O Que Quer Um Currículo

May 27, 2017 | Autor: Sandra Mara Corazza | Categoria: Curriculum Studies, Curriculum, Education and Curriculo, Teoria Curricular
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URRÍCULO? Pesquisas pós-críticas em E D U C A Ç Ã O

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C O R A Z Z A

EDITORA VOZES

Este livro apresenta 6 textos, derivados de atividades de pesquisa no campo do currículo. Pesquisa que integra as atividades desenvolvidas pela área temática

Sandra Corazza

Pós-currículo, diferença e subjetivàção de infantis, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trabalhando com as chamadas "filosofias da diferença", tal pesquisa articula isomorfismos entre a pedagogia, a medicina clínica e a jurisprudência penal, para significar as tecnologias avaliativas em curso nas escolas brasileiras. Debruça-se sobre a ética do currículo, para "liccionalizar" os seus mais novos personagens infantis: El Nino e La

I que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em Educação

Nina. Analisa o dispositivo de "eidadanidadc", operado pelos Parâmelros Curriculares Nacionais paia o Ensino Fundamental, que onlologiza um "infantil-cidadão" neoliberal. Indaga sobre a inquietante similaridade discursiva encontrada entre o Projeto ( 'onsliluinle Escolar, do Governo 1 )emocrático e Popular do Rio Glande do Sul, e os PCNs do Ministério da Educação do (ioverno federal. Caracteriza a pesquisa pós-crítica de um currículo como uma pesquisa de "invenção", cujo mote é: "Aquilo de que não se pode saber, é preciso pesquisá-lo". Além de lançar um "manifesto por um pós-currículo", cujo alvo é a mudança de todas as tradicionais unidades, sob as quais vimos estudando, ensinando, escrevendo e pesquisando a Educação.

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EDITORA VOZES Petrópolis 2001

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BIBLIOTECA SETQRIM. Pi EDUCAÇÃO

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© 2 0 0 1 , Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 P e t r ó p o l i s , RJ Internet: http://www.vozes.com.br Brasil

Todos os direitos reservados. N e n h u m a parte desta obra p o d e r á ser reproduzida o u transmitida p o r qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou m e c â n i c o , incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada e m qualquer sistema ou banco de dados sem p e r m i s s ã o escrita da Editora.

Editoração e org. literária: Otaviano M . Cunha

Ao Hugo, amado, que me proporciona vontade de viver, lutar, escrever.

I S B N 85.326.2587-8

Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

Sumário

Agradeço 1. O que quer u m currículo?, 9 • a T o m a z T a d e u da Silva, pelas várias parcerias de trabalho, dentre as quais, esta: os estudos de currículo. • à PROPESQ/UFRGS, FAPERGS e CNPq, pelo apoio e incentivo à pesquisa. • às/aos colegas do G T C u r r í c u l o , da Associação Nacional de P ó s - G r a d u a ç ã o e Pesquisa e m E d u c a ç ã o , pela acolhida e pluralidade de i n t e r l o c u ç ã o .

2. Olhos de poder sobre o currículo, 22 3. C u r r í c u l o como m o d o de subjetivação do infantil, 56 4. Governamentalidade m o r a l do c u r r í c u l o nacional, 77 5. C u r r í c u l o s alternativos-oficiais: o(s) risco(s) do hibridismo, 97 6. Manifesto p o r u m p ó s - c u r r í c u l o , 128 Referências bibliográficas,

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• a L í d i o Peretti, Editor cultural da Vozes, pela generosidade do "desafio", que resultou na c o m p o s i ç ã o deste livro.

1 O que quer um currículo?

É Que título de livro é este: O que quer um currículo? U m c u r r í c u l o "quer" alguma coisa? Antes de responder a esta q u e s t ã o , é preciso perguntar: - O que, afinal de contas, " é " u m currículo, para querer alguma coisa? Será algum eu, i n d i v í d u o , pessoa, sujeito do conhecimento, da consciência, do direito, da ciência, do inconsciente? Estará este título dotando u m c u r r í c u l o de predicados antropomórficos, ao modo m o d e r n o , humanizador de todos os seres do universo? T e r á este livro escolhido operar "em espelho" com u m c u r r í c u l o , animando-o com uma e s p é cie de individualidade humana, que, a l é m disto, é habitada p o r apetites, anseios, vontades, quereres? N o d o m í n i o de uma " m e t a f ó r i c a " do currículo, constituída pelas teorias da linguagem estruturalista e pós-esliuturalista, podemos pensar que o que u m currículo " é " 0 uma linguagem. A o conceber u m currículo como u m a linguagem, nele identificamos significantes, significados, sons, imagens, conceitos, falas, língua, posições discursivas, r e p r e s e n t a ç õ e s , m e t á f o r a s , m e t o n í m i a s , ironias, i n venções, fluxos, cortes... Assim como o dotamos de u m Ciirííter eminentemente construcionista. Ao atribuir essa c o n d i ç ã o "linguajeira" a u m currículo, dizemos que a natureza de sua discursividade é arbi9

traria e ficcional, por ser h i s t ó r i c a e socialmente construída. Que seu discurso fornece apenas u m a das tantas maneiras de formular o m u n d o , de interpretar o m u n d o , e de atribuir-lhe sentidos. Que sua sintaxe e s e m â n t i c a t ê m uma função constitutiva daquilo que enuncia como sendo "escola", "aluno/a", "professor/a", "pedagogia", e inclusive " c u r r í c u l o " . Que as palavras que u m currículo utiliza para nomear as "coisas", "fatos", "realidade", "sujeitos" são produtos de seu sistema de significação, ou de significações, que disputa com outros sistemas^ Que u m currículo, como linguagem, é uma prática social, discursiva e não-discursiva, que se corporifica em instituições, saberes, normas, p r e s c r i ç õ e s morais, regulamentos, programas, relações, valores, modos de ser sujeito. &

que n ã o existe esta linguagem toda, n e m este terceiro locus, que n ã o é n e m a fala de u m currículo, n e m os seus/suas interlocutores/as. Por isso, a significação daquilo que u m c u r r í c u l o expressa em palavras está sempre suspensa a u m alhures, que é, invariavelmente, u m a cadeia incompleta de significantes. Cadeia que suspende, adia, remete sua p r ó p r i a significação a u m outro enunciado, e assim interminavelmente. Se u m c u r r í c u l o , como ser falante, deseja na l i n guagem - sendo seu desejo u m efeito da linguagem - , n ã o é porque lhe falte alguma coisa. Se alguma coisa falta, na linguagem de u m currículo, é u m a ú l t i m a palavra que traga em si mesma u m a significação plena, para a qual n e n h u m dizer a mais seria necessário.

Sendo assim, u m currículo n ã o é nunca amo e senhor do que diz, n e m do que faz. Cativo da p r ó p r i a linguagem, u m c u r r í c u l o é incapaz de vê-la como o seu maior "problema". Quando fala, pensa que está utilizando a linguagem, mas é a linguagem que o utiliza^Ele sempre diz mais do que quer e, ao mesmo tempo, diz sempre outra coisa Ao falar, u m currículo é levado a l é m de si p r ó p r i o , pois o sentido do que diz encontra-se na linguagem de sua é p o c a e lugar, na qual está enredado.

Na fala-ação, que derrama pelo m u n d o da Cultura, da Pedagogia e da Escola, u m c u r r í c u l o , como qualquer ser falante, pode ser concebido como regido pelo funcionamento da linguagem, tal como é formulado pela Psicanálise. E n t ã o , aquilo que enuncia espera sempre sua significação de algum outro lugar, de u m enunciado a mais, e a t é mesmo da linguagem "toda", ou seja: de u m sistema total de linguagem, que u m c u r r í c u l o imagina ser, no f i nal, o fruto de seus esforços linguajeiros. O problema é

Podemos, agora, p r o p o r u m silogismo para o funcionamento de u m currículo, significado como ser falante: lá, onde u m c u r r í c u l o fala, u m c u r r í c u l o n ã o sabe o que diz. Se u m c u r r í c u l o fala, u m currículo quer. Lá, onde u m c u r r í c u l o quer, ele n ã o sabe o que quer. A linguagem de u m c u r r í c u l o é tudo de que ele d i s p õ e para i m p u t a r alguma vontade aos outros. Mas, quando diz o que quer, u m currículo confunde-o com as expectativas desses outros. Deste m o d o , sempre outro, o que quer u m c u r r í c u l o é apenas efeito de suas falações, e eles, os seus outros, tamb é m n ã o sabem o que dizem. Porque é somente o "Grande Outro", lugar do tesouro da linguagem, quem pode ensinar a u m c u r r í c u l o o que diz.

Sendo u m dispositivo saber-poder-verdade de linguagem, n ã o é n e n h u m absurdo imaginar que u m currículo possa ser visto e pensado como u m a espécie de "ser falante" - e isto só é ficção em parte. T a m b é m torna-se plausível afirmar, em termos freudo-lacanianos, que u m currículo, sendo u m ser que fala, logo quer. E p o r isto que podemos dirigir-lhe a pergunta psicanalítica do desejo: - Che vuoi? E m sua resposta, u m currículo vai nos dizer o que quer. Mas, n ó s retrucaremos: - O que está dizendo? O que quer dizer, com isto que está dizendo? O que você quer?

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T a m b é m ao agir, u m currículo sempre significa algo diferente do que faz e faz algo diferente do que significa. Este "algo diferente" é dado na r e l a ç ã o existente entre as coisas significadas nos fazeres de u m c u r r í c u l o e os signos usados para significá-las. T a l r e l a ç ã o só pode ser especificada pela identificação do m o d o linguístico em que foi formulado o sistema de signos, com os quais nomeia os objetos que povoam a superfície de inscrição de sua l i n guagem. Deriva d a í , que u m currículo n ã o pode, n e m deve, ser tomado "ao p é da letra", porque este "ao p é . . . " n ã o existe. O que existe é a equivocidade do querer-dizer de u m currículo, fornecida p o r suas significações constantemente diferidas. As formas linguísticas que u m c u r r í c u l o usa, para falar e agir, n ã o t ê m referentes específicos na realidade. Por isto, o que ele n ã o sabe é que somente o "seu" m o d o de discurso é que possibilita e sanciona o "seu" campo epist e m o l ó g i c o e "suas" atividades e estratégias de enunciação. Parece que ele n e m quer saber que sua linguagem n ã o apenas "representa" o m u n d o das coisas, mas tamb é m fabrica este m u n d o , as p r ó p r i a s coisas, e a modalidade das relações entre as coisas. O que u m c u r r í c u l o n ã o consegue descobrir é o aspecto gerativo de sua p r ó p r i a linguagem. Assim, obscurece, para si mesmo, a compree n s ã o de sua natureza criada.

Nós Porque u m currículo é uma linguagem, pode-se, nas atividades de pesquisa a c a d é m i c a e escolar, formular a pergunta: - O que quer...? E, ao fazê-la, criar condições para que cada pesquisador/a trabalhe n ã o sobre "o C u r r í c u l o " , como u m conjunto de currículos, que demandaria uma resposta unívoca. Mas, enfatizar o termo " u m currículo", para justificar a diversidade das respostas que são encontradas nas investigações. Se, neste tipo de pesquisa, cada 12

pesquisador/a d á fala a vários " u m currículo", a interrogação do desejo torna-se u m operador metafórico - uso da m e t á f o r a como " m é t o d o " - , com efeitos de ricochete. Nessa metaforicidade, a pergunta - O que quer...?, feito u m bumerangue, bate de volta naquela/e que pesquisa. E n t ã o , tendo p a r t i d o dos ditos conhecidos de u m currículo, esta pergunta remaneja a m e t á f o r a , trabalhando para tornar "estranho" o que o/a pesquisador/a considerava "familiar" na linguagem de u m currículo. C o m o efeito deste investimento m e t a f ó r i c o , criado pela c o n d i ç ã o de pesquisa, cada um/a (ou o grupo de pesquisa) é compelido/a a indagar: - O que eu quero (queremos nós) com u m c u r r í c u l o , como ser falante? O que posso (podemos) fazer com isto? Assim, persegue-se "a boa m e t á f o r a " , que demanda analisar nossos quereres, fazeres e dizeres constituidores do funcionamento de u m currículo. Funcionamento, que n ã o implica em pensar um/a pesquisador/a como dotado/a de uma suprema intencionalidade e m a n c i p a t ó r i a , de ser fonte e finalidade de qualquer significado transcendental, ou agente consciente e livre de alguma p r á t i c a social r e v o l u c i o n á r i a . Mas, mais humildemente, em poder analisar u m currículo e o que vimos querendo c o m ele, enquanto educadoras/es, eticamente r e s p o n s á v e i s pela criação, funcionamento e conseq u ê n c i a s de sua linguagem. Responsabilidade que, claro, n ã o evita que as conseq u ê n c i a s de u m c u r r í c u l o restem sempre abertas, e que u m c u r r í c u l o diga sempre mais do que p r e t e n d í a m o s que dissesse, faça mais do que deveria fazer, crie o que n ã o tínhamos previsto. Que compreenda t a m b é m tudo aquilo que, para nós, ainda é não-sujeito, sem-sentido, in-significante, i n i - m a g i n á v e l , in-descritível, im-previsto, in-determinado, i m - p e n e t r á v e l , i n - n a r r á v e l , in-dizível. A l é m desse seu c a r á t e r inefável, p o r ser u m a linguagem, u m c u r r í c u l o t a m b é m produz ideias, p r á t i c a s coleti-

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Só que, ao c o n t r á r i o do desejo da Psicanálise, que é sempre da o r d e m do inconsciente, essa "vontade de sujeito" de u m currículo n ã o é e m nada "inconsciente". T a l vontade define-se e positiva-se no p r ó p r i o funcionamento de sua linguagem, que realiza o sujeito que quer. "Quer" como? Como u m ser factível: sujeito daquele currículo e sujeito à q u e l e c u r r í c u l o .

U m c u r r í c u l o é o que dizemos e fazemos... com ele, p o r ele, nele. E nosso passado que veio, o presente que é nosso problema e limite, e o futuro que queremos mudado. E a c o m p r e s s ã o de nossa temporalidade e e s p a ç o . U m "espectro", que remete a todos os nossos outros, e exprime nossa sujeição ao " O u t r o " da linguagem. U m currículo é a precariedade dos seres multifacéticos e polimorfos que somos. Nossa p r ó p r i a linguagem c o n t e m p o r â n e a , que constitui uma pletora de "eus" e de " n ã o - e u s " , que falam e são silenciados em u m c u r r í c u l o .

calizada na rede discursiva das r e l a ç õ e s de poder-saber-subjetividade, que é o que lhe constitui como falante. Mas, em todo o trabalho de pesquisa com muitos " u m c u r r í c u l o " , é possível encontrar u m a iterabilidade das respostas que cada currículo fornece. Ousa-se, assim, u m a resposta geral, que é dada para ser d e s c o n s t r u í d a . Invariavelmente, quando perguntado, u m c u r r í c u l o costuma responder que quer " u m sujeito", que lhe permita reconhecer-se nele. Por isto, qualquer c u r r í c u l o , seja ele qual for, tem "vontade de sujeito" - pode ser dito, para lembrar Nietzsche.

vas e individuais, sujeitos que existem, vivem, sofrem e alegram-se, n u m m u n d o que se produz atravessado por complexas redes de r e l a ç õ e s , que v ã o desde as e c o n ô m i co-sociais a t é as tramas amorosas e transferenciais. A o f i m e ao cabo, u m c u r r í c u l o , como ser de linguagem, somos n ó s . E o que linguajamos como g e r a ç ã o , raça, g é n e r o , local institucional, r e l i g i ã o , ecologia,' outridade, o r i e n t a ç ã o sexual, território geopolítico, fluxos de desejo. O que poss u í m o s de consciência, e t a m b é m de inconsciência, em r e l a ç ã o às posições de sujeito que nos foram legadas, e que ocupamos.

Isto é u m c u r r í c u l o : u m ser falante, como nós, efeito e derivado da linguagem. Hoje, sem intimidade, n ã o mais básico, n e m fundamental, verdadeiro, a u t ê n t i c o . U m ser sem c o e r ê n c i a e sem profundidade. Que experimenta relações fracionadas, c o n s t r u í d a s ao redor de p e d a ç o s de falas de cada u m . Que pode (pode?) ser qualquer coisa, em qualquer momento. Que n ã o sabe mais para onde vai, mas que, mesmo assim, continua em frente, querendo saber das c o n d i ç õ e s históricas e políticas, que produzem as verdades linguajeiras de u m c u r r í c u l o .

Vontade Como u m ser de linguagem, quando lhe interrogam Che vuoi? - , u m currículo d á a sua resposta particular, lo-

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O problema é que n ã o h á sujeitos perenes, que corresp o n d a m às palavras de u m currículo, porque sua linguagem é opaca. U m a linguagem que isola o sujeito mesmo que quer e cria, dentro do universo de seu discurso, pensamento e ação. O problema é que u m currículo n ã o sabe nunca que a constituição de seu campo discursivo é u m ato "poético", enquanto criação de u m d o m í n i o específico de objetivação. D o m í n i o finito de u m a determinada o c o r r ê n cia ficcional, no qual são protocolados e sancionados modos específicos de r e p r e s e n t a ç ã o , de c o n t e ú d o s e de relações, enquanto outros são excluídos e nem formulados. Por isso, quem pesquisa O que quer um currículo? necessita indagar à opacidade e à "coisidade" c o n s t r u í d a da linguagem de u m currículo: - Se quer u m sujeito, se é u m sujeito que é querido, que sujeito é este? O cartesiano, kantiano, husserliano? O sujeito do modernismo, do romantismo, da psicanálise, do p ó s - m o d e r n i s m o ? U m a m á -

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quina, autopoiese de p r o d u ç ã o , que se inventa no p r ó p r i o acontecendo? U m c u r r í c u l o "quer" u m sujeito que pensa, logo é? Que duvida de tudo, a t é de sua capacidade de conhecer? Que, j u s t o p o r esta sua d ú v i d a estratégica, pode ter a certeza de que é autocognoscível e autotransparente? U m sujeito com capacidade de observação sistemática e de raciocínio rigoroso, liberado do erro, do místico, do tirânico? Que atua, movido pela universalidade da sua consciência, anotando, quantificando, comparando? Que faz sua r a z ã o triunfar contra a e m o ç ã o , o m é t o d o contra os instintos, a ciência contra a arte? U m c u r r í c u l o deseja u m sujeito progressista, que encarne o progresso? Que seja rentável, produtivo, próspero? U m c u r r í c u l o "quer" u m ser a u t ó n o m o , que promova u m a sociedade de iguais, livres e fraternos? Anseia por u m agente m o r a l responsável? Dotado de u m a alma interior, profunda e misteriosa, habitada por p a i x õ e s incontroláveis? U m sujeito movido pelo amor ao p r ó x i m o , t ã o imenso quanto o amor que tem por si p r ó p r i o ? Que p r i o riza o sentimento moral, ao invés da racionalidade? U m sujeito que possui u m eu essencial, c o n s t i t u í d o p o r emoções intensas? U m c u r r í c u l o "quer" u m ser dividido, clivado, em afânise p e r p é t u a ? U m eu, que responda pela ilusão de corapletude pessoal, mantida no j o g o da d i n â m i c a pulsional? U m sujeito desconhecido para si, que necessita submeter-se a técnicas de auto-exame e de autoconhecimento? U m ser imbricado na sexualidade e verdade interior, só reveladas por u m a h e r m e n ê u t i c a do eu? Que busca a verdade de si, que sempre lhe escapa, p o r estar a l é m de sua consciência? U m sujeito forçado a estar sempre em movimento, impulsionado por forças que desconhece? U m c u r r í c u l o "quer" u m sujeito que interpele os i n d i víduos concretos, para sujeitá-los a u m Sujeito Absoluto,

como Deus, A H u m a n i d a d e , A N a ç ã o , A Classe, O G é n e ro, A Linguagem? U m sujeito do liberalismo capitalístico da burguesia? U m dos efeitos mais positivos do biopoder e da biopolítica? U m a i n v e n ç ã o do humanismo de todas as ciências sociais e humanas? U m a individualidade, u m a totalidade, criadas pelo dispositivo disciplinar da normalização moderna? U m i n d i v í d u o derivado das tecnologias de governo dos Estados neoliberais? U m sujeito d e r r i s ó rio, abjecto, maltratado? U m louco, que n ã o consegue escapar do E s p í r i t o Maligno, e nem de sua incessante disr u p ç ã o como sujeito? U m devir, u m tornar-se, u m arranj a m e n t o coletivo de e n u n c i a ç ã o e m a q u í n i c o do desejo? U m "nada de sujeito", que o modo do discurso de u m currículo condena ao limbo dos seres que n ã o p o d e m ser vistos n e m ditos?

Verdade Quem, como n ó s , trabalha com as teorias pós-críticas, no t e r r i t ó r i o da E d u c a ç ã o , n ã o faz mais a pesquisa "do C u r r í c u l o " , no sentido global. Pesquisa que requeria, como resultados, explicações totalizantes e unificadoras sobre a verdade e o verdadeiro do C u r r í c u l o . Explicações sobre "a T e o r i a " ou "a Prática" do C u r r í c u l o , que costumavam reinar sem qualquer partilha. Menos pretensiosamente, o/a pesquisador/a pós-crítico/a analisa as vicissitudes do desejo p o r u m sujeito e os acidentes da linguagem de cada c u r r í c u l o : daquele " u m c u r r í c u l o " específico, que escolheu para investigar - sendo, ao mesmo tempo, tamb é m "escolhido/a" p o r ela. Escolhas que se consubstanciam em outra ética de trabalho, em outra linguagem de crítica, e e m outras r e l a ç õ e s com "a verdade" de sua p r ó pria pesquisa. A pesquisa pós-crítica de u m currículo rejeita tanto a lógica quanto a empiricidade totalizadoras da verdade "do C u r r í c u l o " . O que ela diz é "a falta de verdade" deste

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tipo de investigação, p o r indagar: - Como, em que condições, esta verdade chegou a ser verdadeira? Quais as relações de poder que possibilitaram a c o n s t r u ç ã o de tal verdade? Quais os efeitos de verdade sobre o sujeito que ela assujeita? Só que, quando responde a estas q u e s t õ e s , o/a pesquisador/a formula u m a "verdade", derivada da sua pesquisa, cuja t e n d ê n c i a é instalar-se e funcionar em posição de verdade. Ocorre que a verdade, e x t r a í d a da pesquisa pós-crítica, n ã o tem c o n d i ç õ e s de funcionar nessa posição, porque a linguagem da t e o r i z a ç ã o - usada para pesquisar a verdade linguajeira de u m c u r r í c u l o - n ã o pretende, n e m diz tudo. Por causa desta característica da linguagem pós-crítica, a verdade que resulta da pesquisa é sempre u m semidizer, uma verdade que n ã o pode ser dita toda. H á u m impossível de dizer, na linguagem com que se pesquisa, que a pesquisa encarna. Assim, o/a pesquisador/a pós-crítico/a renuncia tanto ao saber consolidado quanto ao p r ó p r i o acervo de conhecimentos obtidos p o r suas investigações. E, incessantemente, c o m e ç a tudo de novo. Diferente de Wittgenstein, para quem "aquilo de que n ã o se pode falar, é preciso calá-lo", a o p e r a ç ã o de pesquisa pós-crítica define-se pela m á x i m a impossível: - A q u i l o de que n ã o se pode saber, é preciso pesquisá-lo. N ã o que a pesquisa pós-crítica seja "imperfeita". N ã o que p e r t e n ç a a uma ordem de imperfeição, que uma pesquisa mais aplicada, mais sistemática, de mais tempo, permitiria preencher. Mas, porque funciona como a p r ó p r i a forma de saber pós-crítico: u m saber que n ã o permite saber tudo. A pesquisa pós-crítica elabora saberes que, por mais operativos que sejam, n ã o deixam de ser criações, experimentações. Saberes que significam muito mais u m não-saber, uma ignorância necessária ao/à pesquisador/a, que sabe que nenhuma pesquisa p o d e r á remediar.

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0 que é um currículo ? O que um currículo quer? Que sujeito ele quer? A pesquisa pós-crítica protesta a responder, de modo "verdadeiro", a essas questões, em nome da p r ó p r i a linguagem com que as analisa. Essas são questões, p o r excelência, para as quais "evidência" alguma oferece seu apoio. Diferentemente, de quando se tratava de saber o que era e o que queria a Teoria ou a Prática do Currículo, jamais se está segura/o dessas respostas. Para a pesquisa pós-crítica, u m currículo n ã o é em nada u m "mistério", ao qual se atribuía u m tanto de mistificação ou mentira. T a l pesquisa n ã o identifica u m currículo como uma espécie de "esconderijo", que dissimularia algo, nefasto ou n ã o . Do que quer u m currículo, a pesquisa pós-crítica n ã o formula uma verdade absoluta, mas "verdades" sempre parciais. Por isso, os seus "resultados" encontram-se abertos pelas possibilidades de outras linguagens, que responder ã o à pergunta O que quer um currículo? de modo diferente, m ú l t i p l o , disseminado. C o n t i n u a m sendo q u e s t õ e s e p r o b l e m á t i c a s de pesquisa, n ã o resultados. Estão, permanentemente, atentos aos detalhes dissonantes da linguagem de u m currículo, à temporalidade de seu a posteriori, em que as significações ganham sentidos só depois. Mesmo depois de obtidos, tais "resultados" ainda buscam as articulações complexas entre o seu objeto de estudo - u m currículo - e a linguagem pós-crítica usada para falar deste objeto. Objeto e linguagem, coisa e palavra, entendidos como processos que se refletem e retratam, sempre. Ao realizar a pesquisa pós-crítica de u m currículo, entendido como linguagem, o/a pesquisador/a busca o encontro sempre faltoso com u m semidizer, que ele/a n ã o consegue designar no discurso, senão como lacuna. Busca a significação que poderia ter sido esquecida, e aquela sempre nova, jamais esgotada, nem definitivamente fixada. Aquela que escapara, sim, porque nunca antes pudera ter sido atribuída, nem possibilitada ou permitida, pelas formas anteriores de fazer a pesquisa "do Currículo". T o m a os enuncia-

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dos dos discursos curriculares que analisa pelo avesso, e destaca, deles, outras redes de significação. A pesquisa pós-crítica é u m a pesquisa de " i n v e n ç ã o " , n ã o de " c o m p r o v a ç ã o " do que j á foi sistematizado. Sua p r i n c i p a l c o n t r i b u i ç ã o é apenas a de ser a p r o v e i t á v e l p o r outros/as pesquisadores/as, como u m a "sementeira" de sentidos imprevistos. Ela i m p l o d e o sistema consensual das formas e m que habitualmente compreendemos, falamos e escutamos u m a linguagem curricular. I m p l o s ã o de sentidos que, no m í n i m o , faz "saltar" o que estava ainda não-significado, o que era a-significante. C o m o sua p r i n cipal tarefa política, a pesquisa pós-crítica quer transformar o funcionamento da linguagem de u m currículo, na d i r e ç ã o de modificar as suas c o n d i ç õ e s de e n u n c i a ç ã o , fornecendo-lhe planos infinitos de possíveis.

Exige t a m b é m que, para ser pesquisador/a, cada um/a opere na p e n u m b r a do que n ã o sabe direito o que é: na penumbra da eficácia simbólica da linguagem. Que percorra os rizomas das significações culturais, que o/a fertilizam, para praticar a pesquisa educacional de forma p o é tica. Pesquisar-poetar: viver, em uma palavra. Arriscar, assumir o risco da morte, que é estar viva/o. E, assim, realizar sua sina e situação de estar no m u n d o , viva/o, sem considerar-se u m p r o d u t o acabado.

Para realizar tal tipo de pesquisa, é preciso estudar as teorias pós-críticas, para, depois, pô-las provisoriamente de lado. I r ao encontro do objeto sem as teorias. Deixar à margem o aprendido, para fazer com que, da originalidade do objeto saltem, como " r ã z i n h a s " , os sentidos novos. Assim, cada pesquisador/a pode n o m i n a r com novas significações o seu objeto que, em função disto, p o d e r á adq u i r i r outros sentidos. E t a m b é m para que d a í possa surgir u m a nova teoria, que emerja da j u n ç ã o entre a teorização e o objeto. As teorias pós-críticas orientam a a t e n ç ã o do/a pesquisador/a para certas unidades analíticas, mas n ã o lhe fornecem nenhuma "solução" para os problemas que está considerando. O que elas fazem surgir são outros sentidos para u m currículo, que, depois, vão ser cotejados com as outras teorias de sentido. T a l prática de pesquisa exige u m grau razoável de tolerância à "frustração" a c a d é m i c a , representada pelas incertezas da verdade; pela falha de solução para o problema pesquisado; pelo e s g a r ç a m e n t o de qualquer unidade dos resultados; e pela capacidade de suportar tudo o que, apesar dos esforços, não-faz-sentido. 20

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2 Olhos de poder sobre o currículo*

Os "olhos" que olhara as crianças na escola e na sala de aula n ã o s ã o nunca isentos, sequer desinteressados, m u i t o menos descritivos. Seus "olhares" - sejam curriculares, didáticos, p e d a g ó g i c o s , psicológicos, sociológicos, filosóficos, a n t r o p o l ó g i c o s - estão historicamente comprometidos em determinadas relações de poder-saber e implicados na c o n s t i t u i ç ã o de certas políticas de identidade e de r e p r e s e n t a ç ã o culturais, e n ã o de outras. Este trabalho b u s c a r á dar outra visibilidade a u m desses olhares - o do dispositivo (cf. Foucault, 1979) avaliativo dos Pareceres Descritivos. Dispositivo que, como se sabe, é amplamente utilizado em instituições escolares c o n t e m p o r â n e a s e valorizado como u m a forma progressista, d e m o c r á t i c a , e a t é e m a n c i p a t ó r i a de realizar o processo de avaliação das/os estudantes. Pela a t r i b u i ç ã o de tais significados, u m a forma de avaliar que inclua, entre seus instrumentos, os Pareceres Descritivos, costuma ser contraposta à q u e l a s formas que deles prescinde, as quais por isto são consideradas conservadoras, repressoras, autoritárias. Este é o j e i t o como estamos habituadas/os a qualificar, pensar e falar dos Pareceres.

* Este texto foi publicado, primeiramente, pela revista Educação & Realidade. Porto Alegre: Faculdade de Educação/UFRGS, v. 21, n . l , jan.-jun./1996: 46-70.

Desde a conceitualização p ó s - e s t r u t u r a l i s t a , e m suas c o n t r i b u i ç õ e s para o campo da teoria do currículo, constituirei o instrumental " ó t i c o " para realizar algumas operações analíticas sobre o conjunto interdiscursivo formado por três positividades, quais sejam: o discurso d i d á t i c o , o da medicina clínica e o discurso da j u r i s p r u d ê n c i a penal. Criada esta r e g i ã o de interpositividade, as o p e r a ç õ e s desc r e v e r ã o os isomorfismos que a atravessam e p r o d u z e m as tecnologias avaliativas dos pareceres escritos e de suas correlatas, a o b s e r v a ç ã o e a auto-avaliação. Obrigarei tais olhares a entrarem n u m a espécie de jogo, ao modo foucaultiano, que nos leve a: 1) estranhá-los e, p o r isto, desnaturalizá-los enquanto instrumentos de uma humanizante d e s c r i ç ã o das crianças e de seus desempenhos escolares; 2) olhá-los com outros olhos, p o r focá-los com a lente de u m a e s t r a t é g i c a tecnologia educacional de poder, controle, r e g u l a ç ã o , n o r m a l i z a ç ã o e disciplinamento moral da infância-escolar; 3) enunciá-los em uma linguagem, n ã o essencializada, mas de inspiração genealógica; 4) pensar em suas implicações para as atuais relações entre currículo, subjetividade e poder; 5) ler sua textualidade, como u m a das mais discriminatórias p r o d u ções culturais da biopolítica escolar; 6) reinterrogar as evid ê n c i a s de seus efeitos de poder, saber e verdade para a p r á t i c a curricular, as c r i a n ç a s e seus grupos sociais. Mas isso é alguma coisa que este texto conseguirá, ou n ã o , produzir em seu curso e ao seu final. Por ora, na p r i meira parte - Usos e costumes - , iniciarei a o p e r a ç ã o p o r u m elemento simples da p r á t i c a avaliativa dos Pareceres Descritivos; isto é, p o r u m a breve descrição de seus "usos e costumes", investigados em escolas integrantes das redes m u nicipal e estadual de ensino da cidade de Porto Alegre. Na segunda parte - Continuidades didáticas - , indicarei u m duplo seguimento: o primeiro, encontrado em uma re-

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visão da literatura didática, feita em textos integrantes de duas posições bem conhecidas das/os educadoras/es brasileiras/os - quais sejam, a D i d á t i c a T r a d i c i o n a l e a Didática Fundamental (cf. Candau, 1985) - ; e o segundo, referente à existência de uma l i n h a c o n t í n u a , que estende as significações vistas na p r á t i c a escolar pesquisada a t é as o r i e n t a ç õ e s fornecidas pelos textos didáticos. Na terceira parte - Ver, saber - , acompanharei as descrições de Foucault (1987a) acerca das e x p e r i ê n c i a s e pedagogias produtoras do poder-saber clínico, a fim de analisar o conjunto intertextual c o n s t i t u í d o pelas f o r m a ç õ e s discursivas da medicina e da pedagogia, as quais colocam em j o g o práticas a n á l o g a s de "ver, saber". Re-descreverei alguns modos pelos quais a pedagogia moderna se aprop r i o u e reterritorializou as positividades m é d i c a s de olhar e de p r o d u z i r saber, para criar e p ô r a funcionar os dispositivos avaliativos da o b s e r v a ç ã o , auto-avaliação e pareceres escritos. Na parte intitulada Dispositivo de penalização normativa, estabelecerei correlações entre a forma de p e n a l i z a ç ã o normativa moderna (Foucault, 1987b) e a avaliação escolar, articulando esta r e g i ã o de interpositividade com a terceira, das f o r m a ç õ e s clínicas. Farei isto para mostrar as regularidades discursivas e não-discursivas que constituír a m algumas das atuais tecnologias escolares de normalização, ou seja, as mesmas que estabelecem as relações de força de u m infantil-escolar consigo mesmo. Finalmente, em Olhos inocentes? Só se forem os nossos, a p a r t i r das pequenas rupturas óticas das partes anteriores indagarei sobre o p o r q u ê de tudo isso, para prosseguir suspendendo as costumeiras significações e p r á t i c a s ped a g ó g i c a s dos Pareceres Descritivos. E, ao i r fazendo assim, continuar olhando e dizendo algo u m pouco diferente acerca do poder p r o d u t i v o desses "olhos", que i n sistem em se manter bem abertos, e a t é "espichados" sobre o c u r r í c u l o da E d u c a ç ã o Infantil.

Usos e costumes Para u m a breve descrição dos Pareceres Descritivos, é suficiente dizer que tais documentos escolares consistem em u m a ficha individual, preenchida pelas/os professoras/es, com dados acerca do desempenho escolar de cada aluno e aluna, em u m determinado p e r í o d o letivo. N o discurso p e d a g ó g i c o escolar, os Pareceres n ã o são considerados e m si mesmos enquanto "instrumentos de avaliação" - tais como as provas, testes, exames - , j á que eles n ã o "servem" para avaliar as crianças. E m vez disto, são classificados na mesma categoria do Boletim Escolar enquanto "instrumentos de e x p r e s s ã o dos resultados da avaliação", podendo fazer parte do p r ó p r i o texto do boletim, ou v i r anexados a ele, em u m a folha à parte. Assim, são significados e praticados pelas escolas e professoras como u m instrumento a ser utilizado, somente, " a p ó s " a realização de todo o processo de avaliação, feito p o r meio de outros instrumentos que n ã o eles p r ó prios. Seu p r o p ó s i t o declarado é o de comunicar - aos p a i s / m ã e s ou r e s p o n s á v e i s pela c r i a n ç a e, em algumas escolas, à p r ó p r i a c r i a n ç a e t a m b é m à equipe diretiva - os progressos e as dificuldades individuais, fornecer sugestões de como melhorar, bem como apontar os resultados parciais/finais do processo de aprendizagem. P o r é m , encontrei a i m p l e m e n t a ç ã o de alguns mecanismos utilizados durante o processo avaliativo, que apenas "funcionam" porque a a d o ç ã o dos pareceres assim o exige, tais como: a) auto-avaliações e registros descritivos leitos pelas/os alunas/os sobre seus desempenhos; b) anotações sistemáticas - diárias, semanais e mensais - feitas pelas professoras em seus Diários de Classe, onde registram observações sobre si p r ó p r i a s e sobre as crianças; c) escrita de pareceres, parciais ou finais, realizados por pais, m ã e s , familiares e r e s p o n s á v e i s pelos/as alunos/as; d) fichas escritas para r e u n i õ e s p e d a g ó g i c a s - ou escritas UFRGS BIBLIOTECA SETORIAL OE E D U C A Ç Ã O

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durante sua r e a l i z a ç ã o - contendo apontamentos sobre o trabalho de sala de aula, a t u r m a e cada aluno/a. Desse m o d o , a utilização dos Pareceres Descritivos alegadamente u m mero instrumento de e x p r e s s ã o / c o m u nicação dos resultados da avaliação - provoca modificações concretas no tipo e na forma de avaliação escolar, e n ã o somente "expressa" ou "comunica" os resultados obtidos p o r outros mecanismos. E m sua materialidade funcional, os pareceres n ã o somente expressam e comunicam, mas ativamente produzem meios e instrumentos avaliativos, exercícios de regulação, procedimentos de objetificação e subjetivação dos/as infantis. Costumam ser escritos individualmente pela professora r e s p o n s á v e l p o r cada turma. O u e n t ã o , s ã o produzidos nos Conselhos de Classe, naquelas escolas que mant ê m esta instância avaliativa para turmas unidocentes reunindo professoras/es dos setores administrativo, pedagógico e as professoras de uma mesma série; b e m como na situação de atendimento pluridocente a uma mesma turma do C u r r í c u l o p o r Atividades, como foi encontrado nas 4 séries do Ensino Fundamental, em algumas escolas da rede m u n i c i p a l de ensino. as

E m algumas escolas, o c o n t e ú d o do que aparece escrito nos Pareceres Descritivos fica exclusivamente a critério da professora de classe. E m outras, a c o o r d e n a ç ã o pedagógica fornece o r i e n t a ç õ e s gerais sobre sua e l a b o r a ç ã o , apontando a necessidade de que os pareceres estejam em c o n s o n â n c i a com os objetivos e c o n t e ú d o s m í n i m o s estabelecidos nos planos de ensino, ou com aqueles efetivamente trabalhados em aula. As professoras acreditam ser i m p r e s c i n d í v e l realizar registros continuados das ocorrências em sala de aula e dos comportamentos i n d i v i duais das crianças. Para que, de tal a c ú m u l o - gradual, constante, cumulativo e, de p r e f e r ê n c i a , cooperativo - , possam retirar evidências, que as d o t e m de " c o n d i ç õ e s

ó t i m a s " para descrever o "verdadeiro" desempenho escolar de cada aluna/o. Foram encontrados dois tipos de "agendas ocultas", a serem seguidas no m o m e n t o de escrever os pareceres: 1) as do p r i m e i r o tipo são aquelas de p r o d u ç ã o recente feita pelas p r ó p r i a s professoras, ou de m o d o solitário, p o r cada uma; ou em r e u n i õ e s de classes paralelas, nas escolas que m a n t ê m atendimento pluridocente e nas que i m plementam u m trabalho p e d a g ó g i c o organizado e sistem á t i c o ; 2) as do segundo tipo consistem em "fichas padronizadas" (já amarelecidas), integradas p o r itens de condutas e comportamentos observáveis, cuja g é n e s e reconhecida data do p e r í o d o tecnicista dos anos setenta, mas que ainda m a n t ê m plena vigência e legitimidade como guias de avaliação, embora n ã o tenham sido objeto de análise recente pelas professoras. T a n t o n u m quanto n o u t r o tipo, os itens referem-se a: responsabilidade; cuidado com a a p a r ê n c i a e com o material escolar; r e l a ç õ e s com colegas e professora; pontualidade e assiduidade; aproveitamento nas disciplinas/áreas de conhecimento; p a r t i c i p a ç ã o nas aulas; desenvolvimento cognitivo, afetivo, psicomotor; h á b i t o s de higiene. Orientando-se p o r suas agendas ocultas, as professoras encontram ali s u g e s t õ e s de á r e a s ou de comportamentos a serem observados, e mesmo modelos de frases p a d r o n i zadas, que as auxiliam na descrição da c r i a n ç a e de seu rendimento escolar. A e l a b o r a ç ã o dos pareceres pelas professoras e sua posterior entrega aos familiares e responsáveis seguem a periodicidade escolar bimestral, divisão do tempo escolar dominante no sistema p ú b l i c o brasileiro, h á mais o u menos trinta anos. Estes escritos acompanham as notas ou conceitos e mesmo os substituem, como foi o caso das duas primeiras séries do Ensino Fundamental, no Rio Grande do Sul, e m que as escolas, se assim decidissem, 27

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solicitavam a u t o r i z a ç ã o à Secretaria Estadual de Educação - para as primeiras séries, desde 1989, e para as segundas, desde 1990 - , ficando liberadas para emitir apenas Pareceres Descritivos durante o ano letivo e, ao final deste, indicar se a/o aluna/o f o i "Aprovado" o u "Reprovado" , sem necessidade de expressar os resultados da avalia ç ã o através de Notas ou Conceitos, o b r i g a t ó r i o s para as outras séries do sistema de ensino. As professoras das Séries Iniciais consideram os Pareceres como bastante avançados em relação aos "impiedosos" n ú m e r o s das notas, e mesmo em relação às precariedades discriminativas dos conceitos. E as escolas, que trabalham com os Pareceres (ao invés de com notas ou conceitos, ou que os fazem acompanhar de Pareceres), são t a m b é m consideradas bastante avançadas - e até mesmo dignas de serem incluídas na categoria de "escolas cidadãs" - , no que se refere ao caráter democrático de sua avaliação. T a m b é m foi referido pelas professoras que, nos cursos de f o r m a ç ã o p o r elas realizados, seja nas faculdades de E d u c a ç ã o ou nas escolas de M a g i s t é r i o , os pareceres escritos eram utilizados para descrever o desempenho de suas/seus professoras/es, a avaliação da disciplina, ou o seu p r ó p r i o aproveitamento. C o m este exercício, acreditavam - elas p r ó p r i a s e as/os professoras/es - que as/os futuras/os educadoras/es i n c o r p o r a r i a m tal instrumento em sua p r á t i c a p e d a g ó g i c a , a p e r f e i ç o a n d o - o e democratizando-o sempre mais. Essas são evidências facilmente e n c o n t r á v e i s em escolas alinhadas no campo das pedagogias ditas progressistas, conscientizadoras, e m a n c i p a t ó r i a s . " E v i d ê n c i a s " das quais temos nos ocupado m u i t o pouco, deixando de realizar uma análise pós-crítica diferenciada que possa, no m í n i m o , dissipar a insistente familiaridade c o m que este tipo de p r á t i c a vem sendo realizado no e s p a ç o institucional da escola.

Mas, e no discurso d i d á t i c o , legitimado pela comunidade científica educacional, o que é dito em relação aos Pareceres Descritivos? H a v e r á aí alguma dissonância, rupturas, descontinuidades? O u os "usos e costumes", falados nas escolas pesquisadas, p o d e m ser homologados com tal discurso? Ainda mais: dentro deste mesmo discurso, é possível constatar diferenças entre os textos de u m a d i d á tica tradicional e aqueles de uma outra, que p ô s a p r i m e i ra em q u e s t ã o ? A busca de alguma resposta a estas perguntas constitui o p r ó x i m o lance.

Continuidades didáticas Se percorrermos o tema da Avaliação - tal como aparece na literatura d i d á t i c a brasileira dos ú l t i m o s trinta o u quarenta anos - , encontraremos, a l é m das provas e dos testes (em suas diversas formas), outros instrumentos e técnicas de avaliação, tais como: o b s e r v a ç ã o , auto-avaliaçao, entrevista, estudo de caso, q u e s t i o n á r i o , sociometria, a n e d o t á r i o , sistema de categorias, fichas padronizadas. Desses instrumentos, para analisar, em seu entrecruzamento com os Pareceres Descritivos, destaquei a "observação continuada do desempenho da criança pela professora" e a "auto-avaliação", em função da frequência com que, de forma alinhada, costumam estar presentes, tanto nos textos didáticos quanto na p r á t i c a p e d a g ó g i c a escolar; bem como pelas indicações encontradas, em ambos Os d o m í n i o s , de que estes constituem os dois instrumentos i m p r e s c i n d í v e i s para u m a adequada e corre ta p r o d u ção dos Pareceres Descritivos. Conforme Pura Martins (1989), foi a teoria da Escola Nova aquela que modificou os procedimentos avaliativos da Escola Tradicional, deslocando-os da "evocação dos conhecimentos memorizados", realizada através de " i n ( e r r o g a t ó r i o s orais, provas e trabalhos escritos" para a

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"auto-avaliação e a observação do comportamento do aluno" (ib.: 56). Nesta d i r e ç ã o , T u r r a et alii (1980) dedicam nina cxtensa parte de seu prestigiado livro aos instrumentos
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