise do discurso (2004) 8. Análise do discurso e literatura (2005)

Movimentos de um percurso em análise do discurso (2005)

9.

10. Análise do discurso, Gêneros, Comunicação e Sociedade (2006) 11. As emoções no discurso – vol. 1 (2007) 12. As emoções no discurso – vol. 2 (2009) 13. A Construção da Opinião na Mídia (2013) 14. Análises do Discurso Político (2016)

EDITORA FALE/UFMG 2016

Wander Emediato | Org.

ANÁLISES DO DISCURSO POLÍTICO

COLEÇÃO DO NÚCLEO DE ANÁLISE DO DISCURSO DA UFMG

O Núcleo de Análise do Discurso da UFMG já integra em sua coleção 14 livros, frutos de parcerias nacionais e internacionais. Em vários desses livros já publicados, o discurso político foi um tema recorrente, o que demonstra a sua persistência. Afinal, não é aleatoriamente que esse tema aparece na própria fundação desse campo de estudos como tema central. No entanto, é a primeira vez que publicamos um livro especificamente sobre o discurso político, o que permitirá ao seu leitor uma visão de conjunto sobre essa prática discursiva das mais importantes e que merece sempre um olhar renovado e atualizado. É inegável que o discurso político, hoje, não goza do mesmo status, nem do mesmo prestígio, que nos anos 1960, quando Michel Pêcheux, considerado o fundador da Análise do Discurso Francesa, fez dele o tópico central dos estudos discursivos por sua relação intrínseca com o fenômeno ideológico. No entanto, se existe, hoje, uma crise da democracia representativa que tem como base a atuação e a fala dos homens (e mulheres) políticos, a perda de prestígio dos agentes políticos não implica a perda da relevância do domínio político, ou da Política, no seu sentido mais amplo, na vida social. Tampouco isso implica menos relevância do discurso político como investigação científica. Ao contrário, a natureza heterogênea dos trabalhos e perspectivas presentes neste livro coloca em evidência tanto a intensidade desse interesse, quanto a sua complexidade atual como objeto de estudos, que vai muito além da demarcação das fronteiras ideológicas e de sua interdiscursividade.

Wander Emediato | Org.

ANÁLISES DO

DISCURSO

POLÍTICO

Este livro reúne um conjunto de reflexões bastante representativo de estudos desenvolvidos atualmente sobre o Discurso Político. Ele reflete, ainda, a interdisciplinaridade sempre presente nos estudos do discurso, com pesquisadores tanto do campo da linguística como das ciências políticas e da comunicação social. As distintas perspectivas de análise presentes neste livro vão permitir ao leitor percorrer variadas facetas da palavra política, suas manifestações e suas práticas, bem como seus modos de circulação e de representação. Naturalmente, os artigos aqui apresentados não esgotam o assunto, mas abordam um espectro amplo e fascinante desse domínio tão presente na vida de todos nós. A presente obra dá continuidade às publicações do Núcleo de Análise do Discurso da UFMG. Ela reúne textos de pesquisadores nacionais e estrangeiros, com os quais mantemos parcerias acadêmicas. Através dessas parceiras interinstitucionais, o Núcleo de Análise do Discurso da UFMG (NAD-UFMG) vem se consolidando como um dos centros mais relevantes de integração científica e de desenvolvimento de estudos sobre linguagem e o discurso no país. Esta coletânea se junta às outras já publicadas pelo NAD que buscam a divulgação de estudos e pesquisas sobre o fenômeno discursivo.

EDITORA FALE/UFMG

Estão aqui reunidos 16 artigos de professores e pesquisadores de várias instituições do país e do exterior, que, debruçando-se sobre objetos distintos e mesmo comuns, a partir de pontos de vista diferentes e integrados, contemplam um tema privilegiado: o Discurso Político. O leigo em análise do discurso encontrará aqui elementos importantes para a compreensão do funcionamento da linguagem política em diferentes perspectivas. Os especialistas, linguistas ou cientistas políticos, encontrarão reflexões e propostas teóricas e metodológicas sobre a análise do discurso político.

EDITORA FALE/UFMG 2016

O Jornalismo de Guerrilha e o Mídia Ninja (ou, antes, o que é jornalismo de guerrilha?) Antonio Augusto Braighi Wander Emediato Elton Antunes RESUMO Neste artigo buscamos responder o que é, afinal, Jornalismo de Guerrilha. Empreendemos uma revisão de literatura evidenciando definições e dimensões ao mesmo tempo complementares e contraditórias para tal noção. Colocamos à prova nossa compreensão com a análise do fenômeno do Mídia Ninja, observando mais especificamente suas transmissões simultâneas, para verificar como o coletivo desenvolve suas formas de atuação e se ele se enquadra ou não em tal nos aspectos que caracterizam tal noção conceitual. Ao final, tecemos considerações que sinalizam o caráter exploratório da apreciação frente ao fenômeno observado e a complexidade em delimitar o conceito pretendido.

PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo de Guerrilha; Guerrilha; Midiativismo; Mídia Ninja.

1.

PONTO DE PARTIDA O Mídia Ninja apresenta-se como grupo de mídia alternativa que se vale de ação

engajada para cobertura de acontecimentos no Brasil e na América Latina. Surgido em 2013 com o desejo de pautar temas que não tinham a atenção dos veículos tradicionais, o coletivo se estrutura como uma forma de “contranarrativa das ruas” com as chamadas Jornadas de Junho de 2013. Passam a articular de modo peculiar narrativas, tecnologias, trabalho em rede e ação política de modo a configurar um tipo de midiativismo e midialivrismo que por vezes de autodenomina “jornalismo de guerrilha”. De certa maneira, a ação do coletivo põe em tela todo um debate contemporâneo acerca de modelos de trabalho e lógicas de produção no ambiente das mídias informativas (ATTON, 2008), e a ideia de ação do coletivo o enquadraria numa forma tipicamente ativista de fazer comunicação. Em texto publicado pelo coletivo em 2014, afirmavam que "para nós, ser mídia é o único caminho de democratização deste direito humano que é a comunicação. Temos lado e assumimos a nossa posição, de busca por mais direitos”.

A pergunta colocada no título apresenta-se assim como uma inquietação acadêmica particular que tem como objetivo compreender se, de acordo com certas noções conceituais no campo do chamado jornalismo alternativo, se o Mídia Ninja faz esse referido jornalismo de guerrilha ou não, e por que1. Afinal, diversos textos, das mais variadas frentes, categoricamente afirmam que sim, o Mídia Ninja faz jornalismo de guerrilha. O problema não está na afirmação, mas na ausência de sustentação conceitual. O termo, e variações como mídia de guerrilha, guerrilha jornalística, imprensa de guerrilha, entre outros, quase sempre é utilizado mais em uma forma adjetiva do que substantiva para definir uma série de coletivos e atividades midialivristas, midiativistas e alternativas, em geral. Em uma busca por referências no Brasil, quase não se encontram textos acadêmicos que deem fundamentação teórica. Em outros idiomas, como no inglês Guerrilla Journalism (ou Guerilla), a utilização da expressão na condição qualificadora e não classificadora parece ser ainda maior (ainda que uma série de boas fontes tenham sido localizadas). Nesse sentido, nas próximas páginas apresentamos os resultados de uma revisão de literatura sobre o tema em que o conceito de Jornalismo de Guerrilha é observado, nos alvitrando a responder à pergunta título do artigo. Na sequência, a partir deste ferramental, avaliamos dentro de quais limites o Mídia Ninja poderia ser enquadrado neste tipo de atividade – tomando como referência mais especificamente o trabalho de transmissão simultânea realizado pela Mídia Ninja na cobertura de determinados acontecimentos, não esquecendo, todavia, sua atuação nas redes sociais, editoriais, artigos ou no fotojornalismo.

2.

REVISANDO ABORDAGENS As referências à noção de guerrilha não parecem, inicialmente, ser objeto de

maiores problematizações para se pensar no termo aposto ao Mídia Ninja. Como postula Guevara (1960, p.12), a guerrilha pretende “estabelecer uma nova sociedade, romper com os velhos moldes da antiga, e alcançar, em definitivo, a justiça social por que luta”. Assim, um dos primeiros pontos que nos chamam a atenção é que, diferente da guerra, que contrapõem duas forças distintas, mais ou menos equilibradas,

1

Este artigo decorre de uma pesquisa de doutorado, na área dos Estudos de Linguagem, que empreende uma análise do discurso das transmissões simultâneas do Mídia Ninja realizadas ao longo da Copa do Mundo de 2014.

na guerrilha tem-se um “núcleo opressor e o seu agente” (normalmente o governo, materializado pela força armada – qual seja, normalmente profissional e disciplinada) e, do outro, pessoas comuns, compondo o grupo dos oprimidos por esta força primeira, que verticaliza2 (GUEVARA, p.10, 1960). Face ao contexto, o guerrilheiro é um reformador social, que empunha armas respondendo ao clamor do povo contra seus opressores e que luta por mudar o regime social que mantem todos os seus companheiros desarmados no opróbio3 e miséria. Ele se lança contra as condições especiais do quadro institucional de conjuntura e se dedica a quebrar, com todo o vigor que as circunstâncias permitem, os moldes deste quadro institucional (GUEVARA, 1960, p.10)

Assim, o combatente da guerrilha compõe um núcleo armado, que se destaca na massa oprimida, ainda que desta dependa para se fazer forte. Mais do que isso, para existir deve haver uma demanda e um suporte social para esse movimento, naturalmente contrário a um determinado regime social, político e cultural. Na perspectiva política de Guevara (1960), um corpo guerrilheiro deve ser homogêneo (com os mesmos pensamentos e direcionamentos), respeitar a liderança, ser valente, ter conhecimento do terreno de atuação, condições de mobilidade com agilidade, e ampla sapiência das táticas de ação. Segundo Ernesto Che Guevara (1960), outra concepção fundamental para o guerrilheiro é a de que ele deve ter como norte que não há batalha ou combate que não se ganhe, indicando a luta até o final. No entanto, o atacante deve levar em conta que ele não pode colocar a causa ou o seu grupo em risco. Reconhecidas as melhores condições estruturais então das forças contrárias, os oprimidos devem se organizar, planejar as suas ações, agir à surdina, assaltar de surpresa, saindo das sombras (nocturnidad). Como há situações que obrigam a tomar caminhos diferentes, é preciso ainda que haja flexibilidade e criatividade. Assim, a organização de uma guerrilha não pode ser rígida, mas adaptável. Porém, há estratégias comuns e recorrentes, que inclusive demonstram o reconhecimento de certa inferioridade belicosa dos oprimidos. A chamada “muerde y huye”4, por exemplo, é recursiva, segundo Guevara (1960). Trata-se precisamente de

2

Interessante observar que esta concepção, opressor (ação) x oprimido (reação), é posta e trabalhada pelos construtores da guerrilha. Do outro lado a visão era de atividades de grupos desordeiros, violentos, chamados até de terroristas, que exigiam, então, uma reativa do governo. 3 Degradação extrema. 4 “Morder e fugir”, traduzido literalmente.

aguardar, espreitar, atacar pontualmente (morder) no momento certo, fugir, se esconder, e recomeçar o processo, desgastando o inimigo. Marighella (1969) dará atenção especial ao guerrilheiro urbano, que atua nas grandes cidades, mas reitera que este combatente luta contra um determinado regime político (ou sociocultural) utilizando armas e “métodos não convencionais”. Na filosofia de guerrilha não há uma preocupação com a desestruturação social e a implantação do estado de caos. Estas situações parecem ser vistas como condição e fases para uma ruptura e mudança social que, afinal, é o que o guerrilheiro pretende. Contudo, “a guerra de guerrilha é uma fase da guerra, que não tem por si só chances de chegar à vitória” (GUEVARA, 1960, p.12). Nesse contexto, a guerrilha enquanto resistência nos parece ser um mecanismo contra-hegemônico (que, grosso modo, não visa assumir o poder, mas representar a constante e visceral oposição para uma mudança na estrutura social) que, quando (e se) toma o governo, perde as suas características primárias e essenciais (MEDEIROS, 2015). Diante dessa rápida caracterização da ação de guerrilha, sua aproximação com o jornalismo, não é, porém, óbvia. No Brasil se encontra apenas um livro que estampa o termo jornalismo de guerrilha na capa. O trabalho de Rivaldo Chinem (2004) configurase em um detalhado histórico do comportamento da mídia impressa e de seus jornalistas durante os anos de chumbo no Brasil. O autor dedica a sua atenção aos jornais que se caracterizavam pela oposição intransigente ao regime militar e “ficaram conhecidos como ‘imprensa alternativa’, ‘nanica’, ‘de leitor’, ‘independente’ e underground” (CHINEM, p.7, 2004, aspas no original). Contudo, Chinem (2004) não fez um trabalho se preocupando com precisões conceituais. Trata-se propriamente de um relato de alguém que acompanhou o nascimento, desenvolvimento, resistência e morte de diversos veículos no período pré e pós-AI5, cheio de comentários curiosos e citações de colegas que viveram o período. Apenas ao final, quando tece comentários sobre a importância da internet nos tempos atuais, que utiliza a expressão de forma mais direta; afirma que, atualmente, grupos estigmatizados e movimentos sociais têm uma oportunidade ímpar de empreender a sua própria comunicação, deixando de ser invisíveis, fazendo “a seu modo uma espécie de guerrilha, que bravos jornalistas um dia fizeram na imprensa alternativa” (CHINEM, 2004, p.150, grifo nosso). Nas palavras do jornalista Mylton Severiano da Silva, que passou por diversos veículos (alternativos e de massa),

contestar o regime implicava risco de vida. Uns pegaram em armas. Foram aplastrados ou se mandaram para o exílio. Nós, agrupados em comunidades, fundávamos um jornal atrás do outro. Pegar em armas, tínhamos concluído, era suicídio. Mas muitos de nós apoiamos os guerrilheiros que a mídia até hoje ainda chama de terroristas (CHINEM, 2004, p.100).

É nesse sentido, talvez, que Chinem (2004) enquadra a mídia alternativa da época como de guerrilha: os jornalistas tinham as palavras e os desenhos como arma, havia contestação como forma de resistência, a insistência em tratar e revelar ao público temas que eram proibidos não de forma velada, pois todos sabiam da presença dos militares nas redações, das retiradas de impressos de circulação, das prisões. Ainda assim, jornais como Pasquim, Opinião e Movimento – os mais representativos para Chinem (2004), além de Binômio (considerado o precursor da imprensa alternativa no Brasil), Pif-Paf (de Millôr Fernandes), Ex- (que daria origem a Caros Amigos), Versus, Repórter, Coojornal, entre muitos outros, mantinham-se com a firme intenção de contrariar o sistema e apresentar, em meio a uma série de dificuldades (financeiras, pressão militar, ações terroristas de grupos paramilitares), não uma versão diferente dos fatos, mas muitas vezes a única que aparecia em meio ao cerco à liberdade de expressão. Tal caracterização de parcela da imprensa brasileira encontra similitudes com as condições verificadas em outros contextos sócio históricos. A Nigéria, por exemplo, que viveu anos de ditadura, teve os meios de comunicação alternativos com um papel importante nas lutas pela democratização do país. Assim como no Brasil, havia censura, fechamento de veículos, detenção e rapto de jornalistas, desaparecimentos misteriosos de figuras importantes da oposição, entre outras ações arbitrárias. Segundo Olukotun (2004), houve resistência dos profissionais da área, mantendo o seu compromisso em divulgar fatos relevantes da dinâmica política do país, instituindo, segundo o autor, táticas de jornalismo de guerrilha naquele país. Da mesma maneira, Peycam (2012) também fala de jornalismo de guerrilha no Vietnam. O então jovem jornalista Lâm Hiep Châu foi o responsável pela criação e distribuição do impresso Jeunne Annam em março de 1926, que só durou uma edição, num período conturbado politicamente naquele país. Lâm “criou um precedente para a nova forma de jornalismo de desafio direto às autoridades coloniais, que se repetiu nos anos seguintes. O objetivo deste jornalismo de guerrilha era provocar reações oficiais e polarizar a opinião pública vietnamita contra o regime” (PEYCAM, 2012, p.195).

Ainda nesses termos, o chamado jornalismo de guerrilha parece ter florescido também durante a segunda guerra mundial, sobretudo com os esforços dos judeus para resistirem às investidas dos nazistas, em ocupações em países como Polônia e Holanda. Nos Países Baixos, inclusive, alguns dos impressos viriam a se efetivar anos mais tarde como produtos legitimados e de grande circulação (OJEBODE, 2010; FELDBRUGE, 1975; KERMISH, 1962). Há também os casos em que as práticas jornalísticas, fortemente controladas pelo aparato estatal e poder político, são objeto de ações e “táticas de guerrilha” para realização dos trabalhos rotineiros de reportagem e investigação, como ocorre no caso chinês segundo aponta Tong (2007). Para Ojebode (2010), o jornalismo de guerrilha é assim efeito colateral do estado repressivo. Pelas suas características, pretende agir contra o monopólio de informações controlado pelo governo. Isto, contudo, parece ser demanda dos cidadãos, que têm sede de vozes alternativas e novas interpretações dos acontecimentos. O autor aponta que o jornalismo de guerrilha pode responder então a um regime de repressão e/ou a uma demanda de construção/desenvolvimento/recuperação de cidadania de uma determinada sociedade. Ele não precisa necessariamente ser feito ou composto por jornalistas. Grupos insurgentes podem ter ações específicas de mídia de guerrilha. As iniciativas, contudo, podem não ter filiação política, envolvimento direto com grupos armados ou movimentos sociais. Pessoas comuns podem implementar o exercício do jornalismo de guerrilha. Por fim, conforme indica Ojebode (2010), pode haver uma troca entre políticos de oposição e jornalistas, quando os primeiros ofertam proteção e apoio logístico em troca de veiculação de argumentos e pontos de vista. Ainda segundo Ojebode (2010), a dinâmica do jornalismo de guerrilha é muito análoga: produção, muitas vezes, em condições precárias (o que parece diferir um pouco do que fora realizado no Brasil na ditatura militar, com uma preocupação estética atenta em alguns veículos) e em locais improváveis (no meio do mato, no caso da Nigéria), em constante movimento (ou troca de sede), distribuindo (no caso dos impressos) clandestinamente. Se uma perspectiva comparada aponta semelhanças para fenômenos associados ao jornalismo de guerrilha, quando procuramos avançar conceitualmente começamos a encontrar, porém, algumas contradições. O professor Antônio Brasil (2006), considera que “jornalismo de guerrilha reflete o processo sistemático de qualquer vontade pessoal para absorver registro, procurar, ou rever os detalhes de uma perspectiva pessoal única, documentá-la, e, em seguida, distribuir ou divulgar o conteúdo que resulta”.

Interessante observar que Chinem (2004) destaca que até os jornais alternativos da época da ditatura militar seguiam uma espécie de política editorial que refletia os interesses do(s) dono(s) do veículo. As exceções estariam em Pasquim (que, segundo Luiz Carlos Maciel, era um “órgão de imprensa completamente anticonvencional”, justamente por não ter uma linha de trabalho definida e cada colaborador expressar o que sentia/pensava) e, em certa medida, o Movimento (CHINEM, 2004, p.92). Nesse sentido, se acentua a perspectiva de liderança na guerrilha frente à ideia de propriedade. Antônio Brasil (2006) dirá ainda que “o conceito de ‘jornalismo de guerrilha’ está ligado ao desenvolvimento do jornalismo online”. Para ele, a ideia deste termo está unida, como já apontávamos anteriormente, ao registro individual, da possibilidade de qualquer sujeito se tornar um mediador de informação em razão da multiplicidade de ofertas de mecanismos, suportes e plataformas advindos com as novas tecnologias e com o ambiente da web. O autor aponta, em verdade, uma inversão destes valores, com destaque para os apetrechos tecnológicos ao dizer que o que traz o jornalismo de guerrilha para a vanguarda da evolução da comunicação de hoje não é a capacidade de simplesmente expressar os seus próprios pontos de vista como notícia. Pelo contrário, são os avanços em dispositivos de tecnologia de consumo, tais como filmadoras, dispositivos de gravação digital, câmeras digitais, e até mesmo telefones celulares que funcionam como transmissores de vídeo (BRASIL, 2006, p.09).

Ainda que seja importante sinalizar tal argumento5, parece-nos insuficiente apontar a evolução tecnológica como elemento exclusivo e preponderante para definição conceitual dessa modalidade de ação jornalística. A questão da emergência de novas tecnologias da informação e comunicação parecem mesmo ter dado novos contornos ao conceito de jornalismo de guerrilha – mas é evidente que devemos considerar que este emerja em períodos sociopolíticos conturbados, como o da ditadura militar brasileira, independentemente das plataformas. Ainda com objetivos também pedagógicos, é o que aponta a definição dada na disciplina ministrada no curso de estudos da comunicação na Universidade de Manchester, em que a ementa aponta para o: 5

Ressalvamos que o professor Antônio Brasil pensa o conceito de jornalismo de guerrilha no seu referido trabalho para tratar de didáticas no ensino do jornalismo, mais especificamente com uma interessante iniciativa com uma TV on-line acadêmica. Importante ressaltar também que esta abordagem nasce a partir de uma outra frente de pesquisa, que trata da Guerrilha Tecnológica e que pode ser vista em Brasil (2002).

cruzamento da produção profissional de mídia e ativismo político, os jornalistas guerrilheiros usam câmeras, microfones e edição pós-produção para elaborar processos midiáticos. Os alunos irão formar "coletivos de mídia", produzirão projetos de áudio e vídeo, e farão o upload desses projetos para a internet. As atividades incluirão instrução formal sobre o uso do equipamento, composição de vídeo, estratégias de distribuição, bem como o papel do jornalismo de guerrilha no ativismo cívico6.

Como a sinopse da cadeira indica, ainda que seja dedicada uma atenção especial aos usos dos novos suportes eletrônicos e plataformas web, a questão do conteúdo, da motivação para este trabalho, é central no desenvolvimento da disciplina e, nos parece, é condição sine qua non para o exercício da atividade de jornalismo de guerrilha (MACIEL, 2015; BRASIL & FRAZÃO, 2014; FERNANDES, 2014). Borges (2014) considera que o Mídia Ninja é uma mídia de guerrilha, os novos veículos alternativos no Brasil têm servido também para um enfrentamento simbólico com a mídia de massa tradicional (que não está ao lado do governo, como num passado de repressão aqui e em outros países), apresentando versões mais próximas dos fatos, contradizendo as construções verticalizadas dos primeiros – o que se coloca como uma ação de guerrilha informativa. A professora holandesa Hille van der Kaa (2013) é uma das que vem se dedicando ao esforço de definir o que é Jornalismo de Guerrilha. Sua proposta vai numa linha um tanto inovadora, tentando delimitar o conceito em uma inter-relação com o marketing de guerrilha. Fundamentada em um dos principais nomes da área, Jay C. Levinson, a autora reforça as características deste campo da comunicação comercial que tem como características um orçamento de baixo custo e estratégias não convencionais, normalmente aplicadas por empresas de porte menor que não pretendem dominar um segmento, mas almejam atingir um amplo público. Segundo van der Kaa (2013, p.13-14), essas perspectivas, ao serem adotadas pelo jornalismo, o condicionaria a particularidades determinantes. Assim, o Jornalismo de Guerrilha: funciona a partir de um orçamento limitado; [...] muitas vezes é criado espontaneamente, e os responsáveis contam [apenas] com os meios que têm disponíveis; [...] capaz de atingir um grande público e construir uma marca em um curto período de tempo; [...] pode crescer de forma explosiva; [...] é considerado uma fonte confiável: é um informante de confiança para outros players de mídia, bem como consumidores; [...] tem um curto período de 6

Disponível em http://www.manchester.edu/catalog/comm_studies.htm#GJ

preparação; [...] tem um efeito hit-and-run7 e inicialmente não significa para construir um relacionamento de longo prazo com o consumidor (mas é uma possibilidade); [...] A iniciativa normalmente só existe enquanto ao tema de notícias que está relatando; [...] é focado em um assunto ou evento; [...] se concentra em um evento específico ou assunto; [...] não é necessariamente para o lucro; [...] centra-se na cooperação em vez da competição; [...] pode usar a mídia de massa como um instrumento para crescer ainda mais; [...] usa as novas tecnologias, a fim de melhorar a sua posição; [...] as novas tecnologias permitem-no crescer”.

A autora sinaliza, como se vê, muitas minudências que delimitam o conceito e o colocaria, inclusive, em contradições a outras experiências – já relatadas anteriormente. Nesse contexto vale dizer, então, que a autora se motiva particularmente por um episódio, relativamente recente, acontecido em uma cidade do norte da Holanda, quando uma onda de ações de depredação foi registrada de forma independente por sujeitos comuns (desvinculados de veículos ou coletivos de comunicação), pautando inclusive a grande mídia. Neste acontecimento o mote acabara por ser um grande distúrbio nas ruas, mas não estava em questão uma prévia situação político-social conturbada ou a defesa de uma causa. A partir dessa análise van der Kaa postula, inclusive, certa neutralidade axiológica para a noção de jornalismo de guerrilha, referido sobretudo às iniciativas cívicas e formas de produção e disseminação de conteúdo e não estritamente relacionado às perspectivas de transformação social. O que o cenário teórico até aqui nos aponta é que parece ser difícil contemplar uma definição englobante em que seja possível delimitar uma noção conceitual que não venha a contradizer, de alguma forma, aspectos do fenômeno que se tem em evidência. Não obstante, nos parece importante ao menos apontar alguns eixos teóricos, baseandonos pelos principais pontos indicados anteriormente. Nesse sentido, entende-se que Jornalismo de Guerrilha seja um conjunto de ações de comunicação, que pode se utilizar de diversas plataformas e suportes - e não só as novas tecnologias da informação e comunicação (NTICs) - devidamente planejadas e empreendidas por pessoas que visem não apenas transmitir informações para a sociedade, mas, através de diferentes modalidades de mediação, posicionarem-se ao representar determinadas grupos sociais e seus pleitos, empreendendo resistência simbólica através da disseminação do conhecimento e do enfrentamento com alas hegemônicas.

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Expressão idiomática que, no contexto, aponta a possível efemeridade da ação de Jornalismo de Guerrilha.

De forma mais didática delimitamos uma perspectiva de Jornalismo de Guerrilha, entendendo que ele:

1. Não surge apenas em momentos políticos conturbados, mas ganha mais apelo do público neste contexto. Da mesma forma, não desaparecem necessariamente ao fim dos períodos de perturbação e caos, mas deixam de ter a mesma atenção de outrora, o que pode fazer com que percam o foco; 2. Incorpora, necessariamente, a causa de um ou mais grupos estigmatizados, perseguidos e/ou em embate com forças hegemônicas de poderio bélico, informacional, de capital financeiro, de governo e/ou de representação social; nesse sentido, eles seguem e prefiguram uma “ética cidadã” radicalizada, com traços de humanitarismo e de defesa de minorias e de excluídos. a. Os articuladores das ações não precisam necessariamente ser ligados aos grupos (movimento social, comitê, etc.) representantes da causa, mas precisamente devem dar visibilidade às atividades e demandas destes. Não obstante, entende-se que quanto mais vinculada a ação de informação estiver aos grupos representantes, mais e melhor os objetivos comunicacionais se efetivarão; b. Devem ter, de forma clara, um posicionamento contrário aos grupos opressores, o que sinaliza a sua parcialidade e sua defesa de uma ética cidadã radical; c. Apoiam e se dizem apoiados por amplos segmentos sociais. Nesse sentido, pode lhes ser dada legitimidade de representação quando não estão vinculados a um grupo social, ou seja, sua legitimidade dependerá, portanto, de suas estratégias de credibilidade, das características éticas de suas ações jornalísticas. 3. Postula a constituição de uma nova sociedade, o fim de velhos paradigmas, mas devem ser contra-hegemônicos; ou seja, representam um posicionamento contrário a qualquer nível superior opressor, não objetando a troca do poder (ou que algum grupo representado o assuma), mas a igualdade entre os grupos sociais; 4. Não é feito necessariamente por profissionais jornalistas, mas seguramente por pessoas que tenham grande interesse na produção escrita e audiovisual. Pode ser, dessa forma, iniciativa de tão somente um cidadão.

5. Utiliza-se de plataformas/suportes (suas armas) de mediação da informação com potencial para atingir um grande púbico; 6. Normalmente se utiliza de plataformas/suportes de baixo custo, o que reflete em uma qualidade técnica distinta do padrão mainstrean – o que não significa baixos predicados quanto ao conteúdo; 7. Não seguem necessariamente uma cartilha jornalística padrão de produção da informação, entregando aos leitores/telespectadores muitas vezes um tipo de produto variado e diferente do que se encontra tradicionalmente nos mass media, podendo até configurar gêneros híbridos (pois não se tem a preocupação com a chancela/rótulo de classificação); 8. Tem como norte a gestão de informação para multiplicação e para uso “administrativo” próprio (saber, por exemplo, acerca de ações que podem estar sendo articuladas contra si), servindo-se de uma troca constante com fontes diversas e a população em geral (seu próprio público); 9. Composto por pessoas engajadas, mas que não pretendem obter ganhos de exposição. Em alguns casos procurando manter em sigilo sua identidade e imagem; é o caso específico reivindicado, por exemplo, pelo coletivo Anonymous. 10. Composto por pessoas que têm um mesmo espectro ideológico, formando um time de informantes (jornalistas de guerrilha) diverso, mas que apresentam a sua individualidade no material produzido; 11. Pode ter liderança, mas os informantes (jornalistas de guerrilha) são “generais de si” quanto à sua produção. Porém, entende-se que quanto menor a liderança, e maior for o envolvimento com a causa, maiores são as chances de consecução dos objetivos do Jornalismo de Guerrilha; 12. Utiliza-se de estratégias para expor as fraquezas e desmoralizar os grupos opressores. Nesse sentido, o Jornalismo de Guerrilha não teria apenas uma visada de informação, mas responderia a um contrato comunicativo de duas frentes: mídia e ativismo (CHARAUDEAU, 2007a); 13. Não se limita à produção de notícias nas formas mais tradicionais de acontecimento relatado ou comentado, insistindo mais fortemente nas formas do acontecimento provocado (CHARAUDEAU, 2007a). 14. Podem ter uma marca constituída e representativa em curto período e que pode crescer de forma explosiva – conforme prevê van der Kaa (2013);

15. É considerada uma fonte confiável, devido ao seu declarado posicionamento e afastamento do capital e das alianças político-partidárias; 16. Não visam o lucro, mas precisam encontrar fórmulas para se manter.

Nesse sentido, podemos dizer que a ideia de jornalismo de guerrilha alinha-se fortemente com o que Atton (2002; 2009) chama de mídias alternativas, cujo contexto de emergência se dá associado às lutas políticas e de resistência. Além disso, tais práticas midiáticas serão marcadas pela noção de mudança social “radical” como um objetivo primário, e que deve se expressar no conteúdo e nos processos produtivos e modos de circulação de tais mídias. Destaca-se o imperativo de envolvimento dos cidadãos. A terminologia, contudo, não permite ignorar que alternativo – e, portanto, de guerrilha – será forte e frequentemente caracterizada pela negativa de não ser “a grande mídia”.

3.

O MÍDIA NINJA Atton (2009) aponta certa negligência entre os estudiosos na compreensão dos

projetos vinculados à mídia alternativa e radical, ignorando aspectos relativos à audiência, práticas e formatos desenvolvidos. “Nós aprendemos pouco desses projetos em termos de uma prática jornalística” (ATTON, 2009, p. 267), tal desconhecimento acaba por ignorar elementos históricos que permitiriam por em suspensão a ideia algo generalizada de que tais mídias alternativas vicejam como uma novidade na vida social. Nossa análise, a seguir, se dá a partir de um apanhado histórico sobre o grupo midialivrista Mídia Ninja (com pesquisas bibliográficas, documentais e entrevistas realizadas com integrantes e colaboradores) e, mais especificamente, das transmissões simultâneas realizadas durante a Copa do Mundo de 20148. Ao tentarmos englobar o trabalho do Mídia Ninja nas dimensões listadas acima, percebemos arestas que podem comprometer tal abordagem. Não se pode dizer que o coletivo é, ou faz, mais ou menos Jornalismo de Guerrilha, tampouco queremos estabelecer níveis ou graduações. O exame é feito a partir de um olhar compreensivo, o que permite também indagações e questionamentos balizados por outros pontos de vista.

8

Estes dados compõem uma pesquisa de doutorado em que foi empreendida uma análise do discurso do Mídia Ninja em suas transmissões simultâneas. 290 vídeos, compondo cerca de 96 horas de cobertura, foram examinados nesta tese.

3.1 Por que sim?

O Mídia Ninja claramente atua na representação de causas sociais (apesar de não se vincularem diretamente a um movimento ou entidade deste gênero) que não têm espaço de destaque nos mass media. Basta observar o tempo alargado dedicado às manifestações, não só contra a Copa do Mundo (entre 2013-2014), mas em favor das ocupações urbanas, em prol de movimentos agrários, contra a homofobia, entre tantas outras. Mais do que isso, o veículo dá voz às pessoas ordinárias (e às suas demandas), preteridas em relação aos especialistas e líderes sociais pela grande mídia. Em nossas análises percebemos que o Mídia Ninja se utiliza de todos os modos de organização do discurso. Mas, em detrimento de uma preferência à narração e descrição, desenrola uma série de argumentos, a maioria deles em favor de grupos sociais postos em narrativa como oprimidos. Não sem motivos, então, aparece no texto o opressor, encabeçado pelo Estado e o governo (sobretudo os executivos estaduais), mas materializado pela força militar. Alvos de crítica constante, o poder político e sua faceta bélica compõem parte dos inimigos. Junto a eles aparece a mídia de massa, qual seja o suporte. Unidos, eles são responsáveis por sobredeterminar a organização social de modo verticalizado, seja pela lei, pela força, ou mesmo por uma (re)construção simbólica de mundo a partir da hegemonia da informação, segundo os midialivristas. A luta então do Mídia Ninja, de acordo com o que propõem seus representantes, é a da batalha de sentidos. As ações do coletivo compreendem uma contrainformação a partir da qual se quer mudar a concepção de imaginário sociodiscursivo dominante no país (CHARAUDEAU, 2007b). As mídias alternativas apresentam novas concepções interpretativas, muitas vezes diversas daquelas dada pelos mass media, constituindo uma contestação sobre formas de classificação e qualificação das coisas do mundo. Como exemplo, diferentemente considerar adeptos às táticas Black Bloc como vândalos (prática comum dos veículos de comunicação massiva) o Mídia Ninja os veria sob um outro ângulo (imagético e discursivo, aliás), enquanto manifestantes que têm uma forma diferenciada de se expressar. O mesmo acontece com o conceito de ocupação frente ao de invasão (ao se tratar das ações do MST). Seguimos dizendo que o Mídia Ninja não surgiu, como se imagina, nas Jornadas de Junho; ele já vinha sendo gestado pelo Coletivo Fora do Eixo (FdE) e por Bruno

Torturra, um dos idealizadores, além de outros parceiros, há algum tempo – sendo que a iniciativa piloto acontecera ainda em 2011. Contudo, ganha apelo em 2013, e não desaparece quando as ruas se acalmam. Conforme van der Kaa (2013) indica para os episódios ocorridos na Holanda, podemos dizer que o grupo tem uma marca que ganhou grande repercussão repentinamente e cresceu de forma rápida e constante. A maioria dos jovens integrantes do Mídia Ninja não tem formação em Jornalismo (ao menos entre os que empreenderam transmissões simultâneas durante a Copa do Mundo), o que não parece um prejuízo para as suas ações de “guerrilha jornalística”. No entanto, constataram-se problemas durante as coberturas, tais como erros de apuração de alguns repórteres ao longo das lives e ausência de informações precisas. Observamos que o coletivo não tem a pretensão de seguir uma cartilha do jornalismo profissional, ainda que participem, com alguma frequência, de oficinas diversas sobre as facetas da comunicação (aulas teórico-práticas). Ainda assim, há variações significativas e marcantes no modo de transmissão de cada repórter, seja no modo narrativo escolhido, na linguagem empregada, na abordagem ou não de participantes dos eventos para entrevistas, seja nos aspectos técnico-imagéticos (enquadramentos, movimentos com a câmera, etc.), indicando, ainda que haja uma homogeneidade ideológica, uma independência e individualidade na forma de ação e produção midiática. As armas dos Ninjas nas (para as) transmissões simultâneas são os seus smartphones, tecnologia mais barata (e leve) do que as câmeras e links utilizados pelos mass media, o que permite mobilidade, flexibilidade e individualidade de reação. Isso, apesar da qualidade inferior de sinal e, consequentemente, de problemas técnicos no produto entregue à audiência. O coletivo então aditiva seu contrato comunicativo com o slogan: “baixa resolução, alta fidelidade”. Na metáfora com a guerrilha, se fosse uma arma de fogo, o que lhe falta de melhor seria a munição e espaço de ação – condições de transmissão com maiores atributos. No entanto, o celular em riste pelo midialivrista em campo é defesa, escudo. Ao mesmo passo é arma branca, não menos branda, espada, que se não lhe permite o ataque, deixa o inimigo ainda mais na defensiva, preocupado, atento, evitando reações mesmo sendo incitado. Nesse contexto, vê-se com um Mídia Ninja - mais especificamente com o repórter Filipe Peçanha (Carioca) - a provocação (discursiva, mas de diversas maneiras) feita aos policiais, na guerra de nervos tradicional da guerrilha. Ele visa, inferimos, desmoralizar,

desqualificar, cansar e desestabilizar os militares e parece querer fazer-saber (para a audiência) que os PMs brasileiros são despreparados (entre outros adjetivos pejorativos) e que, portanto, só teriam como utilizar a força como resposta às suas investidas. Ao fazerem isso9, tendo o repórter como objeto, haveria a tangibilização dos argumentos dos Ninjas, em uma ação reativa dos praças que corresponderia a uma validação de todas as incitações apregoadas ao longo de uma transmissão (ou mesmo, de todo o discurso midialivrista apresentado ao longo da Copa do Mundo). Por fim, vale ressaltar a gestão da informação feita pelo coletivo midialivrista. O Mídia Ninja acaba por constituir no Twitcasting, plataforma que se utiliza para as transmissões em tempo real, uma verdadeira rede social on-line (ainda que efêmera), a partir da qual há uma troca colaborativa intensa e constante com seus webespectadores. Através desta, o conhecimento se dá não de forma verticalizada, mas horizontal, uma vez que os repórteres têm acesso a tudo o que os internautas dizem nos chats, articulando, muitas vezes, uma interação multimodal. Aliás, esta ferramenta acaba por fornecer subsídios para uma validação constante do trabalho dos Ninjas (BRAIGHI, 2015). Seu caráter acessível, porém, acaba por permitir a entrada e acompanhamento das transmissões por parte dos opressores10, o que se configura um problema para a guerrilha.

3.2 Por que não?

Um dos pontos que consideramos é o apoio dos diferentes segmentos sociais. O Mídia Ninja emerge em 2013 como uma pujante força midiática de representação devido às suas características, ganhando adeptos em todo o território brasileiro. Contudo, ao ser revelado o seu vínculo com o Coletivo Fora do Eixo, colocou-se em debate os seus reais intentos. Nesse contexto, o coletivo viu em questão a adesão que tinha antes. 9

Vale citar que, durante a Copa do Mundo de 2014, Filipe Peçanha foi preso uma vez (injustamente – ao ter confundido o seu carregador de notebook com um explosivo, ainda que tenha ficado em evidência para o webespectador que o motivo da prisão tenham sido as provocações do Ninja) e agredido, por oito policiais simultaneamente, na última transmissão do período. 10 Em entrevistas realizadas com os Ninjas, foi dito que muitos militares acompanhavam as transmissões. O repórter Dênis Nacif, inclusive, indicou que nas manifestações que cobriu, praças apontavam para ele e diziam o conhecer (indicando o nome dele e o veículo ao qual era ligado), o ameaçando inclusive. Nas análises (BRAIGHI, 2015), foi possível observar alguns internautas indicando a presença de P2 (policiais disfarçados) nos chats. Na transmissão em que Filipe Peçanha é preso, a delegacia para onde foi levado recebe um telefonema de alguém afirmando que Carioca continuava a transmitir do local. Os policiais então abordam o midialivrista e pedem para que ele desligue o aparelho.

Algumas pessoas que deixaram de ser seguidores, ou ao menos começaram a questionar os midialivristas, o fizeram por entender que havia uma relação conflitante dos gestores do veículo com partidos políticos, que o propósito das coberturas não era um fim em si mesmo, já que visariam a aquisição de um capital simbólico a ser transferido aos seus controladores, que a gestão do FdE implicava em um direcionamento ideológico duvidoso por parte dos repórteres (na medida em que alguns seriam manipulados e submetidos a uma espécie de trabalho escravo), entre outros aspectos. Estes questionamentos vieram a reboque de diversas reportagens e postagens na mídia mainstrean e de ex-integrantes do Fora do Eixo na internet, além de pessoas, como a cineasta Beatriz Seigner, que já haviam mantido relações profissionais com o coletivo. Essa artista, inclusive, destaca em postagem em uma rede social on-line que o Mídia Ninja (para ela, então, Mídia Fora do Eixo) havia sido expulso de manifestações uma vez que os organizadores das mesmas não concordavam com o trabalho do grupo, indicando que o que se almejava era uma projeção social, tendo a ação de protesto como trampolim. Assim, ainda que os midialivristas não visem o lucro a priori, trabalhem e vivam a partir de um sistema cooperativo em casas coletivas, sua repercussão e projeção significariam margem de visibilidade e apelo também para o FdE. Este último se utilizaria deste reconhecimento para alavancar projetos culturais que teriam mais chances de conseguir patrocínios, em várias esferas. Ao menos é uma inferência que, se não se comprova, ao menos deixa uma marca discursiva, um traço que assinala a existência de uma interdependência entre duas instâncias que, em certa medida, é conflitante e não permitiria um trabalho calcado na ideia de Jornalismo de Guerrilha. Há de se problematizar nesse sentido, então, o ponto da legitimidade do coletivo, e a confiabilidade das informações, que acabam por diminuir (ao menos para parte de seus webespectadores). A questão ficaria ainda mais intrincada quando uma nota publicada no site oficial do coletivo, às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais de 2014, afirma que “nosso voto no dia 26 é Dilma”. Não obstante, o Mídia Ninja justifica a escolha, ao dar a entender que o plano de governo da candidata dialogava melhor com as questões defendidas pelos midialivristas, ainda que o seu triunfo sobre Aécio Neves (candidato do PSDB) significasse tão somente um caminho mais apropriado. Com esta posição declarada e aberta o Mídia Ninja perde um conjunto de seguidores em suas páginas. Independente de tais

controvérsias, entendemos que seria possível compreender de forma autônoma, uma série de investidas dos repórteres em campo. Em geral, os repórteres não assinam as suas lives. Isso, ao contrário de midialivristas como Alex Demian, que fazem questão de registrá-las com sua alcunha, e de Filipe Peçanha, que por diversas vezes, sobretudo em embates com a polícia, apresenta seu nome e vínculo ao coletivo quase que como uma credencial. Aliás, o “somos do Mídia Ninja” é dado como cartão de visita antes de muitas entrevistas por midialivristas. Não haveria como identificá-los nas cenas enunciativas, senão por isso, haja vista que os rostos quase nunca aparecem nas transmissões. A identificação funciona como personificação e empresta um ethos discursivo ao repórter que, em verdade, nem precisaria dizer isso. Afinal, o que está em questão é a projeção da voz, qual seja o canal. Sobre a questão da exposição, porém, Carioca a eleva a outro nível. Depois de já ter sido preso por diversas ocasiões no Rio de Janeiro, o repórter parece ser visto quase que como um mártir, aquele que se entrega por uma causa – sobretudo como consequência de enfrentamentos com a força policial. Rafael Vilela destaca a exposição de Peçanha, mas a relativiza, colocando-a como um processo natural e até importante para que as causas ganhem mais força, na projeção do veículo e seus integrantes: em momento algum o processo coletivo extingue ou diminui a capacidade individual de cada um se destacar ou de se posicionar de maneira autêntica – uma coisa não está contra outra. Há casos e casos de pessoas que estão na Mídia Ninja que viraram celebridades locais, como o Carioca, no Rio de Janeiro. Existem várias lideranças que surgem a partir desse processo, que não são, lógico, âncoras famosos, nem é esse o objetivo, mas que têm a sua legitimidade na construção de um processo de confiança legítimo11.

Vale um último dado; até que ponto uma mídia poderia ser considerada de guerrilha se alguns de seus colaboradores tivessem um emprego no estado, em áreas importantes da administração pública, a? Duas ninjas, uma com vínculo à época (Copa do Mundo de 2014) com o governo do Rio Grande do Sul, e outra com o legislativo federal, empreenderam coberturas para o coletivo. O que se expõe aqui é uma espécie de dupla jornada que, inicialmente, parece um tanto contraditória, mas que pode indicar formas distintas de engajamento e, portanto, limites para a analogia proposta na formulação jornalismo de guerrilha.

11

Disponível em http://goo.gl/82GJ0T - Acesso em 30 set. 2015.

4.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O primeiro objetivo desta reflexão era o de tentar precisar o termo Jornalismo de Guerrilha. Esperamos ter sinalizado de alguma forma um caminho possível para sua delimitação, a partir de uma revisão de literatura que expôs frentes diferentes de observação e do assentamento do nosso marco conceitual. Num segundo momento, colocamos em discussão a (nossa) terminologia para analisar o trabalho do Mídia Ninja. A intenção não era a de validar ou anular a empreitada midialivrista deste coletivo, mas articular aspectos do fenômeno às diferentes dimensões conceituais mobilizadas, respeitando minimamente as bases de onde se busca fundamentação. Nesse sentido, poder-se-ia falar até de uma variação de Jornalismos de Guerrilha (o que pode ser uma possibilidade de novos estudos), a depender, por exemplo, de qual é a luta, quais são os inimigos, de qual é o contexto de atuação, entre outras particularidades. No entanto, não nos parece correto que este tipo de ação de comunicação tenha propósitos outros senão, conforme expressamos, transmitir informações e disseminar conhecimentos com o intuito de representação de causas sociais e de seus envolvidos, fazendo frente simbólica e enfrentamento a forças hegemônicas. Não temos como assegurar, contudo, que o Mídia Ninja e/ou o Fora do Eixo capitalizaram algo com esta autodefinição e o trabalho que empreenderam. Da mesma forma, não afirmamos que alguma posição político/partidária (e não falamos de vinculação) possa gerar prejuízos ao trabalho dos jornalistas de guerrilha; haja vista que em outros momentos (até da história brasileira) e contextos internacionais (como na Nigéria) isso já aconteceu até de modo mais claro. Não podemos, por outro lado, reduzir o conceito de jornalismo de guerrilha aos seus componentes éticos, pois outros fatores pertinentes ao fazer jornalístico também intervêm na conceptualização. É nesse sentido que elementos relativos à confiabilidade no coletivo, além de outros aspectos pontuais, geram uma falta de apoio de parte de diferentes atores sociais e imputa uma quebra de credibilidade, acentuada ainda pela ausência de legitimação de alguns grupos (movimentos sociais organizados) ao Mídia Ninja para representá-los. Mas existem tantas outras organizações que conferem esse direito ao coletivo (ou, ao menos não limitam) e há uma quantidade grande de aficionados que conferem crédito ao coletivo para representá-los e mediar informação para os mesmos.

Por fim, não haveria como recusar o papel importante que este coletivo desempenhou, sobretudo nos anos de 2013 e 2014, trazendo informações, com um olhar parcial, mas único, muitas vezes do front, a representar a voz dos insatisfeitos, e, em tantas outras, das ruas, das comunidades, das assembleias populares, das ocupações, e de tantos outros espaços, a fala dos excluídos e estigmatizados. Ações que no campo das lutas sociais – em especial quando se referiam às conformações do universo midiático mainstrean – adquiriram aspectos contra hegemônicos e que permitem de fato seguir refletindo acerca da sua dimensão guerrilheira, seja como metáfora para compreensão de um fenômeno ou elementos consistentes para desenvolvimento de um arcabouço conceitual.

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