«O que podem as humanidades? Presença dos estudos humanísticos», Revista de Estudios Portugueses y Brasileños, vol. 13, Salamanca, Luso-Española de Ediciones, 2014, pp. 207-220.

May 27, 2017 | Autor: Pedro Serra | Categoria: Philology, Humanities, Digital Humanities, Literary Theory
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O QUE PODEM AS HUMANIDADES? Presença dos estudos humanísticos1 PEDRO SERRA

As chamadas ‘humanidades’, no contexto do sistema universitário que, a partir de finais da década de noventa do século XX, é conhecido como o ‘Espaço Europeu de Educação Superior’, 2 têm vindo a ser pensadas em função de uma poderosa, mas talvez também bastante banal, ideia de ‘crise’. Não é infrequente ouvirmos nos meios de comunicação audiovisual, lermos na impressa escrita, ou lermos ou ouvirmos no meio de meios, o meta-meio digital – cuja hegemonização, no mundo da vida, se conhece como ‘guinada digital’ –, que as “humanidades estão em crise”. A razão prática das faculdades de letras das instituições universitárias da Europa foi determinada por uma depreciação, ao nível dos discursos políticos, ao nível da própria sociedade civil, do valor simbólico e prático da literatura e das disciplinas que vinham, precisamente, confirmando, a nível institucional, a sua funcionalidade no âmbito da sociedade. Efectivamente, não se limitando as humanidades, os estudos humanísticos, ao conhecimento da literatura, a verdade é que tem sido, sobretudo, o âmbito dos chamados ‘estudos literários’, aquele que, tanto ao nível teórico como ao nível prático da academia europeia – mas como bem sabem, também norteamericana – é subsumido pelo paradigma da crise. Pensar a partir de uma figura como a que percute na palavra e na 1

Texto apresentado ao XIX Seminário de Estudos Lingüísticos e Literários, realizado na Universidade Federal da Rondônia, Campus de Vilhena, no dia 01 de Outubro de 2014. 2 A ‘Declaração de Bolonha’ data de 19 de Junho de 1999. O reforço da integração europeia em matéria de ensino superior universitário já está consignado na ‘Magna Charta Universitatum’, assinada em Bolonha a 18 de Setembro de 1988.

noção de ‘crise’ abre possíveis, mas também estabelece limites. Se formos ao essencial, um pensamento da ‘crise’ nomeia, enfim, uma redundância. Uma brevíssima entrada na razão etimológica da palavra ‘crise’ dá-nos conta do enredo, da dobragem, que supõem sintagmas nos últimos tempos tão repisados como os de que “as humanidades estão em crise”, ou “a crise das humanidades”. Isto porque, se o vocábulo aponta tanto para o sentido de ‘separação’ – ponhamos por caso: o ponto crucial de uma mudança, a ‘ruptura’ com um estado de coisas –, sendo, assim, figura do ‘momento’ numa retórica da temporalidade que a conforme como mudança; o vocábulo alude, também, ao acto cognitivo que analisa ou reflecte essa ‘ruptura’, referindo, assim, o momento em que, por exemplo, uma rotina ou hábito mental é discernido e comutado por outro. Ora, uma frase como “a crise das humanidades”, neste sentido, poderá ou deverá ser lida não apenas como a ‘ruptura’ de um estado de coisas ou hábito mental – por exemplo: o desinvestimento, tanto na Europa como nos Estados Unidos da América, num modelo de universidade em que as ‘artes e humanidades’ perdem financiamento e capital simbólico; ou a irrelevância, perda de identidade ou evidência dos chamados ‘estudos humanísticos’ dentro do próprio processo da universidade moderna, por razões, digamos, intrínsecas e extrínsecas –, mas também com um sentido positivo. Isto porque, em rigor, as ‘humanidades’ são a crise, isto é, conformaram-se como acto crítico. Num certo sentido, ‘humanidades’ sempre foram ‘crise’, isto é, complexas formas de organizar uma experiência temporal assente na ideia de passagem e mudança. As ‘humanidades’ sempre foram, enfim, formas de organizar a experiência da ‘ruptura’. Foi esse, efectivamente, o “sonho do humanismo”, como lhe chamou, num belo ensaio, o grande filólogo espanhol Francisco Rico. No livro El sueño del humanismo. De Petrarca a Erasmo, Rico vai mostrando como a utopia humanista de uma exponencial perfectibilidade do ser humano, com o advento dos estudos humanísticos, tem um poderoso analogon no paradigma material e hermenêutico da correcção ecdótica. Quer dizer, para os studia

humanitatis, corrigir o ser humano, aperfeiçoá-lo, é uma actividade comparável à da crítica textual, o que significa que, antes de tudo, algo como a ecdótica – ou, por extensão e assimilação, os estudos filológicos –, é a conformação de um modelo cognitivo que produz, e é produzido, por uma temporalidade que tem no âmago a variabilidade e a alteridade. Vale a pena dar a palavra a Francisco Rico, que traduzo para o português: “Ao humanismo, com efeito, continuamos a dever o ter descoberto que a nossa dimensão é a história, que o homem vive na história, ou seja, na variação, na diversidade de ambientes e experiências, no relativismo. Mas, por aqui, também na esperança. Porque essa visão da realidade e a temporalidade implica um programa de acção: implica que é possível mudar a vida, que a restituição da cultura antiga abre perspectivas novas, que o mundo pode ser corrigido como se corrige um texto ou um estilo” (RICO 1993: 43-44).3 Trata-se de uma poderosa descrição da base prática e metafísica dos estudos humanísticos, do humanismo genericamente considerado. Sobretudo, destacaria, desde já, o facto de os studia humanitatis serem pensados na sua dimensão material, pois do que se trata, precisamente, é de levar a cabo a aproximação a uma actividade determinada pela proximidade física e sensível dos textos da antiguidade. Por outras palavras, é em virtude do contacto com a materialidade dos textos que se podem agregar asseverações, valores ou crenças, uma metafísica em suma: a crença no progresso humano como linha de exponencial perfectibilidade. Valores ou crenças como “antiguidade”, “consciência histórica”, “utopia”, decorrem da superveniência deste choque material, enfim, do choque tecnológico que se prefigura e que se actualizará com a invenção da imprensa de caracteres móveis: materialidade que transporta uma imaginação, precisamente a imaginação do transporte para o futuro. Assim, os studia humanitatis carregam no bojo o futuro, uma categoria que foi possível passar a entender não como figura escatológica, mas 3

A partir deste lugar do livro de Francisco Rico, levei a cabo uma prospecção da complexa relação entre os ‘filologia’ e ‘romance’ em Serra, 2003.

como dimensão de uma temporalidade histórica secularizada. Friedrich Kittler recorda como aquando das primeiras edições de missais, o clero considerou um “milagre divino” a possibilidade de coincidência de todas as cópias a partir de uma composição tipográfica matriz (cf. KITTLER 2005: 43). O ‘milagre da cópia’, dir-se-ia. Com a tipografia, os livros “entram na era da sua técnica, e, por conseguinte silenciosa, reprodutibilidade” (ibidem). No quadro normativo humanista que então se coagula, o futuro é subsumido ao teatro potencial, composto por materiais, crenças e práticas, do presente, cronótopo do contacto do seu humano com o tempo, com a história. O futuro, em suma, é identificado pela mediação de uma tecnologia, a tipografia. Máquina de produzir o sonho do humano, máquina de produzir, como propõe Francisco Rico, o “sonho do humanismo”, mas também máquina que acabará por se naturalizar e ser o suporte de uma humanidade não mediada pela técnica. Seja como for, com a mudança total do regime de invenção com a advento da tipografia, estabelecem-se também as condições materiais e simbólicas para a negação do próprio “sonho do humanismo”. O pesadelo da tecnologia, que sobrevém no catastrófico século XX, acabará por ter modulações de recorte pós-humanista ou contra-humanista. Esse pós-humanismo, ou mesmo anti-humanismo, pôde ter, por exemplo, na seguinte imagem J. G. Ballard uma poderosa figuração. Afirma a voz em off do próprio Ballard em Crash!, pequeno filme produzido pela BBC e dirigido por Harley Cokliss em 1971 a partir de fragmentos da Atrocity Exhibition, o romance homónimo de Ballard só viria a ser publicado em 1973: “the future is something with a fin on it” 4. Magistral síntese do fascínio e temor – modos maiores da ficção científica e da ficção cyberpunk – que move a tecnologia avançada, estranhando e entranhando-se no mundo da vida. A esse contrahumanismo, pelos mesmos idos dos anos 70, concederia ainda um magistral resumo o poeta espanhol José Ángel Valente, quando 4

Filme disponível online em www.youtube.com/watch?v=5cqn6zA1sMg. A frase de Ballard encontra-se no minuto 03:15s a 03:17s.

assentava, num agonismo muito presente na intelectualidade europeia desses idos, no cansaço das ideologias, que: “El marxismo no es un Humanismo. | El Cristianismo no es un Humanismo. | El Humanismo no es un humanismo”. O livro de onde recorto estes versos, duplamente negativos – cabe a possibilidade de negarem a negação – tem por título Presentación y memorial para un monumento, datado de 1969, e devolve-nos a escala com que o cronótopo vivia o refluxo da narrativa progressiva e progressista de uma história, afinal, inumana, aberta a um humanismo ainda por cumprir. Insistiria um pouco mais nos limites da retórica hegemónica da ‘crise das humanidades’, pois na verdade encerra ainda outra banalidade de base: os studia humanitatis, na detonação da universidade liberal, sempre contaram com a contestação do corporativismo do capital. Num livro de 2008 que teve uma justificada estridência no âmbito académico norte-americano, The Last Professors. The Corporate University and the Fate of the Humanities, da responsabilidade de Frank Donoghue, o autor sublinha, mediante amostragem suficiente, como a presença das artes e humanidades na formação universitária liberal sempre foi, de forma mais ou menos verrinosa, reprovada pelos capitães da indústria. A educação superior, financiada pelas grandes corporações, fez da “inutilidade” dos estudos humanísticos um lugar comum intrínseco ao próprio começo e desenvolvimento da instituição universitária no trânsito do século XIX para o século XX. Os capitães da indústria, cito, “discutiam entre si sobre se a universidade pode ser o lugar adequado para se tornar um especialista, mas eram unânimes em ver as artes liberais e ciências humanas como irrelevante e até mesmo perigoso” (DONOGHUE 2008: 10). Apesar de estas banalidades informarem o debate em curso, não raro se têm vindo a suceder seminários, congressos, publicações de variado fôlego, sobre o “futuro” das humanidades, especificamente dos estudos literários, como modo de reacção, e proacção, que visa, de algum modo, produzir um determinado discurso normativo que permita

continuar a legitimar, no ensino universitário, a presença da literatura e dos estudos literários. Pensar o futuro, no fundo, para substanciar o valor da literatura e do seu estudo crítico, no presente, num gesto que, com assiduidade e frequência, se vale da retrospecção de um passado áureo cuja hipóstase é acompanhada de uma maior ou menor melancolia. Conjurar, neste contexto recente de ‘crise das humanidade’, seja o quattrocento italiano, seja o criticism inglês de meados do século XVIII, é um expediente que, sabemo-lo bem, se vale do prestígio de uma origem mítica, suspendendo o que naqueles momentos foram apenas triviais começos, detonações incertas, pejadas de aberturas, mas também de limitações. Um conhecido e excelente ensaio do grande crítico e estudioso da literatura Edward Saïd, cujo título é “The Future of Criticism” e foi publicado inicialmente na revista Modern Language Notes, em Setembro de 1994, pode proporcionar-nos um resumo da recidiva humanista, da reincidência do humanismo na dimensão prognóstica do acto crítico. Diz-nos Saïd, de modo muito conspícuo, que “o próprio acto de fazer crítica implica um compromisso com o futuro, mais concretamente, implica o compromisso de aparecer no futuro, de fazer uma contribuição ao futuro, ou de algum modo formar e afectar o futuro” (SAÏD 1984: 952). Aproximadamente uma década mais tarde, o estado de espírito é já outro, com modulações bem mais melancólicas. Num volume colectivo como o editado por Hans Ulrich Gumbrecht e Walter Moser, sob o título The Future of Literary Studies, o ‘humor’ que circula pelas múltiples contribuições é ostensivamente depressivo, dir-se-ia dominado pelo fluxo de uma atra bilis ou fel obscuro. É o próprio Gumbrecht que sublinha este modo saturniano: “os nossos colegas das disciplinas literárias escrevem sobre os Estudos Literários e o seu futuro com um tom disfórico. Mesmo aqueles que não são abertamente pessimistas em relação a este futuro, escrevem como se estivessem em conflito com a sua disciplina – sem saber (ou, pelo menos, sem querer dizer) o que fazer com ela” (GUMBRECHT E MOSER 2001: 14). Torpor disciplinar e uma

certa demissão do impulso para produzir alternativas são o correlato deste enquadramento intelectual da questão dos estudos literários, pensados sob a alçada de um conceito de futuro. Dir-se-ia que a moldura especulativa da questão sustenta um impasse: a continuidade dos estudos literários depende do futuro como inflação de um “horizonte de possibilidades”; a continuidade dos estudos literários é truncada, precisamente, pelo cancelamento da prognose de quaisquer possíveis desse futuro inflacionado. O paradigma, como é bom de ver, carrega no bojo, ainda, um modelo temporal crónico. É dele que depende, assim – tanto num exemplo como o de Edward Saïd, como no caso do conjunto congregado no volume The Future of Literary Studies –, o ‘poder’ dos estudos literários. Depende, por exemplo, da capacidade que tenham, como campo disciplinar que detonou a sua própria unidade, em se transformar ou renovar. Não pretendo, nem seria certamente interessante ou mesmo construtivo, impugnar as valências heurísticas e hermenêuticas deste paradigma cronológico, afinal o que definiu o cronótopo moderno. A modernidade, espinhosa categoria, sabêmo-lo bem, como arguiu num primeiro lance Koselleck, tem no “tempo histórico” – entendido precisamente como mudança, determinando um amplexo de figuras e noções que incluem objectos como a já aludida ‘crise’, a ‘revolução’, o ‘novo’, entre outros – um dos seus travejamentos principais. Contudo, podemos decerto considerar que o problema dos estudos literários, da presença da literatura na universidade liberal-corporativa, em função desse modelo prognóstico, encerra um paradoxo. A prognose implica, como a etimologia do vocábulo dispõe, um conhecimento do futuro. Ora, se algo significa a literatura na modernidade é, pelo contrário, a instanciação de uma ruptura da temporalidade crónica – escavando um tempo dentro do tempo, isto é, fora do tempo –, diferenciando radicalmente passado e futuro. Num estimulante ensaio tardio intitulado “La littérature comme réalité fictionnelle”, Niklas Luhmann propõe uma figura para este tempo dentro do tempo que vale a pena conjurar aqui. Se

o tempo crónico tem na linearidade a sua imagem plástica mais produtiva, a obra de arte moderna – isto é, a obra de arte que perfaz a sua própria autonomia – instancia uma temporalidade helicoidal: “A produção e a contemplação de obras de arte não são, pois, processos lineares funcionando sob a modalidade da adição; pelo contrário, evoluem como anéis que unem um passado a redescobrir e um futuro ainda por definir. Ao abolirem todas as limitações, criam novos espaços para as oscilações” (LUHMANN 2001: 30). A figura anular, espiralada, para o que me interessa destacar, sublinha a detonação da temporalidade crónica e, neste sentido, a condição ignota do futuro. Pois bem, a minha proposta visará pôr à prova a possibilidade de pensar os estudos literários, as humanidades – enfim, a própria presença das belas letras e belas artes no seu último reduto, a universidade –, não rasurando esta dimensão desconhecida do futuro. Isto supõe um ligeiro, mas creio que significativo, desvio no que se refere à injunção que acarreia o sintagma de um “futuro dos estudos literários”. Desde logo, o marco teórico que vou propor pretende testar um modelo que permita, de algum modo, obviar quer a melancolia instanciada pela hipóstase de um illo tempore da arte e da crítica na universidade moderna, quer o temor de um prognóstico sombrio de um futuro que se lhe adscreva. O último livro de Hans Ulrich Gumbrecht, Our Broad Present. Time and Contemporary Culture, deste mesmo ano de 2014, aponta, explicitamente, esta sintomatologia: “Apesar de toda a discussão sobre como o passado supostamente desapareceu, um outro problema que o novo cronótopo apresenta é o de que já não somos capazes de legar nada para a posteridade. Em vez de cessarem de proporcionar pontos de orientação, vários passados inundam o nosso presente; sistemas electrónicos e automatizados de memória desempenham um papel central no processo. Entre os passados que nos esmagam e o futuro ameaçador, o presente tornou-se uma dimensão de simultaneidades em expansão” (GUMBRECHT, 2014: XIII). Não são, os nossos, é certo, tempos para o entusiasmo como aqueles que permitiram,

no trânsito dos anos 50 para os anos 60, a entrada da teoria literária e dos estudos literários no âmbito académico peninsular ibérico; um entusiasmo que, modulação da libido sciendi de tempos revolucionários utópicos como o desses idos, movem agora, no refluxo, o desencanto. Talvez o reconhecimento da potencialidade da literatura e dos estudos literários – “o que podem as humanidades” – passe, hoje, pela lateralização do torpor e da intensão; talvez passe, enfim, pela suspensão intervalar da tristeza e do júbilo. É nesta situação suspensiva que me instalo. Poderá, então, haver vantagens em pensar o “problema das humanidades” suspendendo – isto é, colocando em suspensão – a razão temporal? Significa isto que se rasura do ‘futuro’ como categoria que conforma, no cronótopo que fomos conhecendo com o nome de Modernidade, a capacidade de agir na realidade? Talvez não, desde logo não é esse o conteúdo da minha reflexão, sobretudo se pensarmos que pode haver uma modalidade de ‘futuro’ não referencial, isto é, uma modalidade de prognose que não aponte afirmativamente um estado de coisas, sem que contudo esse desapontamento seja negativo. Digamos que o modelo que sugiro implica uma cognição e uma acção a contrapelo do modelo simultaneamente narrativo e descontínuo aninhado no processo da modernidade pós-ilustrada. Ora, este modelo intelectual e activo, em rigor, é ele próprio um produto desta modernidade, encontramo-lo formalizado, como veremos, na esfera de acção comunicativa que é propriamente moderna: a arte moderna. Mais concretamente, no modelo de experiência temporal agonizado e dramatizado na configuração da autonomia do estético. São múltiples, como sabemos, as descrições ou teorias deste agonismo desta experiência temporal, Theodor W. Adorno ou Walter Benjamin são decerto dois dos vultos maiores da reflexão sobre esta problemática, uma problemática que define a própria ontologia do moderno. Contudo, não é eles que recorro, mas sim ao estimulante, e bem menos conhecido, trabalho sobre a modernidade literária levada a cabo por Karl Heinz

Bohrer. É nos estudos de Bohrer, como sublinhou David Ferris, de modo mais abrangente no volume Suddenness – de 1981 mas traduzido para a língua inglesa em 1994 por Ruth Crowley –, que encontramos uma radical e alternativa modelização do agonismo temporal da modernidade. Neste sentido, numa síntese que supõe, do meu ponto de vista, um instigante desafio hermenêutico, Bohrer descreve a categoria de “momento” ou “instante” como a forma temporal que define a relação da literatura moderna com a temporalidade como mudança e com uma cognição assente no contacto com o mundo como aparência. O hic et nunc moderno é uma tensão entre plenitude e vazio, entre um apogeu e uma carência, sendo possível, aliás, multiplicar os binómios: é o ponto da ausência e da presença, do actual e do virtual, da irrupção e da interrupção, da extensão e do inextenso. São corolários da possibilidade do moderno, da presença do moderno, que radica no instante como momento de intensidade. Karl Heinz Bohrer formalizou, neste sentido, uma tensão irredutível na categorização desse instante, a tensão que se estabelece entre ‘duração’ e ‘subitaneidade’. No âmago do cronótopo moderno, deste modo, temos o instante auto-referencial numa relação intencional como pura aparição sem referência. Na modernidade, assim, o instante agoniza o binómio continuidade/ruptura, que tem ainda na noção de ‘diminuição da referencialidade’ a descrição do seu atributo essencial, afinal a categoria do momento como ‘instante sem referência metafísica’. Cito Bohrer, um lugar que me parece importante conjurar para uma discussão do ‘problema das humanidades’ no contexto da comoção que se vive presentemente, a da sua famigerada crise: “O instante sem duração, mas assim pleno de sentido, pode ser entendido como invenção da consciência fenomenológica que detona todos os sistemas. Foi preparado pela categoria romântica do ‘vago’, desenvolvido pelos impressionistas na sua concepção de realidade, e é trazido até uma modalidade aporética pelos rigorosos representantes, altamente reflexivos e intelectuais, da consciência modernista” (BOHRER 2001: 118). Não é despicienda a menção ao cronótopo histórico-estético

que vai do romantismo ao modernismo, ao que Bohrer chama ‘modernismo clássico’, e para o qual valerá, também, a categoria de altomodernismo. A momentaneidade súbita sem referência metafísica tem, assim, dois correlatos cruciais: na sua contingência radical detona a causalidade – e por isso sempre supõe destruição, mas também hipóstase, de um modelo narrativo do tempo histórico –, suspendendo, ainda, as determinações espácio-temporais. Isto significa, por outro lado, a emergência intensificada de uma fenomenologia da sensação. É porque a momentaneidade se revela, pois, como auto-referencialidade sensível paradoxalmente carente de sensação, que supõe a ampliação da sua intensidade: o ser excesso sensível indistinguível da sua privação é, no fundo, outro modo de descrever o instante como condição de possibilidade do moderno. Ora, este quadro especulativo – e o argumento parece-me realmente muito convincente –, acomoda o papel crucial desempenhado pela arte como presença da modernidade. Se o instante é, no fundo, como vimos, o que possibilita e impossibilita a percepção, sublinha Bohrer, neste sentido, ter sido a arte – enfim, ter sido a literatura; os exemplos que aduz incluem James Joyce, Virginia Woolf ou André Bréton – que lhe deu forma no século XX, e não tanto a filosofia. Se a filosofia não fez do instante o seu objecto, não assim, cito, “a contemplação literária, [que] foi capaz de carregar este motivo” (BOHRER 2001: 130). Isto conduz, necessariamente, a que a condição de possibilidade do moderno radique no estético, ou talvez melhor, no estésico e não tanto na filosofia do estético, como recentemente argumentou Johanna Drucker (Drucker 2009: 127 e passim). Neste cronótopo, o acontecimento e a agência assumem a forma de um contacto sensível determinado pelo já aludido agonismo do excesso e da privação. É talvez a isto que alude Hans Ulrich Gumbrecht, quando assenta a descrição de um dos corolários da temporalização oitocentista da história: “Em cada momento presente, o sujeito deve imaginar uma gama de situações futuras que têm de ser diferentes do

passado e do presente e dentro das quais ele escolhe um futuro de sua preferência. Somente por meio dessa ligação com o tempo histórico e da função que ela cumpre nessa dimensão pode a subjectividade integrar o componente de acção e auto-imagem que ele oferece à humanidade. E é essa inter-relação entre tempo e acção que cria a impressão de que a humanidade é capaz de ‘fazer’ a sua própria história” (Gumbrecht, 199: 16). Este é um lugar conhecido do modelo especulativo gumbrechtiano. Gostaria, contudo, de sublinhar alguns termos deste trecho que, do meu ponto de vista, permitem por à prova o alcance, mas também os limites, deste trecho. Refiro-me, concretamente, aos termos “imaginar”, “ligação”, “integrar” e “impressão”. Convenhamos que são figuras da dimensão sensível, o contacto como lhe venho chamando, que é uma variação da condição de possibilidade do moderno. O meu interesse no modelo teórico de Karl Heinz Bohrer estriba no facto de identificar no estético um valor incondicionalmente positivo. Cito, assim, uma outra descrição do instante moderno: “[o instante – diz-nos –] representa uma qualitas da sensação exclusivamente positiva, uma qualidade que, apesar de ser deficitária em conteúdo, não podem como ‘percepção’, tornar-se negativa, por muito facilmente que o pensamento lhe agregue uma negação” (BOHRER 2001: 130). Em resumo, é na subitaneidade do instante moderno, e nas tensões que instaura – entre auto-referência e desreferencialização, entre excesso e privação, entre ruptura e continuidade, para apenas mencionar algumas – que radica o valor estrutural dos objectos estéticos, das artes, da literatura e, em última instância, de umas humanidades, uns estudos humanísticos, uns estudos literários que pensem sobre eles. Para o que, neste momento, mais nos importa, o paradoxal poder da literatura e dos estudos literários radica não tanto na sua inscrição num quadro especulativo que lhe interrogue quaisquer finalidades – anacrónicas e/ou proteladas no tempo –, mas no facto de afirmarem e negarem promessas sem conteúdo, isto é, ‘sem referência metafísica’. É o poder de mediarem, literatura ou estudos literários, um súbito contacto sensível com o mundo: no fundo, a

contacto que é a condição de possibilidade do pensamento. O instante a que a alta-modernidade se enfrentou, permito-me uma citação final do texto de Bohrer, “é estruturalmente tão só a reversão de uma figura da reflexão que adquire o seu valor, precisamente, pelo seu carácter súbito” (BOHRER 2001: 130). Ora, as humanidades, na sua conformação moderna e especificamente do século XX, foram mobilizadas pelo estudo, institucionalmente fomentado, da unidade e finalidade social dos objectos culturais. Esta subsunção a um fim social implica um modelo especulativo que tem a sua condição de possibilidade em garantir a continuidade de valores, sejam eles de índole política, moral ou espiritual. No actual debate sobre a ‘crise das humanidades’, este paradigma retorna uma e outra vez. Talvez seja produtivo colocar no cerne das nossas preocupações a aesthesis, afim ao choque como experiência estética da Modernidade a que, consabidamente, Benjamin, Adorno, Lyotard ou Karl Heinz Bohrer, no campo da reflexão teórica, concederam uma variada caução teórica. Ser interpelados não tanto pela demanda do “futuro das humanidades” mas sim pelo “poder das humanidades”, torna uma necessidade o pensarmos o modo de experiência a que dá forma a ‘literatura’ e os ‘estudos literários’ – nomenclaturas que, tendo perdido evidência, não deixam de conservar valor heurístico – em função da suspensão do sentido das obras e da sua condição de “materialidade material” como necessidade para que o choque, o hic et nunc sem referência, aconteça. É este, porventura, o devir catastrófico e tardio da arte formulado por Adorno; isto é, é talvez este o imperativo de revolta de uma história da arte que perdeu o sentido. Perdeu, no fundo, a noção de uma história em que cada coisa tem o seu tempo, desde logo ao dessincronizar a arte com o gosto do tempo. ‘Literatura’ e ‘estudos literários’, no fundo, que libertem a arte da tensão de serem formas onde um determinado presente, um determinado tempo novo digamos, se espelhasse. ‘Literatura’ e ‘estudos literários’, enfim, que avancem a partir da apriorística destemporalização dos objectos estéticos – cuja história,

suspendida como narrativa, passa a ser um campo de intensidades, um campo de acontecimentos detidos e potenciais. É neste ponto que conjuraria, para exemplificar o meu argumento, um comentário de Derrida sobre a figura do gosto em Jean Paul Sartre, imagem do ‘acontecimento puro’, a presença como singularidade contingente e absoluta. Figura, em suma, do ‘ser tocado’. Diz-nos, então, Derrida: “Fenómeno primeiramente táctil, como se diz, o gosto reúne, de uma só vez, a presença sensível, sensual, imediata e sem distância, a singularidade inobjectável e portanto inalienável: ele é também absoluto nesse sentido. Mas sobretudo enquanto toca, tocando a boca, o gosto se assemelha à fala viva, age como as palavras (o gosto de Sartre para com “as palavras”), faz lembrar a afecção pura como auto-afecção – ou o fantasma, o logro, o simulacro da auto-afecção; e isso no instante mesmo em que nele me encontro passivamente afectado pela singularidade do que não sou eu, mas totalmente outro. Auto-hétero-afecção intersubjectiva: o absoluto especulativo e especular” (171). Importante lugar, este de Derrida, mostrando como o ‘ser tocado’ – uma figura do efeito de presença – é uma dimensão fundamental da nossa relação com esses objectos a que chamamos ‘literatura’ – e outra coisa não são, no fundo, os studia humanitatis desde a sua conformação, como víamos mais acima –, hiperónimo que refere uma ampla fenomenologia de textos. A minha modesta proposta é a de colocarmos no centro dos ‘estudos literários’ esta dimensão estética do ‘toque’. Uma dimensão que tem de ser pensada a partir do sensível e seu fantasma. Não sendo, o ‘ser tocado’, uma dimensão que dependa do conteúdo hermenêutico de um objecto – o objecto artístico, o poema – o corolário a que chegamos é o da rentabilidade de pensarmos a ‘literatura’ – enfim, a ‘arte’ – a partir de um enfoque material. O ponto com o qual, neste sentido, decerto topamos é o de que toda a teoria da literatura, como o mais amplo campo dos chamados ‘estudos humanísticos’, sem deixar de poder ser actualizados como disciplinas dirigidas a fins, constituem uma complexa

alegoria da materialidade da arte, dispositivos complexos e incertos de formalização intelectual de momentos de intensidade e sua fantasmática. Enfim, o resultado pírrico, mas com consequências práticas ponderosas, de pensarmos as ‘humanidades’ comutando o paradigma temporal por um paradigma potencial, é o de que perante o alarme e a ameaça de extinção, o simples e banal facto de existirem desloca a necessidade de pensar, para elas, um propósito, uma finalidade ou um conteúdo. Tudo isto porque talvez a necessidade da ‘literatura’ e dos ‘estudos literários’ radique no facto de serem uma reserva potencial, ou virtual, da estesia como produtora da subitaneidade do instante. Neste sentido, podemos reconhecer uma espécie de gemelaridade entre o contacto dos primeiros humanistas com a materialidade dos textos, e o modelo de contacto que a modernidade artística, e especificamente literária, conformou como cerne do seu projecto. Esta potencialidade ou virtualidade não tem a sua actualização garantida ou determinada. É este o impoder do poder da ‘literatura’, dos ‘estudos literários’, enfim, dos studia humanitatis, sempre instalados na iminência da sua desaparição, sempre afectados pela sua irrelevância. É esta carência estrutural que lhes define a potencialidade, é esta sublação de uma referência metafísica que é concomitante da intensidade perceptual. Para as humanidades continuarem basta-lhes, assim, o perceberem e saberem que são sem futuro – é esse o conteúdo, inalienavelmente positivo, da famigerada “crise das humanidades” – mas têm um puro poder. A aceitarmos estes termos, à arte e aos estudos humanísticos restaria a espinhosa tarefa de pensar e produzir condições de possibilidade de ruptura com uma relação com o mundo obsolescendo o providencialismo quer sagrado quer profano, colocando no cerne do contacto com a realidade a própria condição de possibilidade de a pensar: o de ser um pensamento mediado pelo sensível. Talvez mesmo um pensamento do sensível que, em rigor, re-equacione a discriminação sensível/inteligível – com a suas variadas figuras e figurações: corpo/alma, objectivo/subjectivo, aparência/essência, exteriorida-

de/interioridade – que é, no fundo, o que alguma da arte (da literatura) e dos estudos humanísticos (dos estudos literários), nesse projecto a que chamamos Modernidade, foi desejando e parcialmente cumprindo. No fundo, do que decerto se trata, uma vez mais, é de colocar a linguagem – em rigor, as linguagens e os seus suportes –, na sua condição estésica ou imaginante, no foco da reflexão sobre a capacidade de agir humana e seus limites não humanos. Enfim, o intuito de semelhante proposta, para além de conter implícita a afirmação da necessidade de materializar os ‘estudos humanísticos’ – o intuito, enfim, de pôr à prova uma argumentação alternativa para o debate das humanidades –, é o de tentar mostrar as vantagens de pensar não tanto “o futuro das humanidades”, mas o “poder das humanidades”. O poder do pensamento humanístico ou, para afinar ainda mais e ir ao essencial, a “potência do pensamento” como não há muito lhe chamou Giorgio Agamben. Relendo e reinterpretando as noções aristotélicas de potência (dynamis) e acção (energeia), Agamben recorda que uma potência contém a sua negação, ou melhor, a sua privação, isto é, o seu não exercício; de igual modo, ao actualizar-se não a anula para continuar a ser potência. Por último, uma potência tem um vínculo com a auto-afecção. Ora, como potência, o pensamento é assim descrito: “Aquilo que a tradição filosófica habituounos a considerar como o vértice do pensamento e, ao mesmo tempo, como o próprio cânone da energeia e do acto puro – o pensamento do pensamento – é, na verdade, a doação extrema da potência a si mesma, a figura completa da potência do pensamento” (2006: 28). Artes e humanidades, literatura e estudos literários, possibilitam esta autoafecção na conformação do ‘instante sem referência metafísica’, que é, volto ao lugar já citado de Bohrer, “a reversão de uma figura da reflexão que adquire o seu valor, precisamente, pelo seu carácter súbito” (BOHRER 2001: 130).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, Giorgio (2006), “A potência do pensamento”, trad. Carolina Pizzolo Torquato, Revista do Departamento de Psicologia, vol. 18, nº1, Niterói, Universidade Federal Fluminense, 11-28. COKLISS, Harley (1971). Crash!, com J. G. Ballard e Gabrielle Drake, Londres: BBC. 00:17m. BOHRER, Karl Heinz (2001), “Instants of Diminishing Representation. The Problem of Temporal Modalities”, in Heidrun Friese, ed., Time and Rupture in Modern Thought, Liverpool, Liverpool University Press, 113-134. BOHRER, Karl Heinz (1994), Suddenness. On the Momento f Aesthetic Appearence, trad. Ruth Crowley, New York, Columbia University Press, [1ª ed.: 1981]. DONOGHUE, Frank (2008), The Last Professors. The Corporate University and the Fate of the Humanities, New York, Fordham University Press. DRUCKER, Johanna (2009), Speclab. Digital Aesthetics and Projects in Speculative Computing, Chicago e Londres, University of Chicago Press. GUMBRECHT, Hans Ulrich e Walter Moser (2001), The Future of Literary Studies, Edmonton, Library of the Canadian Review of Comparative Literature. GUMBRECHT, Hans Ulrich (2014), Our Broad Present. Time and Contemporary Culture, New York, Columbia University Press. RICO, Francisco (1993), El sueño del humanismo. De Dante a Petrarca, Madrid, Alianza Editorial. SAÏD, Edward W. (1984), “The Future of Criticism”, Modern Language Notes, vol. 99, nº4, 951-958. SERRA, Pedro (2003), Romance & Filologia. Almeida Garret, Eça de Queirós, Carlos de Oliveira, São Paulo, Nankin.

SLOTERDJIK, Peter (1999), Regras para o Parque Humano. Uma Resposta à Carta de Heidegger sobre o Humanismo, trad. José Óscar de Almeida Marques, São Paulo, Editora Estação Liberdade. VALENTE, José Ángel (1970), Presentación y memorial para un monumento, Madrid, Poesía para Todos.

Texto apresentado ao XIX Seminário de Estudos Lingüísticos e Literários, realizado na Universidade Federal da Rondônia, Campus de Vilhena, no dia 01 de Outubro de 2014. Agradeço a Rosana Alencar e Milena Magalhães a oportunidade e convite para participar neste evento. Publicado em: «O que podem as humanidades? Presença dos estudos humanísticos», Revista de Estudios Portugueses y Brasileños, vol. 13, Salamanca, LusoEspañola de Ediciones, 2014, pp. 207-220.

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