O que os dados dos censos demográficos do Brasil mostram sobre crescimento da população indígena nas cidades

June 14, 2017 | Autor: E. Mainbourg | Categoria: Indigenous Studies
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O QUE OS DADOS DOS CENSOS DEMOGRÁFICOS DO BRASIL MOSTRAM SOBRE CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO INDÍGENA NAS CIDADES Pery Teixeira1 Evelyne Marie Therese Mainbourg2

Introdução Os resultados do censo demográfico de 2010 permitem traçar uma série de considerações sobre a evolução dos efetivos populacionais indígenas do Brasil nos dez anos que o precederam. Da população total do Brasil recenseada em 2010, os efetivos dos que se declararam indígena (817963 hab.) representavam 0,44%. Cerca de 30% dos indígenas vivem na Região Norte, e distantes das cidades. Nessa região a população indígena urbana representa apenas 20% do total, enquanto os moradores indígenas das cidades das demais regiões correspondem à metade da população indígena urbana do conjunto dessas regiões. De acordo com os três últimos recenseamentos realizados no Brasil, a população autodeclarada indígena do país cresceu 150% na década de noventa e apenas 11% entre 2000 e 2010. Nesse período não ocorreu nenhum fenômeno de natureza demográfica que justificasse tamanha descontinuidade no crescimento populacional. Convém ressaltar que tal situação diz respeito basicamente aos efetivos urbanos, os quais, após terem crescido vigorosamente entre 1991 e 2000 (440%), decresceram 18% na década seguinte, surpreendendo os estudiosos do tema e lançando dúvidas sobre o número real de indígenas nas cidades brasileiras. Tal redução foi particularmente forte no Sudeste e Sul do país que são, por coincidência, as regiões com a menor quantidade de moradores em terras indígenas. Mesmo no Centro-Oeste que possui terras indígenas importantes e populosas, observa-se um crescimento negativo. Em relação ao período 1991-2000, a maioria dos estudos divulgados sinaliza que a forma de identificação dos entrevistados no recenseamento, através de declaração da raça/cor pelo próprio, teria afetado as informações censitárias (Pereira e Azevedo, 2004; Pagliaro et al., 1 2

Universidade Federal do Amazonas Instituto de Pesquisa Leônidas & Maria Deane/FIOCRUZ, Manaus-AM

2005; IBGE, 2005; Teixeira, 2008). Já a queda do período seguinte (2000/2010), poderia terse dado principalmente devido à inclusão, no questionário do censo de 2010, dos quesitos sobre etnia e língua, suscetíveis de inibir o entrevistado de autodeclarar-se “indígena” no quesito raça/cor, optando por outra categoria como resposta (IBGE, 2012). No entanto, a evolução demográfica dos residentes autodeclarados indígenas das áreas urbanas brasileiras entre o fim de um século e o início de outro pode estar sendo determinada por uma combinação de situações onde se mesclam fatores demográficos políticos, sociais e culturais, dificuldades de acesso e de abordagem, conteúdo do questionário censitário, falhas de supervisão, tamanho da população e da amostra censitárias, além de outros. Parece, pois, complexa, no cômputo geral ou regional da evolução demográfica urbana dos indígenas, a miríade de fatores que, estudados e sistematizados, poderiam lançar luzes sobre o real comportamento dessa evolução. Este trabalho tem como objetivo contribuir para a tarefa de busca de possíveis determinantes dessa evolução irregular dos efetivos indígenas urbanos no Brasil. Através da avaliação comparativa das informações censitárias, procura distinguir padrões espaciais da evolução demográfica observada que possam indicar pistas para a compreensão do fenômeno em foco. Para isso, a abordagem utilizada privilegiará o estudo da evolução demográfica da população indígena urbana segundo sucessivas desagregações espaciais, iniciando com as regiões geográficas, passando, a seguir, aos estados e municípios. Resultados censitários específicos de alguns grupos de cidades também serão objeto de consideração, assim como uma possível relação entre o crescimento populacional registrado na década de 90 e os resultados censitários de 2010. A título ilustrativo, além dos dados oficiais, informações oriundas de alguns levantamentos censitários locais e específicos serão também utilizados na análise3.

Evolução regional em 2000/2010

Tabela 1 Evolução regional da população indígena residente nas cidades brasileiras, 1991-2000/2010 3

Trata-se, basicamente, de dados levantados nas pesquisas censitárias Diagnóstico Sociodemográfico Participativo da População Sateré-Mawé (2002-2003) e Recenseamento Sociodemográfico Participativo da População Indígena da Área Urbana do Município de Tabatinga (AM) (2014).

Regiões

Norte Nordeste Sudeste Sul Sudeste Centro-Oeste Brasil

População indígena urbana 1991 2000 2010 11.961 15.988 25.110 10.168 6.482 71.027

46.304 105.728 1.444 52.247 38.375 383.298

Fonte: IBGE. Censos demográficos

106.150 61520 79.263 34.009 34.238 315.180

Crescimento anual 1991/2000 2000/2010 16,2 23,4 21,1 19,9 21,8 20,6

2,9 0,0 -5,6 -4,2 -1,1 -1,9

de

Observa-se que o decréscimo da população indígena urbana não se mostrou uniforme em todo o país; ao contrário, os diferenciais visualizados refletem a evolução desigual do número de indígenas nas cidades segundo a região do país considerada. Assim, o decréscimo observado no país como um todo é visto com mais força nas regiões Sudeste e Sul, enquanto o Centro-Oeste fica com uma taxa mais próxima da média brasileira. No caminho inverso, a Região Norte apresenta crescimento significativo (2,9% ao ano) entre 2000 e 2010, graças à evolução dos estados do Amazonas, Acre, Roraima e, em menor escala, do Amapá. No Pará, no Tocantins e em Rondônia os correspondentes efetivos indígenas decresceram no período em estudo. O Nordeste, com crescimento praticamente nulo, viu seus estados apresentarem, como o Norte, tendências variáveis. Reduções da quantidade de moradores indígenas das cidades entre 2000 e 2010 ocorreram em todo o país, com tendência a serem mais marcantes em regiões e estados com maiores taxas de urbanização, parecendo haver comportamento inverso nos aumentos daqueles efetivos, os quais teriam ocorrido áreas com taxas menores de urbanização. Tais suposições, contudo, não devem ser taxativas, pois, como se verá no decorrer deste trabalho, há nuances estaduais e regionais dessa dinâmica que sugerem certa cautela na interpretação dos dados disponíveis. As cidades com 300 ou mais autodeclarados indígenas em 2010 que apresentaram variações populacionais de 2000 a 2010 distribuem-se, entre os estados brasileiros, conforme tabela que se segue.

Tabela 2

Número de cidades com 300 ou mais autodeclarados indígenas em 2010 que sofreram variação populacional no período 2000/2010, segundo o sentido do crescimento e o estado em que se situam. Número de cidades Estado Crescimento Crescimento Cresc/decréscimo Positivo** negativo** reduzido* 18 1 Amazonas 6 1 Ceará 11 3 5 Pernambuco 13 8 Bahia 8 1 Minas Gerais 2 4 Espírito Santo 2 8 12 São Paulo 7 Rio de Janeiro 3 3 Santa Catarina 2 6 Rio Grande do Sul 3 4 Mato Grosso do Sul Fonte: IBGE. Censos demográficos (**) Superior a +30% ou inferior a -30%. (*) Entre -30% e +30%.

Evolução no Norte Na Região Norte ocorreu, na contramão da evolução da população indígena das cidades brasileiras em seu conjunto, aumento significativo dessa população. No entanto, tal evolução não se mostrou contínua no espaço nortista: enquanto Acre, Amazonas e Roraima apresentam crescimento robusto, reeditando, em parte, ou mesmo superando (caso do Acre) as expressivas faixas de crescimento da década anterior, Rondônia, Pará e Tocantins reduziram seus efetivos indígenas, acompanhando o que se observou na maior parte do país. No Pará, o elevado decréscimo da população indígena urbana observado na microrregião de Belém entre 2000 e 2010 teve sobre o crescimento correspondente dos efetivos urbanos do interior, resultando em queda no total urbano do estado. Nos demais estados com população indígena urbana decrescente (Rondônia e Tocantins) o peso da redução é distribuído entre as respectivas capitais e o interior. Por sua vez, os indígenas do Amapá urbano, perfazendo pouco mais de um milhar de autodeclarados, tiveram pequeno aumento populacional, totalizando um acréscimo de apenas 102 moradores. Nesse estado, o pequeno crescimento no interior superou o também reduzido decréscimo na capital.

Um caso especial de crescimento urbano indígena – o estado do Amazonas No contexto em estudo, o estado do Amazonas merece enfoque especial, devido ao extraordinário crescimento da população indígena em quase todas as suas cidades, o que gerou uma quase duplicação desses efetivos entre 2000 e 2010. Isto, não obstante a drástica redução do número de indígenas em Manaus, sua capital, que decresceu de 7787 para 4316 moradores no mesmo período. Além disso, o crescimento elevado em cidades situadas em áreas com concentrações indígenas faz supor não apenas avanços no reconhecimento da própria identidade durante a década, como também problemas operacionais que teriam levado a provável sub-enumeração dos efetivos recenseados no início do período em questão, o ano 2000. Excetuando-se Manaus, todas as 18 cidades amazonenses com 300 ou mais indígenas em 2010 tiveram crescimento sensível desses efetivos. De fato, com exceção de Tefé (54,3% de crescimento no período) e São Gabriel da Cachoeira (86,3%), aquelas cidades mais que duplicaram sua população indígena. Em São Paulo de Olivença, na microrregião do Alto Solimões, por exemplo, os residentes indígenas passaram de 79 para 1671 entre 2000 e 2010. Nem todas essas taxas elevadas de crescimento, no entanto, podem estar indicando que os valores que medem os efetivos indígenas locais tenham chegado a níveis aceitáveis de cobertura. Com efeito, embora a população indígena da cidade de Parintins, segunda cidade desse estado em população, tenha mostrado um crescimento inter-censitário de 536,1%, passando de 61 para 388 habitantes entre 2000 e 2010, não se pode descartar que o resultado de 2010 ainda esteja sub-enumerado. Um recenseamento participativo realizado na cidade em 2002, cujos entrevistadores eram sateré-mawé, principal etnia local, enumerou 512 moradores dessa etnia na cidade. Dessa forma, mesmo percebendo-se, através da autodeclaração censitária, manifestações de mudanças dos entrevistados indígenas em relação à sua identidade, haveria ainda um importante e difícil caminho a percorrer no interior de uma cidade em que, como em tantas outras da Amazônia, o preconceito de grande parte da sociedade envolvente continua fazendo-se presente no dia-a-dia dos indígenas. Situação ainda mais preocupante parece ocorrer na cidade de Tabatinga, situada na tríplice fronteira (Brasil, Colômbia e Peru). Apesar de um crescimento decenal de 115,4% da população indígena local, não se pode descartar a suposição de que os 810 autodeclarados indígenas em 2010, embora em número muito superior ao contabilizado no censo de 2000, não correspondam à real totalidade dos efetivos indígenas na cidade. De fato, em outro

recenseamento específico participativo, realizado em 2014 e contando com entrevistadores indígenas ticuna e kokama, foram enumerados 5073 indígenas na cidade, dos quais 3650 kokama (462 autodeclarados em 2010) e 1263 ticuna (287 autodeclarados em 2010). Assim, não obstante diferenças de metodologia de contagem, a quantidade amplamente superior do total levantado sugere que se mantêm, na cidade, as condições objetivas que têm levado os moradores indígenas a não se identificarem como tal. Num outro sentido, não se pode deixar de levar em consideração o único decréscimo de grande expressão entre os indígenas das cidades amazonenses: Novo Aripuanã, microrregião do rio Madeira, teve sua população indígena reduzida de 623 para apenas 19 pessoas entre 2000 e 2010, o que sugere cautela na utilização desses resultados. Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste Após ter sido multiplicada por sete entre 1991 e 2000, a população autodeclarada indígena urbana do Nordeste manteve-se numericamente constante na última década, porém com evolução diferenciada, seja entre os estados nordestinos, seja no interior de cada um deles. No Maranhão, a queda da população indígena urbana ocorreu na capital e no conjunto das cidades do interior, com exceções importantes, como a ocorrida em Grajaú, sede de município com várias terras indígenas. No Piauí, o crescimento da capital superou o decréscimo do interior e a população indígena urbana do estado cresceu. Rio Grande do Norte e Sergipe, com carência de terras indígenas de expressão, viram a população indígena de suas cidades decair, inclusive a de suas capitais, ocorrendo o inverso em Alagoas, com crescimento positivo na capital e nas cidades do interior. Na Paraíba, a forte evolução positiva verificada na capital, João Pessoa, e nas áreas de grande concentração indígena no litoral norte do estado, promoveu a terceira taxa de crescimento indígena urbano entre os estados brasileiros, superada apenas pelas do Amazonas e de Roraima. No Ceará a população indígena urbana está concentrada na Região Metropolitana de Fortaleza e em algumas cidades do interior, próximas a áreas indígenas. Diferentemente de muitos estados brasileiros, os indígenas dessas cidades cearenses, com exceção da capital, cresceram numericamente em 1991-2000 e 2000/2010. Fortaleza teve crescimento negativo na última década, após grande aumento na década anterior, mas os

efetivos indígenas de três das maiores cidades da área metropolitana4, em seu conjunto, quadruplicaram entre 2000 e 2010. Não obstante a forte queda da população indígena nas três principais cidades da Região Metropolitana de Recife, incluindo a própria capital, o número total de indígenas residentes nas áreas urbanas de Pernambuco cresceu graças ao aumento da quantidade de autodeclarantes no interior. Em números, a área metropolitana perdeu 3726 moradores indígenas e o interior ganhou 5953. Convém ressaltar a importância da cidade de Pesqueira nesse crescimento, a qual, sozinha, chega quase a compensar a redução demográfica indígena na área metropolitana. A evolução numérica dos moradores autodeclarados indígenas dessa cidade do agreste pernambucano é emblemática na relação entre reconhecimento de identidade e aumento do nível de consciência e de participação políticas. Contados como apenas 99 moradores em 1991, os indígenas aumentam esse número para 1052 em 2000 e 4406 em 2010. Essas duas décadas são marcadas por todo o processo de demarcação, legalização e homologação da Terra Indígena Xukuru de Ororubá, vizinha à cidade. Dificultado por conflitos diversos e violência por parte dos antigos proprietários da área, o processo de regularização se encerra com a homologação, em 2000, mas os conflitos continuam permeando o relacionamento entre indígenas e sociedade envolvente. Certamente, a quase inexistência de autodeclarados indígenas em 1991, sua decuplicação em 9 anos e multiplicação por mais de 40 em 19 anos estariam a refletir a evolução dessa interação conflituosa de indígenas com a sociedade envolvente no município de Pesqueira. Na Bahia, a queda da população urbana autodeclarada indígena em 2000/2010 foi determinada, basicamente, pela redução, a menos da metade, dos autodeclarados indígenas na Região Metropolitana de Salvador. Caso se considerasse apenas as cidades do interior baiano, a taxa de crescimento da população indígena urbana do estado tornarse-ia altamente positiva, como em algumas outras unidades da federação. Com efeito, fortes incrementos dos efetivos indígenas ocorreram em uma série de cidades baianas, geralmente situadas em áreas com influência indígena, especialmente no litoral sul, como Ilhéus e cidades turísticas do extremo sul do estado, como Porto Seguro, Prado e Santa Cruz Cabrália. É interessante remarcar que nestas três cidades os indígenas mantêm-se em contato com moradores de outras cidades e de outros estados, o que pode ter 4

Caucaia, Maracanaú e Pacatuba

contribuído para sua opção pela identidade indígena no processo censitário, já que essa condição (indígena), numa área turística muito freqüentada, teria mais a beneficiá-los do que prejudicá-los localmente. No Sudeste ocorreu a maior queda regional da população indígena urbana no Brasil na última década. Os efetivos dos autodeclarados indígenas na região regrediram para pouco mais da metade no período. Nesse parcela altamente urbanizada do país, o peso das capitais e suas respectivas microrregiões foi determinante para a evolução populacional: as quatro microrregiões onde se situam as capitais estaduais contribuíram, sozinhas, com 63,4% da queda dos moradores urbanos indígenas da região. De uma forma geral, as perdas populacionais no Sudeste entre 2000 e 2010 deram-se nas cidades onde havia maior concentração de indígenas. Poucas delas mostraram crescimento positivo, e em nenhuma das cidades mineiras ou fluminenses com 300 e mais indígenas esses efetivos cresceram no período. Por outro lado, há carência de cidades de menor porte no Sudeste com população indígena significativa, como ocorre na Amazônia e em outras regiões. Tal situação pode dever-se à exigüidade, no Sudeste, de terras indígenas ou de áreas rurais com efetivos indígenas de alguma relevância demográfica. Apesar de também constituir uma região urbanizada, o Sul tem comportamento um pouco distinto do observado no Sudeste, no que se refere à distribuição e ao crescimento demográfico dos moradores indígenas das cidades. E isto pode estar relacionado a uma diferente composição urbano-rural dessa população entre as duas regiões. De fato, enquanto o Sul tem mais da metade (55%) de sua população indígena residindo em áreas rurais – ou terras indígenas -, o Sudeste não chega aos 20%. Essa desproporção poderia explicar, em parte, as diferenciações na composição espacial do crescimento demográfico indígena urbano das duas regiões, muito embora as taxas de decréscimo dos efetivos indígenas urbanos respectivos não sejam de todo diferentes (5,6% para o Sudeste e 4,2% para o Sul, ao ano). De fato, o peso das grandes cidades na perda dos efetivos indígenas no Sul é menor que no Sudeste. Na primeira dessas regiões, as microrregiões das capitais contribuíram com 52,3% para o decréscimo da população indígena residente nas cidades, inferior, portanto, aos 63,4%, vistos acima, referidos no Sudeste.

Ressalte-se que o decréscimo da população indígena urbana do Sul, que também foi significativo, está centrado nos dois estados mais populosos, Paraná e Rio Grande do Sul. Santa Catarina aparece com um comportamento demográfico atípico na região. O estado apresenta uma redução mínima da população indígena urbana, a qual só ocorre no interior do estado, porque na microrregião de Florianópolis houve expressivo crescimento da correspondente população. A região do Centro-Oeste apresentou um comportamento demográfico não muito distante do que se poderia esperar, a partir das características dos quatros estados que a compõem. Na verdade, apesar de não deixar de acompanhar a tendência de queda observada no Brasil, foi a região com o menor declínio de população indígena entre as três que assim se comportaram. Apenas ocorreu elevação em Mato Grosso do Sul, estado em que o crescimento em apenas quatro cidades (Campo Grande, Anastácio, Aquidauana e Sidrolândia) correspondeu a 86% do crescimento indígena urbano. Aqui, diferentemente de outros estados, o peso do aumento é dado, para além da capital, por algumas cidades pouco populosas mas com efetivos indígenas significativos. Nos demais estados registrou-se decréscimo relativamente moderado em Mato Grosso e no Distrito Federal e muito forte em Goiás. O Mato Grosso, assim como o Mato Grosso do Sul, largamente ocupado pelo agronegócio, mantém áreas extensas de terras indígenas, algumas com elevada população, apresentando, contudo, efetivos indígenas relativamente reduzidos nas cidades (13,7% do total de indígenas nas cidades matogrossenses)5. O decréscimo mais ou menos reduzido do número de indígenas urbanos distribuiu-se com certa uniformidade entre as cidades do estado, incluída a capital. matogrossense Dos quatro estados do Centro-Oeste, não constitui surpresa que Goiás, carente de áreas indígenas de relevo, acompanhasse o país em termos da evolução dos efetivos indígenas urbanos. A capital Goiânia, liderou, em números absolutos, a queda que se processou no estado, mas, quase como no Mato Grosso – não obstante a grande diferença entre os dois estados em termos de quantidade, área e população de terras indígenas -, essa redução

5

Os valores correspondentes para Amazonas e Mato Grosso do Sul, por exemplo, são, respectivamente, 20,3% e 19,7%.

estendeu-se à maioria das cidades: 14 delas tiveram decréscimo de mais de 100 indígenas e apenas teve crescimento desse mesmo porte.

Atipicidades na evolução de efetivos indígenas nas cidades No decorrer do levantamento e da sistematização das informações que serviram de base para este estudo chamaram a atenção casos em que cidades importantes por sua população, localização, ou pelo que representam para povos indígenas específicos, apresentaram resultados inesperados e duvidosos para seus efetivos em 2010. Tal situação ocorreu tanto em cidades com crescimento positivo da população indígena como em algumas daquelas em que esses efetivos decresceram. Consideramos, inicialmente, no ano 2000, as 219 cidades com 300 ou mais residentes indígenas, das quais 86 tiveram aquela população reduzida a menos da metade em 2010. Na tabela abaixo encontram-se os casos extremos dessa situação. Tabela 2 Evolução da população indígena de casos extremos de cidades com efetivos decrescentes entre 2000 e 2010 População Crescimento Cidade Estado 2000 2010 2000/2010 Água Preta

PE

1.292

0

-100,0

Gravataí

RS

1,178

266

-77,4

Mongaguá

SP

937

311

-66,8

Vespasiano

MG

748

101

-86,5

São José dos Pinhais

PR

739

334

-54,8

Juazeiro do Norte

CE

715

354

-50,5

Itaguaí

RJ

682

149

-78,2

Nilópolis

RJ

636

87

-86,3

Novo Aripuanã

AM

623

15

-97,6

Nísia Floresta

RN

614

18

-97,1

Condado

PE

441

2

-99,5

São Caitano

PE

417

39

-90,6

Iraí

RS

382

0

-100,0

Tocantinópolis

TO

337

31

-84,3

Acreúna

GO

317

9

-97,1

Fonte: IBGE. Censos demográficos.

Tais resultados, assim como os verificados para muitas das outras cidades entre as 86 mencionadas, mostram realidades surpreendentes pela intensidade e pela inexplicável redução populacional observada. Os exemplos mais radicais são os de populações que chegam a ser nulas ou praticamente nulas em 2010, ou cujo tamanho da amostra em 2000 era superior ou igual ao da população (amostra expandida) de 2010, como no caso de cinco das sete últimas cidades da tabela. Aparentemente, as explicações para tais evoluções poderiam também estar relacionadas aos quesitos censitários de etnia e língua, cujas conseqüências se fariam estender até o nível de cidades menos populosas. Fica, porém, a dúvida sobre a redução a zero, ou quase, do número de moradores indígenas existentes nas cidades nos 10 anos anteriores, não se podendo excluir problemas de mau desempenho do entrevistador ou de supervisão. Resta a hipótese não verificada neste trabalho, relativamente a alguns desses resultados, sobre o efeito da criação e do desmembramento de municípios sobre os resultados apresentados. Em sentido contrário, existem cidades com população ínfima em 2000 e que tiveram crescimento muito elevado no decênio, o que sugere cautela ao se observarem as informações censitárias daquele ano referentes aos indígenas dessas cidades. Tabela 3 Evolução da população indígena de casos extremos de cidades com efetivos crescentes entre 2000 e 2010 População Cidade Estado 2000 2010 Monsenhor Tabosa Tonantins Porangá Carnaubeira da Penha Nova Olinda do Norte Crateús Parintins Tenente Portela

CE AM CE PE AM CE AM RS

0 0 5 13 30 43 61 76

493 545 1.102 712 337 582 442 480

Santo Antônio do Içá

AM

78

1.515

São Paulo de Olivença Altamira Rio Tinto Pariconha

AM PA PB AL

79 125 134 143

2.222 823 1544 1000

Fonte: IBGE. Censos Demográficos.

Tais cidades fazem parte de uma lista mais numerosa, muitas delas sem indígenas em 2000 e com menos de 300 indígenas em 2010. A maior parte das 12 aqui apresentadas localizam-se em áreas de reivindicações de reconhecimento da identidade - num processo de etnogênese e de demarcação de terras. Não há relatos de migrações em grande escala de indígenas para as cidades em tal situação. Isto significa que muitos dos totais censitários sobre indígenas nas cidades, levantados em 2000, não parecem confiáveis, talvez pela utilização da autodeclaração da etnia ou, mesmo, de sub-enumeração censitária. Não há, aqui, elementos que justifiquem a influência de possíveis criações ou desmembramentos de municípios nas informações de 2000.

Crescimento indígena urbano, população indígena e total urbano No conjunto, o número de cidades brasileiras com queda da população indígena entre 2000 e 2010 não difere muito da quantidade daquelas com população crescente no mesmo período (1.967 e 1.608 cidades, respectivamente, do total de 5565)6. O que vai diferir entre elas é o sentido do crescimento conforme o número de residentes indígenas e o tamanho da população (total) urbana. De um lado, decréscimos mais acentuados da população indígena ocorreram, geralmente, nas cidades com maior população indígena no começo da década em estudo. Assim, das 219 cidades com 300 ou mais habitantes em 2000, 171 apresentaram queda no número de moradores indígenas e 86 tiveram esses efetivos reduzidos a menos da metade no período. De outro, entre as 58 cidades que iniciaram o milênio com mais de 1000 indígenas residentes, só nove tiveram aumento desses efetivos, todas elas com população total (indígenas mais não-indígenas) inferior a um milhão de habitantes. Por sua vez, as 12

6

No restante dos municípios (1994), ou a população teve crescimento nulo ou não foram registrados indígenas nas respectivas sedes nos dois anos censitários.

regiões metropolitanas mais populosas do país sofreram forte declínio da população indígena na década, o que se deu na maioria dos municípios de cada uma dessas regiões. De um modo geral, as informações censitárias em análise sugerem que foi nas maiores e mais dinâmicas cidades de cada estado que se verificaram as quedas mais significativas dos efetivos indígenas, especialmente nas capitais e em seu entorno. Há exceções várias de incrementos populacionais, como os da microrregião de Fortaleza, no Ceará, de Teresina, no Piauí, de Ilhéus, na Bahia, ou outros menores, como os das capitais Maceió (AL), Rio Branco (AC) e Campo Grande (MS), além de crescimentos nulos em duas metrópoles: Fortaleza e Brasília. No geral, porém, as taxas mais elevadas de crescimento da população indígena aparecem especialmente em cidades de menor expressão populacional relativa, como Marcação (AL), Paulo Afonso (BA), Caucaia (CE), Santa Isabel do Rio Negro (AM), Pesqueira (PE), Autazes (AM) e Santa Cruz Cabrália (BA), entre outras, sem contar as já mencionadas anteriormente, com população indígena menor que 300 moradores em 2000. Na verdade, uma quantidade restrita de grandes cidades é responsável por parcela determinante na queda decenal da população indígena urbana. A redução total de 61.550 observada na última década é resultado de uma “perda” de 157.602 habitantes nas 1881 cidades citadas acima e de um “ganho” de 96.052 nas 1507 restantes. Da redução total no período, 56.065 (91%) correspondem às 36 cidades com mais de 500 mil habitantes em 2010 - das quais apenas quatro tiveram crescimento positivo da população indígena. Os restantes 9% do decréscimo populacional indígena referem-se às demais 2646 cidades que tinham pelo menos um autodeclarado indígena em 2000 e 2010. Os mesmos dados censitários mostram que quase metade (45,3%) do valor referente à queda dos efetivos indígenas urbanos em 2000/2010 concentrou-se em apenas 13 regiões metropolitanas.

Efeitos dos anos 90 no crescimento de 2000/2010 Muito embora não haja base referencial sólida para a análise da variabilidade temporal surpreendente dos efetivos indígenas nas cidades brasileiras, os resultados apresentados parecem sugerir alguma conexão entre o grande crescimento demográfico dos anos noventa e a subseqüente queda na primeira década deste século.

O crescimento verificado entre 1991 e 2000 atingiu quase todas as cidades em que havia moradores indígenas no início daquele período, com concentração nas cidades maiores. Das 81 cidades com mais de 100 habitantes indígenas em 1991, 75 tiveram acréscimo dessa população até o fim daquela década, e 57 delas mais que triplicaram seus efetivos indígenas. O notável é que 48 destas cidades apresentaram queda dos efetivos indígenas na década seguinte, isto é, muitos dos declínios populacionais subseqüentes a um grande crescimento da população indígena parecem ter ocorrido naquelas mesmas cidades onde foram registrados os aumentos mais significativos da mesma população. Apenas para ilustrar: entre as grandes cidades onde se verificou o fenômeno que acaba de ser descrito estão Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Manaus e outras capitais estaduais, além de cidades médias importantes do interior e de diversas áreas metropolitanas. Todas elas alcançaram, em 2000, mais do triplo dos efetivos que tinham em 1991 e tiveram forte queda da população indígena nos dez anos seguintes. Devem-se, no entanto, levar em consideração outras evidências que poderiam levar ao questionamento de tal suposição. Considerando-se o total de 272 microrregiões situadas nos estados onde se verificaram maiores quedas de população indígena na última década, observa-se que tais quedas ocorreram na maioria delas (155), Isto poderia estar a indicar dispersão do crescimento pelo interior dos estados, e não concentração nas cidades com os surpreendentes acréscimos da população indígena entre 1991 e 2000, conforme sugerido no parágrafo anterior. Convém notar, porém, que 60 (38,7%) entre as microrregiões com crescimento negativo tinham população indígena urbana reduzida (menos de 300 moradores cada), cuja soma mal passava dos 5% dos residentes indígenas no conjunto das cidades daquelas 155 microrregiões. Tais aparentes contradições podem contribuir para o aprofundamento da discussão sobre o possível efeito que o elevado crescimento da população indígena de algumas das principais cidades brasileiras nos anos noventa possa ter tido sobre o decréscimo populacional que se seguiu nas mesmas cidades.

Considerações finais Compreender a evolução demográfica da população indígena residente nas cidades brasileiras torna-se mais que um desafio. Trata-se, principalmente, de procurar contribuir para que, cada vez mais, a cada censo demográfico, se tenham as condições de avaliação das vicissitudes nas determinações das tendências demográficas tanto no seu aspecto comportamental (de como os indígenas vêem o entrevistador censitário) como técnico-

operacional (formulários, autodeclaração, treinamento, supervisão, disseminação das informações). O crescimento extraordinário dos efetivos indígenas urbanos entre 1991 e 2000 no Brasil surpreendeu os que começavam a estudar a demografia indígena com base em resultados censitários e, até hoje, não há um consenso – sobre os determinantes de tal tendência de crescimento. Autodeclaração, Constituição Cidadã de 1988, participação política, expansão das organizações indígenas, luta pelas terras e pelo reconhecimento étnico, visibilidade das causas e dos problemas dos indígenas, vantagens em se autodeclarar indígena, sub-enumeração no censo de 1991, problemas de abordagem e de supervisão, são hipóteses que se podem combinar para explicar a complexidade dos dados. Já em 2010, a constatação da queda de quase 18% dos efetivos indígenas nas cidades nos 10 anos anteriores, subseqüente ao majestoso crescimento de 440% da década de 90, surpreendeu os usuários dos dados censitários e os estudiosos da população indígena pela impossibilidade de sua justificação por causas demográficas. A inclusão dos quesitos sobre etnia e língua, no questionário censitário de 2010, pode ter contribuído para o decréscimo urbano, ao inibir entrevistados sem convicção da própria identidade indígena. Reflexões sobre o inesperado dos resultados censitários poderiam conduzir à suposição da existência de alguma relação entre o crescimento de 1991-2000 e o de 2000/2010. Afinal, a maioria das grandes cidades que cresceram exponencialmente sua população indígena no primeiro desses períodos apresentou quedas muito fortes no período seguinte. Além de retomar observações sobre a variabilidade, entre regiões e estados, da evolução demográfica dos indígenas das cidades, procurou-se justamente “adentrar” nos espaços regionais e estaduais à procura de similitudes e distinções intermunicipais das tendências. Observaram-se correntemente, em cidades de um mesmo estado, taxas de crescimento positivas e negativas superiores a 50%, o que pode desafiar os estudiosos não familiarizados com a evolução histórica e a cultura locais. É por esse motivo que considerações suplementares a respeito destes e de outros resultados acabaram ficando em aberto, na expectativa de retomada por especialistas interessados na discussão de casos específicos. Chamou a atenção o fato de que em quase todas as grandes cidades (com mais de um milhão de habitantes naquele ano) a queda foi muito maior que a média nacional. De

forma geral, constatou-se que as maiores taxas de decréscimo tendem a ser encontradas nas cidades mais populosas ou nas que têm mais moradores indígenas, especialmente na expressiva maioria das capitais estaduais ou as microrregiões em que elas se situam. Há, no entanto, algumas capitais em que os efetivos indígenas cresceram no período estudado, todas com população total inferior a um milhão de habitantes em 2010. Nas cidades com 300 ou mais residentes indígenas em 2010, a variação populacional na maioria dos estados, em especial os do Sudeste e do Sul, acompanhou a evolução das capitais ou das microrregiões em que elas se situam. Houve exceções importantes, como Amazonas e Pernambuco, onde o crescimento positivo do interior superou o negativo da capital, com saldo estadual positivo. Há também o caso do Ceará, com crescimento da população indígena urbana, em que, em contraposição ao decréscimo (reduzido) na capital, os efetivos indígenas elevaram-se substancialmente nas cidades da respectiva microrregião. Registrou-se, no decorrer deste trabalho, quantidade não negligenciável de cidades com variações populacionais aparentemente inviáveis, apresentando crescimentos ou decréscimos inesperados entre 2000 e 2010. Existe a possibilidade de que vários desses resultados se mostrem coerentes, porém convém buscar possíveis explicações para os demais casos, talvez avaliando a evolução de cada cidade, individualmente. Uma situação explicável, em princípio, é a da população indígena da cidade de Pesqueira, em Pernambuco, cujo extraordinário crescimento decenal teve certamente relação com a homologação, em 2000, da Terra Indígena Xukuru, na vizinhança daquela cidade, e com seus desdobramentos sociais e econômicos. Mais difícil é explicar a evolução de cidades do estado do Amazonas cujos efetivos indígenas passaram de menos de cem a mais de mil habitantes entre 2000 e 2010. O mesmo ocorre com relação a decréscimos tão elevados em algumas cidades que o número de indígenas, em 2010, chega a se aproximar de zero, ou se anula. Independentemente das dúvidas sobre as tendências demográficas aqui discutidas, o crescimento expressivo da população indígena de várias cidades no Brasil está a indicar um progresso substancial na cobertura do censo demográfico oficial, não obstante alguns resultados não confiáveis (redução ou aumento drásticos de população, conforme o parágrafo anterior). No entanto, realizados em algumas cidades onde se observou tal progresso, como Parintins e Tabatinga, no Amazonas, censos indígenas não-oficiais

específicos estão a indicar que ainda há que se fazer um grande esforço na operacionalização do censo nacional, no sentido de se localizar o maior número possível de indígenas nas cidades, mesmo sabendo-se da impossibilidade de se chegar a uma cobertura completa desses moradores utilizando-se o critério de autodeclaração. A conseqüência de não se fazer o referido esforço pode ser a manutenção do que se nos apresenta hoje: a consciência de não sabermos quantos indígenas habitam as cidades brasileiras e de nem termos como chegar a números que nos aproximem de totais aceitáveis em muitas delas. Afinal, de quanto seria realmente a população indígena de Manaus em 2010?

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